A sentinela da liberdade e outros escritos (1821-1835) – BARATA (VH)

BARATA, Cipriano. A sentinela da liberdade e outros escritos (1821-1835). Organização e edição: Marco Morel. S.Paulo: EDUSP, 2009, 936 p. Resenha de: REZENDE, Irene Nogueira de. Varia História. Belo Horizonte, v. 26, no. 43, Jun. 2010.

Não fosse o Brasil um país de heróis equivocados e construídos artificialmente pelas elites governantes, certamente Cipriano Barata seria uma das figuras mais reverenciadas da história do século XIX. Não por mirabolantes atos de heroísmo, antes por sua pertinácia em defesa da liberdade de expressão. Trajetória de lutas que incluiu longos períodos passados na prisão – foram mais de onze anos no total – e a participação direta ou indireta em grandes rebeliões, como a Conjuração Baiana, de 1798, Confederação do Equador, de 1824, na intensa oposição ao governo de Pedro I, nas agitações soteropolitanas do Mata Marotos durante o ano de 1831.

Barata teve notável influência sobre os liberais exaltados com suas idéias avançadas, defendendo veementemente a liberdade de imprensa, a igualdade entre os sexos e o direito de voto para as mulheres, a inserção total de negros e mulatos à cidadania e, a república como forma ideal para o Estado que se projetava naquele momento. Tudo através de sua pena afiada e de sua palavra arrebatadora e apaixonada.

Foi em boa hora, portanto, que o historiador Marco Morel publicou Sentinela da liberdade e outros escritos. Como o próprio organizador adverte, não se trata da coleção completa da produção do jornalista, mas uma reunião de textos que permite uma visão ampla de conjunto de sua obra da vida inteira.

O livro teve uma edição bem cuidada, em capa dura e um estudo introdutório de Morel, contendo dados biográficos, a metodologia empregada na escolha dos textos, uma cronologia, além de fac-similes de alguns números do Sentinela, uma bibliografia completa sobre Cipriano Barata e seu jornal. A obra integra a coleção Documenta Uspiana, organizada por István Jancsó (recentemente falecido) e Pedro Puntoni.

O organizador dividiu a produção barateana em seis conjuntos de escritos, iniciando cada um deles com um comentário explicativo sobre os critérios que nortearam suas escolhas para montar cada um desses conjuntos. A primeira parte se refere à atuação do jornalista baiano nas Cortes de Lisboa, seguindo de sua produção jornalística logo após o retorno ao Brasil; seus escritos no período do primeiro reinado durante o qual esteve encerrado na prisão; o retorno à Bahia e novamente a prisão em 1831; os números do Sentinela que conseguiu publicar no tempo em esteve encarcerado no forte de Villegaignon, durante parte da regência e, finalmente, sua última fase, quando retorna a Pernambuco e consegue publicar, ainda, alguns números do seu jornal.

O volume vem enriquecido com ilustrações dos retratos que existem do jornalista e de seus colegas contemporâneos, reproduções de mapas do território brasileiro e ainda, lindas gravuras com paisagens da Bahia e do Rio de Janeiro da época. Um livro indispensável para aqueles que querem conhecer o Brasil das primeiras décadas do século XIX, pois além de objeto de estudo, o jornal constitui também generosa fonte de referências sobre os primeiros momentos do Brasil, como nação independente.

A introdução de Marco Morel aponta para a importância do conhecimento da dinâmica da imprensa coeva como instrumento de reflexão sobre os elementos iniciais da construção do Estado e da Nação. Elementos estes materializados nas páginas dos jornais, num momento em que a imprensa brasileira encontrava-se em fase de grande atividade, vivenciando a euforia de seus momentos primevos, determinando e dimensionando objetivos, experimentando novas formas de expressão, linguagens, estilos e introduzindo um vocabulário político responsável pela “explosão da palavra pública”. Indica ainda, a importância da primeira geração de jornalistas panfletários – na qual se incluía Cipriano Barata – que foram os agentes articuladores das “redes de sociabilidades”, através da imprensa periódica.

Nascido no ano de 1762, em Salvador, na Bahia, esse notável e incansável jornalista se destacou na luta pela independência e por um Estado nacional baseado na obediência às leis; morreu pouco antes de completar 76 anos em situação de quase penúria. Deixou uma conspícua descendência como Cândido Barata Ribeiro – primeiro prefeito do Rio de Janeiro -, o líder comunista Agildo Barata, o barítono Paulo Fortes e o humorista Agildo Ribeiro, este último ainda atuando na televisão.

Realizou seus estudos superiores em Coimbra, onde recebeu “diplomas de habilitação em Medicina e Matemática” e Filosofia em 1790. Na época de seu retorno ao Brasil já iniciara, na França, a revolução que derrubaria os Bourbons, fato que encheu Cipriano Barata de esperanças que por aqui chegasse logo a mesma onda revolucionária. Por ocasião de sua chegada dedicou-se, sem muito sucesso, à agricultura. Participou da Conjuração Baiana, de 1798, sendo preso e libertado mais de um ano depois. Foi eleito para representar o Brasil nas Cortes de Lisboa no processo da Revolução do Porto.

Octávio Tarquínio de Souza, em seu livro Fatos e personagens em torno de um regimeconta como o jornalista baiano andava pela capital portuguesa, vestido de maneira excêntrica, chamando a atenção de todos: só usava roupas confeccionadas com tecido de algodão grosseiro, genuinamente brasileiro, sapatos de couro cru e, na cabeça, um chapelão de palha. Compareceu assiduamente às sessões das Cortes, sendo notado pelos seus discursos atrevidos e pelo seu destempero de ter chegado às vias de fato com um colega baiano que defendia a continuação do Brasil dependente de Lisboa.

Depois de concretizado seu sonho de um Brasil independente, viu que não poderia descansar, pelo contrário, era hora de estar alerta (era seu brado constante: alerta!) e denunciar as arbitrariedades do novo governo. Era preciso manter-se vigilante contra os surtos absolutistas de D. Pedro I. Recusou de maneira peremptória a cadeira de deputado à Assembléia Constituinte por não confiar minimamente no governo. Em 1823, no Recife, fundou o jornal Sentinela da Liberdade e os seus violentos ataques aos governantes e, especialmente a José Bonifácio, lhe renderam a antipatia de D. Pedro I e um mandato de prisão.

Certa vez, ao responder a provocação de um desafeto sobre se queria ou não ser vassalo de D. Pedro I, disparou com verve e sagacidade: “(…) eu sou e quero ser de muito boa vontade súdito (mas nunca vassalo) de nosso Imperador Constitucional Liberal D. Pedro I. Mas saiba que eu o sou segundo o ajuste feito antes de ser coroado e segundo as promessas que ele fez aos Brasileiros, de ser amigo, defensor perpétuo, Imperador Constitucional Liberal do novo Império, para o qual nós o chamamos voluntariamente. (…) eu sou Leal Súdito e serei sempre com a condição, porém, de ser ele o Chefe do nosso Executivo Liberal, sem invadir por astúcia ou por força de qualquer parte dos poderes que não lhe pertencem, e sem privar o povo de qualquer porção de suas inalienáveis regalias e direitos, nem atentar levemente contra a independência e liberdade do Brasil.” Esta resposta é emblemática das convicções de Barata a respeito do liberalismo que professava e da veemência com a qual defendia a liberdade e o respeito às leis pelos governos constituídos.

Cipriano Barata era claro e direto nos seus textos, mas ao mesmo tempo em que citava os exemplos de grandes heróis da antiguidade, usava de palavras duras contra seus inimigos. Não pestanejava em chamar os jornalistas de oposição de pessoas de “poucas luzes” e “abjeto caráter” e os julgava “sumamente desprezíveis” e “abjetos eunucos”. Por ocasião da resistência das tropas portuguesas na Bahia, bradava de sua Sentinela: “Que é feito dos bigodes? Ora, quem não morreu ponha-se fora, por nossa misericórdia, em camisa e ceroulas. Tornem para Portugal, para serem pasto de piolhos”. Em outro número investe contra José Bonifácio, acusando-o de “imitar tanto as barbaridades do Marquês de Pombal” e perseguir os homens que trabalharam pela independência como o deputado Gonçalves Ledo. Sua palavra contundente lhe causaria todo o tipo de dissabores, mas Barata não esmorecia.

Seus últimos artigos de 1835, escritos em Pernambuco, dois anos antes de seu falecimento, são reveladores da maturidade e da propriedade com que falava das entranhas do poder. Afinal, os homens que agora participavam do governo eram velhos conhecidos seus, seja como adversários, ou como antigos aliados. Muitos deles foram contemporâneos de Cipriano Barata em Coimbra, nas Cortes de Lisboa, e mesmo nos grandes debates na imprensa e na política. Portanto, o jornalista falava do que conhecia. Como observou Morel, Barata faz “uma vigorosa interpretação da sociedade brasileira e de seus grupos dirigentes” e uma apaixonada defesa da república como forma de Estado que, para ele, amenizaria os efeitos deletérios da aristocracia.

O livro organizado por Marco Morel veio reparar uma falha que, Nelson Werneck Sodré há muito já reclamava: “Cipriano Barata aguarda ainda a justiça da História.” Com esta publicação certamente a justiça se fez.

Irene Nogueira de Rezende – Doutora em História pela Universidade de São Paulo e Pós-doutoranda/UFMG Av. do Contorno, 7236/ 302 Belo Horizonte/MG 30110-048 [email protected].

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.