Plantar, colher, comer: um estudo sobre o campesinato goiano – BRANDÃO (T-RAA)

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Plantar, colher, comer: um estudo sobre o campesinato goiano. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1981. Resenha de: OLIVEIRA, Ana Luisa Araújo de. Plantar, Colher, Comer: relações entre a produção e o consumo de alimentos. Tessituras, Pelotas, v.6, n.2, p. 258-265, jul./dez., 2018.

Historicamente, o desenvolvimento rural brasileiro foi pautado, principalmente, pela implantação de grandes propriedades fundiárias e expropriação do camponês, constituindo-se uma verdadeira questão agrária presente desde a colonização aos dias atuais. No contexto de forte repressão dos movimentos sociais e daqueles que eram contrários ao modelo instalado, os anos entre 1965 e 1984 marcaram o período da ditadura militar e a publicação do livro que ora é resenhado ocorre em 1981 em um cenário completamente desfavorável para reflexões sobre o campesinato no Brasil.

Diante disso, a importância dada ao debate naquele momento era pequena, porém “ganhou corpo” após a redemocratização em 1985 e aumentando consideravelmente a partir da década de 1990 com a pressão exercida pelos movimentos sociais, o reconhecimento internacional da importância da agricultura de base familiar e a criação de políticas públicas para esse grupo social. No entanto, mesmo com essas mudanças, pouco discute quanto as práticas sociais de produção e consumo de comida dos camponeses brasileiros. Nesse sentindo, essa resenha se propõe a uma releitura do livro “Plantar, colher, comer: um estudo sobre o campesinato goiano”, de Carlos Rodrigues Brandão, buscando conexões entre o trabalho do autor e o debate contemporâneo sobre as temáticas ligadas à alimentação.

Como dito, o livro escrito por Carlos Rodrigues Brandão “Plantar, colher, comer: um estudo sobre o campesinato goiano” foi publicado em 1981 e oferece ao leitor reflexões sobre hábitos alimentares, ideologias e crenças do camponês no que se refere às práticas sociais de produção e consumo de comida na pequena cidade de Mossâmedes, interior do Estado de Goiás. Retomar esse livro depois de tantos anos, contribui para (re)descobrir as relações entre a produção e o consumo, assim como o entendimento de que os alimentos são iguarias dotadas de significados, de forma que compreender as práticas voltadas à comida é chave para a análise sobre os modos de sociação singulares entre camponeses.

Importante destacar que, o livro de Brandão dialoga com o clássico de Antônio Cândido “Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e as transformações de seus meios de vida” publicado pela primeira vez em 1964, e com “O trabalho da terra: a lógica e a simbólica da lavoura camponesa” de Ellen Woortmann e Klass Woortmann, publicado em 1997.

Além disso, sua abordagem dialoga com a disciplina de Sociologia da Alimentação, a qual discute elementos para compreender o moderno sistema alimentar e as relações entre alimentos, saúde e ambiente sob um ponto de vista político e social. Cassol e Schneider (2015), se referindo a essa disciplina, destacam outros elementos que tem impulsionado as discussões, como as questões de saúde pública (desnutrição e obesidade), a opulência do consumo e consequente desperdício de alimentos, as ações de segurança alimentar e nutricional (SAN) e as ações voltadas à agricultura familiar, o que aparece no livro de Brandão.

O livro de Carlos Rodrigues Brandão está dividido em sete capítulos e apresenta três anexos que contribuem para enriquecer a obra, aumentar o valor do trabalho de campo realizado e melhorar a compreensão do leitor quanto às práticas alimentares do camponês brasileiro, a partir da apresentação das receitas de comida do lugar.

No capítulo 01 Brandão faz uma introdução de seu estudo, apontando que a análise se concentra na produção, circulação e consumo de alimentos, principalmente, em três fases de relações que o lavrador aponta ao falar sobre seu trabalho e as condições de acesso à sua comida: “as duas primeiras quando o lavrador define sua experiência como um agricultor de cereais: a terceira quando se apresenta como um dos consumidores da comida do lugar” (BRANDÃO, 1981, p. 12).

Uma melhor compreensão do leitor sobre as relações que coexistiram em Mossâmedes é fornecida por Brandão no capítulo 02, quando o autor faz uma descrição preciosa dos habitantes que a colonizaram e os ciclos econômicos que a cidade passou: de uma local de aldeamento de índios à residência de verão dos governadores da Província, posteriormente abandonada por funcionários da Coroa e por seus primeiros habitantes à uma região repovoada por ganadeiros e agricultores de cereais (alguns desses últimos vindos de região mineiras em decadência).

Especificamente, na primeira fase as relações consideravam as trocas entre a sociedade produtora e a natureza como o primeiro espaço efetivo de produção. Nessa fase o espaço era dominado pela natureza e as relações sociais eram dadas entre os fazendeiros e os agregados.

Esses podiam usar as pastagens, criar porcos e galinhas, cultivar cereais e outros vegetais permanentes e semipermanentes na fazenda. Além disso, ao mesmo tempo em que eram agricultores, eram coletores, caçadores e pescadores – a percepção dos lavradores dessa fase é de uma natureza hostil (sem domínio do homem).

O surgimento de um mercado para os cereais é visto pelos lavradores como o principal responsável pela mudança da primeira para a segunda fase da relação entre natureza, lavradores e proprietários das terras.

O reflexo da mudança de uma economia de subsistência para uma economia voltada ao mercado foi o aumento da área com o cultivo de gramíneas para o gado e cereais (arroz, milho e feijão), bem como o uso de adubos, máquinas e implementos agrícolas obtidos por meio de financiamentos da produção. Nessa segunda fase as relações colocam em confronto categorias de produtores nos limites de um espaço de natureza e da sociedade constituída. Nesse momento as relações foram redefinidas, os não proprietários tornaram-se agregados-meeiros.

O sucesso do aumento da área de produção e da modernização da agricultura resultou em um crescente número de fazendeiros reduzindo ou eliminando os contratos de “lavoura na meia”. A resposta a este momento, foi a migração dos agregados para a área urbana de Mossâmedes. Na terceira fase os lavradores consideram-se consumidores e um novo espaço de relações se constitui na sociedade urbanizada, através da comida consumida.

A progressiva restrição do acesso a recursos imediatos de obtenção de alimentos familiares, fora os das lavouras associadas, é considerado pelo lavrador como uma das razões mais decisivas para a certeza de que “não compensa” mais morar nas fazendas (BRANDÃO, 1981, p. 28).

Importante ressaltar que, a série histórica de dados da Pesquisa Agrícola Municipal (PAM) e da Pesquisa Pecuária Municipal (PPM) do IBGE, quantificam a descrição qualitativa realizada pelo autor sobre as mudanças da produção agrícola e pecuária e contribuem para visualizar que, as características permaneceram dinâmicas ao longo da história de Mossâmedes. Além disso, quando confrontado aos dados brasileiros evidencia semelhanças no que se refere a transformação da “economia de subsistência para uma economia voltada ao mercado”.

Em Mossâmedes, ao longo dos últimos 30 de sua história observa-se redução dos cultivos de cereais (arroz, feijão e milho, principalmente) destinados a alimentação humana e aumento de cultivos de soja, assim como aumento de 70% na criação de aves em virtude da instalação de grandes aviários na região. Além disso, em 2010 a cidade de Mossâmedes contava com 5.007 habitantes, dos quais somente 35% residiam no meio rural (IBGE, 2010).

Uma vez lavrador urbanizado, Brandão teve o cuidado de dedicar o capítulo 03 a esse ator social. Nele o autor explica quem são esses atores, como trabalham na cidade, como reorganizam a família e como manipulam os recursos para acesso e consumo de comida.

Brandão ressalta que, além de nascidos “na roça”, os lavradores de Mossâmedes tiveram uma vida ligada a agricultura. Com a mudança para a cidade, esses redefinem-se profissionalmente e passam a ser diarista de seus empregadores – que podem ser ou não fazendeiros. No entanto, as preocupações da família continuam direcionadas a prioridade de obtenção de alimentos.

O autor pontua que, mesmo morando na cidade, o lavrador urbanizado tende a continuar como um produtor rural parceiro e aproveita as terras sob seu uso para o plantio de arroz, milho e feijão. Em alguns casos também para o cultivo de culturas complementares: mandioca, amendoim, café e banana. Mas, Brandão ressalta que a cada ano “os fazendeiros reservam porções maiores de suas fazendas para as suas próprias lavouras ou para a formação de pastagens, e destinam a produtores sem-terra áreas cada vez menores e de pior qualidade de terreno” (BRANDÃO, 1981, p. 37).

Os alimentos produzidos pelo lavrador urbanizado são, em sua maioria, guardados para o consumo da família, ainda são feitas trocas entre parentes e doações para a igreja, assim como para famílias mais pobres. A sobra as vezes pode ser destinada à venda.

Complementar a produção “na meia”, Brandão constatou que essas famílias mantêm pequena plantação caseira (frutas, verduras e legumes) e criação de animais (porcos e galinhas) no quintal da casa, sendo a mulher a principal responsável pela produção doméstica. Além disso, uma terceira forma de acesso aos alimentos do lavrador urbanizado é por meio da compra em Mossâmedes.

Da fazenda para uma casa na “vila”, a família do lavrador completa um ciclo de relações de acesso aos alimentos que começa com a produção de todos os alimentos consumidos, quando o lavrador é agregado de uma das fazendas da região; e termina com a compra de quase toda a comida familiar, quando o lavrador residente na cidade, é um produtor rural assalariado, não produz como parceiro e reside na “vila” em uma casa com quintal pequeno e em terreno “da serra” (BRANDÃO, 1981, p. 42).

Concomitante a mudança nas formas de acesso aos alimentos, a mudança para a cidade também altera a sequência e os horários de alimentação, tendendo a equiparar ao costume de centros urbanos. No entanto, “a variação da dieta alimentar entre sujeitos de classes sociais diferentes está mais na frequência de alimentos de mais alto custo do que na variação de tipos de comida” (BRANDÃO, 1981, p. 43).

Os três capítulos seguintes (04, 05 e 06) apresentam as ideologias e crenças dos lavradores urbanizados sobre a produção, acesso, circulação e consumo de comida. Nesses capítulos, o autor enfatiza que as respostas dos lavradores entrevistados sempre começavam por uma comparação entre as condições dadas em um “tempo antigo” e as dos “dias de hoje”.

Palavras como “sadia/fraca” para caracterizar a qualidade da terra e/ou do alimento são comumente utilizadas e descritas de forma preciosa pelo autor. As matas, as árvores e os rios são percebidos e relacionados ao modo de uso pelos lavradores.

A percepção do lavrador evidencia dimensões simbólicas, culturais, espaciais e naturais dos alimentos e são cuidadosamente abordadas por Brandão. A riqueza da obra é ainda maior diante dos capítulos que trazem, na íntegra, trechos da fala de diversos entrevistados, tornando a leitura ainda mais prazerosa, até mesmo para aqueles que não estão muito familiarizados com o tema.

Brandão evidencia que a chegada à cidade representa o início de uma série de rupturas e redefinições quanto a prática alimentar, marcando uma passagem de um período de fartura à um tempo de restrições, resultando “[…] no empobrecimento da dieta familiar com a diminuição da quantidade e da variedade de mantimentos […]” (BRANDÃO, 1981, p. 83). De acordo com o autor e, fica a impressão ao leitor, a representação das diferenças de qualidade de vida e trabalho é maior quando separa a fazenda da cidade, do que a natureza da fazenda.

Além da preciosa abordagem de Brandão sobre a vida do lavrador, o autor traz no capítulo VI as ideologias dos entrevistados sobre os alimentos. Nesse sentido, o leitor poderá apreciar os valores atribuídos aos alimentos quanto à natureza (remédio, tempero e/ou comida), a origem (da cidade, natureza ou da fazenda – pasto, quintal ou lavoura), se possui origem animal ou vegetal e as classificações quanto à forte ou fraco, quente ou frio, reimoso ou sem reima, gostoso ou sem gosto). Importante ressaltar que, esses atributos dos alimentos são também utilizados para determinar aquilo que o homem come ou não come, ou o que não se deve comer ou pode comer mas faz mal.

No capítulo VII o autor vai trazer uma conclusão de que,

Em Mossâmedes os princípios de proibição do consumo de tipos de alimentos não correm paralelos aos determinantes de acesso a eles. […] a dieta congrega em um mesmo prato os representantes das diferentes séries: há comida forte e fraca, reimosa e sem-reima, quente e fria (BRANDÃO, 1981, p.151).

Brandão ressalta ainda que “o desequilíbrio atual de relações reflete-se, em última análise, na sua alimentação que ele [o lavrador urbanizado] percebe como uma síntese, no prato e sobre a mesa, do resultado de combinações inadequadas entre pessoas com pessoas e pessoas com a natureza” (BRANDÃO, 1981, p. 153).

Nesse sentindo mesmo com a percepção dos lavradores urbanizados das mudanças nas relações sociais e com a natureza, nas suas práticas sociais de produção e consumo, resultado de sua expropriação do rural, a obra de Brandão mostrar que esses carregam aspectos relacionados aos hábitos alimentares, crenças e ideologias que marcam a vida do campesinato.

Apesar das rupturas evidenciadas ao longo do livro, o autor aponta continuidades que são suficientes para os lavradores não romperem com o que Wanderley (1999) chamou de “as raízes históricas do campesinato” e a “tradição camponesa”. E esses lavradores urbanizados podem também ser vistos como um “camponês adormecido” (JOLLIVET, 2000 apud WANDERLEY, 2003) no que se refere aos hábitos alimentares.

Ao fim da leitura, o sentimento é de que, apesar de ser um livro de 1981 ele continua atual para aqueles que se propõem a estudar o modo de vida camponês e/ou hábitos alimentares da sociedade.

É sabido que, no Brasil, o processo de modernização da agricultura e a inserção, cada vez maior, à mercados globais têm sido responsáveis por profundas mudanças no modo de vida daqueles que vivem no campo com a finalidade de reprodução social desenvolvendo agricultura de subsistência ou inseridos em cadeias curtas de comercialização. Brandão conhece bem essa armadilha trazida pela utopia do “desenvolvimento”, o que pode ser visto na riqueza e qualidade do livro “Plantar, colher, comer: um estudo sobre o campesinato goiano”. Só lendo para conferir!

Além disso, a realidade de Mossâmedes não é uma exceção no Brasil e a medida que a modernização da agricultura avança, mais camponeses tem migrado para a cidade, alterando suas práticas alimentares, relação com a terra e quiça, suas ideologias e crenças são transformadas e/ou perdidas. Nesse cenário, essa obra oferece uma rica descrição de um lugar e pode inspirar o desenvolvimento de estudos contemporâneos sobre a relação do camponês com a alimentação, terra, mercados e consumo, fundamental para a manutenção, ou pelo menos registro, de culturas singulares que compuseram e compõe o rural brasileiro.

Referências

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Plantar, colher, comer: um estudo sobre o campesinato goiano. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1981.

CÂNDIDO, Antônio. Os parceiros do Rio Bonito. São Paulo: José Olympio, 1964. (Coleção Documentos Brasileiros).

CASSOL, Abel Perinazzo; SCHNEIDER, Sérgio. Produção e consumo de alimentos: novas redes e atores. Lua Nova, v. 5, p. 143-177, 2015.

WANDERLEY, Maria de Nazareth Baudel. Raízes históricas do campesinato brasileiro. In: TEDESCO, João Carlos (Org.). Agricultura familiar: realidades e perspectivas. Passo Fundo: EDIUPF, 1999. p. 23-56.

WANDERLEY, Maria de Nazareth Baudel. Agricultura Familiar e campesinato: rupturas e continuidade. Revista Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, n. 21, p. 42-61, 2003.

WOORTMANN, Ellen; WOORTMANN, Klaas. O trabalho da terra: a lógica e a simbólica da lavoura camponesa. Brasília: UnB, 1997.

Ana Luisa Araújo de Oliveira – Graduada em Agronomia (UNEMAT); Mestre em Engenharia Agrícola, área de concentração de Planejamento e Desenvolvimento Rural Sustentável (FEAGRI/UNICAMP) e; Doutoranda no Programa de Pós Graduação Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS). Tem interesse nos seguintes temas: desenvolvimento rural, políticas públicas, meio ambiente e agricultura. E-mail: [email protected] .

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Família joga bola: jovens futebolistas na várzea paulistana – SPAGGIARI (T-RAA)

SPAGGIARI, Enrico. Família joga bola: jovens futebolistas na várzea paulistana. São Paulo: Intermeios/FAPESP, 2016, 452 p. Resenha de: AZEVEDO, Renan Giménez. Bola na várzea, sonho no campo: trajetórias de famílias esportivas da zona leste paulistana. Tessituras, v.4, n.2, p.141-145, jul./dez., 2016.

Resultado de sete anos em trabalho de campo realizado durante o mestrado e o doutorado, Família joga bola: jovens futebolistas na várzea paulistana, de Enrico Spaggiari, é uma etnografia urbana que descreve as relações de familiares, técnicos, agentes, e jovens futebolistas através de seus cotidianos varzeanos no Botafogo de Guaianases, agremiação futebolística da Zona Leste de São Paulo. O livro, publicado em 2016, é a versão mais elaborada da tese defendida dois anos antes para o doutoramento do autor no PPGAS da USP. Ao longo do livro, Spaggiari busca explicar a formação de um jovem futebolista, bem como suas relações com o esporte e a carreira profissional, da mesma forma que os garotos, ou “moleques”, expressam criativamente o “jogar bola”. Os vínculos criados pelos atores da etnografia criam redes que o autor chama de famílias esportivas, conceito elaborado através dos oito capítulos que compõem a etnografia.

A apresentação do campo vivenciado por Spaggiari é transposta para o livro em sua primeira parte, onde o autor dá voz aos interlocutores nas partidas de futebol, nos treinos, nos churrascos e outros acontecimentos da vida na várzea paulista, que ocorrem em escolinhas, campos, casas de familiares e bares. O primeiro capítulo aborda o tempo e o espaço nas narrativas daqueles que estão no cotidiano da várzea, cujas memórias alimentam tais relações nostálgicas – ainda que os informantes neguem tal sentimento. Partidas consideradas clássicas e disputas importantes são expostas com grande riqueza de detalhes. Outro aspecto abordado no capítulo, e ilustrado pelas lembranças relatadas, é a gentrificação e o avanço urbano e outras formas de transformações da cidade, de modo que futebol de várzea torna-se uma forma de resistência cultural, além de uma forma de vivenciar a cidade e os bairros onde ocorrem as partidas. O crescimento da urbanidade também é apresentado na introdução do livro, onde o autor relata o cotidiano em torno do canteiro de obras da Arena Corinthians em Itaquera, especialmente quando seu Josias, aposentado da construção civil, queixa-se dos futuros problemas imobiliários da região ao dizer que “Esse é o preço do progresso” (SPAGGIARI, 2016, p. 24).

No segundo capítulo, Spaggiari apresenta o Grêmio Botafogo de Guaianases, fundado em 1955, juntamente com a estrutura contemporânea do futebol de várzea em São Paulo. As questões financeiras vividas pelos clubes são abordadas, assim como os problemas como sede social e a posse de um campo. Os bares, que funcionam como bases provisórias, são palco de comemorações, disputas, reuniões e outros acontecimentos, tornando seus proprietários “ótimos informantes” para a etnografia.

A importância do calendário esportivo com as competições que envolvem o clube, especialmente a Copa Kaiser de Futebol Amador, é descrita pelos olhos de torcedores, jogadores, dirigentes e vendedores de bebidas presentes nas partidas. As relações entre futebol, samba e cerveja produzem uma sociedade futeboetílica, que envolve modos de beber e agir.

O terceiro capítulo descreve os impactos políticos do clube por meio da corrida eleitoral de 2010. Ao ver nos clubes de várzea a possibilidade de ascensão política, os candidatos criam redes com os dirigentes destas agremiações esportivas. Importante notar que tais relações revelam a projeção do clube para a cidade, seja por meio de competições, seja por meio da produção de jovens futebolistas no trabalho de base dos times.

A segunda parte do livro, dedicada às formações profissionais, inicia-se no quarto capítulo com Spaggiari descrevendo as cidades futebolísticas. Estas redes são construídas através da vivência do cotidiano varzeano por meio das competições e trânsitos pelos campos, escolinhas e clubes. Esta circulação faz parte do desenvolvimento do saber futebolístico que estimula a produção de profissionais. Outro aspecto importante do “rodar” a cidade é que isto aumenta a possibilidade de os jogadores serem vistos por olheiros, essencial para a profissionalização dos esportistas.

O conhecimento futebolístico e sua construção coletiva é o tema do quinto capítulo. A corporalidade como forma de aprendizagem, ou seja, olhando e repetindo os movimentos, é a forma por excelência do ensino esportivo. Enquanto um ambiente de “imposição compulsória da heteronormatividade” (SPAGGIARI, 2016, p. 231-232), o conhecimento varzeano também ensina momentos de provocações e demonstração de virilidade, desestimulando comportamentos considerados femininos e incitando atitudes “de homem”. As questões de gênero também são analisadas pelo autor, trazendo voz a uma jogadora que tem seu lugar questionado por pais de alunos. A ideia de cultura como habilidade, tomada de Ingold, permite a construção do “dom” futebolístico, aspecto importante para o ingresso profissional.

O sexto capítulo apresenta o projeto familiar para a profissionalização dos jovens futebolistas. Vislumbrando a possibilidade de ascensão profissional por meio do esporte e, assim, ajudar seus familiares, os garotos recebem apoio de seus parentes para alcançar tais objetivos. Spaggiari dá voz para pais e filhos que sacrificam tempo e recursos financeiros para materializar estes propósitos. O autor também mostra as disputas entre famílias e treinadores a respeito das escalações e métodos de ensino, mas também as integrações destes atores para a formação das casas futebolísticas, que são as relações entre pais, técnicos e professores criadas por meio das famílias esportivas.

A atuação dos agentes futebolísticos é dedicada no capítulo sete. Devido à legislação, especialmente por causa da Lei Pelé (9.615/98), a produção de jogadores e a assinatura de contratos tem ocorrido mais cedo para que os clubes evitem perdas financeiras por causa dos passes. Esta situação causa um desequilíbrio favorável para os clubes com maior poder aquisitivo, uma vez que podem bancar o passe de profissionais mais novos sem maiores preocupações. Neste ambiente, o agente esportivo atua para garantir a melhor carreira para o jovem futebolista de forma conjunta com a família esportiva, criando laços e investimentos em equipamentos. Enquanto o técnico da escolinha é voltado para a formação e educação, o agente esportivo é fator central para a profissionalização dos jogadores. Além destas relações familiares, os agentes entrevistados por Spaggiari falam da importância do “dom” quando buscam por novos talentos ao atuarem como olheiros.

O oitavo capítulo é dedicado às famílias esportivas, onde Spaggiari apresenta cinco trajetórias com gráficos ilustrando as relacionalidades (relatedness) dos atores. Ao buscar as bases teóricas em Carsten, o autor não segue um modelo apriorístico de família, mas sim busca elucidar as tessituras produzidas pelas trocas estabelecidas nestas redes de parentesco, “problematizando conceitos tradicionais de família com reflexões antropológicas contemporâneas” (SPAGGIARI, 2016, p. 371).

Esta etnografia apresenta aspectos importantes da vida urbana por meio do esporte. Enquanto uma forma de viver a cidade, o “jogar bola” também é uma manifestação nos jovens futebolistas e suas famílias esportivas da instituição que é o futebol no Brasil. Quando a “família joga bola”, ela se envolve com a formação esportiva profissional dos garotos e garotas da várzea. A face econômica também é abordada por Spaggiari ao trazer a crença do “dom”, este “algo que o jovem futebolista já carrega e que não é possível ensinar” (SPAGGIARI, 2016, p. 333). O autor ilustra como a produção de “pés-de-obra” tomam uma forma altamente monetizada. Neste ponto, cabe uma crítica sobre a forma que se trata o “dom” como uma mercadoria, passível de monetização, tratando os clubes e jogadores como clientes em uma linha de negociação (STRATHERN, 2010, p. 237). Um terceiro tema que está presente ao longo de toda a etnografia, por meio de toda a polifonia em termos cliffordianos (CLIFFORD, 2002), é a demonstração do futebol como uma forma de viver a cidade. Ao se apropriarem de campos, ao transitarem pelos ônibus, ao se deslocarem para as diversas competições, os jogadores, os técnicos, agentes, enfim, as famílias esportivas atuam na cidade e percebem ela como um palco para o futebol, para poder “jogar bola”.

Renan Giménez Azevedo

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O gosto como experiência: ensaio sobre filosofia e estética do alimento – PERULLO (T-RAA)

PERULLO, Nicola. O gosto como experiência: ensaio sobre filosofia e estética do alimento. São Paulo: SESI SP Editora, 2013. 191 p. Resenha de: BENEMANN, Nicole Weber. Estética e experiência do gosto: contribuições para o debate sobre paladar, gastronomia e arte. Tessituras, Pelotas, v.3, n.2, p. 331-338, jul./dez., 2015.

Os questionamentos sobre a alimentação, o paladar e o gosto partem de uma análise dualística de ascendência platônica, que colocam em discussão noções como natureza e cultura, mente e corpo, sujeito e objeto. Essa construção é colocada na centralidade crítica na redação de Nicola Perullo que desenvolve o trabalho teórico através da reflexão filosófica na intenção de estudar o tema da percepção do alimento, através de uma conexão entre estética filosófica moderna e gastronomia, tratada por um viés menos exclusivista e mais flexível das relações humanas, cotidianas e ordinárias. A centralidade dessa abordagem reside na busca pelas respostas aos seguintes questionamentos: como percebemos alimentos e bebidas? Quais são os pressupostos, potencialidades e limites dessas percepções?

Para dar início às considerações sobre a própria estética, é necessário ressaltar que o status teórico do paladar tem sofrido deslocamentos ao longo do tempo. Historicamente, o paladar foi submetido à categoria dos sentidos inferiores, materiais e baixos, junto ao olfato e em contraposição a sentidos superiores, intelectuais e nobres, como visão e audição. Na perspectiva de Platão, a culinária seria comparável à retórica: uma atividade empírica, destinada a seduzir e a satisfazer uma necessidade primária e não atrelada ao conhecimento, já que não tem origem em leis dedutíveis e tampouco pertence ao domínio das artes, por não representar prazer intelectual. Ou seja, os resultados advindos do paladar seriam físicos, efêmeros e não dignos de um homem racional (PERULLO, 2013). De fato, a construção ocidental elevou o status da visão e audição como representantes do saber, da fé e da arte. O tato foi conectado a um sentido ambíguo, capaz de contato e proximidade, mas não capaz de interiorização. Paladar e olfato foram conectados a uma materialidade e a um prazer físico que atravessa o corpo. A pergunta que segue a essa construção é: esse paradigma sensorial foi abandonado na visão contemporânea? Perullo nos brinda com um exemplo na sua narrativa: Ferran Adriá, cozinheiro catalão reconhecido por sua cozinha vanguardista e criativa pautada na desconstrução de texturas e célebre por seu viés artístico, foi criticado por um filósofo em um editorial de um jornal espanhol. O argumento central da crítica estava na construção de que a gastronomia pertence ao universo do artesanato e que deveria ater-se ao efeito de saciar a fome, uma vez que a arte de fato apenas poderia existir depois da função biológica ou para além dela, condensando o argumento do paradigma filosófico antigo. Em resposta, a esta e outras críticas em relação ao seu restaurante e cozinha, Adriá definiu que a escolha de ir a seu restaurante significaria desejar uma experiência sensorial, estética, cultural e artística, colocando sua expressão em equivalência ao investimento na compra de um ingresso para uma peça de teatro, uma roupa de grife ou um jogo de futebol. Como contra argumentação, recebeu de seus críticos a consideração de que seu restaurante não oferece opções mais baratas, como os assentos de um teatro, e que um jantar não tem a durabilidade de uma peça de grife. Esse tipo de posicionamento esclarece três argumentos centrais do discurso da crítica: primeiro, a verdadeira arte diz respeito aos prazeres espirituais e fisiologicamente desinteressados; segundo, a gastronomia não faz parte da verdadeira diversão e cultura, como o teatro; e terceiro, o investimento em roupas seria melhor interpretado por ser um investimento duradouro. Por meio dessa argumentação podemos reconhecer as representações de três objeções em relação à comida, gastronomia e paladar: uma de origem epistemológica, uma de origem estética e uma de ordem ética. Epistemológica porque o paladar não pertence aos sentidos superiores, estética por não se tratar de uma arte “verdadeira” e sim de uma experiência fugaz; e ética por aproximar as pessoas de seus instintos animalescos e da glutonia.

Na contribuição de Perullo, muitos desses aspectos de marginalidade teórica se devem à concretude do paladar por tratar-se de uma atividade cotidiana e repetitiva e a sua fugacidade, efemeridade e caráter individual. Na visão do autor, essa marginalidade teórica com peso histórico deve ser assumida e compreendida, a fim de traçar um panorama crítico e um ponto de partida da reflexão sobre o tema, em que a culinária e a gastronomia compõem um “espaço ativo onde a filosofia, as ciências humanas, as artes e as ciências da natureza possam refletir sobre o seu tempo” (PERULLO, 2013, p. 39). De certa forma, a gastronomia desempenha hoje o papel que o cinema desempenhou em outras épocas, servindo como centro do debate para ajudar a redefinir as fronteiras do que compreendemos como arte. Esta construção menos dura e contemporânea toma forma com as concepções da estética moderna conhecida como a ciência do conhecimento sensível, da estética da relação e no conceito de performance que redefinem como espaço legítimo a sensibilidade, não limitando o intelecto à razão.

Pensar a experiência alimentar a partir desse novo posicionamento significa tomar como ponto de partida a ideia de uma oportunidade sensível ligada à própria natureza em que é constituída, a partir de um contato direto do sujeito com o objeto. Isso significa considerar a proposta de complexidade do fenômeno, gerada através de uma relação perceptiva e de um modo de reinterpretar as experiências do paladar. O paladar de acordo com essa abordagem não pode ser analisado um único sentido, uma vez que este processo se desenvolve com a participação do olfato e da atuação cerebral, que é também sensível aos estímulos físicos e a outros agentes influenciadores como a cultura e o contexto, por exemplo. Desse modo, podemos dizer que o paladar, bem como sua experiência, compõe um sistema perceptivo complexo, não sendo meramente mecânico ou instintivo, mas sim, um entrelaçamento de corpo e mente com o meio ambiente. Dadas às circunstâncias nas quais se desenvolve tal percepção, é necessária a compreensão do fenômeno do paladar através de uma dimensão qualitativa, em que se relaciona com a narração da experiência pessoal com as noções de valor do paladar. A experiência gustativa que ocorre e se desenvolve em diferentes contextos, entendidos aqui como um conjunto de conexões em um cenário de sentidos, não abriga regras de como apreciar e desfrutar o alimento. Almoçar em um restaurante renomado é muito diferente de fazer uma refeição na beira da estrada em uma longa viagem, mas não podemos afirmar que o prazer só pode ser encontrado no primeiro ou que a experiência do paladar apenas acontece no segundo momento, tampouco que esses momentos são construídos a partir de uma necessidade puramente biológica ou fisiológica. A saciedade, a companhia, a circunstância, a negação (sei que o sabor não é bom, mas tenho fome e como), o prazer refinado e outros aspectos têm influência direta sobre a experiência do paladar e isso é o ponto de partida da complexidade utilizada como referência nessa construção teórica.

Ou seja, para Perullo, refletir sobre o paladar significa refletir no paladar, sobre o “como fazer” experiência e “como viver” essa experiência, significa também tentar compreender uma relação corpo a corpo, entre sujeito e objeto, na qual o objeto é consumido com a finalidade de “transformar” o sujeito. Para conformar uma teoria estética do paladar é preciso compreender uma relação e uma implicação que tenta superar oposições rígidas, estáticas e dualísticas. Tratar do paladar significa, então, estar às margens da teoria da estética e construir uma teoria das margens ao tratá-lo sob uma ótica de continuidade e de interação na relação entre natureza e cultura. Prazer, conhecimento, necessidade, desejo, nutrição e gosto formam um único todo na experiência estética do paladar.

Nesse contexto de atravessamento entre natureza e cultura, comer é uma atividade social em que a natureza comparece e o paladar se apresenta como uma habilidade capaz de gerar prazer e conhecimento, através de uma característica endocorpórea atrelada a um cenário de sentido, a um saber perceptivo intrinsecamente relacionado ao corpo, que deve ser observado, refletido, introspectado, expresso, compartilhado e conceitualizado para dar conta de todas as suas possibilidades. A estética do paladar, em suma, é uma estética relacional.

No livro, O gosto como experiência, Nicola Perullo divide seu trabalho em quatro grandes temas para discutir a problemática do paladar. O primeiro deles é dedicado ao prazer. Neste desdobramento teórico, os enfoques das contribuições da discussão acontecem sobre os modos de acesso à experiência gustativa. De imediato, fica evidente que estes modos de acesso, o saber e o prazer, não são separados de forma rígida e tampouco estática e que “a relação estética enquanto prazer provoca, portanto, a receptividade plástica da percepção e abre à memória, à inteligência, à consciência e à linguagem” (PERULLO, 2013, p. 51).

O prazer desnudo, descrito no capítulo do prazer como um dos primeiros acessos à experiência do paladar, se refere a uma experiência perceptiva movida por impulsos e necessidades não conscientes, de um prazer naturalizado e mimético comumente relacionado ao paladar infantil como uma forma de atuação da natureza na cultura. O paladar adulto, por sua vez, estaria mais intimamente relacionado aos aspectos culturais do indivíduo, mas impossibilitado de dissociar-se da dimensão vital e corpórea do paladar. Nesse aspecto “a cultura acompanha o prazer, o responsabiliza, desenvolvendo-o ao compartilhamento e à linguagem pública” (PERULLO, 2013, p. 103).

Para a gastronomia, o prazer e o apetite, apresentados como elementos intimamente relacionados, desmistificam a noção de um conceito promovido puramente por uma fantasia, desejo, criatividade ou por um aspecto nutricional. Desse modo, a construção do argumento para o discurso sobre o prazer é sempre relacional e situado na interação entre natureza e cultura.

O saber, por sua vez, apresentado no segundo capítulo, está relacionado a uma construção de identidade, estilo e a uma apreciação qualitativa e valorativa da experiência. A percepção, nesse entendimento, é orientada de forma consciente em busca de um prazer intensificado e está relacionada com os modos com que o indivíduo se reconhece e avalia os outros, como o exótico e o pertencimento, por exemplo. De modo geral, o saber se liga ao modo com que o indivíduo se comporta em relação ao objeto e aos acessos básicos que são acionados através do paladar por meio do conhecimento e da cultura.

O saber do paladar também pode ser entendido como uma forma de educação que busca ensinar uma linguagem capaz de expressar uma apreciação racional do que é ingerido. Normalmente, esse é um processo gradual que atua na dimensão dos aspectos perceptíveis e mensuráveis, capazes de esclarecer os esqueletos dos processos de qualidade. Contudo, o processo de valoração da qualidade é socialmente compartilhado e intimamente vivenciado. Assim, a volúpia de um impulso vital na relação estética é uma percepção especializada que perpassa a apreciação cultural (PERULLO, 2013). Os dois significados coexistem no espaço do paladar como experiência.

O terceiro capítulo traz considerações sobre a indiferença, que conceitualmente não está atrelada ao desgosto, nem à abstenção, tampouco à aversão ou à patologia. A indiferença é entendida como uma distração, uma falta de atenção ao fluxo da experiência perceptiva na qual não conjectura uma experiência estética e opera em uma falta de potência do sentir. A indiferença pode ainda estar relacionada a uma experiência arrebatadora do prazer que transcende a experiência do paladar. Perullo reforça ainda a importância do neutro na experiência, como o ato de beber água, que representa uma percepção de introjeção e não de um prazer culturalmente elaborado ou estético.

A sabedoria, tratada como último tópico na abordagem do autor, é entendida como a capacidade de reconhecer e compreender a partir de uma percepção estética a emergência, a pertinência e a concomitância dos acessos de saber, prazer e indiferença. Desse modo, a experiência alimentar acontece desfrutando ou conhecendo, sentindo prazeres instantâneos ou intelectuais. O paladar pode ser prazer quando desfrutado, conhecimento quando conhecido e neutro quando a relação gustativa se retrai. A sabedoria, por sua vez, é o controle e a capacidade de regulação desses dispositivos, acionados na relação do objeto com o ambiente.

A contribuição da obra O gosto como experiência está em tentar encontrar um meio de definir a complexidade do fenômeno do paladar através do aspecto estético. Compreender a percepção gustativa significa aceitar a complexidade do fenômeno que é cultural e biológico, individual e coletivo, efêmero e durável, além de construído em um cenário de mistura de forças heterogêneas. Tratar do gosto como experiência estética significa tratar de seus componentes e acessos disponíveis através de um processo de absorção e assimilação durante a experiência alimentar.

Referências

PERULLO, Nicola. O gosto como experiência: ensaio sobre filosofia e estética do alimento. São Paulo: SESI SP Editora, 2013.

Nicole Weber Benemann – Professora de Gastronomia da Universidade Federal de Pelotas; Mestranda em Antropologia pela Universidade Federal de Pelotas. E-mail: [email protected] .

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Pensamento Social no Brasil, por Giralda Seyferth: notas de aula – BAHIA et al (T-RAA)

BAHIA, Joana; MENASCHE, Renata; ZANINI, Maria Catarina Chitolina (Org.). Pensamento Social no Brasil, por Giralda Seyferth: notas de aula. Porto Alegre: Letra&Vida, 2015. 256 p. Disponível em: http://www.antropologiaufpel.com.br/Pensamento_social_no_Brasil.pdf . Acesso em: 30 jun. 2015.  Resenha de: WOORTMANN, Ellen F. Notas de aula sobre pensamento social no Brasil: uma homenagem a Giralda Seyferth. Tessituras, Pelotas, v. 3, n. 1, p. 345-348, jan./jun. 2015.

O curso Pensamento Social no Brasil foi proferido pela Professora Giralda Seyferth2 em outubro de 2012, sob a promoção do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pelotas (PPGAnt/UFPel). Tendo contado com a participação de cerca de 30 estudantes e professores, a atividade teve duração de uma semana.

De modo a propiciar a socialização de seu conteúdo, mas também como merecida homenagem à Giralda, como é por todos conhecida, o curso foi gravado, degravado e editado, para que se tornasse publicação amplamente acessível3.

Constitui estimulante fonte de pesquisa para alunos, professores e pesquisadores sobre o tema. Além disso, apresenta-se como excelente inspiração a ser seguida enquanto procedimento didático. O livre acesso ao conteúdo das aulas/texto retoma prática que possibilitou amplo acesso ao pensamento de autores que se tornariam clássicos no campo das humanidades e que, em tempos de internet, coloca-se, de certo modo, como iniciativa didaticamente inovadora.

Teoricamente, resulta de uma proposta de diálogo entre a Antropologia e a História ou, em outros termos, uma proposta de análise da sociedade brasileira à luz de um contexto histórico dinâmico.

Especificamente, as aulas e o texto foram elaborados tomando-se como eixo central o conteúdo de obras de um grupo de autores clássicos significativos (Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre, Nina Rodrigues, Emilio Willems, Florestan Fernandes, Oracy Nogueira, entre outros), que atuaram no Brasil entre o final do século XIX e a segunda metade do século XX. A análise desses autores é construída a partir do recorte do conteúdo e centrada em algumas categorias seminais, tais como a de sociedade brasileira – mais do que a nação ou o estado, no sentido de nation building–, escravidão, raça e racismo, imigração, “brasilidade”, assimilação.

A rigor, muitas dessas categorias de análise são forjadas e ganham força no contexto de períodos-chave e fatos históricos marcantes, como, por exemplo, a abolição da escravatura, a imigração japonesa, a ditadura Vargas ou a II Guerra Mundial. Como expressão de crises reveladoras, a análise dessas categorias expõe, desde um lado, as raízes teóricas e etnográficas, via de regra europeias ou americanas, dos autores e, de outro, a diversidade de seus lugares de fala. Desse modo, por exemplo, as ideias de Joaquim Nabuco são, sem dúvida, expressão do descendente de uma linhagem de grandes políticos e diplomatas nordestinos, assim como as de Gilberto Freyre, também filho de tradicional família nordestina.

O ideário desses autores e de outros pertencentes à elite contrasta com outros analisados em aula, dentre os quais se destacam Florestan Fernandes, originário de camada popular paulistana, depois professor da USP, com posterior expressiva ascensão acadêmica e sócio-política, ou mesmo o professor imigrante Emilio Willems, fugido da crise do pós-I Guerra Mundial da Alemanha, aluno e seguidor das ideias de Max Weber, Simmel e Dilthey. Ainda, Willems contrasta dos demais – “de dentro”, brasileiros – por apresentar, em suas obras, um lugar de fala “de fora”.

Concluindo, deve-se destacar o fato de que, paralelamente a uma análise rigorosa e aprofundada dos vários autores, no decorrer das aulas/texto Giralda estabelece, ainda, diálogo com outros autores situados em contextos análogos, procedimento que torna estimulante a dinâmica de sua exposição/leitura.

Notas

2 Giralda Seyferth é graduada em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (1965). Após período de trabalho de pesquisa em Arqueologia, cursou o mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1973), tendo sido orientada pelo Professor Luiz de Castro Faria na dissertação A colonização alemã no Vale do Itajaí: um estudo de desenvolvimento econômico (SEYFERTH, 1974). Em 1976, doutorou-se em Ciências Humanas (Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo, tendo sido orientada pela Professora Ruth Cardoso na tese Nacionalismo e identidade étnica: a ideologia germanista e o grupo étnico teuto-brasileiro numa comunidade do Vale do Itajaí (SEYFERTH, 1982). Professora associada do Departamento de Antropologia do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Giralda Seyferth possui experiência docente, de orientação e de pesquisa na área de Antropologia, atuando principalmente nos temas de colonização, imigração, nacionalismo e racismo. Entre outros trabalhos, é autora dos livros acima citados, da obra Imigração e cultura no Brasil (SEYFERTH, 1990) e de inúmeros artigos.

3 A obra Pensamento Social no Brasil, por Giralda Seyferth: notas de aula (2015) foi organizada pelas professoras Renata Menasche, Joana Bahia e Maria Catarina Chitolina Zanini, respectivamente pertencentes aos Programas de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pelotas (PPGAnt/UFPel), História Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHS/UERJ) e Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria (PPCS/UFSM). O acesso gratuito ao livro, na íntegra, está sendo disponibilizado através dos sites desses Programas.

Referências

BAHIA, Joana; MENASCHE, Renata; ZANINI, Maria Catarina Chitolina (Org.). Pensamento Social no Brasil, por Giralda Seyferth: notas de aula. Porto Alegre: Letra&Vida, 2015. Disponível em:   http://www.antropologiaufpel.com.br/Pensamento_social_no_Brasil.pdf . Acesso em: 30 jun. 2015.

SEYFERTH, Giralda. A colonização alemã no Vale do Itajaí: um estudo de desenvolvimento econômico. Porto Alegre: Ed. Movimento, 1974.

______. Nacionalismo e identidade étnica: a ideologia germanista e o grupo étnico teuto-brasileiro numa comunidade do Vale do Itajaí. Florianópolis: FCC, 1982.

______. Imigração e cultura no Brasil. Brasília: EdUnB, 1990.

Ellen F. Woortmann – Doutora em Antropologia pela Universidade de Brasília, coordenadora do Grupo de Pesquisa do CNPq “Memória e Patrimônio Alimentar: tradição e modernidade”. E-mail: [email protected] .

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A família, a rua e os afetos: uma etnografia da construção de vínculos entre homens e mulheres em situação de rua – LEMÕES (T-RAA)

LEMÕES, Tiago. A família, a rua e os afetos: uma etnografia da construção de vínculos entre homens e mulheres em situação de rua. São Paulo: Novas Edições Acadêmicas, 2013. 257 p.  Resenha de: CLAUDINO, Livio. Além do utilitarismo: a rua como espaço de continuidades e afetividades. Tessituras, Pelotas, v.3, n.1, p.338-344, jan./jun. 2015.

Uma etnografia da construção de vínculos entre homens e mulheres em situação de rua, nos é apresentada pelo antropólogo Tiago Lemões como um convite à desconstrução de estereótipos e categorias sociais fixas. A partir de um mergulho denso e uma análise apurada das dinâmicas relacionais entre sujeitos em situação de rua e os diferentes personagens que com eles interagem no espaço público da região central de Pelotas (RS), o autor potencializa a derrocada de certos olhares preconcebidos direcionados às pessoas em situação de rua e que não permitem perceber a multiplicidade das formas de construção de vínculos e a complexidade das relações tecidas por linhas de afetos, reciprocidades e subjetividades que envolvem a vida nas ruas. A sutileza e perspicácia etnográfica atenta aos detalhes e ambiguidades das relações entre os grupos estudados é o que impulsiona a análise do autor rumo a uma postura radical: para além de meros excluídos da sociedade, desvinculados e desfiliados de redes relacionais fundamentais, os sujeitos em situação de rua são compreendidos por Lemões justamente a partir da inventividade e agência que empreendem nos processos de manutenção, constituição e continuidade de tecidos relacionais baseados em afetos, reciprocidades e desigualdades. Por razões como estas que o estudo foi indicado, em 2013, ao prêmio brasileiro de obras científicas da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais.

No primeiro capítulo, delineia-se a problemática e o recorte metodológico adotado, definindo-se os principais conceitos e noções analíticas mobilizadas e retomadas ao longo das experiências etnográficas descritas na obra. Ainda aqui, o autor expõe as principais definições construídas em torno da noção de exclusão social, esboçando diferenças e aproximações entre o contexto social brasileiro e francês – sobretudo porque é na França que tal noção é gestada e reelaborada por cientistas sociais. A exposição do debate em torno da exclusão dá lugar, pouco a pouco, a outra via analítica, a qual o autor defende ao longo de toda a obra: a vida nas ruas se sustenta, sobretudo, a partir das redes relacionais que vinculam os sujeitos uns aos outros e reiteram a dimensão política das pessoas que fazem do espaço público um lugar de existência possível. É a partir de tal inferência que Lemões apreende a itinerância e a circulação “como expressões de resistência e de agência política frente às práticas normalizadoras de governo” (2013, p. 23), aproximando-se de uma abordagem assentada na teoria do dom de Marcel Mauss (1974), retomada por Alain Caillé (2002) – o que marca definitivamente a análise etnográfica. Certamente, esse encaminhamento foi decisivo para a ruptura que Lemões realizou com as abordagens convencionais utilizadas para estudar essas populações, já que o possibilitou perceber continuidades de relações e redes de reciprocidade onde geralmente se vêem rupturas e individualidade, sobretudo em abordagens estimuladas pela noção de exclusão.

Doravante, Lemões problematiza as estratégias formais de pesquisa: o porte de gravador, questionários e perguntas diretas não lhes foram úteis. Para acessar retalhos biográficos e adentrar à dinâmica de relações dos sujeitos de pesquisa, o antropólogo precisou partilhar “um pouco de si”, dividindo seus problemas, anseios, mas também participando dos circuitos de trocas e reciprocidades de objetos, comida, bebidas e outros bens. Assim, de fato – e somente assim, valendo-se de um circuito de relações constituídas mais intensamente com alguns interlocutores – o autor assegurou o envolvimento e a constituição de relações que tornaram o exercício etnográfico possível. Além da observação realizada em alguns pontos “estratégicos”, o autor acompanhou os movimentos de seus interlocutores pelos locais de transitoriedade e permanências na cidade, mergulhando nos movimentos de relativa fixidez e de circulação animada pelas relações firmadas com distintos grupos no espaço público.

O segundo capítulo é dedicado a descrever os vínculos mantidos, fraturados e rompidos entre as pessoas em situação de rua e seus familiares. A partir da leitura de outras etnografias e de fragmentos biográficos de seus interlocutores, Lemões evidencia que o drama familiar está presente nas narrativas: tanto as continuidades, fraturas e rupturas revelam a permanência temporal, espacial e afetiva das relações familiares. Os intensos fluxos das crianças das vilas populares entre o “bairro e a rua”, nas casas de parentes ou nas instituições de acolhimento, serviram para o autor caracterizar e interpretar a “circulação” como parte da vida dos interlocutores muito antes do efetivo “ingresso na rua”. Ao invés de entendê-la como simplesmente o resultado de famílias desestruturadas que produzem sujeitos de rua, como é recorrentemente reiterado, o autor preocupa-se em compreender e demonstrar que a circulação faz parte das dinâmicas e lógicas que tornam o nomandismo constitutivo de um “saber viver”, um aprender a “virar-se”.

É nesse momento que o autor percebe que a noção de viração (GREGORI, 2000) é muito importante para compreender a constituição de vínculos com diferentes personagens nos espaços públicos, pois, “virar-se” é empreender “um processo comunicativo com uma ampla rede de valores e significados, os quais servem como mediação na interação que travam com alguns setores da sociedade” (LEMÕES, 2013, p. 44). Considerando que os sujeitos em situação de rua sofrem cotidianamente inúmeros processos de violência física e simbólica, com forte naturalização de representações negativas, é por meio dessas estratégias comunicativas que as redes de relações são constituídas, em diferentes formas inventivas de discursos e ações performáticas.

Nessa perspectiva, o antropólogo argumenta que algumas formas específicas de ver e conceber os espaços públicos são funcionais à formulação dos discursos estigmatizantes que categorizam a rua como um “não-lugar” ou espaço da vagabundagem, do crime e da mendicância. É no contexto dessa trama social que a circulação e a viração são utilizadas para a conformação de territórios de sobrevivência, tecidos por meio de relações de afeto e reciprocidade, envolvendo inúmeras negociações para o uso dos espaços e dos recursos disponíveis na rua. Todos esses processos e relações abrangem diversos atores e instituições, como guardas municipais, donos de veículos, transeuntes, doadores de alimentos vinculados a instituições religiosas e empresários locais2. Ao fazer uma descrição de como ocorrem essas relações em torno da busca por recursos, que funcionam com lógicas singulares dependendo dos atores, Lemões revela uma ampla rede de reciprocidade e laços sociais que se formam, superando as relações impessoais e interesses econômicos que comumente se lhes atribui.

Seja na informalidade da prestação de serviços, como a de guardar carros, ajudar nas montagens de barracas de comerciantes, ou no relacionamento com as instituições doadoras de alimentos e roupas, o etnógrafo identifica que há a constituição de relações que ultrapassam a simples troca de valores monetários. O compartilhamento de pontos e dos recursos oriundos de guardar carros entre pares de rua; a doação de comida, roupas ou presentes de final de ano por parte de alguns empresários; agentes doadores que além de doar comida estabelecem uma relação de reconhecimento e afetividade pessoalizada com os receptores da ajuda, demonstram a constituição de laços sociais que se sobrepõem às simples prestações de serviços ou ações de caridade. Dessa forma,

o vínculo é tecido a partir da dívida, ou seja, não é o imediatismo que baliza a reciprocidade, mas a continuidade da circulação da dádiva entre os partícipes, delineando uma perspectiva do dom que permite pensar, numa só vez, o estabelecimento do laço e da hierarquia existente nestes vínculos (LEMÕES, 2013, p. 170).

Porém, como explica o autor, as relações assimétricas de poder que decorrem dessas interações implicam reconhecer que quando se fala em dádiva, nesses casos, há unilateralidade que gera superioridade de quem dá sobre quem recebe, apesar do vínculo social instituído.

Tendo demonstrado os vínculos sociofamiliares e aqueles constituídos nos espaços públicos, principalmente em torno das interações travadas com diferentes grupos caritativos, o último capítulo é dedicado a apresentar a constituição de vínculos afetivos entre os pares em situação de rua, atentando para a dinâmica relacional interna e externa aos grupos de rua. Partindo de outras etnografias que problematizam as dinâmicas de agrupamentos e formações de parentescos em situação de rua, Lemões identifica os códigos de ética, as regras de comportamento e algumas relações de ajuda que são fundamentais para a vida nas ruas. O autor se interessa, sobretudo, pelas nomeações familiares: “pais”, “mães”, “irmãos”, “tios” e “padrinhos” de rua, termos esses que indicam a intensidade e o nível de aprofundamento dos vínculos firmados, permeados pelo compartilhamento de recursos materiais, afetivos e experiências, levando-o a ponderar que a compreensão do fenômeno “da população em situação de rua passa pelo entendimento dos valores atrelados à família” (2013, p. 191).

Entre as regras de comportamento, o autor destaca a “moralidade da partilha” como estratégia fundamental para a circulação e distribuição de bens entre os pares de rua, servindo para a “construção positiva da pessoa” que partilha. Nesse regramento, o roubo entre os iguais é como uma expressão máxima dessa moral, pois assegura a igualdade, reprimindo as manifestações de ostentação e forçando a partilha, não sendo motivo para a ruptura das relações. Por outro lado, a “caguetagem” (delação) é a conduta que provoca maior desvalorização da pessoa, que passa a ser vista como traidora do grupo, sendo motivo suficiente para o rompimento dos laços afetivos, podendo levar à exclusão do “cagueta” do grupo, como forma de proteção coletiva. São esses códigos que evidenciam ao etnógrafo os regramentos que orientam sociabilidades em torno da ajuda e proteção, invalidando as argumentações corriqueiras de que “na rua é cada um por si”.

Por fim, é a partir do mergulho etnográfico atento às relações familiares e suas especificidades, às estratégias de constituição e manutenção de vínculos com diferentes personagens e às normas e moralidades internas aos grupos, que Lemões retoma suas argumentações ao final da obra, quais sejam: (i) apesar do aparente rompimento, predominam as dinâmicas de continuidade das relações familiares; (ii) há a constituição de mecanismos relacionais inter-pares e com outros atores sociais que formam um importante itinerário que assegura a provisão material e afetiva, apesar das forças repressivas que tentam apagá-los dos espaços públicos e os estigmatizam; (iii) e, que existem códigos de sociabilidades assentados na ajuda e proteção, no compartilhamento de bens e nos vínculos afetivos entre pares. Essa obra instiga o leitor a repensar sobre os valores negativos que se atribui aos homens e mulheres em situação de rua como solitários, isolados e egoístas, convidando a “limpar a lente da evitação e dos pensamentos redutores”, a fim de se reconhecer e partilhar outros territórios existenciais possíveis.

Nota 

2 As experiências apresentadas ocorrem entre guardadores de carros e os donos dos veículos e três instituições doadoras de alimentos (O rango das sete; A comunidade Fonte Nova e a Igreja Mover de Deus).

Referências

CAILLÉ, Alain. Antropologia do dom: o terceiro paradigma. Petrópolis: Vozes, 2002.

GREGORI, Maria Filomena. Viração: experiências de meninos nas ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

LEMÕES, Tiago. A família, a rua e os afetos: uma etnografia da construção de vínculos entre homens e mulheres em situação de rua. São Paulo: Novas Edições Acadêmicas, 2013.

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Edusp, 1974. v. 2.

Livio Sergio Dias Claudino – Doutorando em Desenvolvimento Rural (UFRGS) e mestre em Agriculturas Amazônicas (UFPA). Possui interesse na área de Antropologia Econômica e tem realizado incursões etnográficas sobre as relações entre imagens e discursos no processo de formação de instituições sociais no setor da produção agropecuária. E-mail: [email protected].

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O Ensaio de promessa de Quicumbi entre quilombolas do Rio Grande do Sul – LUCAS; LOBO (T-RAA)

LUCAS, Maria Elizabeth; LOBO, Janaina. O Ensaio de promessa de Quicumbi entre quilombolas do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Iphan/GEM-PPGMUS-UFRGS, 2013. 128 p.  Resenha de: KUSMA, Vinícius Silveira. O quilombo, os cânticos e o tambor: as multivocalidades do Ensaio de promessa de Quicumbi. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 219-225, jul./dez. 2014.

O livro intitulado “O Ensaio de promessa de Quicumbi entre quilombolas do Rio Grande do Sul”, organizado pelas pesquisadoras Maria Elizabeth Lucas e Janaina Lobo, é fruto do projeto “Saberes e práticas músico-rituais do Ensaio de Promessa de Quicumbi entre quilombolas do Rio Grande do Sul”, o qual foi financiado pelo Programa Nacional de Patrimônio Imaterial/Iphan-MinC em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O trabalho de dezoito meses proporcionou um acúmulo de muitos registros textuais, sonoros e imagéticos de um ritual singular praticado pelas comunidades quilombolas de Caporocas e Olhos D’Água, e suas respectivas Associações, Vovô Virgilino e Vó Marinha, no litoral norte do estado do Rio Grande do Sul. Neste contexto, o trabalho decorre de uma experiência coletiva acumulada, trazendo como aporte teórico e metodológico a Etnomusicologia e a Antropologia da Música. Além disso, fica evidente o teor participativo e colaborativo que a inserção em campo e a permanente interlocução com os agentes demandantes dessas ações culturais contemplam. Ao entender que o ritual “O Ensaio de promessa de Quicumbi” em louvor à Nossa Senhora do Rosário, necessitava de um registro sistemático de todo o seu conteúdo narrativo e performático, a edição do livro se consolidou como uma forma de garantir aos guardiões e guardiãs da memória ritual, a permanência e a continuidade de um legado ancestral.

O livro basicamente divide-se em duas partes “As múltiplas vozes do Ensaio de Promessae Os múltiplos registros do Ensaio de Promessa, e cada uma delas é composta por quatro seções. Além disso, o livro é acompanhado por dois CDs, que trazem, como registro sonoro, as cantigas do Ensaio de Promessa de Quicumbi.

Em “As múltiplas vozes do Ensaio de Promessa”, primeira seção da Parte I, é possível, através de mapas, saber a localização de um território em aliança com o sagrado os territórios ancestrais Capororocas e Olhos D’Água, localizados em Tavares/RS, no extremo sul brasileiro, situada na estreita faixa de terra que compreende o Parque Nacional da Lagoa do Peixe, entre o Oceano Atlântico e a Lagoa dos Patos, local também conhecido como santuário das aves migratórias. Além de indicar a localização, o texto versa sobre o surgimento das duas Associações fundadas por essas comunidades e sobre suas lutas pela regularização de seus territórios e obtenção de políticas públicas, previstas em lei. Segundo Lobo e Lucas, a criação das Associações foi uma forma de dar visibilidade para essas lutas, no desejo pelo reconhecimento e pela certificação legal dessas comunidades enquanto remanescentes de quilombos. Porém, é possível perceber, ao longo da leitura, que, mesmo com a criação de duas entidades políticas, as duas comunidades confundem-se, ou se inter-relacionam, não apenas pela proximidade dentro do mesmo contexto rural, mas por seus laços parentais e afetivos. Sendo assim, a constituição de seus territórios partilha de várias memórias, as quais, ao longo do tempo, vão compondo e recompondo as narrativas que tecem e tramam os pontos de ligação entre as vidas de cada um.

Os títulos das Associações, Vó Marinha e Vovô Virgilino, homenageiam os responsáveis pela formação e o estabelecimento das comunidades negras em Tavares, os quais, segundo Dona Idene Lopes da Silva, 81 anos, considerada pelas autoras, uma das guardiãs da memória da comunidade, foram trazidos como cativos, ainda no século XIX, para o trabalho nas antigas charqueadas, próximas às terras de Capororocas e Olhos D’Água.

Ainda nessa seção, as autoras trazem um breve panorama da situação das duas comunidades, situando-as num contexto rural, afastadas do centro da cidade, com difícil acesso à educação básica e a um transporte escolar eficiente, além da insuficiência de escolas e da ausência de ensino de nível técnico, tolhendo, assim a capacitação das crianças e dos jovens das comunidades. Um contexto que acaba colaborando com as eloquentes taxas de analfabetismo, e que nos remete a um cenário bem mais amplo que se repete em muitas outras regiões do país, as quais também sofrem com as desigualdades socioeconômicas, a falta de investimentos em saúde, educação e aplicação de políticas públicas adequadas.

Na segunda seção, Como tudo começou: fala o rei de Congo, seu Orlando Duarte da Costa, chefe da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Mostardas e Rei de Congo, falecido em 2013 aos 77 anos, narra como surgiu o Ensaio de Promessa Quicumbi, e ensina que sua prática foi um dos primeiros passos para a liberdade no interior da ordem escravocrata. Foi na percepção da eficácia de cura que o Ensaio possuía, que os Senhores o libertaram da clandestinidade. É possível perceber na fala de seu Orlando, percurso de uma resistência cultural que mantém vivo o Ensaio em um território negro, no qual ainda é latente a memória da escravidão.

Ainda na Parte I, a terceira seção – As muitas vozes do Ensaio de Promessa de Quicumbi– apresenta o contexto deste ritual, que carrega semelhanças com os rituais afro-angola. Com uma descrição etnográfica atenta aos detalhes, a narrativa das autoras nos dá a ideia da dimensão do evento e de tudo que o envolve e o compõe, como as coreografias e dramatizações, o canto antifonal, o conjunto instrumental, a fabricação do tambor pelo mestre-construtor, a hierarquia e todos os elementos que organizam e dão sentido ao ritual. Tudo isso carrega uma densa dinâmica de trocas culturais entre os participantes do Ensaio, que, por não ser estático, admite variações ao longo do tempo e das diferentes regiões em que é praticado. Além disso, o texto aponta a origem africana dos quicumbis e de sua linguagem, destacando as características particulares trazidas por esses ancestrais escravos, que legaram a especificidade do canto com suas articulações fonéticas e semânticas.

A quarta seção – A ciência do Ensaio: os saberes músico-rituais dos mestres”, fecha a Parte I do livro, com uma homenagem ao mestre centenário, Tio Silva, e mostra uma parte da sua história de 40 anos dentro da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Tavares, um caminho desde sua iniciação como dançante geral até assumir as baquetas e tornar-se o mais respeitado tamboreiro da Irmandade e da região. O texto traz trechos da fala de Tio Silva, num diálogo com Paulo Gaúcho, outro membro da irmandade, por onde é possível perceber a troca dos saberes sobre a matéria-prima adequada na confecção dos tambores e todos os pormenores para entoar as cantigas e tocar bem o instrumento durante o Ensaio. Torna-se fácil perceber o quanto o processo de construção desses tambores está envolto numa atmosfera de romance, construída de tradições e experiências pessoais.

Na segunda parte do livro – Os múltiplos registros do ensaio de promessa” – encontra-se os suportes de memória que formam o aporte documental do complexo narrativo do Ensaio: as preces cantadas, seus versos completos, suas localizações nas diferentes fases do ritual, as entoações das cantigas e suas estruturas recorrentes, transcritas em partitura, os esquemas coreográficos e cênicos executados pelos dançantes durante o evento ritual. Porém, pode-se perceber a preocupação dos pesquisadores em não reproduzir de forma literal tudo o que ocorreu durante as doze horas de acompanhamento do Ensaio de Promessa, o qual foi realizado em 2010. O trabalho mostra uma sistematização colaborativa, que expõe na forma escrita, os percurso, as lógicas e saberes dos mestres e participantes em diálogo com os pesquisadores.

O livro segue com um quadro de imagens, que mostra um resumo das principais etapas do ritual, com a intenção de facilitar o entendimento da distribuição das 28 cantigas. Esse quadro é composto por onze fotografias que dão um esboço da dimensão visual e temporal de cada momento específico do Ensaio, como a convocação da irmandade, o cortejo de entrada, a entoação das cantigas, assim, até a imagem que contempla o fim do ritual. Obviamente que esse quadro de imagens não concebe a totalidade da riqueza imagética do ritual, não apenas pelo número, mas também pelo tamanho dessas onze imagens dispostas na página. Porém, as autoras deixam claro que a intenção é ajudar o leitor a compreender como essas 28 cantigas distribuem-se ao longo do Ensaio.

O livro é permeado por fotografias, começando pela capa, com imagens que emolduram o seu título e dão uma riqueza visual ao seu formato quadrado, que foge do convencional. Além da característica estética, a capa já nos dá a ideia da dimensão visual que compreende o Ensaio. O livro traz em seu interior 26 fotografias. Embora essas imagens, num primeiro momento, pareçam apenas ilustrar o texto, elas tornam-se passíveis de observação e abstração, pois emprestam ao livro uma dimensão poética, que não é apenas ilustrativa, mas é carregada de uma subjetividade visual e sonora. São fotografias sem legendas, imagens que não necessariamente, muitas vezes, dialogam com o texto diretamente, mas trazem as cantigas para além do aparente silêncio das páginas. É possível imaginar-se no colorido ambiente do Ensaio, ao olharmos, por exemplo, para a fotografia que mostra o cortejo e o tambor, o principal instrumento do Ensaio, ou ouvir o som do pandeiro na imagem dos músicos na fase noturna do ritual, uma imagem com um tom avermelhado, acentuado pelo fogo da vela que brinda o canto esquerdo da imagem, dando um ar de devoção. A mesma imagem mostra as mãos desfocadas de quem toca o pandeiro, sugerindo seu movimento, e trazendo para a imaginação do leitor, o som que permeia a ambiência retratada.

Além das fotografias, o livro conta com mapas que dão a localização do município e suas comunidades, um croqui que esquematiza seis evoluções coreográficas do ritual e um esboço da distribuição espacial dos microfones utilizados para a captação do áudio do Ensaio.

Em A força poética das cantigas”, temos os comentários e as transcrições dos versos das 28 cantigas, entoadas na sequência ritual original, cujas gravações encontram-se nos dois CDs que acompanham o encarte. Todo o trabalho de transcrição e fixação dos versos contou com a ajuda e os esclarecimentos do mestre cerimonial, em interação com os colaboradores rituais. Ao ouvir as cantigas, é possível imaginar a dimensão do Ensaio, sua força espiritual, poética e, por vezes, dramática; as vozes e os timbres instrumentais, que buscam atingir a comunicação com Nossa Senhora do Rosário.

Nos Ensaios de tradução gráfica das cantigas”, são abordados os critérios das transcrições dos fragmentos selecionados, que identificam as estruturas rítmico-melódicas recorrentes no conjunto poético entoado. Também é explicitada a lógica de intercalação dos dois gêneros musicais que, em concordância com as diversas etapas a serem superadas pelo grupo performático, inspiram a narrativa ritual. As autoras atentam para a extensão temporal e a complexidade do Ensaio de Promessa de Quicumbi e, com isso, para a necessidade de cuidados e ponderações nos diversos sentidos de critérios seletivos. Fica clara a preocupação, sob o olhar da etnomusicologia, de que a utilização de um sistema de notação musical deve sempre considerar as particularidades das marcas estéticas e as formas expressivas dos saberes nativos. Aqui, a intenção é promover a interconexão entre Guias (solo) e Dançantes (coro), acompanhados do tambor, pandeiro e caninhas, instrumentos de percussão que não apenas sustentam a base melódica e rítmica, mas também se fundem com as vocalidades das rezas, os timbres, as gingas dos corpos e todo o universo performático que move e comove a cena ritual.

É possível perceber a dimensão do Ensaio de Promessa de Quicumbi ao chegar-se ao final do livro, através da interação entre textos, imagens visuais e sonoras, que vibram, despertando a imaginação do leitor, privado da experiência de ter estado lá. Em meio a danças, gingas e performances, em consonância com cânticos, vozes e sonoridades, delineia-se uma organização cênica que dura doze horas, guiada pelos guardiões e guardiãs dos saberes rituais do Ensaio de Promessa de Quicumbi. Considero importante salientar o entrelaçamento de saberes acadêmicos e comunitários que o trabalho de pesquisa evidencia aqui, ao propor uma multivocalidade de ações e afetos mobilizados em cada ação do Ensaio. Creio que, ao fornecer esse suporte de memória, história, territorialidade, é possível contribuir para a instrumentalização dessas comunidades quilombolas na luta política para continuarem a existir, pois a reinvenção de sua identidade política portadora de direitos é informada, justamente, por essa memória ancestral a qual tentam manter viva.

Referência

LUCAS, Maria Elizabeth; LOBO, Janaina. O Ensaio de promessa de Quicumbi entre quilombolas do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Iphan/GEM-PPGMUS-UFRGS, 2013. 128 p.

Vinícius Silveira Kusma – Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social e Cultural da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Bacharel em História pela UFPel. Membro colaborador do GT História, Imagem e Cultura Visual ANPUH-RS. E-mail: [email protected].

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Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material – MILLER (T-RAA)

MILLER, Daniel. Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2013. 248 p. Resenha de: BRAGA, Carolina Hoffmann Fernandes. Humanos fazem, e são feitos de cultura material: uma apresentação dos trecos, troços e coisas. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 236-244, jul./dez. 2014.

A melhor maneira para entender, transmitir e apreciar nossa humanidade é dar atenção à nossa materialidade fundamental. Assim, Daniel Miller constrói seu argumento central, com um questionamento da oposição vigente no senso comum, entre pessoa e coisa, animado e inanimado, sujeito e objeto. Sua intenção é de que o livro “possa demonstrar como e por quê uma apreciação mais profunda das coisas nos levará a uma apreciação mais profunda das pessoas” (MILLER, 2013, p. 12).

A palavra “treco” (stuff, na versão original), em sua obra, não tenta delimitar exatamente aquilo que seria excluído do termo: “treco é um e.mail, uma moda, um beijo, uma folha ou uma embalagem de poliestireno” (MILLER, 2013, p. 7). Na verdade, Miller quer falar sobre a diversidade do que podemos chamar de treco. Ao invés de apresentar um definição, apresenta sua perspectiva sobre o estudo da cultura material, a qual ele afirma não ser mais bem-definida que treco.

Com base na interpretação de Mauss acerca dos mitos e objetos do kula, etnografado por Malinowski, destaca-se a ideia de que uma coisa dada e a obrigação de retribuí-la gera uma relação. Na teoria do dom, ou dádiva, o que importa é a circulação de coisas que criam a sociedade, ou seja, “o que chamamos de sociedade ou treco são separações artificiais vindas do mesmo processo” (MILLER, 2013, p. 103).

A idéia de que os trecos, de algum modo, drenam a nossa humanidade corresponde, segundo o autor, à tentativa de preservar uma visão simplista e falsa de uma humanidade pura e previamente imaculada. Ao contrário, os estudos mostram que sociedades não industriais são culturas tão materiais quanto a nossa e não correspondem ao modelo de selvagem nobre, não materialista. Para criticar a suposição de que os povos tribais não possuíam muitos trecos, e portanto seriam menos materialistas, Miller lembra que algumas das mais sofisticadas relações com as coisas podem ser encontradas entre os aborígenes australianos, os índios norte-americanos da costa noroeste, os ilhéus trobriandeses (com sua devoção às proas das canoas) ou o povo nuer, com seu gado. Ressalta ainda o fato de que não ter coisas não significa não querê-las.

Esta obra reconhece e respeita os trecos, expondo- nos à nossa própria materialidade, sem negá-la nem colocá-la em um pedestal. Para alcançar seu objetivo, o autor traz estudos sobre a cultura material com perspectivas que incluem os trecos em vários aspectos, cada qual assumindo a responsabilidade de demonstrar uma perspectiva diferente, mas sempre desempenhando papel relevante na organização das relações humanas e sociais.

A interessante reunião de estudos começa pela pesquisa sobre a indumentária, na qual desmonta a visão popular (por vezes acadêmica) de que objetos nos dão significados ou nos representam como simples signos ou símbolos, trazendo os argumentos que demonstram como os trecos nos criam.

Para repudiar a análise semiótica sobre o estudo da cultura material, Miller serve-se do exemplo da indumentária, vista como uma pseudolinguagem que nos permite “dizer” quem somos. Nesta condição, a cultura material acaba sendo relegada ao estudo da linguagem, uma comunicação não falada, em que os trecos, inanimados, são interpretados de modo limitado e superficial, com pouca consequência. O problema da semiótica, segundo o autor, é presumir certa exterioridade do objeto em relação aos seres humanos, como se o que somos estivesse situado profundamente dentro de nós, em contraposição direta à superfície. Para demonstrar como esta é uma explicação de apenas um ponto de vista, Miller traz o entendimento dos trinitários acerca do tema e um fantástico estudo etnográfico sobre o Sari, traje feminino indiano, em contraposição à percepção de indumentária em Madrid e Londres. A análise comparativa entre as sociedades de Trinidad, Índia e Inglaterra traz o valor que a indumentária assume na definição do ser, seguindo significados próprios nas respectivas culturas, para demonstrar como aquilo que presumimos como universal é, de fato, particular: no caso, o contraste entre “ser superficial” e “ser profundo”, enquanto sujeitos humanos, em cada situação social apresentada na obra. Em Trinidad, as pessoas usam roupas para descobrir quem são, de acordo com o momento particular. Na Índia, a experiência de ser mulher é diferente, considerando que se espera que a pessoa mude constantemente de aparência, em função de cada circunstância. Em Madri, a indumentária ajudou a preservar o ideal cosmológico da cidade como centro da civilização; já em Londres, ela é fonte de ansiedade, precisamente pelo aumento da pressão sobre os indivíduos para exprimirem-se a si próprios, combinado à dificuldade crescente de a pessoa determinar seu próprio gosto individual.

As pressuposições que fazemos sobre onde estaria situado o “ser” fazem parte de uma definição muito mais ampla da cultura material em nossa sociedade ocidental, onde o próprio materialismo é percebido de modo superficial. O objetivo é modificar nossa percepção sobre superficialidade, começando por demonstrar como coisas – tais como roupas – não representam pessoas, mas constituem-nas. Em cada estudo apresentado no livro, o autor demonstra que o vestuário desempenha papel considerável e atuante na constituição da experiência particular do “eu”, de modo que a contraposição entre “ser superficial” e “ser profundo” pode inverter-se de acordo com as relações sociais, demonstrando a vasta gama de relações possíveis, que são radicalmente distintas em tempos diferentes e em lugares diversos. Pela indumentária, então, traz a questão da superficialidade e, com sua análise, demonstra como as vestes e as pessoas constituem-se reciprocamente umas às outras.

Lembrando o leitor de que a teoria da representação pouco nos diz sobre a verdadeira relação entre pessoas e coisas, tendendo a reduzir as ultimas às primeiras, Miller atesta a necessidade de se desenvolver uma teoria das coisas irredutível às relações sociais. Assim, após afastar a ideia de que pessoas fazem coisas que as representam, o autor deixa claro que, ao contrário, através da cultura material, queremos perceber, na mesma medida, como as coisas fazem as pessoas. Para tanto, apresenta a cultura material a partir da teoria dos objetos e desenvolve, no segundo capítulo, uma teoria da objetificação, para levar à perspectiva da indistinção entre sujeitos e objetos, baseada no exame das consequências de nossas crenças sobre as propriedades do material.

Sua conclusão é de que “os objetos são importantes, não por serem evidentes e fisicamente restrinjam ou habilitem, mas justamente pelo contrário. Muitas vezes, é precisamente porque nós não os vemos” (MILLER, 2013, p. 78). Assim, o primeiro entendimento das coisas acontece a partir da propriedade oposta ao que esperaríamos dos trecos. “Funcionam porque são invisíveis e não mencionados, condição que, em geral, alcançam por serem familiares e tidos como dados” (MILLER, 2013, p. 79). Essa capacidade que a cultura material têm de sair de foco, sempre de forma periférica à percepção humana, mas mesmo assim determinar nosso comportamento, ajuda a entender porque tantos antropólogos consideram os objetos, de algum modo, triviais.

A contribuição de Daniel Miller ao estudo da cultura material traz seu precedente nos estudos de Pierre Bourdieu que, por sua vez, necessita do entendimento da ideia central do estruturalismo, de não encarar as coisas isoladamente, mas, em vez disso, perceber a relação existente entre os objetos, afinal os mesmos obtêm sua definição por contraste com o que não são e pelo que são. Exemplo disso está no estudo referido no segundo capítulo, sobre os potes indianos: um pote sozinho é inexpressivo dentro do contexto daquele povoado estudado por Miller. Os potes indianos não tem seu uso justificado por sua função, mas a razão pela qual cinquenta potes diversos são produzidos reflete a complexidade e a elaboração de distinções rituais e sociais simbólicas que constroem um elaborado de formas com dimensões sistemáticas de diferença em relação a todo o sistema de objetos e outros potes. Apesar da constatação, os potes não são o âmago do contexto, mas atuam como cenário e revelam muito sobre o grupo em questão quando os aceitamos. A teoria da socialização de Bourdieu demonstra como essas ideias podem ser usadas para pensar sobre “como as pessoas chegam a ser o que são e a ver o mundo da maneira particular como o fazem” (MILLER, 2013, p. 82), de modo que a cultura material é o que nos torna característicos de nossa própria sociedade. Mas esses trecos não devem ser vistos como entidades desconectadas. Outro estudo de base é a teoria da prática, também de Bourdieu, em que a criança aprende a interagir com uma pluralidade de culturas materiais, não por meio de categorias passivas, mas de rotinas cotidianas que levam a interações consistentes com os artefatos. De modo que esta teoria demonstra que os objetos fazem as pessoas. Todo o sistema de coisas, com sua ordem interna, faz de nós as pessoas que somos, como um processo dinâmico e simultâneo de produções mútuas.

A teoria que dá forma à idéia de Daniel Miller de que os objetos nos fazem enquanto os fazemos é o processo de objetificação ou autoalienação, em substituição à teoria de que representamos através da cultura material, sempre reforçando que não há separação entre sujeitos e objetos. Dentro deste debate de objetificação, o alicerce encontra-se na filosofia de Georg Hegel.

Os argumentos de Georg Simmel também são debatidos pelo autor, que traz a seguinte formulação: o subjetivo só ganha quando consegue assimilar a cultura objetiva em expansão; o que não podemos assimilar, nos oprime, ou possui capacidade para tanto. Sobre essa e outras implicações da materialidade, há um princípio básico encontrado na maioria das religiões sobre a sabedoria atribuída àqueles que afirmam representar o meramente aparente, sob o qual jaz o real. Miller traz esta questão para explicar como a materialidade, seja o que ela for, é algo que, as vezes, não queremos ser. Moralidade e materialidade seguem juntas neste julgamento do senso comum e das religiões que realizam seu ideal de transcendência por meio do repúdio ao material. Dentro deste dualismo, ele apresenta como as religiões são contraditórias em seus argumentos, na medida em que todas elas expressam sua imaterialidade pela materialidade de monumentos, múmias, imagens sacras, ou até mesmo alimento, deixando legados de trecos. Daí surge o paradoxo: quanto mais a humanidade busca alcançar a definição do imaterial, mais importante é a forma específica de sua materialização.

Talvez este caráter moral herdado explique porque a cultura material sempre foi considerada com desdém, mesmo dentro das ciências sociais. Todos os exemplos trazidos nesta obra demonstram a contradição, e a complexidade, como partes integrantes do mundo comum em que vivemos, todas essenciais para o entendermos. Mas devemos nos lembrar que existem alternativas teóricas influentes que nos propiciam o pensamento a respeito da cultura material. Pesquisadores como Bruno Latour, Alfred Gell, Tim Ingold e Christopher Tilley mostram a existência de novas abordagens teóricas que têm em comum a intenção de dar mais atenção e respeito à materialidade e à cultura material, entendendo os artefatos como parte integrante de nossa existência no mundo.

No terceiro capítulo, Daniel Miller apresenta a importância das teorias apresentadas usando estudos sobre casas, de modo que tais teorias são domesticadas pelo processo de “acomodação”, ajudando o leitor a “se sentir em casa” com essas abstrações. Partindo de questões sobre a objetificação, segue com a problematização da agência e da materialidade, em que a decoração se torna a forma de acomodação à estratificação social.

A questão da moradia implica contornos de poder e traz questões íntimas, como relacionamentos pessoais, que dependem de forças maiores, pois embora as pessoas sejam construídas por seu mundo material, com frequência não são elas os agentes por trás deles. Na análise sobre as habitações, surgem ainda questões relativas a gênero e relacionamento humano, dentro de histórias que dizem respeito à moradia, mas que também são histórias de objetificação.

Para descobrir os valores objetificados na habitação, devemos examinar a lógica do próprio treco, a forma e a ordem implícita ao ambiente construído. Para tanto, Miller traz diversas pesquisas, como as de habitações estatais no Reino Unido, onde verificou que as pessoas capazes de decorar e transformar sua relação com essas moradias eram aquelas que tinham boas relações sociais e apoio de outros. Além disso, os estudos mostram que as pessoas que dispunham de boas relações sociais eram as que também tinham relações efetivas e satisfatórias com o mundo material. Essa conclusão importante leva em conta a suposição presente nas acusações de materialismo das pessoas que centram sua atenção em seus relacionamentos com coisas, como se o fizessem às custas das relações com outras pessoas.

O princípio da agência emerge como maneira de pensar na constituição mútua. Quando da impossibilidade de aceitação desta perspectiva, os mitos (no caso, as casas mal assombradas) aparecem como explicação, pois ao invés de dizer que a casa tem agência, é mais fácil persistir com as entidades que, em geral, são percebidas como dotadas de agência: as pessoas, mesmo que estejam mortas. Tudo isso faz parte da nossa necessidade de chegar a um acordo com a agência dos próprios trecos.

Nos diversos estudos trazidos no livro, a dinâmica da casa é soberana, seja no mudar-se de casa, na reforma da casa, fazendo uma bagunça ou apenas movendo trecos de um lado para outro. Em cada caso, as pessoas estão mais uma vez criando a si mesmas por meio dos trecos.

O autor também examina a materialidade ambígua da mídia e da comunicação. Demonstra que trecos não são necessariamente coisas que podemos segurar ou tocar. A mídia é menos óbvia que uma coisa material e é tratada como forma de tecnologia da comunicação, que aparece com toda sua materialidade através do sistema de trocas que organiza a vida econômica das camadas pobres na Jamaica. Os estudos feitos entre os jamaicanos, filipinos e trinitários acerca do uso que fazem de seus telefones com internet e envio de mensagens, revelam uma relação bem mais complexa entre renda e difusão do telefone, fazendo o leitor perceber que o que interessa são as consequências desses produtos para as pessoas.

Depois de explorar as diferentes maneiras pelas quais a proposta de que as coisas fazem as pessoas, tanto quanto as pessoas fazem as coisas, através dos exemplos de indumentária, habitação e mídia, Daniel Miller aborda os trecos como sintomas da vida e da morte: a cultura material que nos traz ao mundo e nos ajuda a deixá-lo. Mais uma vez, percebe-se claramente o modo como os objetos constroem sujeitos e como isso faz parte da compreensão cotidiana do significado de sermos humanos.

Através de sua análise, pontuada por diversos tipos de estudos entrelaçados por sua teoria, o autor mostra novamente como a reflexão sobre as questões da vida e da morte fazem do estudo da cultura material, um caminho efetivo para a antropologia dos relacionamentos, sendo uma via indireta para compreender as pessoas e suas relações sociais.

Ao abranger a ampliação da particularidade e da universalidade para definir o mundo moderno, Daniel Miller serve-se de Hegel como fundamento filosófico que dá suporte a seu trabalho, afirmando que esses dois processos estão ligados e que a antropologia deve trazer um diálogo entre ambos: o particularismo do trabalho de campo, descortinado pela observação participante e seu relativismo cultural e, ao mesmo tempo, as teorias universais, como o estruturalismo, o princípio da dádiva, entre outras. Justamente pela vantagem do “compromisso simultâneo com esses dois extremos, particularidade e generalidade, a antropologia pode dar sua contribuição para a compreensão da humanidade ao conectá-los, sem perder o compromisso com cada um deles” (MILLER, 2013, p. 16). É comum que bons trabalhos antropológicos revelem o particular como manifestação do universal.

Defino o antropólogo como alguém que busca demonstrar as consequências do universal para o particular e do particular para o universal mediante devoção igual à compreensão e à abrangência empáticas de ambos (MILLER, 2013, p. 18).

Este livro busca desenvolver tanto a interpretação quanto o discernimento, baseado em etnografia, evitando reducionismos e o rebaixamento as coisas como meras representações simbólicas de pessoas e da sociedade. Reivindica a valorização das coisas proporcionalmente ao lugar que elas ocupam em nossas vidas.

A busca de explicações do nosso mundo material contemporâneo tende a girar em torno de estudos do capitalismo, sistemas de produção e distribuição que proliferam os trecos na vida cotidiana. Mas o autor conclui que o papel da antropologia, sempre comprometida em aprender a partir de estudos comparativos da humanidade, não foi diminuído pelo capitalismo e a modernidade global. As análises de Daniel Miller sobre os estudos de indumentária, casa, carro, nascimento e velório trazem um caminho possível pelo qual a cultura material é estudada como processo de objetificação de valores, considerando que sujeitos e objetos só existem por este processo de objetificação, no qual um constrói o outro, dissolvendo assim as oposições entre pessoas e coisas.

Referências

MILLER, Daniel. Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2013.

Carolina Hoffmann Fernandes Braga – Mestranda em Antropologia Social e Cultural na Universidade Federal de Pelotas. E-mail:[email protected]

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Desde el río de leche: processos espacio-temporales en la Amazonia noroccidental – HUGH-JONES (T-RAA)

HUGH-JONES, Christine. Desde el río de leche: processos espacio-temporales en la Amazonia noroccidental. Bogotá: Fundación Universidad Central, 2011. 380 p.  Resenha de: POLESE, Nathalia Cunha. Do Rio de Leite: processos espaciais e temporais do Noroeste Amazônico. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 1, p. 282-288, jan./jun. 2014.

Esta obra de Christine Hugh-Jones (publicada originalmente em 1979) propõe que adentremos no universo indígena para refletir acerca dos acontecimentos diários da comunidade étnica Barasana, conhecida também por Pira-Paraná, por sua localização no percurso do rio Pira-Paraná, na região denominada Vaupés. Esta comunidade é formada majoritariamente pelas etnias Makus e Tucano, cujas línguas são Barasana e Tukano-oriental, que constituem o objeto central da pesquisa. Em seu trabalho, a autora menciona também outros grupos, situados no decorrer no rio, que falam outras línguas e têm contato direto com os Barasana. Estes grupos indígenas estão sempre em contato, circulando entre as comunidades. A autora procurou adentrar neste universo a partir de um trabalho etnográfico, realizado no período de setembro de 1968 a dezembro de 1970, buscando compreender aspectos fundamentais da cultura e da vida cotidiana dos Barasana, descrevendo especificidades próprias e muitas riquezas, por meio do convívio com esse povo indígena.

A etnografia foi organizada em oito partes e vários apêndices2. Após introduzir seu objeto de estudo, Hugh-Jones apresenta a comunidade e analisa como ocorreu a influência dos brancos e as trocas que são realizados entre aldeias. Na segunda parte da etnografia, a autora mostra como a estrutura social está organizada, as hierarquias que são respeitadas, a divisão da maloca e quem são os residentes. Na terceira parte do trabalho, a análise se volta para as funções especializadas e sua relação com a organização da comunidade. Na parte quatro, as considerações da autora recaem sobre o sistema de parentesco, a categoria de geração e as práticas e preferências matrimoniais. Aspectos relacionados aos ciclos de vida, às diferenças de gênero, aos rituais para a vida e para a morte da sociedade Pirá-Paraná são apresentados na quinta parte da etnografia. A seguir, Hugh-Jones se detém na organização da produção e do consumo na subsistência da comunidade, analisando a divisão do trabalho entre homem e mulher. Na parte sete, a autora demonstra como os indígenas interpretam as propriedades de cada alimento. Finalizando, na última parte do trabalho, faz um panorama dos espaços temporais: horizontal e vertical, a partir da visão dos indígenas. Um trabalho desafiador e complexo, onde a realidade da comunidade Barasana é apresentada em suas múltiplas facetas.

2 Grupos que fazem parte da comunidade estudada, algumas tabelas que comparam os termos utilizados no estudo, índice de figuras da estrutura social: das viagens da anaconda, classificação dos grupos exogâmicos, a maloca e os arredores, relação entre organização hierárquica e concêntrica, figuras relacionadas ao parentesco, metáforas da vida humana (mortal e imortal dos indígenas – ritos), formas de tratamento do alimento, diferentes diagramas; índice de mapas com a região dos Vaupés e o percurso do rio Pira-paraná.

A comunidade Pira Paraná está localizada no Noroeste da Amazônia e se encontra em território Colombiano, fazendo divisa com o Brasil. Geologicamente, a área faz parte das Guianas. A temperatura oscila de 25ºC a 35ºC durante todo o ano, exceto durante o inverno que a temperatura atinge os 10ºC.

Hugh-Jones fez sua pesquisa etnográfica juntamente com seu esposo, sendo que ambos trataram de assuntos divergentes. A pesquisadora percebeu que a economia dos Vaupés está marcadamente dividida pela diferença de sexo/gênero e esta foi mais uma razão para que cada um dos pesquisadores detivesse em um tema diferente. O casal permaneceu a maior parte do tempo com uma comunidade Barasana, porém, realizaram várias visitas a outros povos, juntamente com seus anfitriões, ou por conta própria.

Demonstra que parentesco, matrimônio, ciclo de vida, política, economia e religião, estão ideologicamente integrados e são correlacionados com o comportamento concreto e real, fazendo parte da estrutura social. A sociedade Pira Paraná opta por ciclos repetitivos, mas dinâmicos, cujo sistema de classificação dos grupos de descendência, do cosmos, do ciclo de vida é criado por grupos dos indivíduos e por seres ancestrais.

A etnografia também abarca discussões de aspectos centrais da cultura e da vida cotidiana da comunidade, tais como o conjunto de instruções sociais; análise do modelo de estrutura do grupo de descendência Pira Paraná; os processos de reprodução da comunidade local; as estruturas relacionadas ao grupo de descendência, alguns aspectos do matrimônio e do parentesco; os rituais do ciclo de vida; os processos de produção e consumo, os conceitos de espaço e tempo através do mundo real e ancestral.

Os indígenas estudados pela autora tiveram contato com a população branca em meados do século XVIII, processo que se intensificou a partir de 1968, com o estabelecimento da primeira missão católica na região. Desde então, iniciaram-se as catequizações, os estudos culturais realizados por antropólogos e outros estudiosos, e esses povos passaram a comercializar suas riquezas, iniciando o processo de “aculturação”, afirma Hugh-Jones.

Para este povo, o que conecta e constrói o “mundo presente” é o que ocorreu no passado, através de seus ancestrais. Tais fatos são relatados através dos mitos, dos cânticos rituais, e do xamanismo. Este cosmos e o misticismo controlam a vida social deste povo, e proporciona o marco moral de como a sociedade deve se portar e comportar. Vida e morte estão alternando fases de um grande ciclo. Os mortos estão sempre chamando os vivos para se encontrar; já os vivos estão sempre a pedir que os mortos deem assistência aos eventos rituais. As almas que vivem também se instalam nos recém-nascidos. Em termos espaciais, esta alternância de vida e morte é representada por um imenso rio circular que flui acima e abaixo do solo.

Existem muitas teorias e mitos indígenas relacionadas à natureza precisa das anacondas ancestrais e o “nascimento” dos clãs. Geralmente, se reconhece que os clãs estão representados pelo corpo da anaconda, de tal forma que a cabeça e a língua correspondem ao primogênito – chefe e, por isso, a ordem descendente hierárquica nomeia a cauda para o servente.

O casamento é realizado entre a comunidade, mantendo vínculo cultural com seus distintos que são os grupos Yukuna, Tanimula, Letuama e Matapi. A grande maioria dos matrimônios acontece com esposos que tem línguas paternas diferentes e algumas vezes há quatro ou cinco grupos linguísticos representados em uma mesma maloca. Tanto os homens como as mulheres falam a língua do seu grupo de descendência e utilizam outra língua em algumas circunstâncias. O casamento ideal ocorre quando há a troca de dois homens com irmãs congênitas em uma única geração. De acordo com a estrutura familiar ideal as crianças devem nascer intercaladas de forma que haja unidades de troca: pares de irmãos, formado por um irmão mais velho e uma irmã que nasceu depois. Em última análise, há três resultados possíveis: condução de uma sequência de trocas que pode ser “mais ou menos violenta”, o estabelecimento de um casamento unilateral ou que não há casamento.

Ao falar dos grupos exogâmicos, a autora afirma que eles são agrupamentos de clãs organizados hierarquicamente. Esta estrutura toma como modelo a sequência do nascimento de um grupo de irmãos do mesmo pai. Este princípio de ordem de nascimento, denominada “hierarquia”, se encontra em todos os níveis de organização do interior da unidade exogâmica, de tal maneira que cada indivíduo, cada subunidade, em cada clã, ocupa uma posição única em ordem composta por unidades similares. Entre os clãs de um grupo exogâmico há um “primogênito”, segundo, terceiro, etc.

Na organização espacial da aldeia, a maloca é o núcleo da comunidade e do grupo de descendência e o restante da população é composta por esposas dos membros do grupo. O grupo dos indígenas Vaupés visita constantemente a outras comunidades e não é fácil saber quem os indígenas identificam como membros e residentes temporais, ou visitantes a largo prazo. Se forem do mesmo clã seu status como forasteiro no grupo local de descendência deriva-se aos que tem parentes agnáticos e que estão por perto.

As funções especializadas são organizadas através da hierarquia, por ordem de nascimento dos fundadores de clãs que possuem estes papéis. Elas também podem organizar de modo concêntrico de acordo com os três domínios em que são distribuídos. Enquanto a oposição entre os papéis de extremidades – líder/servo – é clara na natureza dos papéis, a ordenação dos papéis xamã/intermediário, guerreiro, dançarino/cantor requer explicação. Houve duas hipóteses para explicar a ordem das cinco funções. A primeira é perceber a série de papéis como análoga às cinco fases da vida de um homem, a geração de um grupo de descendência; a segunda considera o número de papéis como uma forma de ligar o desempenho dos grupos exogâmicos internos para a comunicação de modelos com grupos externos, exemplifica Hugh-Jones.

No seu estudo, a etnógrafa retomou aspectos fundamentais oriundas das questões de gênero, descrevendo sutilmente os aspectos mais relevantes. Para o universo feminino, o sangue menstrual é chamado de fluído corporal da mulher „Ruhu oko’: o uso geral de “fluidos corporais”, termo que define a existência de outros tecidos moles e os componentes fluidos corporais. Pensa-se que o parto da mãe priva a energia vital (katise) deixando-a “gorda”, depois “magra”, associando a pele “ao osso”. Também, a energia vital da mulher é renovada várias vezes, acumulada pela perda de sangue menstrual (energia vital implica perda de sangue pós-parto menstrual). Também é evidente a existência física do cordão umbilical e da placenta. O cordão é ritualmente vinculado aos sistemas do rio, da terra e da planta cultivada: o contexto do vínculo não deixa qualquer dúvida de que é considerado como uma fonte de nutrição da mãe para o feto.

Os instrumentos utilizados no ritual de iniciação “He” (destinado somente aos homens) são trazidos do rio, onde foram guardados debaixo de água ao anoitecer. Os iniciados não são admitidos para a cerimônia até a noite do dia seguinte. A primeira noite, os homens jovens permanecem no pátio com os instrumentos ao mesmo tempo em que os anciãos cantam para a preparação do ritual. Embora o ritual aconteça em uma ocasião social, em comparação com a menstruação, ambos têm a ver com as mudanças fisiológicas do indivíduo e as mudanças na alma. A diferença reside no fato de que, para o sexo masculino, as mudanças fisiológicas e da alma acompanham uma alteração no estado social, enquanto nas mulheres não acontece dessa maneira. A menina chega à menarca, não muda sua rotina, seu lugar para dormir, não aprende habilidades especiais, não deixa o domínio do universo feminino realizando suas atividades diariamente e não entra na hierarquia social.

Por fim, a autora esclarece que estes modelos são reconhecidos pelos nativos, conscientes ou em um nível mais profundo (a repetição de atitudes e ações ocorre de maneira natural, de forma inconsciente, passada de maneira hierárquica), tanto na mitologia e em suas declarações sobre o comportamento ideal e a natureza do seu sistema social.

A partir desta obra, percebemos a riqueza e as especificidades da cultura Pira-Paraná, comunidade que vive no Noroeste Amazônico. Com o olhar diferenciado, e pautado nos mínimos detalhes, a autora conseguiu perceber as singularidades da sociedade Pirá-Paraná, com destaque para as diferenças existentes entre os sexos e a diversidade de acontecimentos relacionados ao gênero. Mostrou que para conhecer uma comunidade, é preciso estar verdadeiramente convivendo e vivenciando o dia a dia, para assim identificar as minúcias, as riquezas e particularidades da vida de cada povo indígena.

Referências

HUGH-JONES, Christine. Desde el río de leche: processos espacio-temporales en la Amazonia noroccidental. Bogotá: Fundación Universidad Central, 2011.

Nathalia Cunha Polese – Pedagoga, mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação na Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG. E-mail: [email protected] .

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Chão de Deus: Catolicismo popular, espaço e proto-urbanização em Minas Gerais, Brasil, Séculos XVIII-XIX – MATA (T-RAA)

MATA, Sergio da. Chão de Deus: Catolicismo popular, espaço e proto-urbanização em Minas Gerais, Brasil, Séculos XVIII-XIX. Berlin: WVB, 2002. 304p. Resenha de: PEREIRA NETO, Francisco. Chão de Deus (resenha). Tessituras, Pelotas, v. 1, n. 1, p. 245-252, jul./dez. 2013.

CHÃO DE DEUS

É pertinente pensar que uma das principais vantagens de se concentrar estudos em torno de uma temática específica é a potencialidade da orientação interdisciplinar das pesquisas sobre essa mesma temática. Tratando especificamente do tema da religião, é notória a contribuição da obra “Chão de Deus: catolicismo popular, espaço e proto-urbanização em Minas Gerais”, de Sérgio da Mata. Trata-se de um estudo histórico, pautado por sua metodologia clássica, mas que constrói seu objeto através de um diálogo intenso com a geografia, com as ciências sociais (prioritariamente com a antropologia e a sociologia) e mesmo com a filosofia, em função do investimento do autor em esclarecer as bases epistemológicas do seu estudo.

Esse investimento na definição dos pressupostos teóricos do estudo se justifica na medida em que, como o próprio autor salienta, ao se propor a uma investigação histórica que privilegie a relação entre espaço e religião, o trabalho acaba apresentando uma abordagem original no campo da historiografia brasileira. O autor detecta entre as principais lacunas na literatura sobre a cidade brasileira, uma ausência de estudos sobre as origens e uma ausência do fator religioso. Portanto, seu estudo trata da constituição do espaço através de uma gênese religiosa, ou seja, da produção de uma proto-história das cidades mineiras. Com esta preocupação o autor propõe um debate importante com a historiografia sobre as cidades, que normalmente percebe a constituição do espaço urbano por seu caráter civilizacional e, em decorrência, definem a constituição das estruturas espaciais de origem, tal como os arraiais mineiros dos séculos XVIII e XIX, como uma iniciativa espontânea de uma sociedade em estruturação. Nas palavras do autor “[o trabalho] se propõe a estudar de forma sistemática a importância das representações e práticas religiosas na gênese das cidades e embriões de cidades em Minas Gerais ao longo dos séculos XVIII e XIX” (MATA, 2002, p. 20). É constante a defesa da tese de que em Minas Gerais, na origem do espaço urbano este é definido como um espaço sagrado. Utilizando-se do conceito de “longa duração” de Braudel (um dos expoentes da relação entre história e geografia), o autor afirma que “a formação de um arraial a partir de uma capela e do seu patrimônio é um processo de tal força e regularidade que não hesitaria em qualificá-lo de estrutural” (MATA, 2002, p. 23).

Porém, se o autor inova na temática e empreende um proveitoso esforço em favor da interdisciplinaridade para o tratamento do tema da religião, como veremos adiante, ele é conservador na utilização dos documentos para a produção de dados2. Neste aspecto critica a falta de

2 Para desenvolver seu estudo, Mata recorre a um denso material documental composto prioritariamente por um conjunto de documentos coletados no Arquivo Público Mineiro, nos arquivos eclesiásticos das arquidioceses de Diamantina, Belo Horizonte e Mariana e da diocese de Campanha, com especial destaque para o conjunto de documentos coletados pelo Vigário-Geral da Cúria, Monsenhor Júlio Bicalho, no final do século XIX. Além destes documentos foram consultados os livros de viajantes que percorreram Minas Gerais no século XIX, a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros (EMB) e o Dicionário Histórico-Geográfico de Minas Gerais (DHGMG). O autor recorreu também a obras literárias de escritores mineiros: Bernardo Guimarães, Alphonsus de Guimarães, João G. Rosa, entre outros.

referencial teórico na historiografia que procura trabalhar com a história das mentalidades e a história cultural, aliando-se a Jörn Rüsen, historiador alemão, que considera o “retorno à narrativa” na produção histórica como, de um lado, um prejuízo do ideal de objetividade, e de outro, uma sobre-valorização da “ficcionalidade” no trabalho do historiador. Em termos de referências teóricas é interessante que o estudo historiográfico de Mata avança em originalidade apropriando-se de influências distintas daquelas que normalmente a historiografia brasileira utilizou para produzir sua renovação, ou seja, as historiografias francesa, inglesa e norte-americana. A aproximação com a tradição alemã nos oferece, por exemplo, a possibilidade de conhecermos trabalhos da “Escola de Bochum” num campo de estudos reconhecido como geografia da religião, estudos que dão ênfase numa geografia das atitudes mentais. Por outro lado, mesmo criticando o que chamou de um ultra-relativismo da história das mentalidades e da história cultural, o autor não se furtou em utilizar historiadores como Laura de Mello e Souza e Ronaldo Vainfas para saudar o aparecimento de novas abordagens sobre a religiosidade no Brasil, livres da concepção institucionalista e anti-pluralista dos processos sócio-culturais que predominava na historiografia até então.

A abertura para a dimensão simbólica da realidade social e cultural é intensificada na concepção do autor sobre a cidade como espaço vivido. Chama a atenção para o fato de que nos aos 90 presenciamos ao retorno do espaço como interesse para os estudos no campo das ciências humanas. Para justificar a idéia de retorno o autor traz várias páginas apresentando o debate entre geógrafos e historiadores travado na Europa na primeira metade do século XX, o qual teria conseqüências interessantes no momento atual. A título de exemplo, o autor chama a atenção para a importância do projeto de geografia humana proposto pelo alemão Friedrich Ratzel no início do século XX, especialmente porque tal proposta enfatiza que a dialética entre espaço e história não se processa num nível puramente formal. Para este autor o espaço influencia a constituição física e mesmo a mentalidade (o „espírito‟) de um grupo. Para Mata, essa abordagem “culturalista” do espaço enfrenta uma outra visão que reduz o espaço a uma “palco”, tradicional entre historiadores e defendida por nomes eminentes como Lucien Febvre3 e Fernand Braudel. Neste caso o termo “culturalista” indica muito mais uma vocação para perceber o espaço através de sua dimensão simbólica e, portanto, com uma relação dialética construtiva com a vida social.

Para desenvolver sua compreensão da dimensão simbólica do espaço o autor vai lançar mão da contribuição de vários autores das Ciências Humanas. Explora, por exemplo, as idéias de Simmel que coloca a grande cidade como locus da mentalidade moderna; ou mesmo do conceito de “espaço mítico” de Ernest Cassirer, que diferencia o espaço carregado de sentido daquele que se apresenta aos nossos órgãos sensoriais e que vai ser definido como “espaço geométrico”. Nestes dois autores o espaço é visto, sobretudo, como expressão da atividade simbólica do homem e, deste modo, qualificam a relação de interdependência entre religião e a origem do espaço urbano que Mata coloca como fundamental para entender o processo de proto-urbanização em Minas Gerais. Vários outros autores reforçam este debate. Entre os principais estão Durkheim, Franz Boas, Edward Sorja, Bachelard, Michel Foucault, Lévi-Strauss, Herskovits, Marc Auge, Yi-fu Tuan, entre outros. Por esta nominata é possível perceber a amplitude da base teórica do autor, transitando pela geografia humana, história, sociologia, antropologia e fenomenologia para fundamentar as possibilidades que se abrem o tratar da relação entre espaço e religião. O mérito desta amplitude de perspectivas teóricas é abrir possibilidades de investigação do tema, que evidentemente não são esgotadas pelo estudo que o autor faz da constituição história das cidades em Minas Gerais.

No que se refere a religião, que é o outro elemento importante presente no marco analítico de Mata, a sua preocupação é qualificar o tipo de fenômeno religioso que estamos tratando ao pensar na sociedade mineira dos séculos XVIII e XIX. Para tanto, como foi colocado anteriormente, sua perspectiva de religião ultrapassa os seus marcos institucionais e vai preocupar-se com as questões da experiência religiosa. Neste caso o autor se aproxima das discussões sobre as expressões de religiosidade popular em Minas Gerais no período que compreende o estudo. Como base teórica, vai apropriar-se do conceito de Luckmann que entende “religião” como a “organização social das relações com a transcendência”, entendido que para este autor qualquer forma de experiência extra-cotidiana constitui uma transcendência. Para a discussão sobre religiosidade popular brasileira o autor vai utilizar-se do trabalho de historiadores como os supracitados e de autores do campo das ciências sociais como Maria Pereira de Queiroz, Gilberto Freyre e Pierre Sanchis, este último com forte influência nas análises de Mata.

O investimento do autor para trabalhar teoricamente os conceitos chaves presentes no texto, ou seja, espaço e religião, conferem à sua obra a potencialidade de um trabalho histórico no qual, ao estudar questões locais, coloca seus resultados em diálogo com questões teóricas mais amplas, de caráter universal, oferecendo elementos para o confronto dos conceitos gerais com a realidade.

Falando especificamente de Minas Gerais, o autor percebe duas dinâmicas distintas que estão na base dos processos de formação das cidades. São dinâmicas interdependentes, mas que mantém especificidades visíveis. Em primeiro lugar temos os arraiais e vilas forjadas em função de processos sociais decorrentes da exploração do ouro em Minas Gerais no século XVIII. É claro neste caso que a formação das localidades mantinha estreita relação com a atividade extrativista mineral. Em segundo lugar temos a formação de localidades em função do processo de “ruralização” da sociedade mineira, processo este que se acentuou com a diminuição da atividade mineira, mas que coexistiu com os arraiais de origem mineradora. Esta segunda forma de ocupação está intimamente vinculada a prática de fazendeiros em estabelecer um “patrimônio”, ou seja, um pedaço de terras ou uma doação em dinheiro, que serviriam para a construção de capelas e para a sua posterior manutenção. Para Mata, a gênese das cidades mineiras foi dependente da equação patrimônio-capela-arraial, uma vez que a prática comum é que a população se fixasse nos patrimônios doados para as capelas e dali surgissem as vilas e, posteriormente, as cidades. Por esta razão é que o autor chama a atenção para o fato de que os patrimônios que deram origem aos arraiais e às vilas foram os constituídos por doação de terras.

Para abordar os tipos humanos engendrados pelo ambiente societário de Minas Gerais dos séculos XVIII e XIX e, especialmente, para defender a capacidade criativa da religiosidade vivida por esses homens, o autor vai tecer um olhar crítico à tese weberiana do “desencantamento do mundo” e de suas exigências de um tipo específico de racionalidade para as relações nas sociedades modernas. Para construir uma visão alternativa às nossas idéias mais poderosas sobre a relação entre religião e civilização, Mata apóia-se na riqueza das definições sobre religiosidade popular e, olhando a religião sob esta perspectiva, vai procurar compor um dos tipos mineiros característicos à época: o homo ludens. Vai propor a idéia de que a relação básica entre o homem mineiro e o espaço não era a de enraizamento, mas que o mesmo seguia a “lógica do movimento” ao estabelecer seu estilo de vida. Apóia-se em conceitos como o de “concepção espaçosa do mundo”, de Sérgio Buarque de Holanda, e de “habitus nômade”, de Pierre Sanchis, para dar contornos para o que seria o homem do período da mineração. O “mito do Eldorado, antes de tudo” povoava a imaginação desses primeiros mineiros e justificava sua predisposição para o jogo e a aventura. Para Mata estas motivações são compreensíveis como resposta a uma sociedade com pouca mobilidade e que barra o acesso a melhores condições através do trabalho. O autor vai propor uma relação criativa entre a Rússia e Minas Gerais ao utilizar o romance “O jogador”, de Dostoiewski, para ilustrar suas definições sobre o homo ludens mineiro. Com este recurso à literatura o autor busca lançar luz aos sentidos da prática do jogo e resistir a crítica européia, segundo ele de natureza etnocêntrica, à “indolência” dos brasileiros. Para se contrapor a ética protestante alemã, Dostoiewski afirma que “o dinheiro preciso para mim mesmo, e longe de mim ver todo o meu Ser como acessório do capital” (apud MATA, 2002, p. 251). Em suma, habitus nômade e religião conformavam a visão de realidade do homo ludens mineiro.

Como foi colocado acima, neste contexto a possibilidade do estabelecimento de vilas e arraias estava estreitamente vinculada a um processo de “domesticação religiosa” do espaço. Porém, o patrimônio que sustentava a construção de capelas e, em conseqüência, das outras casas do povoado tinha sua origem em valores e crenças de uma religiosidade que pouco devia à oficialidade da Igreja católica. Tratava-se de uma religiosidade em que o extraordinário estava incrustado no cotidiano, em que uma oposição rígida entre o natural e o sobrenatural era estranha às visões de mundo que proporcionava. O autor chega a utilizar a idéia de “sagrado selvagem” de Bastide para definir a religiosidade da época, sem, no entanto deixar suspeitas da existência de uma religiosidade “pré-lógica”. A capacidade constitutiva de um espaço público desta mentalidade religiosa aparece nas análises que o trabalho nos oferece do simbolismo que envolvia a casa, a capela, a praça, o cemitério, em contraposição com o espaço repleto de ambiguidades representado pelo sertão. Da mesma forma, nos fala das relações entre os agentes sociais trazendo análises e informações sobre a segregação das mulheres e das relações entre os fazendeiros e os grupos menos favorecidos (lavradores, escravos, etc.). Neste ponto o texto peca ao minimizar o peso das relações de subjugação presentes numa sociedade fortemente hierarquizada como a sociedade mineira da época. O autor propõe-se a um debate interessante com Luis Mott sobre o tema, sem, no entanto, conseguir que os argumentos do texto superem a impressão de uma certa minimização freiriana das relações de dominação, aqui em versão mineira. Por outro lado, ao falar sobre o culto dos santos e de outras práticas a religiosidade popular mineira, o autor nega a definição etnocêntrica do pretenso “exteriorismo” do catolicismo tradicional, segundo esse argumento incapaz de desenvolver uma religiosidade mais profunda. Coloca tal visão como uma “projeção de ilusões tipicamente modernas” e prefere tratar a perenidade e o apego às formas presentes no catolicismo popular como próprio daquilo que Sanchis define como “prevalência do significante” para o catolicismo ibérico.

O autor encerra o livro com a seguinte pergunta: derrota da “cidade selvagem”? Tendo em vista o aparecimento de sistemas mais racionalizados de criação do espaço urbano, como é o caso de Belo Horizonte, no final do século XIX, e de Brasília, em meados do XX, representações vivas da geometrização das cidades, Mata se pergunta sobre a ausência do elemento mítico e religioso nas conformações do espaço urbano contemporâneo. Neste caso o próprio autor mostra a influência religiosa que presidiu a construção destas utopias urbanas modernas, permitindo que se pense na cidade planejada como prenhe de um sentido religioso, tal qual ocorre com muitos de seus habitantes, hoje vivendo em um contexto, o do pluralismo religioso, propício a intensificação das dinâmicas de encantamento do espaço dessas mesmas cidades.

Nota

2 Para desenvolver seu estudo, Mata recorre a um denso material documental composto prioritariamente por um conjunto de documentos coletados no Arquivo Público Mineiro, nos arquivos eclesiásticos das arquidioceses de Diamantina, Belo Horizonte e Mariana e da diocese de Campanha, com especial destaque para o conjunto de documentos coletados pelo Vigário-Geral da Cúria, Monsenhor Júlio Bicalho, no final do século XIX. Além destes documentos foram consultados os livros de viajantes que percorreram Minas Gerais no século XIX, a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros (EMB) e o Dicionário Histórico-  Geográfico de Minas Gerais (DHGMG). O autor recorreu também a obras literárias de escritores mineiros: Bernardo Guimarães, Alphonsus de Guimarães, João G. Rosa, entre outros.

3 Lucien Febvre, por sua vez, definia as ideias de Ratzel como um “determinismo geográfico”.

Referência

MATA, Sergio da. Chão de Deus: Catolicismo popular, espaço e proto-urbanização em Minas Gerais, Brasil, Séculos XVIII-XIX. Berlin: WVB, 2002. 304p.

Francisco Pereira Neto – Doutor em Antropologia Social pelo Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor Adjunto na Universidade Federal de Pelotas. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pelotas. E-mail: [email protected] .

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