Machado de Assis: a poética da moderação – BASTOS (MAEL)

BASTOS, Alcmeno. Machado de Assis: a poética da moderação. Rio de Janeiro: Batel, 2018. 315 pp. Resenha de: AZEVEDO, Sívia Maria. Machado Assis Linha v.12 n.28 São Paulo Sept./Dec. 2019  Epub Nov 25, 2019.

Se a expressiva e longa atuação de Machado de Assis no exercício da crítica teatral vem recebendo importante recepção entre os estudiosos (FARIA, 2008), ainda são relativamente poucos os trabalhos que se debruçam sobre a crítica literária machadiana, comparados aos estudos voltados à prosa de ficção (romances e contos) e, mais ultimamente, à crônica. Por isso mesmo, é muito bem-vindo o livro de Alcmeno Bastos (2018, p. 11), Machado de Assis: a poética da moderação, no qual o autor se propõe “[…] identificar a poética pela qual se guiou Machado de Assis no exercício da crítica literária e teatral, ofício que desempenhou no decurso de grande parte de sua vida intelectual”.

Bastos chama de “poética da moderação” a poética da crítica machadiana pautada pelos princípios defendidos em “O ideal do crítico” (1865) – “ciência”, “consciência”, “coerência”, “independência”, “tolerância”, “urbanidade” -, em relação aos quais, segundo o autor, “[…] Machado de Assis se manteve fiel […], exercendo uma crítica ‘ciente’ e ‘consciente’, marcada pela recusa à agressividade (com raríssimas exceções), sob o império da moderação […]” (BASTOS, 2018, p. 14).

Assim, a “poética da moderação” é o princípio condutor por meio do qual Bastos empreende o rastreamento dos principais textos de crítica literária e teatral de Machado de Assis, na promoção de um diálogo em que, sem deixar de reconhecer especificidades de ambas as áreas, privilegia a coerência de Machado aos postulados estéticos e éticos no exercício da crítica.

Agrupados em blocos temáticos, os textos de crítica literária e teatral de Machado de Assis são submetidos a leituras minuciosas, a começar por aqueles que atendem ao título “profissões de fé”, nos quais Machado identifica as qualidades necessárias para o exercício da crítica, que deveria ter função reguladora e normativa, explorados no capítulo “As profissões de fé: o ideal do crítico e o crítico ideal: ‘ciência’ e ‘consciência’, pilares da crítica machadiana”. Aqui foram selecionados os textos “Ideias sobre o teatro” (1859), “A crítica teatral. José de Alencar: Mãe” (1860) e “O ideal do crítico” (1864), ao lado de alguns pareceres que Machado de Assis exarou, enquanto censor do Conservatório Dramático, atividade que exerceu em 1862-1864 e 1886-1887. Cabe ainda mencionar as duas cartas do Dr. Semana, dirigidas ao Presidente do Conservatório Dramático Brasileiro, Antônio Félix Martins, publicadas em 3 e 17 de abril de 1864, na Semana Ilustrada, nas quais o cronista, em tom irônico, convida a autoridade censória a visitar o Alcazar Lírico para constatar a decadência moral do público e a baixa qualidade das peças encenadas naquele teatro. Bastos atribuiu essas cartas a Machado de Assis por coincidirem com o período em que o escritor atuou como censor- quando “Inúmeras vezes […] externou o ponto de vista de que o teatro tinha função social civilizadora e, portanto não podia aceitar peças que ofendessem a moral” (BASTOS, 2018, p. 46) -, crítica endereçada às peças levadas no Alcazar Lírico, o que vai ao encontro do teor das missivas do Dr. Semana.

O segundo eixo temático responde pelos “balanços críticos”, textos nos quais Machado de Assis empreende uma visão de conjunto da produção literária e dramatúrgica da época, objeto do capítulo “Os balanços críticos: a quantas andavam a literatura e o teatro no Brasil nos anos 1860/70”. Essa seção é contemplada com os textos “O passado, o presente e o futuro da literatura brasileira” (1858), “Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de nacionalidade” (1873), “A nova geração” (1878) e “O teatro nacional” (1866), seleção que, como se vê, descarta a linha evolutiva, e com isso a divisão da obra machadiana em duas fases. Ao longo desses quase vinte anos, se Machado de Assis imprimiu nuances a seu pensamento crítico, ao tratar de questões como o indianismo, a cor local na aferição da nacionalidade, a adesão dos escritores às novas tendências estéticas oriundas da Europa, tais como o teatro “realista”, nem por isso houve “[…] uma mudança acentuada em suas convicções crítico-teóricas, sempre marcadas pela consideração ponderada das razões em choque” (BASTOS, 2018, p. 58).

As resenhas de Machado de Assis sobre o movimento teatral no Rio de Janeiro, publicadas nas seções “Revista de Teatros” (O Espelho, 1859-160) e “Revista Dramática” (Diário do Rio de Janeiro, 1860-1861), e os estudos, produzidos de forma esparsa, sobre a obra dramática de Gonçalves Dias, Joaquim Manuel de Macedo, Antônio José, Quintino Bocaiúva, Oliveira Lima, entre outros, integram o capítulo “Machado de Assis vai ao teatro: a militância crítica no estudo (preferencial) de autores e peças contemporâneos e alguns estudos singulares”. Nesses textos, Bastos reconhece a fidelidade de Machado de Assis ao princípio de independência, ao criticar os desempenhos de João Caetano e Eugênia Câmara, aquele, pelo exagero na representação, esta, por estar mais afinada com a comédia do que com a tragédia. A defesa da função social do teatro justificaria a referência de Machado pelo teatro realista, mais adequado à representação da realidade, embora sem deixar de reivindicar a liberdade na criação artística.

Os textos mais propriamente de crítica literária de Machado de Assis, sobre poetas e ficcionistas, sobretudo os contemporâneos, receberam capítulo à parte: “Na crítica literária, um Machado mais atento à poesia (e aos poetas) que à prosa de ficção (ao romance, aos romancistas e aos raros contistas)”. Neste título-resumo (como em outros do livro), Bastos não apenas informa o leitor sobre o perfil do capítulo, mas também, no caso, a preferência de Machado pelos poetas em vez dos romancistas e contistas, o que talvez tenha passado despercebido, mesmo entre os machadianos. Outra novidade foi extrair de várias crônicas de “A Semana”, publicadas na Gazeta de Notícias, com base em obra anterior (AZEVEDO; DUSILEK; CALLIPO, 2013), os rápidos comentários de Machado acerca de ficcionistas, alguns dos quais, Coelho Neto, Raul Pompeia, Aluísio Azevedo, José Veríssimo. Em relação aos poetas de seu tempo, nenhum nome importante deixou de receber a atenção de Machado de Assis, que se manifestou tanto sobre os que o tempo consagrou, como Gonçalves de Magalhães, Junqueira Freire, Fagundes Varela, Álvares de Azevedo, quanto sobre os que ficaram esquecidos (Bruno Seabra, Alberto Zaluar, Adélia Fonseca etc.), sem deixar de contemplar os estrangeiros (Garrett, Gomes de Amorim, Guilherme Malta).

Os paratextos escritos por Machado de Assis para os seus romances, livros de contos, poemas e peças teatrais foram analisados no capítulo “Machado de Assis se apresenta ao leitor: a função metadiscursiva dos prefácios, prólogos, das advertências”. A inclusão desses textos no livro em pauta significa que Bastos os compreende como integrantes da bibliografia machadiana sobre crítica literária, o que é mais outra novidade trazida pela obra. A defesa de um “realismo seletivo”, a conformidade das ações das personagens às motivações interiores, o consórcio entre dados procedentes da realidade e a invenção do autor são princípios norteadores da crítica literária e teatral, a repercutir nos paratextos machadianos, com ressalvas em relação ao prólogo de Memórias póstumas de Brás Cubas, por já integrar o tecido ficcional, e aos de Esaú e Jacó e Memorial de Aires, pela ambiguidade quanto à autoria dos textos apresentados ao leitor.

Os últimos capítulos do livro foram dedicados a Eça de Queirós e José de Alencar, respectivamente, “Uma polêmica logo descontinuada (por ‘tédio à controvérsia’?): Eça de Queirós e a questão do realismo” e “José de Alencar: o romancista e o dramaturgo lidos e admirados pelo crítico Machado de Assis”. No primeiro, Bastos aborda a célebre querela em torno d’O Primo Basílio, em 1878, sobre o qual Machado de Assis se manifestou em artigos, nos quais reiterou suas convicções acerca da representação ficcional da realidade. Essa foi das raras ocasiões em que Machado se pronunciou mais duramente como crítico literário; ainda assim, o tom severo da sua crítica ficou muito distante do acirrado debate travado na imprensa carioca da época, do qual participaram vários nomes de peso (NASCIMENTO, 2008). No capítulo sobre José de Alencar, localizado não por acaso no fecho do livro, que se abrira com ele como epígrafe, na carta enviada em 1868 a Machado de Assis, apresentando-lhe Castro Alves, o pesquisador carioca resenha três modalidades de intervenção crítica de Machado acerca da obra de Alencar: a crítica literária (Iracema, 1866), a crítica teatral (Verso e reverso, O demônio familiar, As asas de um anjo, Mãe, O que é o casamento?, 1866) e o prefácio (edição comemorativa de O guarani, 1887, que acabou não acontecendo), sem esquecer as provas de admiração manifestadas em várias ocasiões, em crônicas e discursos.

Como balanço geral, o livro de Alcmeno Bastos vem trazer importante contribuição aos estudos machadianos, quanto à atuação de Machado de Assis no exercício da crítica literária e teatral, ao promover frutífero diálogo entre essas duas áreas de militância crítica, norteadas pelos princípios da “poética da moderação”.

Referências

AZEVEDO, Sílvia Maria; DUSILEK, Adriana; CALLIPO, Daniela Mantarro (Orgs.). Machado de Assis: crítica literária e textos diversos. São Paulo: Editora UNESP, 2013. [ Links ]

BASTOS, Alcmeno. Machado de Assis: a poética da moderação. Rio de Janeiro: Batel, 2018. [ Links ]

FARIA, João Roberto (Org.). Machado de Assis: do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008. [ Links ]

NASCIMENTO, José Leonardo. A recepção de O Primo Basílio na imprensa brasileira do século XIX: estética e história. São Paulo: Editora UNESP , 2008. [ Links ]

Sílvia Maria Azevedo – É professora adjunto de Teoria Literária e Literatura Comparada, do Departamento de Literatura, UNESP/Assis, tendo publicado artigos e livros sobre Machado de Assis, dentre os quais a organização das seguintes antologias Badaladas Dr Semana (São Paulo: Nankin, 2019, t. I e II), História de quinze diasHistória de trinta dias (São Paulo: Editora UNESP, 2001), Machado de Assis: crítica literária e textos diversos (São Paulo: Editora UNESP, 2013), em colaboração com Adriana Dusilek e Daniela Mantarro Callipo. É autora da reedição de O Momento Literário, de João do Rio (São Paulo: Editora Rafael Copetti, 2019), com Tania Regina de Luca, e da obra Brasil em imagens: um estudo da revista Ilustração Brasileira (1876-1878) (São Paulo: Editora UNESP, 2010). https://orcid.org/0000-0001-7679-1919. E-mail: [email protected].

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