Sobre o autoritarismo brasileiro | Lilia Moritz Schwarcz

A autora é conhecida por diversas obras que visam a análise antropológica e histórica da formação do Brasil, com foco nos perfis escravocratas e nos mitos desencadeados pela absorção acrítica de um ideal de brasilidade. Na obra resenhada não foi diferente, pois a autora delineia aspectos centrais da desigualdade racial existente no tempo presente, com justificativas do passado, a partir da memória de um Brasil sobejamente renegado na História oficial.

Alguns elementos da referida obra já haviam sido apontados no livro de Marilena Chauí na ocasião da publicação da obra Brasil: mito fundador e sociedade autoritária (2000), em que aborda a “cultura senhorial”, isto é, a relação mando-obediência nas relações públicas e privadas; as estruturas históricas fundadoras de desigualdade; a acumulação de capital e a privatização do público. Na contramão das comemorações em alusão aos 500 anos de Brasil, Marilena Chauí afirmava com propriedade, que nada, de fato, havia de se comemorar em função da persistência do autoritarismo mesmo sob regime democrático: “temos o hábito de supor que o autoritarismo é um fenômeno político que, periodicamente, afeta o Estado, tendemos a não perceber que é a sociedade brasileira que é autoritária e que dela provêm as diversas manifestações do autoritarismo político.” (CHAUÍ, 2000. p. 110).

Lilia Moritz Schwarcz segue a mesma linha de raciocínio de Marilena Chauí, aprofundando e atualizando o debate para o cenário histórico atual. Ao iniciar o livro com a afirmação de que “História não é bula de remédio”, Schwarcz delimita o marcador dos problemas que serão tratados durante a exposição: não se trata de descrição de eventos, mas de análise cuidadosa da historiografia brasileira que trata do pensamento social e de acontecimentos históricos para embasar sua argumentação.

Composto por nove capítulos sobre temas interdependentes, o livro é a expressão do resgate de uma história mal contada e obliterada por narrativas de apagamento, silenciamento e exclusão. Com isso, é possível notar o esforço da autora em abarcar intersecções que, se não tiveram início com a vinda dos europeus, a partir dela tiveram intensificados seus marcadores sociais.

É importante notar que há, logo no início, a demarcação de que a partir da Independência e a instalação de um Império, ocorreu a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) em 1838, ponto inicial de uma escrita da história do Brasil sob os cuidados do Império, “uma história que elevasse o passado e que fosse patriótica nas suas proposições, trabalhos e argumentos” (p. 12). Desse modo, se antes disso não havia história a ser contada se não a relativa à Portugal, agora era necessário “inventar uma nova história do e para o Brasil”. Assim, em 1844, houve concurso com o tema: “Como se deve escrever a história do Brasil” (p. 12). Essa História deveria se alinhar aos interesses europeus, de reconhecimento por seus feitos, honra, glória e, ao mesmo tempo, a imagem de harmonia e pacificação. Definiu a autora: “um projeto que fazia as pazes com o passado e com o presente do Brasil” (p. 13).

Essa nova História não foi contada pelos brasileiros, isto é, aqueles que se tornaram parte a partir da construção do projeto de nação “Brasil”. Ainda que tenha sido escrita formalmente por aqueles que aqui viviam, carecia de legitimidade substancial. Foi pelo olhar europeu, colonial, que nossos conceitos nasceram. A História oficial foi escrita e alicerçada sobre diversos mitos; entre eles, a mestiçagem, a democracia racial, o índio bondoso, o descobrimento. A autora mostra que a criação de uma identidade nacional não só foi enviesada, como inteiramente encomendada pela Coroa Portuguesa. A mistura dos povos, o branco europeu como primordial ao desenvolvimento do que é o Brasil e a confluência de raças (negra e indígena) como uma espécie de singularidade própria, jamais vista em outro momento da História. O Brasil era abençoado.

No entanto, Lilia Moritz Schwarcz escolhe refletir sobre a História a partir de lentes plurais sobre povos silenciados e apagados da formação do Brasil. Com isso, pretende investigar as raízes autoritárias do Brasil também por esse olhar apurado à questão racial, mas não só. O que Schwarcz explana é a concatenação de eventos que fundaram mitos e impressões do senso comum vistos até hoje e reverberados por líderes políticos de toda sorte.

Para tal introito, a antropóloga analisa a escravidão brasileira para além de seu funcionamento econômico, como edificadora de hierarquias raciais e sociais, como a compreensão do racismo; o mandonismo, conectado ao poderio econômico e político dos senhores; o patrimonialismo, em razão do impasse brasileiro em distinguir o espaço público do privado e retroalimentá-los; a corrupção, decorrente do patrimonialismo e que, por ordem da confusão, mantinha-se impune, a desigualdade social, a qual está imbricada não somente nas concepções de renda, mas também no acesso a direitos básicos como saúde, moradia, educação, transporte e lazer; a violência urbana e do campo, aquela manifestada pelo contorno elementar das anteriores, esta pela incisiva desigualdade de acesso à terra; a desigualdade de raça e gênero como fator instrumental da opressão sobrepostas a quem são submetidas mulheres negras e indígenas; e, por fim, a intolerância, calcada em dois espectros: da negação da violência contra os povos negros e indígenas e o apagamento de pontos de vistas distintos, o que desencadeia na intolerância sobre a existência de diferentes marcadores sociais, todos como expressão de como se deu a construção da ética brasileira e seu fruto autoritário em tempos contemporâneos.

Ao longo das páginas, a fidelidade com os problemas substanciais vivenciados pelos oprimidos de outrora e, de forma incontingente, pelos oprimidos de hoje, aparece por meio de dados oficiais sobre violência, desigualdade e o distanciamento social entre brancos e negros, homens e mulheres, poderosos da política (“caciques eleitorais” e suas “dinastias”) e meros cidadãos. Nem a República foi capaz de tornar a sociedade brasileira materialmente republicana. As estruturas oligárquicas, comezinhas da política brasileira, tiveram continuidade desde a sua proclamação. O sopro de esperança dado pela Constituição da República de 1988 não rearranjou a organização dos poderes pelo olhar democrático e participativo. Tais pontos são o cabedal de um sistema político excludente e dificilmente democrático. Os avanços são muitos e representam uma parcela significativa na memória daqueles que construíram o Brasil. A aprovação de legislações que buscam fomentar a inclusão social de minorias políticas é um retrato disso: um resgate.

Nas considerações finais, a autora narra um manifesto pela memória: “nossos fantasmas do passado”. E contribui com o olhar crítico para a História para além da lembrança, mas também como objeção ao esquecimento. A História brasileira é feita de repetições e desacordos harmônicos, uma vez que, além de desencadear contradições profundas oriundas de suas raízes, também é passível de “lacunas, realces e invisibilidades, persistências e esquecimentos” (p. 184). Para sanar essas faltas, é necessário a formação de um projeto inclusivo e igualitário que abandone a intolerância, o apagamento do outro, em respeito às “ideias, experiências, práticas, opções e costumes diferentes” (p. 130). Assim, rememorar é concretizar a ideia da cidadania.

Nem só por isso é possível verificar aspectos historiográficos, etnográficos e sociais na escrita de Schwarcz, pois identifica o passado como determinante para o momento presente, com fundamento nas estruturas sociais do Brasil; no tempo presente, tirado o véu que obscurece a verdadeira face do povo brasileiro, é certo que podemos enxergar “a concentração de renda e a desigualdade, o racismo estrutural, a violência das relações, o patrimonialismo” com nitidez (p. 184). O autoritarismo brasileiro, portanto, não é aguçado somente pelas reviravoltas políticas do presente; ele está, em parte, explicado no passado. Por isso, a memória é essencial para a batalha contra ideologias antidemocráticas à vista e do costume brasileiro de dar dois passos à frente e recuar três atrás, em relação às desigualdades (SCHWARCZ; NETO, 2016).

Referências

CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. Coleção História do Povo Brasileiro. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2000.

SCHWARCZ, Lilia; NETO, Helio Menezes. Quando o passado atropela o presente: notas de um Brasil que insiste no racismo. Cadernos de Campo, São Paulo, n. 25, p. 31-35, 2016. Disponível em: http://doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v25i25p31-35. Acesso em: 12 dez. 2020.


Resenhista

Wellen Pereira Augusto – Pós-graduanda em Direitos Humanos pela Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Realeza/PR. Graduada em Direito pelo Centro Universitário UNISEP. Brasil. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Resenha de: AUGUSTO, Wellen Pereira. A História do Brasil é brasileira? Duelo entre presente e passado. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n. 37, p. 287-290, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

 

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.