Os militares e a crise brasileira | João Roberto Martins

Joao Roberto Martins Filho Foto Gabriela Di BellaThe Intercept
João Roberto Martins Filho Foto: Gabriela Di Bella/The Intercept

Em 2020, João Roberto Martins Filho publicou a segunda edição de O palácio e a caserna: a dinâmica militar das crises políticas na Ditadura (1964-1969), adaptação da sua tese de Doutorado em Ciência Política, orientada por Décio Saes e defendida em 1989. Nesse livro, manteve a proposição de que as forças armadas brasileiras configuram um partido político fortalecido na emergência uma “ideologia militar fortemente calcada na repulsa à política civil”, cujas pautas correlatas e consequentes seriam a estabilidade social e a garantia da ordem. (p.55). A tese contrapunha-se à interpretação da experiência militar como um conflito entre dois ideais capitalistas: o internacionalismo da Escola Superior de Guerra (ESG) e o nacionalismo de grupos minoritários. Um ano depois da republicação, Martins Filho nos brinda com outro estudos sobre “militares” e “crise” dos anos recentes, reunindo dezessete autores vinculados a instituições de ensino e pesquisa nas áreas de Estudos de Defesa, Segurança Internacional, Relações Internacionais, Estudos Estratégicos, Ciência Política e História Contemporânea, Antropologia e, ainda, profissionais do jornalismo e da área militar.

Os militares e a crise brasileiraSe o organizador registra que a proposição de 1989 ficou no limbo até 2005, agora restam poucas dúvidas de que os militares representam funções e estratégias de um partido político para si mesmos e que são corresponsáveis pelos ataques à democracia liberal brasileira, perpetrados, por exemplo, desde 2013. O leitor, contudo, encontrará alguma dificuldade para chegar às provas dessa responsabilização. A coletânea é qualitativamente desequilibrada e variada em termos de gênero textual. Verá divergências compreensíveis e saudáveis, em termos de fontes e interpretações. A credibilidade das Forças Armadas (FA), na última década, por exemplo, é tida como em declínio e em ascensão; as políticas dos governos progressistas em termos de defesa são vistas positivamente e negativamente; e a profissionalização dos militares é fundamental e nula para a sua submissão ao controle político civil. Leia Mais

Na contramão da liberdade: A guinada autoritária nas democracias contemporâneas | Timotht Snyder

O livro Na contramão da liberdade: a guinada autoritária nas democracias contemporâneas, do historiador norte-americano Timothy Snyder, chega em momento oportuno para ampla parcela do público brasileiro. Compreender a onda autoritária que se fortalece em âmbito global e que atualmente governa este país, tem chamado a atenção de muitos leitores. A obra, publicada originalmente em inglês em 2018, insere-se num filão editorial composto por obras como O povo contra a Democracia (Companhia das Letras, 2019), de Yascha Mounk, Como a Democracia chega ao fim (Todavia, 2018), de David Runciman, e Como as democracias morrem (Zahar, 2018), de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt; livros agrupados por alguns analistas em categorias como “biblioteca da ansiedade” ou “bibliografia do fim do mundo”.1 Tais nomes poderiam sugerir exagero ou alarme falso, o que desconsideraria a urgência das questões tratadas em tais livros. Afinal, o perigo é real, inadiável. Basta considerar a erosão de nossas instituições democráticas nos últimos tempos. Os leitores brasileiros da referida obra poderiam, desse modo, beneficiar-se muito das considerações de Snyder acerca de processos históricos que, se não nos governam por inteiro, certamente mantêm relações com nossas instituições e vida política. Seu livro fornece tanto elementos para uma melhor compreensão da difusão recente do autoritarismo em várias partes do mundo, quanto possíveis caminhos para se contrapor a ele. Neste último caso, talvez valha a pena discutir tal obra a partir de alguns aspectos do fortalecimento de um movimento autoritário no Brasil e de suas especificidades, de maneira a evitar sua diluição completa no fenômeno abordado pelo livro, bem como a tomada das mesmas vias propostas pelo autor para a manutenção ou o revigoramento da democracia. Leia Mais

Sobre o autoritarismo brasileiro | Lilia Moritz Schwarcz

A autora é conhecida por diversas obras que visam a análise antropológica e histórica da formação do Brasil, com foco nos perfis escravocratas e nos mitos desencadeados pela absorção acrítica de um ideal de brasilidade. Na obra resenhada não foi diferente, pois a autora delineia aspectos centrais da desigualdade racial existente no tempo presente, com justificativas do passado, a partir da memória de um Brasil sobejamente renegado na História oficial.

Alguns elementos da referida obra já haviam sido apontados no livro de Marilena Chauí na ocasião da publicação da obra Brasil: mito fundador e sociedade autoritária (2000), em que aborda a “cultura senhorial”, isto é, a relação mando-obediência nas relações públicas e privadas; as estruturas históricas fundadoras de desigualdade; a acumulação de capital e a privatização do público. Na contramão das comemorações em alusão aos 500 anos de Brasil, Marilena Chauí afirmava com propriedade, que nada, de fato, havia de se comemorar em função da persistência do autoritarismo mesmo sob regime democrático: “temos o hábito de supor que o autoritarismo é um fenômeno político que, periodicamente, afeta o Estado, tendemos a não perceber que é a sociedade brasileira que é autoritária e que dela provêm as diversas manifestações do autoritarismo político.” (CHAUÍ, 2000. p. 110). Leia Mais

Sobre o autoritarismo brasileiro | Lilia Moritz Schwarcz (R)

É preciso coragem de verdade para enfrentar as histórias associadas às construções mitológicas, sobretudo aquelas calcadas no senso comum. A importância de uma resenha do livro de Lilia Schwarcz, “Sobre o autoritarismo brasileiro”, não reside exclusivamente na qualidade de seu conteúdo, mas sobretudo na atualidade de seu tema. A vontade da autora em dar uma rápida resposta à crise política da qual atravessamos, reveste o livro de importância, independentemente da relativa superficialidade com que aborda o tema. Tal superficialidade, no entanto, não deve ser encarada apenas como uma fragilidade argumentativa. Se boa parte da sociedade brasileira está estupefata com a escalada do autoritarismo bolsonarista, era urgente que algum historiador propusesse algumas respostas que dessem conta de explicar o recrudescimento do autoritarismo e a violência institucional que ele implica. Temos sempre de ter em vista que a história não deve ser direcionada para usufruto exclusivo de seu público especializado, mas que momentos políticos conturbados exigem que reflexões deste tipo se tornem públicas, sem, é claro, perder as especificidades da disciplina.

Uma importante reflexão do livro, quase chave explicativa para entendermos o principal público a que se destina a obra, trata-se de uma reflexão onde a autora encaminha uma diferenciação entre história e memória. Neste caso, a história seria um procedimento inconcluso, plural, composto em diversos debates, “incompreensões e lacunas”. Já a memória, um procedimento individual de atualização do passado no presente, uma produção. Se recupera “o presente do passado”, fazendo com que o passado também vire presente. Nesse sentido, o que pretende a autora é lembrar, ou seja, repensar o presente sob os auspícios do passado, ou seja, sem esquecê-lo, projetando ao mesmo tempo o futuro. Dessa maneira ela entende que não há como dominar totalmente o passado e que sua contribuição jamais se propõe a fazê-lo, se distanciando, agora, da história pois essa seria composta de uma diversidade de debates sem os quais ela pretende realizar. Com isso, podemos entrever que a obra busca uma maior amplitude de público que não somente o especializado, pois não se dedica a fazer história, mas, como bem quer a autora, a produzir memória, sendo esta produção, por fim, uma atitude individual, capaz de ser realizada por todos

Segundo nos conta sua introdução, um dos objetivos da obra é justamente tentar acalmar os ânimos daqueles que não encontram respostas para o crescimento acelerado da violência e da intolerância, questões que acompanham o Brasil da atualidade. Para tanto, a autora convida esse leitor a uma viagem pela História do Brasil, entendendo as bases de nossa desigualdade e conflito, o terreno fértil aos arranjos autoritários que acompanham a nossa política. Por completude, entende-se que esses regimes forjam sua legitimidade na construção narrativa da harmonia e paz social, mas funcionam de maneira a conservar suas práticas centralizadoras e segregacionistas.

É consenso que a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência é um momento inaugural na terceira república, rompendo o quadro democrático proposto na constituição de 1988. Para tanto, diz Schwarcz que essa ruptura foi orientada através de batalhas retóricas em torno de novas narrativas históricas, construindo uma verdadeira batalha entre modelos autênticos e falsos, causa e consequência da divisão política do Brasil atual.

Nessa batalha retórica, um dos argumentos encontrados na tradição autoritária brasileira é a constante reafirmação de um mito nacional, no qual lê-se o Brasil como um território onde os problemas nacionais são encarados de maneira harmoniosa e positiva. Esse argumento se estabelece numa leitura continuada da história do Brasil. Segundo a autora, o ponto original dessa elaboração é o naturalista Von Martius, um dos fundadores do IHGB, segundo ela o primeiro responsável por estabelecer a “metáfora das três raças”.

Na concepção da autora, a batalha retórica se materializa na prática governamental da seguinte maneira. O Estado, grande articulador da convivência social, busca sua própria versão da História, promovendo determinados acontecimentos político-militares e “suavizando” problemas que tem raízes históricas e que estão fincados no presente. Essa “história única” postulada pela retórica governamental de caráter autoritário, busca sobretudo naturalizar “estruturas de mando e obediência”, sem poupar esforços para exercer seu controle e violência institucional, abandonando, na prática e de certo modo, a leitura harmoniosa que embala a sua construção mítica.

Em sua viagem pela história do Brasil, na tentativa de estabelecer as bases onde se assentam a tradição autoritária brasileira, a autora começa pelo tópico “Escravidão e Racismo”. O argumento histórico é que a escravidão é uma instituição colonial aprofundada no Império e persistente na República, sendo “o racismo filho da liberdade”, pois perdura na organização social da contemporaneidade brasileira, uma vez que a população negra é a mais vitimizada do país. Outro ponto importante no trato do capítulo é a discussão que aponta para o vínculo dos projetos autoritários com a prática que remete ao legado colonial, onde tenta-se sistematicamente “recriar e obscurecer” o papel e a história das populações não europeias.

Dando sequência às temáticas, a autora propõe a investigação do “Mandonismo”, uma estrutura herdada da tradição colonial “assenhoriada” e aprofundada na sua forma coronelista. Para mim, esse é o principal ponto no qual gravita a tradição autoritária brasileira. Primeiro para entendermosas bases do mandonismo, é importante percebermos que segundo a autora, nossa aristocracia colonial foi meritória e não hereditária, onde o reconhecimento do privilégio era individual e tido como um favor do Estado. Nesse sentido, recorre a um importante argumento de Sérgio Buarque em Raízes do Brasil, qual seja, o uso de diminutivos e apelidos utilizadospelos subordinados para se direcionar a seu senhor, sendo uma maneira de confundir o público e o privado, ou melhor, uma prática que, ao aproximar as hierarquias distintas, confunde a dominação.

O terceiro tópico é o “Patrimonialismo” e este é mais uma vez apresentado segundo sua base colonialista. Desde o início da ocupação, os colonos centralizavam uma série de funções administrativas e de autoridade pública – marca administrativa da colônia brasileira. Nesse meio, cabe uma crítica na maneira com que a autora discute o conceito de patrimonialismo. Ela afirma que a prática atravessa diversos grupos ou estratos sociais e que está ligada ao sentido geral da propriedade. Porém, cabe discutir se no uso do conceito não seria melhor trabalha-lo a partir da perspectiva que entende o Estado como instrumento de uma classe, sendo mais eficiente para entendermos a tradição autoritária do Estado brasileiro.

Ao desembocar no tópico da Corrupção, me permitam uma pergunta com a qual indaguei a autora durante a leitura de seu livro. A corrupção é cultural ou estrutural? Nas suas análises Lilia Schwarcz aposta na tese da continuidade histórica e afirma ser a corrupção uma herança dos tempos coloniais, ao meu ver, portanto, estrutural. Num esforço de origem, ela retoma um relato fundante de nossa história, a carta de Pero Vaz de Caminha, onde o escrivão chega a apelar ao então rei português que facilite a vida de seu genro. Contudo, ao final, é apresentada a ideia, como encerramento da reflexão, de que a corrupção, nas palavras da autora, constitui um problema endêmico do Brasil, parte do caráter brasileiro e, portanto, fincada na cultura nacional. Ao menos assume não ser impossível de ser erradicada, sendo o grande desafio da atual República.

Ao se referir às práticas de corrupção no Império, é citado um dito popular utilizado para exemplifica-la naquele regime político: “Quem furta pouco é ladrão, quem furta muito é Barão, quem mais furta e esconde, passa de Barão a Visconde”. Tal abordagem não sinaliza apenas uma “questão de preço”, como indicado no livro, mas uma questão de classe, argumento que ela evita enfrentar diretamente ao longo da publicação aqui resenhada.

A Desigualdade – novo tópico – por sua vezé conclamada a partir da escravidão. Na sequência de sua argumentação, o passado colonial é sempre posto como ponto originário do desequilíbrio social, através justamente da concentração de terras e renda e suas respectivas práticas culturais patrimonialistas. No entanto, entre continuidades e rupturas, a autora infere que aquele tempo não deu conta de esclarecer porque o processo de industrialização do século XX não foi capaz de romper esse ciclo vicioso do passado, dando uma certa independência histórica ao fenômeno de nossa modernidade e contradizendo a perspectiva de que ela é na verdade carente, fruto de nossa dependência colonial.

Já encaminhando o desfecho do livro, Lilia Schwarcz propõe a discussão da violência, onde aqui destaco os argumentos que pretendem circunscrever sua forma autoritária e institucional. Parte fundamental é a discussão de que, no momento presente, sendo a violência uma marca estrutural de nossa história, estaríamos diante de um perigo eminente, tendo em vista os incentivos governamentais à brutalidade, à redução da maioridade penal e ao armamento. Contudo, o recrudescimento autoritário entendido nessas medidas não é capaz de entender e enfrentar a violência como um grande problema nacional.

A violência no campo é pouco ou quase nada trabalhada pela autora, tratando exclusivamente da questão indígena. Um ponto importante da argumentação sobre o tema é o fato de que a partir do Império se criou a imagem de que os indígenas a serem valorizados seriam aqueles capturados pela cultura nacional única e indivisível, os que tendiam a valorizar e defender sua existência sem passarem pelo processo de aculturação, seriam, enfim, tidos como bárbaros. Nesse sentido, argumenta a autora que essa visão romântica se transforma num processo violento que se eterniza na história nacional.

Em Raça e Gênero, sem muito me alongar no debate, apesar de considerar uma discussão importante para o equilíbrio social na contemporaneidade, apresento o apelo da autora para a criação de política públicas afirmativas, uma constante do livro. Mais caro ao esforço intelectual para o entendimento do autoritarismo, é a constatação de que o país se constitui na base de desigualdades socioeconômicas atreladas a questão de raça e gênero, mas também de geração e região.

Um ponto ao mesmo tempo já desgastado, mas importante de ser apresentado é quando a autora comenta que existe um racismo dissimulado no país, reservando à polícia a principal performer da discriminação. A partir desse ponto ela começa a citar casos de corpos negros vulneráveis como exemplos da violência policial, dentre os quais se destaca o recente assassinato de Marielle Franco.

Outro ponto que remete a questão de raça e gênero é a cultura do estupro. Ela é, ou ao menos deveria ser, um dos grandes problemas a serem enfrentados pelos governos em suas diversas esferas. Para exemplificar a construção patriarcal que ao longo do tempo tem autorizado, naturalizado e legitimado o estupro, a autora recorre às imagens da colonização, empresa de caráter masculino, onde o território colonial americano foi insistentemente representado como um corpo feminino a ser dominado e explorado. Ao final, em Intolerância, parte fundamental da imposição em torno das políticas afirmativas das minorias reside no argumento de que o Brasil é “uma nação de passado violento, cujo lema nunca foi a inclusão de diferentes povos, mas sobretudo a sua submissão, mesmo que ao preço do apagamento de várias culturas”.

Em dado momento em que discute a intolerância, a autora propõe que a crise política que engendrou o recente autoritarismo deu-se por um desgaste democrático ao longo dos últimos trinta anos, o que dá brecha para uma interpretação naturalizada da emergência conservadora. É uma interpretação confusa, pois em certo nível justifica a escalada autoritária, seus discursos e suas práticas, estas incompatíveis com uma organização política democrática, como bem defende a autora.

É evidente que a história do país e todos os argumentos dela derivados para definir as raízes de nosso recente autoritarismo, ilumina a cena atual. Contudo, a particularidade da política dos últimos anos, ou seja, o acirramento pós manifestações de 2013, escanteou os mitos fundantes da nacionalidade, e a proposta de sociedade harmônica do novo discurso autoritário nasceu envolta em meio daqueles que a buscam negar.

Filipe Menezes Soares – Doutor em História pela Universidade Federal do Pará. Atualmente pesquisa sobre os seguintes temas: teoria e metodologia da história, ditadura militar no Brasil, conflitos agrários, Nordeste e Amazônia. E-mail: [email protected]  ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2535-8538


SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Resenha de: SOARES, Filipe Menezes. Muitas vezes é mais cômodo conviver com uma falsa verdade do que modificar a realidade. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.39, n.1, p.519-524, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

Sobre o autoritarismo brasileiro | Lilia Moritz Schwarcz

É preciso coragem de verdade para enfrentar as histórias associadas às construções mitológicas, sobretudo aquelas calcadas no senso comum. A importância de uma resenha do livro de Lilia Schwarcz, “Sobre o autoritarismo brasileiro”, não reside exclusivamente na qualidade de seu conteúdo, mas sobretudo na atualidade de seu tema. A vontade da autora em dar uma rápida resposta à crise política a qual atravessamos reveste o livro de importância, uma forma de indicar as raízes históricas do autoritarismo que hoje paira sobre parte da consciência nacional e seu chefe de governo. Se boa parte da sociedade brasileira está estupefata com a expressão pública do conservadorismo, era urgente que um(a) historiador(a) propusesse algumas respostas para dar conta de explicar o recrudescimento do autoritarismo e a violência institucional que ele implica. Temos sempre de ter em vista que a história não deve ser direcionada para usufruto exclusivo de seu métier especializado, mas que momentos políticos conturbados exigem que reflexões deste tipo se tornem públicas, ou seja, mais acessíveis. Este é um importante valor do livro em questão. Leia Mais

Sobre o autoritarismo brasileiro | Lilia Moritz Schwarcz

Um país historicamente caracterizado por uma cidadania incompleta e falha, marcado por políticas de mandonismo, patrimonialismo, várias formas de racismo, sexismo, discriminação e violência. Uma nação que, apesar de vivenciar o maior período de vigência do estado de direito democrático desde 1988, não conseguiu constituir uma cultura democrática efetiva e nem uma república plena, combater de fato suas desigualdades e a concentração de renda, a discriminação contra negros e indígenas, e eliminar as práticas de violência de gênero. Resultantes de contradições estruturais e históricas, esses problemas continuam basicamente inalterados e tendem a reaparecer – à semelhança de um fantasma para nos assombrar – em momentos de crise política, econômica e social, de polarização política e da ascensão de governantes autoritários eleitos com base no uso das mídias sociais.

É o Brasil do início do século XXI – seus males, problemas e raízes históricas – e o incontestável ressurgimento do conservadorismo e do autoritarismo com a eleição de Jair Messias Bolsonaro que a historiadora Lilia M. Schwartz discute em seu livro Sobre o Autoritarismo Brasileiro, em diálogo com as reflexões de seu livro anterior Brasil: Uma Biografia2 – escrito em conjunto com a historiadora Heloísa M. Starling – e inspirado nas reflexões sobre o Brasil contemporâneo em sua coluna quinzenal no Jornal Nexo. Leia Mais

Authoritarianism and corporatism in Europe and Latin America: crossing borders | A. C. Pinto e F. Finchelstein

Para aqueles que se aventuram em entender os corporativismos do século XX, impressiona a amplitude e a diversidade da documentação produzida sobre o assunto, assim como da literatura nas ciências sociais que desde então tentou interpretar o fenômeno. O interesse, que faz deste um tema clássico nas ciências sociais, não é de todo fortuito. Os modelos corporativistas formularam respostas teóricas e institucionais para um dos problemas fundamentais da política moderna: a conciliação da diversidade dos interesses sociais com a unidade do Estado, então, há pouco mais de um século, diante do surgimento de grupos organizados de uma sociedade de massas (Gagliardi, 2014). Na definição conhecida de Philippe Schmitter, recuperando a previsão confiante de Mihail Manoilescu, o século XX parece ter sido o século do corporativismo (Schmitter, 1974). Leia Mais

Sobre o autoritarismo brasileiro – Lilia Schwarcz / Rodrigo Perez / 23 jun 2020

Coluna “Livros que merecem uma sentada” dessa semana. Apresento o belíssimo “Sobre o autoritarismo brasileiro”, de Lilia Schwarcz.

Mostro como a autora combina teses consagradas no “pensamento social brasileiro” com fartos dados estatísticos para produzir uma interpretação da realidade nacional que denuncia as forças do atraso que ao longo da história do Brasil travaram qualquer qualquer projeto de desenvolvimento sustentável, inclusivo e de longo prazo.

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Disputar la ciudad – MONTEALEGRE; ROZAS-KRAUSE (EURE)

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MONTEALEGRE Pía Disputar la ciudadPía Montealegre / www.merreader.emol.cl

MONTEALEGRE, Pía; ROZAS-KRAUSE, Valentina. Disputar la ciudad: sometimiento, resistencia, memorialización, reparación. Talca: Bifurcaciones, 2018. 200 pp. Resenha de: VIVANCO, Lucero de. Disputar la ciudad: sometimiento, resistencia, memorialización, reparación. EURE (Santiago) v.46 n.138 Santiago mayo 2020.

El extenso desarrollo de los estudios sobre autoritarismos, violencia política, derechos humanos y memoria social en América Latina y el mundo no hace más que expresar la necesidad de continuar profundizando estos temas, labor indispensable para la consolidación de prácticas, instituciones y regímenes democráticos. Bajo la convicción de que estas problemáticas deben ser tratadas interdisciplinarmente si se quiere capturar la complejidad que las caracteriza, Disputar la ciudadsometimiento, resistencia, memorialización, reparación, constituye una significativa contribución, al ingresar desde la perspectiva contemporánea y global de los estudios urbanísticos y sus vínculos con el campo de la memoria.

En consecuencia, el primer aporte que hay que reconocerle a este libro es su aproximación enriquecedora, pues añade una dimensión espacial a las interpretaciones temporales y simbólicas del problema. Se rebasan así tanto las reflexiones historiográficas como los estudios sobre memoria hechos desde la literatura y los estudios culturales, usualmente anclados en las representaciones estéticas y el develamiento de las ideologías políticas dominantes. Disputar la ciudad, alternativamente, despliega las relaciones teóricas –y sus correspondientes estudios de casos– entre procesos de memorialización y transformaciones urbanas, entendiendo que los contextos urbanos y las disputas de poder entre la ciudadanía y los regímenes autoritarios promueven e instauran los espacios de memoria.

En efecto, en la “Introducción”, de las editoras, y en los ocho capítulos que conforman este libro subyace, por un lado, el entendimiento de que la memoria –siguiendo a Elizabeth Jelin– es una zona de batalla, una instancia en la que narrativas, subjetividades y afectos ingresan a la arena del poder en busca de visibilidad, reconocimiento y legitimación; y, por otro lado, la idea de la ciudad como una geografía contenciosa, de enfrentamiento continuo entre grupos hegemónicos y subalternos, centro y periferia, gentrificación y desplazamiento, transformación y tradición, regulación y segregación, violencia y resistencia. La vinculación entre violencia de Estado y disciplinamiento urbano, primero, y entre espacio y memoria histórica, después, se explica y justifica entonces como una instancia relacional, bajo la impronta de la “disputa”. En este sentido, el libro está alineado sobre dos pilares: uno teórico, que amplía el concepto de memoria con el de pugna de poder; y otro metodológico, que explora las transformaciones urbanas que son suscitadas por los procesos de memorialización.

Otro de los aportes de este libro es que los ocho capítulos que siguen a la introducción se organizan en cuatro secciones funcionales a cuatro conceptos clave, señalados ya en el título del libro: “sometimiento”, “resistencia”, “memorialización” y “reparación”. Estos conceptos son comprendidos, según las propias editoras, como “espacios relacionales de la memoria” (p. 9), donde el espacio no se limita a ser definido como un escenario contenedor, y la memoria no se constriñe a ser concebida como proceso social anclado en el tiempo. Sometimiento, resistencia, memorialización y reparación son, bajo esta perspectiva, operaciones de disputa urbana.

Como explican las propias editoras, pero también como se desprende de los estudios de caso, el sometimiento, primer eje conceptual del libro, está dado, desde la perspectiva racionalista de la modernidad, por “la metáfora de la ciudad como un cuerpo enfermo, como un enemigo del orden que debe ser dominado” (p. 9). En este marco, urbanismo es la marca del poder jerarquizado actuando sobre el espacio, para sanar, higienizar, controlar la ciudad; para someterla. Los estudios que conforman esta sección tienen el foco puesto en dos ciudades europeas: Roma y Sofía.

Respecto de Roma, Federico Caprotti, en “Patologías de la ciudad: hipocondría urbana en el fascismo italiano”, recuerda y discute la particular visión negativa que el fascismo tenía de esta ciudad, y que expresaba mediante un discurso dualista explícito que contraponía la “naturaleza prístina” a la “sociedad enferma”. El estudio analiza las razones que cimientan este rechazo: por un lado, el temor ante el potencial subversivo de la ciudad y, por otro lado, el peligro de la ciudad en tanto portadora de afecciones sociales y morales. Se explica así la orientación de las políticas de dicho régimen hacia la ruralización y la desurbanización.

Respecto de Sofía, en “Sobre los sin-casa: caos, enfermedad y suciedad en la Sofía de entreguerras”, Veronika Dimitrova aborda críticamente el tema de las transformaciones urbanas experimentadas por esta ciudad en el marco de su designación como capital de Bulgaria. Explica la autora que la ciudad se reguló casi exclusivamente en su parte central, dejando la periferia fuera de la planificación, lo que tuvo como consecuencia el desarrollo de barrios de personas “pobres sin-casa”. Dimitrova sostiene que, a diferencia de otros Estados europeos, “aquí es posible hablar de modernización y expansión urbana en cuanto proceso de negociación” (p. 47) que se lleva a cabo como una expresión de resistencia al poder.

“Si el sometimiento es una acción relacionada al poder jerárquico, la resistencia es inherente al poder ciudadano” (p. 11), plantean las editoras siguiendo a Michel De Certeau. Se entiende así que el espacio se configura como una táctica de resistencia urbana, segundo eje conceptual, frente a un amplio arco de violencias: desde las más visibles y materiales de los regímenes autoritarios, hasta los violentos eufemismos del capital. Bajo este segundo apartado se presentan dos importantes estudios sobre las ciudades de Santiago de Chile y São Paulo.

Diene Soles, en “Reconfigurando lo público y lo privado en el Santiago de Pinochet: un análisis de género”, releva la capacidad articuladora de las mujeres para crear organizaciones ciudadanas, no solo frente al empobrecimiento de la población derivado de la implementación de políticas neoliberales, sino también demandando la vuelta a la democracia como un modo de rechazar la violencia inmanente del régimen. Argumenta la autora que, mediante estas tácticas de resistencia, se quiebra la distribución tradicional de género entre lo privado y lo público. Se logra así que los espacios íntimos y domésticos sean usados como lugares de acciones colectivas y, más importante aún, que las mujeres se conciban a sí mismas como actoras sociales y agentes de cambio.

En “Procesos de significación en los modos de resistencia urbana”, Beatriz Dias y Eneida de Almeida levantan el caso de la megaciudad de São Paulo, para reconocer en ella diversos colectivos de arte urbano que actúan desde una periferia marginada, excedente directo del poder económico. Estos colectivos se despliegan desde el pensamiento-acción, como faces de la lucha por el derecho a la ciudad y la resistencia a la segregación urbana. Un punto central de la argumentación radica en la construcción de identidades, en tanto que los sujetos que interactúan con los colectivos, “al transformar la ciudad a partir de los deseos y necesidades colectivas, su propia identidad también es reconfigurada” (p.102).

Por memorialización, tercer eje conceptual, las editoras entienden “la concreción de un recuerdo en un lugar”, la instancia en la que “la relación entre memoria y espacio se materializa” (p. 13). Santiago de Chile y Medellín son las ciudades que reciben la atención de los dos estudios de esta sección. Coinciden ambos en expresar las disputas por la memoria cuando se trata de conmemorar a las víctimas, ya que la “víctima” –su definición, su identificación, su reconocimiento–, muchas veces imposibilitada de abandonar una “zona gris”, en el decir de Primo Levi, es también motivo de pugnas y exclusiones.

Carolina Aguilera, en “Santiago de Chile visto a través de espejos negros. La memoria pública sobre la violencia política del periodo 1970-1991 en una ciudad fragmentada”, hace el seguimiento histórico y crítico a la inscripción de memoriales en el espacio público en conmemoración de las víctimas de violaciones a los derechos humanos, perpetradas desde 1970 hasta el fin del régimen pinochetista. Su argumento busca demostrar la interconexión entre la distribución urbana de los memoriales y la propia segregación socioeconómica de la ciudad, develando así la heterogeneidad subyacente a los procesos de memorialización y la naturaleza combativa de la memoria. Cabe destacar que la autora facilita a sus lectores una línea de tiempo y una cartografía de los memoriales erigidos durante este periodo.

Medellín viene de la mano de Pablo Villalba en “Entre ruinas, lugares y objetos residuales: la memoria en la ciudad de Medellín”. En línea con los “ejercicios de memoria” que están en la base de los procesos de paz en Colombia, el autor afirma que se ha admitido un pluralismo en las marcas y los eventos urbanos de memorialización. Sin embargo, advierte de una serie de fenómenos que, al darse en paralelo, parecen promover una política de la amnesia: la condición efímera de las acciones conmemorativas, junto a la vertiginosidad del ritmo citadino; la destrucción del patrimonio arquitectónico y la comercialización para el consumo masivo y turístico de la memoria (por ejemplo, la narco-memoria) convergen así para forjar, más bien, una memoria sin historia.

El cuarto y último eje conceptual de este libro, reparación, asume que, “así como la memoria requiere de lugares para situarse, la reparación también tiene una dimensión espacial” (p. 15). Los memoriales cumplen, entonces, una doble función: pública, de rememorar el trauma social y generar espacios para rituales de reparación; e íntima, al ser una instancia de recogimiento efectivo para los procesos de duelo y sanación individual, especialmente cuando no se cuenta con los cuerpos de las víctimas para realizar los correspondientes ritos funerarios. Los estudios que se desarrollan bajo este eje abordan ambas dimensiones de la reparación. Pero también retoman la idea de la ciudad como organismo vivo, para plantear que esta puede y debe ser atendida en la recuperación de sus heridas.

Bajo el concepto de reparación, el estudio de Yael Navarro, “Espacios afectivos y objetos melancólicos: la ruina y la producción de conocimiento antropológico”, se focaliza en Chipre en el contexto de su división en 1974. Ese año, como consecuencia de la invasión turca, chipriotas griegos y turcos tuvieron que desplazarse dentro de la isla a las zonas que les habían sido asignadas en función de sus respectivas nacionalidades. En este contexto, y con una impronta teórica fuerte, Navarro discurre por una serie de categorías como afecto, melancolía, ruina, huella y fantasma, para indagar ya no en las relaciones intersubjetivas de la memoria, sino en las interacciones de lo humano y lo material, teniendo en la superficie del discurso la pregunta implícita por la posibilidad de reparación.

Finalmente, Estela Schindel, en “«Ahora los vecinos van perdiendo el temor». La apertura de ex centros de detención y la restauración del tejido social en Argentina”, se focaliza en la recuperación de los espacios que funcionaron como centros clandestinos de detención en la dictadura, y en su conversión en espacios de memorialización. Se trata de una geografía del terror recapturada y reapropiada por la ciudadanía, para revertir las narrativas del miedo, contribuir con la reconstrucción de “los lazos sociales quebrados” y promover “prácticas y usos del espacio contrarios a los impuestos por el régimen dictatorial” (p. 185).

De acuerdo con lo dicho, este libro resulta imprescindible por varios motivos. Entre ellos, por la acuciosidad del tratamiento teórico llevado a cabo por las editoras y por los autores y autoras en los distintos casos de estudio. También porque el conjunto de capítulos constituye un catálogo de calidad de las variadas metodologías y aproximaciones críticas con las que se puede acometer reflexivamente las relaciones entre ciudad, violencia y memoria. Por último, porque el libro en su organicidad amplía desde las disciplinas espaciales el necesario e inagotado campo de los estudios sobre memorialización y derechos humanos.

Este libro llega para reforzar la colección Cuervos en Casa de la editorial Bifurcaciones –Conocer la ciudad, filmar la ciudad, mover la ciudad (próximo)–, que reúne valiosos trabajos que aportan, desde distintas temáticas y perspectivas, a una comprensión más integral y compleja de los fenómenos urbanos.

Referências

De Certeau, M. (1984). The practice of everyday life. Berkeley, ca: University of California Press. [ Links ]

Halbawchs, M. (1992). On collective memory (The Heritage of Sociology Series). Chicago, il: University of Chicago Press. [ Links ]

Jelin, E. (2012). Los trabajos de la memoria (Serie Estudios sobre Memoria y Violencia). Lima: Instituto de Estudios Peruanos (iep). [ Links ]

Levi, P. (2011). Trilogía de Auschwitz. Barcelona: El Aleph. [ Links ]

Lucero de Vivanco – Universidad Alberto Hurtado, Santiago, Chile. Email: [email protected].

Sobre o autoritarismo brasileiro / Lilia M. Schwarcz

Escravidão, Racismo, Mandonismo, Patrimonialismo, Corrupção, Desigualdade social, Violência, Raça, Gênero, Intolerância, Tempo Presente, Brasil, Século 19, Século 20, América

Nós, os brasileiros, somos como Robinsons: estamos sempre à espera do navio que nos venha buscar da ilha a que um naufrágio nos atirou (Lima Barreto, “Transatlantismo”, Careta).

Em tempos de retrocesso, em que a esperança parece ter fugido do coração dos homens, é preciso voltar ao passado. Em momentos históricos conflitantes, nos quais a histeria e intolerância tornam-se a tônica do cotidiano, é preciso entender onde erramos, reencontrarmo-nos com o mais profundo de nós. Em momentos de frivolidades, mesquinharias, total apatia ao saber e à cultura, é preciso um pouco mais de poesia, de literatura, arte, diálogo. Como diria o poeta: “Precisamos adorar o Brasil! Se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens, porque motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos” (ANDRADE, s.d., s.p).

É preciso tentar entender, em suma, os caminhos percorridos por nós, brasileiros, na construção deste país que ainda se faz muito desigual e injusto, é preciso que nós, historiadores, inventores do passado (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2007), na lida com o seu inventariado, coloquemos a nu o Brasil, naquilo que ainda o faz um país do atraso e autoritário. Penso eu que foi essa responsabilidade, diante do caos, que provocou na antropóloga e historiadora brasileira, Lilia Moritz Schwracz, a necessidade de escrever uma obra como a que foi recém-lançada pela Companhia das Letras em 2019, intitulada Sobre o autoritarismo brasileiro.

No atual momento da história brasileira, discutir temas como escravidão, racismo, mandonismo, corrupção, desigualdade social, violência, etc, constitui-se como uma tarefa fundamental, como que um lembrete aos incautos sobre os verdadeiros dilemas do país. Como diria o velho historiador: “o papel do historiador é lembrar aquilo que a sociedade insiste em esquecer”.

O livro é curto, cerca de 255 páginas que se entregam à uma viagem ao Brasil profundo, revelando aspectos não tão somente de seu passado, mas demonstrando claramente como este passado ainda ecoa no presente, produz mártires, heróis e muitos esquecimentos ao longo de sua história. É válido ressaltar que alguns temas que aparecem no livro já foram discutidos pela antropóloga em alguns de seus outros livros e artigos, como o capítulo Escravidão e Racismo, que aparece na coletânea História da Vida Privada no Brasil (volume 4, 1998), ou como também de seu outro recente livro, escrito em parceria com Heloísa Starling, intitulado Brasil uma biografia.

O livro é dividido em duas partes: uma primeira contém oito capítulos com os temas: Escravidão e racismo; Mandonismo; Patrimonialismo; Corrupção; Desigualdade social; Violência; Raça e Gênero e; Intolerância. Na segunda parte um breve panorama sobre o nosso presente, intitulado Quando o fim é também o começo: Nossos fantasmas do presente.

Em uma proposta honesta, já na introdução podemos sentir a que vêm as páginas seguintes. A autora se posiciona diante dos fatos, toma partido, sua obra não se torna panfletária deste ou daquele lado, num país divido, mas propõe-se a ser mais que uma obra enunciativa, ela denuncia os mandos e desmandos pelos quais passamos ao longo de nossa história. E por falar em História, um aviso aos leitores: “história não é bula de remédio”. Isso para falar das várias vertentes que explicaram e explicam ainda hoje o Brasil, seja em suas teses validáveis, ou naquelas ainda hoje criticadas pela Academia, mas que fazem parte do imaginário popular acerca do país, algumas delas como a de democracia racial, difundida por Gilberto Freyre.

Naturalizar a desigualdade, evadir-se do passado, é característico de governos autoritários que, não raro, lançam mão de narrativas edulcoradas como forma de promoção do Estado e de manutenção do poder. Mas é também fórmula aplicada, com relativo sucesso, entre nós, brasileiros. Além da metáfora falaciosa das três raças, estamos acostumados a desfazer da imensa desigualdade existente no país e a transformar, sem muita dificuldade, um cotidiano condicionado por grandes poderes centralizados nas figuras dos senhores de terra em provas derradeiras de um passado aristocrático (SCHWARCZ, 2019, p. 19).

É em torno do binômio passado/presente que toda a narrativa do livro se dá. Parte-se do presente, do nosso presente, marcado por discursos autoritários, para mostrar-nos que sempre fomos autoritários, que as desigualdades entre nós, de tão oficializadas pelo Estado, já foram por nós naturalizadas, não nos causando estranhamento e apatia, pelo contrário, é dessa naturalização de tais características nossas que novos sujeitos autoritários surgem e ganham total apoio do povo, culminando numa perpetuação de nossas desigualdades, só que agora mais cristalizada, edulcorada, aceitável e demandada.

A historiadora nos faz lembrar que, diante de toda a história brasileira o tema da escravidão se coloca como um problema ainda não superado pela sociedade. O racismo advindo dela, como a posse de uma pessoa por outra, só geraria um regime nefasto e sanguinolento. Por isso, no livro abundam dados de pessoas que sofreram na pele os desígnios da escravidão na época de sua vigência, como também daqueles que, pós abolição, encontraram-se sem qualquer tipo de assistência por parte do Estado, culminando nos atuais atrasos vivenciados por nós até hoje, como a constituição segregadora de nossas cidades, regiões específicas delas nas quais eclodem violências fruto da desigualdade.

Ao longo de sua análise é possível notar a perpetuação de antigos sujeitos no cerne do estabilishment brasileiro. Figuras frutos das antigas oligarquias do baronato brasileiro que, incrustando-se na vida política de determinadas regiões brasileiras, formam verdadeiros clãs no Estado. Como é o caso da família Sarney, dos Gomes e até mesmo, atualmente, da família Bolsonaro, na realidade carioca. Esse mandonismo brasileiro é um dos motivos de seu atraso, uma vez que esses clãs têm o Estado como um campo seu, particular, em atendimento aos seus interesses privados.

Surge daí a evidente noção de Patrimonialismo que desemboca em diversos tipos de corrupção na República. No livro, fica demonstrado que a corrupção é a palavra-chave de nosso dicionário político ao longo da história, desde a primeira carta de Pero Vaz de Caminha até os recentes escândalos de corrupção que malogram os dias brasileiros. Tais atos políticos, naturalizados pelos brasileiros de parte a parte, fazem do Brasil o que ele é hoje; um país democrático, é certo, mas que a qualquer tempestade vê a sua democracia se esvaindo e não sente no povo a sua inspiração de esperança e futuro melhor, pelo contrário, o povo, aqui, parece ter cumprido sempre o papel de apoiador alienado dos interesses das elites do momento.

Hoje, saltam aos nossos olhos milhares de homicídios pelas grandes cidades brasileiras. Suas vítimas? Na maioria das vezes jovens negros, habitantes das favelas. Onde erramos nós? O que fez com que estes homens brasileiros, tão guerreiros e trabalhadores, brutalizarem seus olhares para a vida e morte do próximo? Gays, lésbicas, trans e tantos outros morrem brutalmente, silenciosamente, todos os dias, a cada minuto no Brasil, simplesmente por pertencerem a este ou àquele grupo a que chamamos “minorias”. Por serem minorias o Estado não os tem assistido de seus direitos, demandas, sonhos.

Raça e Gênero, outro problema tão grave, tão brutal, que parece ter se extrapolado no dia a dia brasileiro. Homens que têm em mente que suas parceiras são sua posse as matam, as encarceram e as agridem, física e existencialmente. Tudo se perdeu, as colorações político-partidárias parecem estar estampadas na face de cada um, sem diálogo, sem conversa, esquerda ou direita. Precisamos de mais poesia, de mais humanidade, de democracia e de história. “Precisamos descobrir o Brasil, escondido atrás as florestas, com a água dos rios no meio, o Brasil está dormindo, coitado, Precisamos colonizar o Brasil”.

Às vezes, na descoberta deste Brasil nos defrontamos com tão tristes histórias, a sua história, que a lida parece ser impossível. E nós historiadores, que nos posicionamos diante do caos, inventando e inventariando esse cipoal de tragédias por pouco perdemos as esperanças, de tão atacados, difamados, violentados que somos. Seja em nossos escritos, em nossos posicionamentos, em nossos recortes e escolhas, desvendemos o Brasil, esse jovem país, acossado por tantas precariedades. Este é o nosso papel, “farejar a carne humana”, numa história cada vez mais humana e voltada para os homens, problematizemos o Brasil, mesmo que seja sem esperança, vai que por aí, por sorte ou compaixão ela renasça novamente no coração dos homens. Não sei, na democracia tem dessas coisas!

Referências

ALBUQUERQUE JUNIOR. Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história. Bauru, SP. Edusc, 2007.

ANDRADE, Carlos Drummond. Hino Nacional. Disponível em: https://www.escritas.org/pt/t/5668/hino-nacional . Acessado em: 30/08/2019.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

Marco Túlio da Silva – Graduado em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Membro do Núcleo de Estudos Históricos da Arte e Cultura (NEHAC-UFU). Bolsista CNPQ. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2763247048100798. E-mail para contato: [email protected].


SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Resenha de: SILVA, Marco Túlio da. Autoritarismos e o Brasil: uma fissura no silêncio. Em Perspectiva. Fortaleza, v.6, n.1, p.339-342, 2020. Acessar publicação original [IF].

Sobre o autoritarismo brasileiro – SCHWARCZ (RBHE)

SCHWARCZ, L. M. Sobre o autoritarismo brasileiro: São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Resenha de: ENZWEILER, D. A., & CAREGNATO, L. Sobre o autoritarismo brasileiro. Revista Brasileira de História da Educação, n.20, 2020.

O livro resenhado, Sobre o autoritarismo brasileiro, de autoria de Lilia Moritz Schwarcz, tem como objetivo “[…] reconhecer algumas das raízes do autoritarismo no Brasil, que têm aflorado no tempo presente, mas que, não obstante, encontram-se emaranhadas nesta nossa história de pouco mais de cinco séculos” (Schwarcz, 2019, p. 26). Ao descrever a construção de certa história oficial do Brasil, a autora sinaliza como esse tipo de narrativa pode criar um passado mítico e harmônico, bem como, por outro lado, pode servir de base para a naturalização de estruturas autoritárias. Ancorada no objetivo central de sua obra, pontua pressupostos básicos na elaboração e perpetuação de uma história pautada em mitos nacionais, mostrando-se profundamente enraizados ao imaginário brasileiro atual, destacados nas entradas temáticas de cada um dos capítulos subsequentes. A autora é graduada em História pela Universidade de São Paulo-USP, possui mestrado em Antropologia Social pela Universidade de Campinas- UNICAMP e doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo-USP. É professora Titular do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo, editora e membro editorial de periódicos nacionais e internacionais.

A obra livro divide-se em 10 capítulos. Entre os capítulos inicial e conclusivo, há 8 capítulos temáticos variados, como descrevemos na sequência. Dentre tais elementos, pode-se destacar que, apesar das permanências e recorrências em relação a questões historicamente problemáticas no Brasil, conforme as temáticas abordadas, conclui-se que as novas ondas de autoritarismo não são semelhantes às de outrora. De acordo com as análises, os novos governos com tendências autoritárias, que se destacam em diferentes países nos últimos anos, dentre eles o Brasil, estão articulados a outras demandas.

No capítulo 1, ‘Escravidão e Racismo’, destaca-se que a escravidão, no Brasil, por ter sido um dos últimos países no mundo a aboli-la (via processo conservador), foi mais que um sistema de organização econômica, mas uma forma de moldar as condutas individuais. Aponta que há mudanças nas formas de manifestação do racismo: do discurso científico e biológico (darwinistas raciais) no período pós-emancipação, para um tipo de ideologia social. Conclui-se que, apesar das conquistas do movimento negro desde o século XX, da legislação e dos direitos adquiridos no século XXI, há muitas evidências estatísticas que indicam a perpetuação de práticas discriminatórias e racistas, apontando que avanços e novas conquistas ainda são necessárias.

Já no capítulo 2, ‘Mandonismo’, aponta que o modelo da família patriarcal pode ser compreendido a partir da análise do modelo colonial brasileiro. Utilizando-se de exemplos do caso açucareiro, sinaliza que há poucas mudanças para a época posterior, de ascensão do café na região Sudeste, na qual predominam lógicas muito semelhantes. Ao deter-se sobre o período republicano, destaca que permanece um perfil oligárquico no governo da nação. No decorrer do século XX, também há práticas decorrentes dos modelos descritos, dentre eles o coronelismo, presente nos dias atuais em algumas regiões brasileiras, perpetuando a relação entre mandonismo, concentração de renda e poder político. Contemporaneamente, também se evidencia que, pelas novas possibilidades frente às mídias sociais, surge a figura do político populista digital, uma espécie de ‘presidente-pai’. De acordo com as análises, a linguagem que herdamos do mandonismo encontra sobrevida na nova era dos afetos digitais, igualmente autoritários.

No capítulo 3, ‘Patrimonialismo’, destaca que, historicamente, o Brasil possui um tipo de déficit republicano. Salienta que há dois grandes inimigos no cenário nacional: o patrimonialismo e a corrupção. Para refletir sobre tais práticas, utiliza-se de estudos de variados sociólogos brasileiros para pensar especificidades locais, como a cordialidade, as práticas nepotistas e suas relações com a formação colonial brasileira. Como síntese, indica que a prática política nacional é fortemente marcada pelos afetos, resultando em um tipo de corporativismo. E, nessa lógica, assuntos relativos ao Estado tornavam-se, no limite, problemas de ordem privada. Com a Independência, criam-se algumas instituições, mas as práticas patrimonialistas não mudam de forma considerável. No período do 2º Reinado há uma nova versão da corte, resultando na formação de uma nobreza bem específica, denominada de ‘meritória’, com características distintas da nobreza europeia, marcadas pelo nascimento. No período Republicano, são criadas algumas instituições mais fortes, porém as práticas descritas permanecem. Como exemplo, destaca-se a força do coronelismo durante a 1ª República, bem como o voto de cabresto, prática político-cultural muito presente no respectivo contexto. Com a Constituição de 1934 e de 1988, por exemplo, há garantias legais consideráveis. Atualmente, ainda é possível localizar legados de tais práticas no cenário político nacional, especialmente pelos dados relativos às ‘bancadas dos parentes’. Também se destacam algumas dinastias que dominam o poder político em alguns territórios e as barganhas pessoais pelas emendas parlamentares para angariar votos nos espaços municipais como práticas ainda correntes.

Já no capítulo 4, ‘Corrupção’, destaca que a corrupção, junto ao patrimonialismo, seria um inimigo da república presente até os dias atuais. No Brasil, tais práticas mostram-se presentes tanto no mundo político quanto nas relações humanas e sociais. Nas análises, identifica conexões, em maior ou menor escala, da corrupção no cotidiano atual, enraizadas desde os tempos do Brasil Colônia e Império. Como exemplo, cita o modo particular de negociação e relação no período colonial, marcado pelo ‘jeitinho brasileiro’. Já no início da república, se destaca o coronelismo, que trata de uma combinação entre a consolidação do modelo republicano federalista e a ascendência das oligarquias agrárias, marcada pela prática do voto de cabresto. É somente após o ano de 1945 que o Estado brasileiro passa a legislar sobre corrupção, tanto na perspectiva do Estado, como sobre práticas individuais. Entretanto, pontua-se que, por exemplo, em 1964, os militares utilizaram-se do discurso contra corrupção como argumento para a tomada de poder, apesar de promoverem novos tipos de corrupção. Já no período da 3ª República, pós Constituição de 1988, destaca-se que as instituições passaram a funcionar melhor, articuladas às denúncias da imprensa. Assinala que a corrupção pode ser compreendida como uma forma endêmica de governar no Brasil. Pelo seu caráter de enraizamento histórico, pela falta de instituições públicas fortes e pela pouca transparência no trato com as questões públicas, a corrupção justifica a crise institucional e política atualmente vivida.

No capítulo 5, ‘Desigualdade Social’, destacam-se as variadas facetas da desigualdade no Brasil. De acordo com suas análises, as desigualdades têm uma herança que remonta ao passado colonial e indica que o Brasil é formado dentro de uma linguagem da escravidão que, somada à corrupção e ao patrimonialismo, esboça um quadro propício para a constituição de um país desigual. Na mesma perspectiva, destaca que a desigualdade social nunca foi centralidade nos projetos políticos que governaram o país. Atentando-se ao período colonial, demonstra-se que, juntamente aos parcos investimentos, o acesso à educação primária era privilégio de poucos. Durante a 1ª República e a promulgação da nova Constituição em 1891, poucas reversões consideráveis puderam ser evidenciadas. É somente na década de 1920, marcada pelo ‘otimismo pedagógico’, que a área educacional recebe novo alento, especialmente pelas experiências estaduais promovidas por expoentes do movimento da Escola Nova no país. Apesar de investimentos pontuais, a educação brasileira ainda era marcada fortemente por um dualismo: uma escola para as elites e classes médias e outra para as camadas populares. Destaca-se que a reforma Capanema e a tendência de urgentemente profissionalizar a massa trabalhadora, manteve e também fortaleceu tal dualidade do sistema educacional. Com a Constituição Federal de 1988, são estabelecidas duas prioridades para a educação nacional: universalização do ensino fundamental e erradicação do analfabetismo. Ao se comparar o Brasil com outros países latino-americanos, com semelhante passado colonial, o país vigora como um dos mais problemáticos, considerando-se seu déficit educacional. Conclui-se que a desigualdade social tem um impacto na vida educacional da população em idade escolar.

Já no capítulo 6, ‘Violência’, destaca-se que o Brasil, de acordo com estatísticas recentes, está entre um dos países mais violentos do mundo. Analisando a violência urbana, indica que, entre a década de 1980 e o ano de 2003, ocorreu um tipo de corrida armamentista, contida pela aprovação do Estatuto do Desarmamento nesse último ano. Apesar dessa constatação, a partir do ano de 2014, dados sugerem uma nova tendência ao armamento pessoal da população brasileira. Historicamente, o sistema escravocrata consolidou-se como uma maquinaria repressora. Apesar do curso histórico não poder ser explicado por fatores únicos, é possível averiguar padrões de continuidade perpetuados por práticas violentas anteriores. Sugere-se que a epidemia de violência que assola o Brasil deve ser compreendida pela análise de múltiplos fatores, para que o ceticismo em relação à segurança pública não leve a posturas radicais, tais quais as tendências atuais têm apontado. Com o gradativo aumento da violência, atrelada à sensação de impunidade, sobressaem-se tendências autoritárias. Outra faceta da violência no Brasil são as lutas do campo. Nelas, destacam-se a invisibilidade e a dizimação das populações indígenas do Brasil. Dos bandeirantes até a luta contra o agronegócio, os povos indígenas brasileiros têm sido sistemática e historicamente alvos de violências. Destaca que a luta de tais grupos se pauta por direitos historicamente negados. Nesse sentido, utiliza-se uma narrativa mitológica para tornar invisíveis tais sujeitos sociais em suas lutas.

No capítulo 7, ‘Raça e Gênero’, são abordados marcadores sociais variados, como raça, geração, local de origem, gênero e sexo, capazes de produzir diferentes formas de subordinação. As questões relacionadas aos negros se destacam: disparidade salarial, tempo de vida, violência urbana. Quando há outros elementos interseccionados, o quadro torna-se ainda mais alarmante. Dentre eles, destaca a epidemia da violência contra jovens negros das periferias urbanas. O Brasil, nesse caso, também promove um tipo de racismo dissimulado: apesar de a narrativa popular caracterizar o país pela sua capacidade de inclusão cultural, as evidências apresentadas indicam um grave quadro de exclusão social e racial. O racismo estrutural e institucional também se direciona às mulheres, especialmente pela violência sexual. A violência contra mulher e a própria cultura do estupro têm raízes que remontam ao período colonial, marcado por características patriarcais. Uma das justificativas que condicionam o ataque a alguns públicos é que quanto mais autoritários os discursos, maiores as necessidades de controle sobre o corpo, a sexualidade e a própria diversidade.

E no capítulo 8, ‘Intolerância’, se propõe a desconstrução da ideia de que somos uma nação avessa aos conflitos e pacífica na sua índole. Aponta que a ‘negativa’ também é uma forma de intolerância, uma vez que evita o confronto. Entretanto, hoje passamos a praticar o oposto: em um cenário polarizado, não há mais necessidade de ser pacífico, dando-se ênfase à intolerância e à violência. Assim, pontua que tendências autoritárias funcionam pela lógica dos ódios e dos afetos, pois a forma binária produz desconfiança em relação àquilo que não pertence à ‘própria comunidade moral’. Essa lógica reforçaria o ataque à imprensa, aos intelectuais, à universidade, à ciência, entre outros, dando lugar à exaltação do homem comum. Conclui-se que a intolerância que hoje impera em nosso país tem raízes variadas, de longo, médio e curto curso. A cordialidade nunca existiu, mas caracterizou-se como uma “[…] performance política e cultural, e não um retrato fiel da ausência de atritos e ambiguidades entre os brasileiros” (p. 219). De acordo com a autora, a resposta para a crise só virá de um projeto de nação mais inclusivo e igualitário, possível a partir de sua aposta na educação pública e de qualidade.

Em suas considerações finais, retoma a ideia de que há fantasmas do passado que, invariavelmente, sempre voltam a assombrar. Governos de tendências autoritárias, por sua vez, costumam criar a sua própria história, sem preocupação com fatos e dados históricos. Pela defesa de um passado nostálgico, ‘o tempo de antes’, conjuga-se um léxico familiar de afetos, projetando simbolicamente uma espécie de civilização, com ordem e harmonia social, mas que, de fato, jamais existiu: uma memória fora do tempo. A plenitude perdida, nessa perspectiva, tende a criar mitos, líderes supremos, típicos dos governos com tendência autoritária. Nessa perspectiva, diferenciam-se as tendências autoritárias do século XXI dos nazismos e fascismos presentes no século XX. Assim, defende-se uma educação pública com sentido republicano, para que o sentido democrático seja respeitado. Para superar nosso déficit republicano e evitar crises democráticas, tal qual a que vivemos atualmente, a educação seria uma forma de promover menos líderes carismáticos e mais cidadania consciente e ativa. Apesar dos efeitos das crises, em suas palavras, elas também podem abrir frestas para outras possibilidades.

A obra resenhada evidenciou um estudo histórico, com variedade temática, visando compreender a crise institucional e política que assola o país. Mostrou-se de extrema relevância para compreensão do cenário atual e das próprias raízes históricas que constituem esse quadro. Da mesma forma, defende-se a ideia de que só é possível mudar o futuro a partir de uma perspectiva histórica. Dentre as suas variadas contribuições, destacam-se as diferenciações acerca dos autoritarismos do século XX em relação ao século XXI. Ao desmistificar a tese do brasileiro cordial, também possibilita compreender o fenômeno da intolerância que assola o país. Assim, entende-se o porquê desse fenômeno e, da mesma forma, torna-se possível vislumbrar formas de resistência. Esses elementos destacam a urgência e relevância de estudar, analisar e combater o autoritarismo, conscientes de suas raízes históricas ainda presentes, como fantasmas, em nossa atualidade. E a obra analisada mostra-se potente para esse diagnóstico, enfatizando a centralidade da educação nesses movimentos.

Referências

Schwarcz, L. M. (2019). Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo, SP: Companhia das Letras

Deise Andreia Enzweiler – Possui Graduação em Pedagogia (UFRGS). Especialização em Educação Inclusiva (Unisinos). Mestrado em Educação (PPGEdu-Unisinos). Doutoranda em Educação (PPGEdu-UNISINOS – Bolsista CAPES-PROEX). Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa em Inclusão (GEPI-Unisinos- CNPq). E-mail: [email protected]

Lucas Caregnato – Possui Graduação em História (UCS). Especialização em História Regional (UCS). Mestrado em História (UPF). Doutorando em Educação (PPGEdu-Unisinos – Bolsista CAPES-PROEX). Presidente do Conselho Municipal de Educação de Caxias do Sul e coordenador do Núcleo de Acolhimento à Diversidade da Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: [email protected]

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Sobre o autoritarismo brasileiro | Lilia Moritz Schwarcz

Nós, os brasileiros, somos como Robinsons: estamos sempre à espera do navio que nos venha buscar da ilha a que um naufrágio nos atirou (Lima Barreto, “Transatlantismo”, Careta).

Em tempos de retrocesso, em que a esperança parece ter fugido do coração dos homens, é preciso voltar ao passado. Em momentos históricos conflitantes, nos quais a histeria e intolerância tornam-se a tônica do cotidiano, é preciso entender onde erramos, reencontrarmo-nos com o mais profundo de nós. Em momentos de frivolidades, mesquinharias, total apatia ao saber e à cultura, é preciso um pouco mais de poesia, de literatura, arte, diálogo. Como diria o poeta: “Precisamos adorar o Brasil! Se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens, porque motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos” (ANDRADE, s.d., s.p). Leia Mais

El 68 uruguayo. El año que vivimos en peligro | Carlos Demasi

Surgido de una serie de charlas realizadas en la Fundación Vivian Trías en 2018, el libro se propone revisar la excepcionalidad del año 1968 en dos sentidos. Por un lado, destacando la intensidad de los hechos que allí se dieron, en un presente sobrecargado de contingencia. Por el otro, recobrando el rol que tiene ese año en la mirada del período previo al golpe de Estado de 1973, al mismo tiempo punto inicial de una secuencia y momento de síntesis, donde los sesentas parecen verse reflejados. Así, 1968 se presenta como un complejo nudo a desatar, cuyos hilos llevaban a un período más amplio, a la vez que sepultaban la pretendida excepcionalidad del Uruguay, anunciando un sombrío horizonte.

Para desarrollar esta mirada, Carlos Demasi se centra en los sucesos situados en Montevideo, buscando dar cuenta de la simultaneidad y la interacción de distintos procesos, las percepciones surgidas en ese contexto y tratando de reconstruir la cronología de un intenso año, para evitar la exageración de ciertos episodios a la luz de los hechos posteriores. Esta perspectiva se desarrolla sobre la globalidad del año, pero se acentúa en el análisis del mundo político partidario, donde para el autor se dieron las rupturas más profundas. Leia Mais

In the Shadow of Authoritarianism: American Education in the Twentieth Century – FALLACE (THT)

FALLACE, Thomas D.  In the Shadow of Authoritarianism: American Education in the Twentieth Century. New York: Teachers College Press, 2018. 215p. Resenha de: OROMANER, Mark. The History Teacher, v.52, n.3, p.525-526, may., 2019.

In the Shadow of Authoritarianism is a timely contribution to the understanding of how American primary and secondary elite educational thinkers responded to perceived threats from approximately World War I to the 1980s. These perceived internal and external threats (the “Other” against which American educational philosophy evolved) are: Prussianism, propaganda, collectivism, dictatorship, totalitarianism, the space race, mind control, and moral relativity. A chapter is devoted to each of these chronologically ordered episodes. Thomas D. Fallace covers this almost century-long period in a clearly presented and well-documented 149 pages of text. The book is suited as an overview in undergraduate and graduate courses in the History of Twentieth-Century American Educational Philosophy and in other courses in education, sociology, political science, and history that focus on the relationship between politics and education. For students who wish to pursue a particular thinker, time period, school of thought, or social/political movement, Fallace has provided thirty-two pages of Notes and eighteen pages of Bibliography.

During the twentieth century, authoritarianism was used “to depict the outlook… characterized by social hierarchy, ideological homogeneity, and intolerance for dissent” (p. 1). Schools were central for the transmission of authoritarian ideology and values to young people. Under such a system, students were taught to be docile, obedient, intolerant, and compliant. In contrast, under a democratic system (e.g., the United States), students were taught to be open-minded, balanced, and skeptical. These contrasts are, of course, ideal types—however, they are “what most U.S. educators told themselves and one another repeatedly between World War I and the 1980s” (p. 1). Regardless of the changing geopolitical realities, listed above, the reaction of “most leading American educators remained constant” (p.1). That is, to teach students how to think, not what to think. Thus, the avoidance of propaganda and indoctrination in the classroom.

The general agreement that the emphasis in schools should be on the how rather than the what to think left U.S. intellectuals to debate the meaning of this phrase and to adjust to the various challenges the American system faced. Should the curriculum be based on liberal arts, on social issues, on discipline inquiry, on exploration of students’ values and morals? Fallace is well aware that the Constitution of the United States delegates authority over education to the states, and that it is an error to assume that the rhetoric of reform of educational leaders “reflected what was actually going on in the majority of U.S. classrooms at any given time” (p. 3). Throughout most of the twentieth century, the most prominent and influential educational thinker was the Teachers College, Columbia Universitybased philosopher John Dewey. In a 1916 address, Dewey argued that the U.S.

should no longer emulate the German system of education (Prussianism) with its emphasis on bureaucracy, centralization, and regulation. Rather, the American system should emphasize persuasion, expert knowledge, and a student-centered philosophy and pedagogy that stressed how to think. World War I also gave rise to a perceived domestic threat to democratic education; government propaganda to gain support for the war. Given current and recent fears over the contents of textbooks, social media, “fake news” in the traditional media, and the concentration of media channels, Chapter 2, “In the Shadow of Propaganda,” is of particular relevance today.

The reactions of educational leaders to Prussianism and propaganda set the stage for later reactions to fascism, Nazism, and communism, and to post-World War II threats from mind control and technological challenges symbolized by Sputnik. Limitations of space prevent me from describing the nuanced job that Fallace does in presenting the often conflicting views of anthropologists, psychologists, sociologists, and philosophers in attempting to ensure that the American educational system is student-oriented and continues to emphasize the how rather than the what to think. In the final chapter (Chapter 8), Fallace argues that the liberal consensus after World War II “collapsed under the weight of domestic turmoil brought on by the Civil Rights Movement and the Vietnam War” (p. 136). One influential reaction was the emergence of Lawrence Kohlberg’s developmental framework as a guide to moral growth in a democracy. The pressing question now was: How do we teach values and morality and still say that in a democratic society, education will stress how to think and not what to think? The answer appears to be that the importance of schools as sites building free-thinking citizens has been marginalized by a view of the schools as sites that prepare students for college and careers. I know of no better source to engage students in analyses of where American educational philosophy has been during the past century, and where it may be in the near future than In the Shadow of Authoritarianism: American Education in the Twentieth Century.

Mark Oromaner – New York City

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Sobre o autoritarismo brasileiro | Lilia Moritz Schwarcz

O imaginário sobre o passado brasileiro está permeado de interpretações que, sendo oriundas de um antigo projeto excludente de nação, ignoram uma série de aspectos e problemáticas que marcaram diferentes temporalidades da história do país, da colônia à república. Ideias como o “mito das três raças”, a democracia racial e o entendimento de que a escravidão brasileira teria sido mais “branda” não raro surgem quando se discute a história do Brasil. Esta visão relaciona-se diretamente com a historiografia brasileira do século XIX, quando o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) tinha como objetivo criar uma imagem de um Brasil cujo passado era harmônico, e o futuro, glorioso.

É desse ponto que parte a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, na introdução de seu livro Sobre o autoritarismo brasileiro. A obra é resultado da junção de conteúdos de outro livro da autora, Brasil: uma biografia (2014), com algumas colunas escritas por Schwarcz ao jornal Nexo. Feito a pedido da editora Companhia das Letras, Sobre o autoritarismo brasileiro tem a intenção de fornecer ao leitor um panorama geral de algumas questões que atravessam a história do Brasil e ainda se fazem presentes na atualidade. Tendo em vista as recentes disputas de ideias, a turbulência política e econômica e a crise social que o país tem vivenciado na última década, Schwarcz busca não atribuir acriticamente as raízes dos problemas atuais ao passado, mas sim propor um olhar à nossa história para lembrar que, diferentemente do que comumente se acredita, a intolerância e a violência sempre marcaram a figura do brasileiro.

Cada capítulo do livro aborda uma temática específica, evidenciando as variadas facetas do autoritarismo no Brasil. O primeiro, “Escravidão e racismo”, busca reforçar que o sistema escravista, muito mais do que uma estrutura econômica e social, “moldou condutas, definiu desigualdades sociais, fez de raça e cor marcadores de diferença fundamentais, ordenou etiquetas de mando e obediência, e criou uma sociedade condicionada pelo paternalismo e por uma hierarquia muito estrita” (SCHWARCZ, 2019: 27-28). Questionando a ideia de que o escravismo no país teria sido mais brando ou “menos pior”, a autora destaca os altos índices de pessoas negras traficadas dos portos africanos para o Brasil, bem como os sofrimentos pelos quais os escravizados passavam diariamente. Por outro lado, um sistema severo significou uma série de resistências: as fugas, formações de quilombos, insurreições e revoltas com diversos meios e motivações não devem ser deixadas de lado.

A abolição foi adiada até onde pôde, e foi empreendida de forma gradual e conservadora, culminando na Lei Áurea de 1888. Contudo, isso não significou uma preocupação em ressarcir ou integrar a população recém-liberta à sociedade. Ainda, a adoção de teorias científicas deterministas representaram uma tentativa de substituir uma desigualdade por outra: antes estabelecida entre escravos e senhores, agora a desigualdade era legitimada pela biologia. Em seguida, a autora realiza uma análise da questão racial na contemporaneidade. Embora hoje não sigamos mais a ideia de raças biológicas nem a falácia de que cor determina conduta moral, nossa sociedade é estruturada pela “raça social”, que opera na cultura e nas mentalidades. No Brasil, a desigualdade social tem cor, e a população negra sofre uma dupla morte: o apagamento de sua memória e o genocídio que marca os indicadores sociais.

O segundo e terceiro capítulos são dedicados, respectivamente, ao mandonismo e ao patrimonialismo. Ambos os aspectos são centrais para entender a hierarquia social do Brasil colonial, fundamentada na concentração de grandes latifúndios monocultores nas mãos de poucos homens, que consistiam na “nobreza da terra”. Era esta aristocracia que detinha os privilégios sociais, políticos e econômicos, num sistema patriarcal onde o homem era o chefe de família e a mulher possuía um papel secundário. Esta forma de organização social acabou por contribuir para a criação da imagem do senhor de terras como a pessoa que distribuía benefícios aos mais próximos e poderia, eventualmente, cobrar por seus favores, aumentando sua influência política.

Tal estrutura perdurou no período republicano. O coronelismo é sua expressão mais relevante na República Velha, e marcou as relações entre os senhores de terras, governadores e a presidência da República. Esta personalização do poder acabou, ainda, por perpetuar o sistema desigual e excludente no meio rural da atualidade: as famílias tradicionais de ruralistas são as maiores beneficiadas pelo Estado, detém a maior parte das terras e ainda possuem considerável relevância nos cenários políticos regional e nacional. Tais clãs perderam algum espaço desde as eleições de 2018, contudo, a estrutura autoritária que os beneficia é a mesma, apesar das reformas políticas empreendidas desde a redemocratização. Ademais, a figura do pater familias, “autoritário e severo diante daqueles que se rebelam; justo e ‘próximo’ para quem o segue e compartilha das suas ideias” (SCHWARCZ, 2019, p. 65) ainda exerce grande apelo no imaginário popular.

Por sua vez, o patrimonialismo é conceituado pela autora como um extrapolamento da divisão entre as esferas pública e privada, quando o Estado é usado como ferramenta para fins particulares. Consequentemente, uma série de práticas, ideias e comportamentos de clientelismo, de conchavo, e de arranjos pessoais que atropelam os limites da regra pública, torna-se cotidiana nas movimentações e negociações políticas. A ideia do Estado como uma extensão do ambiente doméstico permite, então, que o poder político seja exercido pelos detentores do poder (homens, brancos, aristocratas) para fins pessoais. E, apesar das ações levadas a cabo para combater tais práticas existirem desde a Constituição de 1934 (e principalmente com a Constituição de 1988), as práticas patrimonialistas persistem. De acordo com Schwarcz, um dos maiores exemplos disso é a chamada “bancada dos parentes” no Congresso: em 2018, dos 567 parlamentares, 138 eram oriundos de clãs políticos, um aumento de 22% em relação a 2014 (SCHWARCZ, 2019, p. 83). O próprio presidente Jair Bolsonaro bem representa esta questão, já que três de seus filhos possuem cargos políticos. Estreita relação tem o patrimonialismo com a corrupção, tema do quarto capítulo. A autora reforça que, embora possa-se dizer que a corrupção existe no Brasil desde o período colonial, erramos ao simplificar este raciocínio afirmando que as práticas corruptas da contemporaneidade são as mesmas do passado. De fato, o termo “corrupção” tem sido ressignificado múltiplas vezes, assumindo diferentes concepções conforme a alteração dos contextos políticos.

Uma questão relacionada a isso é a recorrência ao combate à corrupção no discurso político para legitimar quebras da normalidade constitucional, como foi o caso do golpe de 1964 e da ditadura militar, que, apesar de assumir a bandeira da anticorrupção, utilizou de práticas ilegais em seus projetos e negociações. De todo modo, a autora conta que, com a redemocratização, o melhor funcionamento das instituições políticas permitiu que os escândalos ganhassem mais espaço nos jornais e no debate público, como foi o caso de Fernando Collor. Essa melhora na percepção da corrupção também se vê no caso do Mensalão. Apesar de afetar diretamente o Partido dos Trabalhadores (PT), então partido que ocupava a presidência, o Mensalão foi o primeiro caso em que as políticas de fortalecimento da Polícia Federal e do Ministério Público Federal levadas a cabo nos últimos anos surtiram um efeito visível. A autora finaliza o capítulo fazendo uma reflexão sobre a corrupção hoje, em que a Operação Lava Jato tem investigado um complexo esquema que envolvia partidos e empresas. Schwarcz pontua que, apesar da relevância do tema no debate público, o combate à corrupção não pode tornar-se uma cruzada moralista focada em indivíduos, com um discurso raso e populista de “luta contra a roubalheira” (SCHWARCZ, 2019: 121). O que é necessário é investir em planos duradouros que combatam práticas cotidianas enraizadas no comportamento da sociedade e que não joguem fora os ganhos que tivemos desde a Constituição de 1988.

Na sequência, Schwarcz se volta às especificidades do cenário das extensas desigualdades sociais brasileiras. Partindo de um panorama estatístico dos níveis de concentração de riqueza no país, a autora estabelece uma série de ramificações, que envolvem desde um não acesso a serviços básicos até a impossibilidade de se consumir bens culturais e de ser uma pessoa plenamente inserida nas participações e nos diálogos políticos previstos pelo ideal de “república democrática”. Entre os elementos da ordem social brasileira que permitem a reprodução constante de tal assimetria, figuraria, em posição proeminente, a precariedade dos serviços educacionais públicos, não estendidos à totalidade da população infanto-juvenil em condições equânimes. Embora a obrigatoriedade de oferta de ensino público tenha sido instituída já em 1824, era irrisório o número de estabelecimentos constituídos. Assim, até meados do século XIX, o letramento consistiu em uma quase exclusividade das elites brancas, responsáveis por instituir proibições à formação educacional de pessoas negras escravizadas.

Na segunda metade dos anos 1800, o ensino seguia uma prática marginalizada, ainda que convenientemente exaltado como critério de seleção da parte do povo apta para votar. Conforme explica Schwarcz, o século XX trouxe transformações conservadoras a essa problemática — se o regime de Vargas pode ser reconhecido pela ampliação e concretização de um sistema de ensino efetivamente nacional, deve ser igualmente encarado como perpetuador de uma lacuna de possibilidades de formação individual entre alunos de famílias abastadas e descendentes da classe trabalhadora. A instituição de dois programas curriculares para o ensino secundário, um voltado à transmissão de saberes técnicos e outro à preparação teórica para ingresso em universidades, favoreceu a continuidade do exclusivismo do ensino superior aos estudantes que não precisavam iniciar suas trajetórias de trabalho ainda na adolescência. Na atualidade, a baixa democratização do direito à educação apareceria expressa em altos índices de evasão escolar e represamento, ocasionando, por consequência, a continuidade do ensino universitário e dos postos de maior remuneração enquanto privilégios de elite.

Relacionada às desigualdades sociais do país, a temática das múltiplas violências é pautada em seguida, com o estabelecimento de panoramas referentes à criminalidade urbana e aos conflitos agrários empreendidos contra comunidades historicamente resistentes à ordem colonial ou nacional. Envolvido naquela estão os altos índices de assassinato (30 homicídios/100 mil hab.), de armas de fogo em circulação e de receio da população em sofrer agressões por agentes policiais (SCHWARCZ, 2019: 156, 161-162). Schwarcz salienta que, apesar da vigência do Estatuto do Desarmamento desde 2003, observa-se, a partir do ano de 2014, aumentos expressivos no número de licenças para porte de armas por civis, bem como uma intensificação de lobbies políticos favoráveis à flexibilização de restrições colocadas pelo Estatuto (SCHWARCZ, 2019: 157-159). Assim, embora as armas de fogo sejam as principais ferramentas por trás da execução de mortes violentas (79,8% delas, aproximadamente), atendem a discursos de populismo autoritário que, diante dos reclamos populares contra a insegurança nas cidades, sugerem o fortalecimento de órgãos repressivos e letais — caso das polícias militares — e a simultânea individualização das políticas de segurança (SCHWARCZ, 2019: 161-164). Em decorrência do desvio de armas obtidas legalmente, seriam as milícias — grupos paramilitares compostos por agentes de segurança do Estado e políticos locais — as formações em mais próspera expansão na conjuntura de tráfico pela guerra às drogas.

Já a segunda esfera estaria dirigida a populações indígenas e quilombolas, usurpadas de seu direito à terra previsto pela Constituição de 1988, na medida em que órgãos como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) corroboram a morosidade dos processos de reconhecimento de suas terras enquanto áreas de válida demarcação. Aos indígenas, atribui-se um longo histórico de representações e de políticas delimitadas pelos ensejos dos grupos governistas brancos. Massivamente alvejados na colonização, foram, no século XIX, tornados matéria de inspiração à produção de obras artísticas financiadas por D. Pedro II, as quais objetivavam a materialização de uma identidade nacional apaziguadora, que via no grupo uma oportunidade de valorizar as raízes brasileiras diversas sempre mantendo a máxima de exaltação das contribuições europeias. No século XX, a adição de dispositivos legais prevendo garantias de preservação de seus territórios não mostrou efeitos práticos, legando os povos à vulnerabilidade frente a interesses capitalistas de ocupação territorial e de exploração de recursos. Os quilombolas, em contraponto, não chegaram a receber propostas de proteção pelo Estado antes de 1988, enfrentando dificuldades para a legalização da posse de suas terras.

A seguir, a historiadora aprofunda suas abordagens fazendo uso de uma perspectiva analítica delimitada, a interseccionalidade, traduzida, por sua vez, no uso dos chamados “marcadores sociais da diferença” como lentes de interpretação de estatísticas e de formas específicas de violência sucedidas no país. Aqui, nota-se a adesão da autora a um horizonte plural e complexificado de investigação das realidades nacionais, que vai ao encontro das perspectivas teóricas propostas por feministas negras estadunidenses desde o final dos anos 1980. Nas obras da jurista Kimberle Crenshaw, observa-se a defesa de uma ramificação das identidades de sujeitos sociopolíticos rumo a uma superação de modelos fixos e superficiais regidos apenas por reivindicações de gênero, de sexualidade e de raça em separado. A teórica argumenta que a densidade de problemáticas coletivas e de formas de existência exige que se leve em conta todos os eixos anteriores em conjunto (CRENSHAW, 1990: 1241-1245). Schwarcz converge com tal intuito, adicionando aos panoramas numéricos de raça e gênero fornecidos fatores regionais, etários e geracionais.

Entre as questões de raça e gênero pautadas, são destacadas algumas ocorrências: em primeiro lugar, a desigual propensão à morte por parte de pessoas negras. Se jovens pretos e pardos são desproporcionalmente atingidos pela violência policial e pelo encarceramento e massa, também seus familiares sofrem dificuldades pessoais — os homens mais velhos tendem a morrer cedo, sem acessar tratamentos de saúde e diagnósticos médicos. As mulheres adultas passam pelo mesmo, estando sujeitas (em percentual superior ao das mulheres brancas) à ameaça constante dos feminicídios. Esses constituem, junto às taxas de estupro, o segundo norte descritivo da autora no capítulo em questão. Para enfocar as violências de gênero, Schwarcz recupera algumas das explicações já delineadas acerca das origens patriarcais da sociedade colonial brasileira. Dialogando com os ideais de Judith Butler, acrescenta ao pano de fundo da tradição patriarcal escravista a heteronormatividade, padrão cultural de conduta que seria responsável pela imposição de hierarquias de poder hierárquicas às relações entre indivíduos dos gêneros feminino e masculino.

Denunciam-se, então, os altos números de feminicídios (50 mil entre 2001 e 2011, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA]) e de violações sexuais (cerca de meio milhão por ano) cometidos, sendo estas últimas uma forma de violência direcionada fortemente a crianças, violadas majoritariamente por pessoas próximas, no interior de suas casas (SCHWARCZ, 2019: 198). Motivados pela misoginia arraigada ao sistema de valores heteropatriarcais, ambos os crimes aparecem em registros de violência contra mulheres lésbicas, travestis e transexuais, agredidas em situações de não aceitação de manifestações de gênero e de sexualidade dissidentes. Passando a um olhar mais global das violações contra pessoas LGBTQIA+, Schwarcz atenta para as expressivas taxas de assassinato de integrantes dessa comunidade (aproximadamente 500 ao ano), com ataques mais direcionados a sujeitos trans e travestis, e para a precariedade das condições de coleta de dados voltados a essa população, destituída do foco de políticas públicas desde janeiro de 2019 (SCHWARCZ, 2019: 207-215). Segundo atestam pesquisadores da causa trans no Brasil (BONFIM, SALLES, BAHIA, 2019: 155-164), a ausência de estatísticas consistentes acerca das violências experienciadas particularmente por LGBT+s classifica-se como uma das faces da necropolítica de Estado contra tais corpos, uma vez que inviabiliza a execução de medidas protetivas e a oferta de serviços específicos, aspectos também pautados por Lilia.

Adentrando os dois últimos capítulos da obra, a autora desenvolve um balanço acerca da crise democrática sentida a partir do golpe parlamentar de 2016. Em sua avaliação, recorre às conjunturas de nações que, tal como o Brasil, transmitiam internacionalmente a imagem de “democráticos”, mas que, em decorrência da intensificação de polarizações, adentraram uma zona cinzenta classificada sob o epíteto de “democraduras”. Sem romper completamente a ordem institucional, países como Hungria, Polônia, Estados Unidos e Brasil experienciaram a consolidação de governos sustentados pela intensificação de ódios binários e por sentimentos de aversão a identidades de grupos que, até então, vinham adquirindo direitos básicos e relativo espaço político. A partir da reivindicação de que os setores populares tradicionais (famílias brancas, pessoas de classe média, homens trabalhadores) seriam aqueles autenticamente éticos e, ao mesmo tempo, os sujeitos deixados de lado por Estados que falharam em prover empregos, segurança e infraestrutura, teria se desenrolado um recrudescimento das práticas de intolerância.

A fim de sustentar a narrativa de validação exclusiva dos setores tradicionais (e reacionários), saberes científicos, discussões acadêmicas e jornalísticas passaram a sofrer frequentes ataques visando a seu descrédito. Junto a isso, pessoas negras, LGBTQIA+, mulheres, indígenas e adeptos de religiões de matriz africana foram convertidos em alvos de campanhas que colocam como norma os pilares da doutrina cristã, dando prosseguimento, na verdade, a um histórico de aniquilação de diversidades instaurado ainda no período colonial, seja pelas violências da escravização de africanos, seja pela conversão e genocídio dos povos originários de terras brasileiras. Em face da adesão de significativos percentuais demográficos às propostas de retorno a um suposto passado idílico aos setores abastados e não minoritários, Schwartz conclui: não nos devemos contentar com garantias democráticas oficiais, mas sim apostar na construção de uma cultura de defesa de princípios de diversidade e de participação cidadã, possível de se estruturar por meio da inserção de tais valores em projetos dos ciclos básicos do sistema público de educação.

Para além do amplo espectro de discussões e de explicações históricas apresentado pela obra e sintetizado nas linhas anteriores, merecem destaque ainda alguns outros fatores que concernem ao contexto de produção e de circulação do livro. Publicado em maio de 2019, Sobre o autoritarismo… logra denunciar retrocessos e impactos desencadeados tanto pelo processo eleitoral de 2018, quanto pelos primeiros meses da gestão de Jair Bolsonaro. Mesmo sem mencionar explicitamente sua figura — em uma escolha intencional da autora, que buscou se evadir de uma escrita centrada no Presidente de modo a não recair em uma narrativa personalista (MOTA, 2019) — Schwarcz alerta para os brutais aumentos das taxas de registro de crimes de intolerância em setembro e outubro de 2018, bem como para as consequências da reorganização da agenda de promoção de direitos de minorias sob o esdrúxulo, patriarcal e heteronormativo Ministério “da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos”. Influenciada por sua formação, tece diálogos com trabalhos de nomes importantes da Antropologia, a exemplo de Manuela Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro, sem deixar de lado os referenciais historiográficos por vezes ausentes em livros que se pretendem contadores do passado brasileiro hoje. Utilizando-se de uma linguagem clara, distancia-se do ideal de livro acadêmico rebuscado em sua redação. Com isso, fornece uma opção de leitura comercialmente acessível, concisa, historicamente embasada e dotada de viés crítico ao público leigo interessado em compreender mais sobre as desventuras sociopolíticas que afligem o Brasil. Essas, conforme evidenciado por Lilia Schwarcz em diversos momento, devem ser percebidas pelos leitores como uma sombra constante, vinculada à longa duração histórica e às particularidades dos arranjos conservadores das elites de cada período.

Referências

BOMFIM, Rainer; SALLES, Victória; BAHIA, Alexandre. Necropolítica Trans: o gênero, cor e raça das LGBTI que morrem no Brasil são definidos pelo racismo de Estado. Argumenta Journal Law, Jacarezinho, Brasil, n. 31, p. 153-170, jul./dez. 2019.

CRENSHAW, Kimberlé. Mapping the margins: Intersectionality, identity politics, and violence against women of color. Stanford Law Review, n. 6, v. 43, p. 1241-1299, jul. 1990.

LILIA Schwarcz: “A todo momento, revelamos nossa raiz autoritária”. Fronteiras do Pensamento, Salvador, 29 jun. 2019. Acesso em: 18 out. 2020.

MOTA, Camila Veras. Brasileiro abandonou “máscara” de cordial e assumiu sua intolerância, diz Lilia Schwarcz. BBC, São Paulo, 01 jun. 2019. Acesso em: 18 out. 2020.

ROVANI, Andressa. Sempre fomos autoritários: Lilia Schwarcz diz que crise fez aflorar ressentimentos e que PT-PSDB falhou em não atender conservadores. UOL, São Paulo, 05 jun. 2019. Acesso em: 18 out. 2020.

Bruno Stori – Estudante do 5º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. É bolsista do grupo PET História UFPR e faz Iniciação Científica sob a orientação da Profª Drª Andréa Carla Doré.

Rafaela Zimkovicz – Estudante do 3º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. É bolsista do grupo PET História UFPR e faz Iniciação Científica sob a orientação da Profª Drª Priscila Piazentini Vieira.


SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Resenha de: STORI, Bruno; ZIMKOVICZ, Rafaela. Cadernos de Clio. Curitiba, v.10, n.1, p.154-167, 2019. Acessar publicação original [DR]

Autoritarismo e personalismo no poder executivo acreano | Francisco Bento da Silva

O livro de Francisco Bento, Autoritarismo e Personalismo no Poder Executivo Acreano, 1921-1964, editora Edufac, 2012, aborda a construção histórica da sociedade acreana em bases integralmente autoritárias. Francisco Bento da Silva é formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Acre, com Mestrado em História pela Federal de Pernambuco, com Doutorado em História pela Federal do Paraná, sendo o presente trabalho resultado de sua pesquisa de mestrado. O livro traz evidências e apontamentos para a questão de que o Brasil conviveu muito pouco com as manifestações e práticas democráticas. O conceito de democracia nesses mais de cem anos de republicanismo não se aplica plenamente aos procedimentos e práticas políticas existentes até então.

A obra divide-se em três capítulos. No primeiro, o autor busca ressaltar o caráter autoritário da formação e o direcionamento político do Acre Federal nas suas diversas fases, que vai desde a sua anexação ao Brasil, em 1903, passando pelas várias organizações administrativas até o período pós 1920 quando ocorreu a unificação administrativa. Expõe a descentralização do poder executivo, de forma Departamental (1904-1920), a nomeação dos governadores era feita pela União (1921-1930), a introdução dos Interventores Federais entre 1930 até 1937 e por último o período em que os governadores voltam a ser nomeado pela União, esse período vai de 1937 a 1962. Leia Mais

Relaciones entre autoritarismo y educación en el Paraguay (1869-2012) | David Velázquez e Sandra D’Alessandro

Em 2014, a equipe de Educação em Direitos Humanos e Cultura da Paz, do Serviço Paz e Justiça do Paraguai (SERPAJ-PY), dava a conhecer o primeiro de quatro volumes de uma coleção que busca estabelecer as Relações entre autoritarismo e educação no Paraguai (1869- 2012). Cada tomo é dedicado a um período da história paraguaia, sendo que o primeiro compreende de 1869 a 1930 (publicado em 2014), o segundo, de 1931 a 1954 (2016), e o terceiro, de 1954 a 1989 (2018), que coincide com o stronismo. Faltando ainda o último volume, a coleção conta com uma equipe de pesquisa integrada por Ana Barreto, David Velázquez Seiferheld e Sandra D’Alessandro, coordenada por Ignacio Telesca. A autoria do terceiro volume, apresentado aqui, corresponde a Velázquez Seiferheld e a D’Alessandro.

Ao apresentarem um balanço sobre os nexos entre autoritarismo e educação durante o stronismo, os autores se depararam com a necessidade de expor as principais interpretações que tentam explicar as causas da longevidade da ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989), para assim poder apresentar as fases e os principais elementos do desenvolvimento do ensino durante esse período no Paraguai. A tarefa, a princípio, hercúlea, é narrada a partir de uma linguagem que, sem abandonar o rigor científico, é acessível ao público em geral. O objetivo dos autores é mostrar à população paraguaia alguns dos mecanismos utilizados pelo stronismo para garantir sua sobrevivência ao longo de 35 anos, sendo a educação um fator chave para entender a permanência de um modelo autoritário bem-sucedido. Leia Mais

Al-Ma’mūn, the Inquisition and quest for Caliphal authority – NAWAS (S-RH)

NAWAS, John Abdallah. Al-Ma’mūn, the Inquisition and quest for Caliphal authority. Atlanta: Lockwood Press, 2015. Coleção “Resources in Arabic and Islamic studies”, n. 4. 212 p. ISBN-13: 9781937040550 (impresso) | 9781937040567 (e-book). Resenha de: CRUZ, Alfredo Bronzato da Costa. Religião e historicidade: a batalha pela ortodoxia islâmica no Califado Abássida SÆCULUM– Revista de História, João Pessoa, [38] jan./ jun. 2018.

Pode não ser muito evidente no ambiente acadêmico brasileiro, às vezes ensimesmado em questões muito particulares, mas o campo dos estudos sobre o Islã tem crescido de forma vertiginosa nas universidades europeias e norte-americanas desde o fim da Guerra Fria, vinculado a fatores geopolíticos claros, que determinam de modo mais ou menos indireto as tendências intelectuais e a distribuição dos recursos destinados à pesquisa. De fato, desde o fim da década de 1980, tem-se experimentado uma expansão da investigação ocidental sobre o Islã comparável em magnitude unicamente à que teve lugar cem anos antes disso, em paralelo com a expansão imperialista sobre os continentes africano e asiático, ou seja, também sobre as terras tradicionais da presença e hegemonia muçulmana. As analogias possíveis entre os dois momentos não são apenas formais, mas também discerníveis em certos elementos de conteúdo significativos. Apesar dos excelentes estudos sobre a história do Islã e do ecúmeno muçulmano atualmente disponíveis, ainda é parte do senso comum acadêmico a noção não só de que o movimento dos seguidores de Muḥammad é essencialmente igual a si mesmo desde o século VII até a contemporaneidade, mas de que ele surgiu na história consistente e beligerante, tal como Palas Atena saltando adulta e inteiramente armada da cabeça de Zeus.2 No suporte a esta ideia, vaga, mas poderosa, estão, de um lado, os orientalistas e neoorientalistas, que se arrogam o direito de falar aos ocidentais sobre o ser do Islã, projetando na história das coletividades uma ontologia tão estática quanto politicamente enviesada. Do outro, elemento novo, encontram-se os intelectuais muçulmanos ou filo-muçulmanos instalados nas universidades ocidentais, pesquisadores que em realidade pouco fazem além de transcrever em discurso acadêmico, de maneira muito pouco crítica, a narrativa dos próprios devotos a respeito do surgimento e desenvolvimento do Islã. Sob o emaranhado de enunciados que constitui a disputa pela fala legítima a respeito das questões pertinentes à história e religiosidade islâmicas, portanto, há certa concordância tácita sobre o que caracterizaria esse movimento político-religioso em sua essência; questões que são produto de processos sociais e conjunturas históricas bastante particulares são, dessa forma, cristalizados como se não mais do que realizações no tempo e no espaço de uma natureza do Islã. O principal problema desse tipo de abordagem, contudo, é que ele distorce em diferentes níveis a compreensão que se pode ter a respeito do passado islâmico, submetendo-o a juízos fundados precisamente na desconsideração da historicidade de todos os atos e ideias dos seres humanos.

Mencione-se um exemplo significativo, ou seja, o da mina, a dita inquisição islâmica. O vocábulo árabe ة􀑧􀑧 محن pode ser literalmente traduzido como julgamento ou como prova, no sentido de teste; foi tradicionalmente usado tanto pelos historiadores muçulmanos, medievais e modernos, como pelos especialistas ocidentais para designar o período de perseguição religiosa iniciado durante o governo do califa abássida al-Ma’mūn (813-833) e continuado sob seus dois sucessores, al-Mu’taṣim (833-842) e al-Wāthiq (842-847). Durante a mina, uma série de oficiais do governo, teólogos, juristas, cronistas, compiladores de aḥādīt, sábios e santos muçulmanos foram submetidos à prisão, aos castigos físicos e, eventualmente, à execução, por se recusarem a subscrever a doutrina, então sustentada pelos abássidas, de que o Corão havia sido criado por Alá e que, portanto, sendo acessível à inteligência em sua plenitude, poderia ser submetido a escrutínio racional. A confissão alternativa a essa, por outra parte, sustentava que o Corão era anterior a toda a criação, subsistindo desde sempre em Alá como arquétipo do Texto que foi, em determinado momento histórico, efetivamente revelado a Muḥammad. Essa divergência explodiu em conflito aberto quando, alguns meses antes de seu falecimento, al-Maʾmūn determinou que os especialistas religiosos de sua corte denunciassem como falsos todos os aḥādīt em que se guardavam tradições a respeito do caráter supostamente incriado do Corão; a recusa de alguns em fazê-lo desencadeou reações violentas da parte do soberano, assim como um exaltado sentimento popular a favor dos perseguidos. No califado de al- Mu’taṣim, a mina foi institucionalizada tanto em verificações regulares que eram feitas aos cortesãos e demais oficiais do governo quanto à sua opinião a respeito do caráter criado ou incriado do Corão, quanto em tribunais inquisitoriais estabelecidos em al-Fustât, Kūfa, Bagdá, Basra, Damasco, Meca e Medina, cortes cuja autoridade foi estendida a todos os funcionários, militares, magistrados, eruditos e líderes comunitários dessas cidades nevrálgicas do ecúmeno islâmico. Sob al-Wāthiq, a perseguição perdeu força e acabou por se extinguir. O complexo período que se seguiu, marcado por uma crescente ascendência dos ghilmān (escravos-soldados) turcos sobre todos os negócios do califado, fez com que essa discussão teológica fosse esvaziada e desmontado o aparato institucional que os abássidas construíram durante a década de 830 para lidar com ela. O califa al-Mutawakkil, por fim, reconheceu abertamente o fracasso da mina determinada por seus antecessores e estabeleceu que seus súditos seriam livres para decidir por si mesmos se acreditariam no caráter criado ou incriado do Corão.

Não raro a mina foi pensada pelos analistas ocidentais como mais uma das expressões da essência intolerante do Islã. Definido o caráter intolerante de uma religião, entretanto, efetivamente é possível encontrar provas desse por toda parte.

Poucas vezes se considerou a sério, de outra parte, que a perseguição e a resistência a ela foram assuntos que se deram entre homens que se consideravam todos muçulmanos fiéis. Todo o episódio mostrou com clareza os limites do poder dos califas em matéria do estabelecimento da ortodoxia islâmica; daí em diante ficou claro que os soberanos do império islâmico, que já então havia iniciado seu processo de desagregação político-territorial, haveriam de negociar cuidadosamente, a cada pronunciado estritamente religioso que se arvorassem a fazer, com a intelligentsia constituída pelos diferentes tipos de sábios e santos muçulmanos. O lugar da fala doutrinária legítima não era mais, de modo necessário, a corte califal, mas as madraças, as academias de jurisprudência, de belas letras e de teologia que eram os loci em que se elaboravam a autoconsciência daquilo que emergia então como a vertente sunita do Islã. Ao contrário do que muitos analistas menos informados continuam a sustentar, de fato, o sunismo não é idêntico ponto a ponto à ideologia não-álida ou anti-álida que se desenvolveu sob os omíadas e os abássidas; não é uma confissão por rejeição, mas uma identidade islâmica que se desenvolveu na história, tanto ao redor de uma oposição quietista aos próprios califas majoritariamente reconhecidos como legítimos, quando de uma crescente veneração aos ditos e feitos atribuídos a Muḥammad e seus Companheiros, tomados como interpretações e performances autorizadas da Revelação divina consignada no Corão. A junção entre religião e política que muitos sustentam necessária e mesmo natural na história islâmica foi agudamente colocada em questão durante todo o episódio da mina – inclusive, talvez principalmente, em seu encerramento. Aos califas abássidas foi então negado o direito de uma intervenção cesaropapista na teologia islâmica; e ainda que não se tenha esvaziado o seu papel estritamente religioso de chefe dos crentes e lugartenente de Deus à frente da Ummah, a comunidade dos muçulmanos, esboçou-se um conflito entre poder espiritual e poder secular que nos remete mais a certos episódios da história das sociedades cristãs de matriz euro-americana do que às ideias cristalizadas que temos a respeito do que foram e são as sociedades aderentes ao Islã, nas quais a vida política parece a não poucos ser indissociável da vida religiosa, ou vice-versa.3 Isto tudo considerado, a mina apresenta-se como um episódio muito bom para pensar o Islã na história, ou seja, para se refletir sobre os processos sociais, bem localizados no tempo e no espaço, pelos quais os muçulmanos – que a princípio não dispõem de uma estrutura análoga à da hierarquia eclesiástica do cristianismo – produziram a ortodoxia e a dissidência religiosa a partir das quais se definem enquanto muçulmanos. De fato, ela não é facilmente interpretável caso se considere o Islã como um movimento sempre igual a si mesmo; trata-se, portanto, de uma brecha, uma rasgadura que permite que consideremos com mais vagar a dialética entre o desejo de permanência e o advento de mudanças que está presente em toda e qualquer instituição ou complexo de ideias. Da mesma forma, não ajuda muito a analogia, comum nos autores ocidentais do século XIX e da primeira metade do século XX, entre a mina e as inquisições católica ou protestante dos séculos XV a XVIII. Em todos esses sentidos, para compreender este episódio em sua importância capital, ajuda-nos o livro aqui referido, de autoria de John Abdallah Nawas (n.1960), versão revista e expandida de sua tese de doutorado, Al-Maʾmūn: mina and Caliphate, defendida em 1993 na Universidade Católica de Nimegue (mais tarde renomeada como Universidade Radboud de Nimegue). Nawas é agora professor de Estudos Árabes e Islâmicos do Departamento de Estudos do Oriente Próximo da Universidade de Louvaina, na Bélgica, e diretor da Escola Europeia de Estudos Abássidas, com sede na mesma instituição. Nos quase vinte e cinco anos que se seguiram ao seu doutoramento, a tese de Nawas tornou-se uma referência para os estudos que de alguma forma se referem à mina, tanto pela clareza de sua argumentação, quanto por seu extraordinário domínio das fontes de época e da bibliografia pertinente à sua análise. Em 2014, o autor publicou um número da série Oxford Bibliographies Online com um extenso levantamento comentado dos trabalhos até então disponíveis sobre a mina, a maior parte estudos orientalistas em inglês e textos de autores árabes. Com base nessa pesquisa, Nawas atualizou as referências de sua tese, ainda que não tenha incorrido em mudança significativa em seu argumento. O volume assim revisado e expandido foi publicado no ano seguinte em versão impressa e online pela Lockwood Press, de Atlanta, EUA, tornando assim mais acessível um estudo fundamental aos interessados em questões de história sociopolítica, intelectual e religiosa do Islã medieval.

No primeiro capítulo de Al-Maʾmūn, the Inquisition and quest for Caliphal authority (pp. 1-20), Nawas situa seu estudo ao apresentar os marcos cronológico e geográfico deste, juntamente com uma investigação preliminar do que já foi escrito a respeito das motivações dos abássidas para estabelecerem e suspenderam a mina. Aí também são elencados os documentos de época que o autor consultou a respeito, procurando situá-los como peças de combate dentro daquelas que se constituíam como as oposições fundamentais que tensionavam e davam forma ao debate político-religioso islâmico ao tempo de al-Maʾmūn, seus imediatos antecessores e sucessores – ou seja, as disputas entre o califa e seus cortesãos e os ulemás e seus alunos, entre os álidas, os xiitas e os conformistas que estavam em vias de se constituírem religiosamente como sunitas (mas colocando em questão, nesse processo, seu próprio conformismo político), e entre os que defendiam o caráter criado e os que sustentavam a preexistência e eternidade do Corão. No segundo capítulo (pp. 21-30), reconstitui-se a trajetória de al-Maʾmūn, tratando-se principalmente de sua controversa nomeação e do conflito que se seguiu a essa, uma disputa familiar e cortesã que eclodiu na chamada quarta fitna, guerra entre diferentes facções abássidas que se estendeu de 811 a 819, com prolongamentos regionais até 830, e que foi, entre outras coisas, uma tentativa dos partidos árabes e persas de definirem quem haveria de impor seus interesses e autoridade sobre o califado.

No terceiro capítulo (pp. 31-50), Nawas considera os diferentes discursos a respeito do papel do califa (abássida) que circulavam durante a quarta fitna e pouco depois, sistemas de ideias com os quais al-Ma’mūn foi forçado a dialogar em diferentes níveis para estabelecer sua própria autoridade como chefe (ao menos nominal) do mundo muçulmano. Esses discursos eram principalmente três: o da escola mu’tazilita, protocontratualista, que sustentava que a autoridade dos califas devia-se antes do mais a uma livre delegação do poder feita por seus súditos; o dos álidas, que sustentavam que o califa deveria ser um descendente em linha direta de Muḥammad; e o dos xiitas, que argumentavam que o verdadeiro governante da Ummah não era qualquer califa, mas o imān, o líder espiritual da comunidade, descendente direto do Profeta do Islã e capaz de dar aos fiéis a interpretação autorizada tanto do Corão quanto das aḥādīt, que infalivelmente estaria capacitado a separar entre verdadeiras e falsas.

Como mais ou menos evidente nesta recapitulação sumária, as ideias dos álidas e dos xiitas eram largamente coincidentes e, a princípio, idênticas; no correr dos séculos VIII e IX, entretanto, elas foram se partindo em corpos conceituais distintos, ainda que comunicantes e geneticamente vinculados. Surgiram então facções álidas que apoiavam as pretensões ao califado dos descentes de outros parentes de Muḥammad que não os da linhagem de ‘Ali e Fátima – como era o caso dos próprios abássidas, que inicialmente fundaram sua autoridade no fato de serem descendentes de Al- ‘Abbas ibn ‘Abd al-Muttalib, um dos mais jovens tios paternos do Profeta do Islã; ao passo que não poucos dos que seguiam defendendo a legitimidade unicamente do governo de ‘Ali e seus descendentes diretos, com a implacável perseguição destes, tanto pelos omíadas quanto pelos abássidas, acabou se refugiando em uma espécie de quietismo que postergava para um tempo escatológico, o do retorno de Muḥammad ibn Hasan al-Mahdī, o Imān Oculto, o restabelecimento do governo legítimo sobre a Ummah. Para constituir sua própria teoria do poder, al-Maʾmūn e seus ideólogos inicialmente dialogaram de modo dinâmico e complexo com essas três tendências, incluindo os xiitas – por exemplo, ao reivindicar uma autoridade espiritual próxima do imamato para este governante. Por fim, em 827, a teoria mu’tazilita do poder foi adotada na corte de al-Maʾmūn como oficial e ortodoxa. Isso, contudo, longe de atenuar os conflitos entre os califas e seus ideólogos e os mu’tazilitas, acabou por intensificá-los, pois não eram poucos os juristas e teólogos dessa escola que consideravam al-Maʾmūn em particular – pela forma como tomou o poder através da deposição e assassinato de seu irmão, Muḥammad al-Amīn ibn Harūn al-Rashīd –, ou os abássidas no geral – pelo modo como tomaram o poder aos omíadas pela violência –, como usurpadores que não detinham uma procuração legítima da parte dos fiéis para exercer sobre eles o poder absoluto. Além disso, os mu’tazilitas sustentavam que a autoridade religiosa encontrava-se inteiramente concentrada no Corão, que devia ser analisado de acordo com a razão, concebida segundo as categorias da filosofia greco-romana clássica, principalmente a lógica aristotélica; negavam, portanto, uma autoridade de princípio ao califa, qualquer que fosse, em matéria teológica.

No quarto capítulo (pp. 51-76), Nawas apresenta sua hipótese central, ou seja, de que a mina deve ser pensada não como uma intervenção caprichosa de al-Ma’mūn e seus imediatos sucessores em uma questiúncula teológica, mas como instrumento de uma teoria da prática, ou seja, como um dos meios, talvez o principal, pelo qual esses governantes pretenderam criar um discurso de legitimação do poder califal que sintetizasse as hipóteses a este respeito então mais populares no mundo islâmico, ao mesmo tempo em que se autorizavam, por motivo de zelo religioso, a agir direta e duramente contra seus opositores mais estridentes – tanto álidas e xiitas que sustentavam o caráter incriado do Corão e vinculavam isso às suas definições a respeito do poder dos califas, que supostamente lhes seria concedido não pela vontade dos homens, mas por um direito de nascimento determinado por uma procuração eterna da parte de Alá; quanto mu’tazilitas que veementemente negavam aos califas quaisquer funções no estabelecimento da ortodoxia islâmica. Para sustentar essa linha de argumentação, Nawas faz um levantamento dos autores modernos que a esboçaram, procurando ler os documentos que utilizaram para essa formulação – principalmente as cartas de al-Maʾmūn e al-Mu’taṣim aos cádis e emires a respeito da mina – dentro de seu contexto histórico particular, reconstituído através das narrativas dos cronistas árabes e não-árabes do período. O autor ainda considera o extraordinário timing da mina no esforço de estabelecer uma legitimação dos abássidas e os procedimentos pelos quais diferentes indivíduos tiveram suas crenças, e sua lealdade ao califa, devidamente testados. Ressalta-se ainda o valor estratégico da doutrina referente ao caráter criado ou incriado do Corão no espectro políticoteológico da época; para dimensioná-lo, pode-se ressaltar um exemplo citado por Nawas. Ora, alguns eventos históricos, como a Batalha de Badr (624) são citados no Corão; reconhecer que este Livro é incriado significa aderir à opinião de que a eclosão e desdobramento desse combate estavam predeterminados desde sempre, enquanto reconhecer que o Livro foi criado, em uma interação entre o conteúdo eterno da Revelação dada a Muḥammad e o contexto particular no qual esse se encontrava, significa corroborar que o resultado em Badr, antes do mais, deveu-se aos méritos e esforços das pessoas que aí se encontravam. Em suma, o debate de fundo era também entre predestinação e livre-arbítrio, e seu corolário político eram então evidentes; de fato, em 836, al-Ma’mūn fez com que se execrassem publicamente os nomes de todos os monarcas omíadas e seus apoiadores, a começar por Muʿāwiyah ibn Abī Sufyān (661-680), o primeiro dos califas dessa dinastia; como poderia, entretanto, não ter incorrido al-Maʾmūn em blasfêmia ao fazê-lo caso, mesmo tomando a ascensão dos omíadas como uma usurpação e uma injustiça do ponto de vista estritamente político, se viesse a considerá-la como pré-determinada por Alá desde infinitamente antes da criação do mundo? Depois de uma breve conclusão (pp. 77-82), na qual Nawas retoma e reitera os principais elementos que o levaram a pensar na mina como vetor de constituição da autoridade de al-Maʾmūn, são apresentados uma série de úteis apêndices, como uma listagem em ordem cronológica da documentação de época consultada (pp. 83-94), uma súmula das questões impostas aos interrogados pelos homens desse califa (pp.95-106), e uma linha do tempo com a indicação dos principais eventos que interferiram de alguma forma no governo de al-Maʾmūn (pp. 107-108). Segue a apresentação da bibliografia utilizada (pp. 109-124) e um índice onomástico, conceitual e topográfico do volume (pp. 125-130). Por fim (pp. 131-209), é reproduzido o texto Amed ibn anbal and the miḥna: a biography of the imān including and account of the Mohammedan Inquisition called the Miḥna, publicado em 1897 pelo orientalista Walter Meville Patton (1863-1928), professor do Colégio Teológico Wesleyano de Montreal, Canadá. Ibn Ḥanbal (780-855), venerado por muitos muçulmanos sunitas como Imān Amad, foi um dos teólogos, juristas e compiladores de aḥādīt que padeceu nas mãos dos agentes da mina por se recusar a obedecer aos mandatos de al-Ma’mūn, al-Mu’taṣim e al-Wāthiq em matéria doutrinária. Reconhecido como um dos confessores do tradicionalismo islâmico diante das intervenções dos califas abássidas, a Ibn Ḥanbal também se atrelou a fama de ser um dos amigos de Deus, ou seja, um dos muitos santos da tradição islâmica.

Esse texto de Patton tem um duplo mérito ao estudioso contemporâneo da mina: reunir e apresentar uma primeira tradução comentada ao inglês de praticamente todos os relatos dos cronistas árabes a respeito, e oferecer uma entrada para o entendimento tradicional dos comentadores ocidentais desse episódio da história islâmica.

O livro do Prof. Nawas é bem escrito, rico em informações e bons insights e fundado em uma pesquisa erudita irrepreensível. Ao mesmo tempo em que faz uma leitura cuidadosa das fontes islâmicas, não hesita em recuperar as opiniões dos especialistas ocidentais a respeito delas, estabelecendo um diálogo não só crítico, mas criativo com toda uma rica tradição intelectual que infelizmente passou a ser vedada em muitos meios, condenada como desprezível sem sequer ter sido analisada em seus muitos méritos, depois da publicação, em 1978, do Orientalismo de Edward W. Said (1935-2003). Os especialistas na história e nas discussões religiosas do Islã decerto farão um proveito mais imediato da leitura de Al-Maʾmūn, the Inquisition and quest for Caliphal authority, mas qualquer interessado minimamente atento será capaz de ter um bom entendimento do livro. O maior mérito do volume reside no fato de ser uma contribuição fundamental no sentido de compreender o Islã como um movimento histórico, não só no acessório, mas em seu próprio conteúdo estritamente religioso, apesar das recusas obstinadas e cúmplices dos orientalistas e dos fiéis em reconhecer isso. Lendo este trabalho de Nawas, tem-se bem evidenciado que o Islã não foi sempre igual a si mesmo, não sendo em sua eminente historicidade fundamentalmente diverso de qualquer outro movimento religioso, político ou político-religioso conhecido da história da humanidade. Trata-se de uma abordagem importante de ser considerada em um cenário como o nosso, em que os estudos acadêmicos a respeito do Islã ainda são em boa medida empreendidos por seus devotos e por seus críticos. De modo efetivo, todo o debate sobre o caráter divinamente estabelecido ou não da autoridade califal, vinculado de modo intestino à querela sobre a natureza criada ou incriada do Corão, tem na história islâmica, mantidas, é claro, todas as proporções devidas, uma importância que é análoga à que os debates trinitários e cristológicos dos séculos IV e V tiveram na história cristã; ou seja, mostram que não há nada de tão sagrado e constante que esteja completamente intocado pelas variações, interesses, paixões e atritos que compõem a história dos indivíduos e das coletividades.

Nota

2 Para facilitar a leitura, todas as datas constantes no presente textos são apresentadas de acordo com seu equivalente no calendário gregoriano.

3 Estou bem consciente de que o conceito de cesaropapismo é normalmente aplicado pelos historiadores ocidentais, tanto confessionais quanto seculares, para descrever o tipo de ingerência que os imperadores romanos do oriente (bizantinos) tinham ou pretendiam ter sobre a Igreja em seus domínios, e é justamente por isso que o utilizo aqui; afinal, reitero, o tipo de poder obtido ou pretendido por governantes como Justiniano (482-565), Heráclio (575-641) e Leão III Isáurico (675- 741) sobre a vida religiosa de seus súditos foi justamente o que foi negado aos califas abássidas na década de 830. Não se trata essa de uma aproximação arbitrária, na medida em que os abássidas mantiveram com os romanos do oriente relações que não foram nunca só de conflito, mas também de intercâmbio e de imitação, inclusive no plano das ideias políticas e religiosas. Sobre a intrincada evolução histórica do conceito de cesaropapismo, ver por primeiro: TAVEIRA, Celso. O modelo político da autocracia bizantina: fundamentos ideológicos e significado histórico. Tese de Doutorado em História apresentado ao Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 2002, pp. 291-317.

Alfredo Bronzato da Costa Cruz –  Doutorando em História Política pelo PPGH/UERJ (2015- ). Bolsista CAPES (2015- ) e Nota 10/FAPERJ (2017- ). Membro do Núcleo de Estudos de Cristianismos no Oriente do GT de História das Religiões e das Religiosidades da ANPUH-Rio. Membro do Núcleo de Pesquisa Histórica do Instituto Pretos Novos. E-mail: <[email protected]>.

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La trama autoritaria. Derechas y violencias en Uruguay (1958-1966) | Magdalena Broquetas

En los últimos años distintos trabajos sobre la violencia política en el Uruguay del siglo XX han reconsiderado períodos de nuestra historia escasamente abordados. Como parte de estos esfuerzos el trabajo de la historiadora Magdalena Broquetas, fruto de su tesis de doctorado, analiza el discurso y reconstruye el accionar de un conjunto de agrupaciones derechistas que durante los gobiernos colegiados blancos (1958-1966) promovieron modificaciones al marco institucional para combatir e impedir lo que a su entender eran la influencia cada vez más peligrosa del comunismo en la sociedad uruguaya.

Para ello la autora revisa los clásicos marcos conceptuales con los que la historiografía uruguaya abordó este espectro del sistema político y social del país. Partiendo de los planteos académicos que han renovado la temática en la región, entiende por “derechas” una categoría en la que se incluyen a una amplia “constelación social sumamente plural” y un universo vasto de organizaciones con diferencias ideológicas y programáticas, las cuales varían según el periodo histórico analizado. El elemento en común y que permite identificar a estos grupos es su reacción ante la percepción de una amenaza inminente al sistema democrático y los valores tradicionales de la sociedad uruguaya por la expansión del comunismo en el continente americano (a diferencia de la primera mitad del siglo XX, cuando los sectores conservadores reaccionaron ante el reformismo batllista). Posteriormente, analiza sus discursos y definiciones ideológicas y reconstruye su accionar, destacándose la legitimación de la violencia política como forma de frenar la infiltración de elementos “foráneos”. Leia Mais

Como conversar com um fascista. Reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro – TIBURI (DSSC)

TIBURI, Márcia. Como conversar com um fascista. Reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2015. 194 pp. Resenha de: SCHURSTER, Karl. Diacronie Studi di Storia Contemporanea, v. 27, n.3, 2016.

«Ciò che è in gioco è la riduzione dell’altro a un oggetto»1. Questa frase, tratta dall’ultimo libro della filosofa e artista gaúcha Márcia Angelita Tiburi forse è quella che meglio riassume tutto lo sforzo dell’autrice per far comprendere come agisca l’individuo fascista. Il suo intento principale è quello di analizzare, attraverso 67 brevi saggi, ciò che rimane del fascismo nella società attuale e quanto sia capace di produrre una soffocante quotidianità autoritaria. Niente di più opportuno nell’attuale congiuntura politica brasiliana.

L’8 marzo del 2016 l’Assemblea Legislativa dello Stato di Pernambuco, nel Nordeste brasiliano, ha cominciato a trattare un progetto di legge, presentato dal deputato Joel da Harpa appartenente al neonato Partido Republicano da Ordem Social (PROS), che dispone la proibizione dell’insegnamento di qualsiasi tematica relativa all’ideologia di genere in ambito educativo2. Questo progetto difende il divieto totale di discutere tematiche relative alla questione di genere cercando nella legislazione brasiliana un apparato atto a difendere un modello di famiglia che viene sistematicamente ridefinito attraverso un grande spazio di lotta e mobilitazione di gruppi e movimenti sociali. Il deputato fa ricorso nell’incipit del suo progetto all’aggettivo “difeso”, derivante dal latino defensus, “proibito”, per legiferare sul divieto dei docenti di trattare di questo argomento. È in questo spazio di discussione, su temi controversi, all’interno di una democrazia imperfetta, che si sono preservati gli spazi per quelle pratiche autoritarie che vengono inquadrate nelle analisi di Tiburi. Il suo intento è quello di promuovere un dibattito attraverso cui sia possibile stabilire un dialogo tra idee, proposte e persone che agiscono sotto l’egida del pensiero fascista utilizzando come principale strumento quello che è da tenere più caro trattando di fascismo: il dialogo. Per quale ragione è così importante per il deputato – appartenente a un milieu religioso e proveniente da un partito conservatore – mettere all’ordine del giorno dell’Assemblea Legislativa un progetto di legge che va contro i piani statali, municipali e nazionali in materia di istruzione? La sua proposta mira a evitare il dialogo e a normare ciò che l’altro può e deve essere, esattamente come una proposta fascista, o meglio, fascistizzante. In questo caso l’autrice ci fornisce una propria definizione di fascismo attraverso diversi esempi e riflessioni filosofiche, molte simili alle conclusioni a cui siamo giunti nella nostra tesi di dottorato3. Il fascismo per lei, come per noi, va molto oltre i limiti della politica o anche dell’economia, è all’interno di un campo filosofico nel quale il centro di gravità è qualcosa d’altro: nel caso dei fascismi, la negazione dell’altro. I testi risultano quindi un elemento di giunzione tra la filosofia di Theodor Adorno, il pensiero di Tzvetan Todorov e l’interpretazione della cultura di Homi Bhabha4.

Il testo da cui nasce il libro, Como conversar com um fascista, è una piccola, ma profonda, riflessione su come diverse pratiche sociali, quando non istituzionali, abbiano prodotto nel Brasile contemporaneo l’estinzione della politica. Questo annichilimento di quella che sarebbe per eccellenza l’arte del dialogo avrebbe generato il terreno fertile per la crescita dell’azione politica fascista e sarebbe presente nel nostro quotidiano attraverso ciò che la filosofia ha identificato come il «genocidio indigeno, il massacro razzista e classista contro i giovani neri e i poveri nelle periferie delle grandi città, la violenza domestica e l’assassinio delle donne, l’omofobia e la manipolazione dei bambini»5. Stando così le cose, il dubbio persistente risiede, qui, nella capacità della società di creare meccanismi capaci di impedire la ripetizione di fenomeni di autoritarismo e di odio attraverso una spiegazione rigorosa, adeguata e allo stesso tempo consistente, per i fenomeni dell’agire politico fascista in grado di negare l’esistenza dell’altro. Uno degli esempi più significativi di questo tentativo si ebbe nella stessa Germania, dove – malgrado l’enorme sforzo di denazificazione della società attuato subito dopo il 1945 e l’impatto del maggio 1968 – la società si mostrò incapace di offrire alle nuove generazioni strumenti critici per il superamento della seduzione del nazismo e dell’estremismo, consentendo l’emergere di un’ampia fascia di giovani affascinati dall’estremismo razzista e lo sviluppo dell’odio6. Lo stesso avviene con il nostro tempo presente. Trascorsi trent’anni dal processo di ridemocratizzazione del Brasile, ancora non siamo riusciti ad avanzare in forma sostanziale nella costruzione di una coscienza collettiva che privilegi la convivenza con le differenze. Viviamo ancora in un paese, come sostiene la filosofa, dove la differenza è qualcosa di insopportabile, dove le pratiche e i crimini dettati dall’odio passano come qualcosa di naturale o storicamente giustificabile. La professoressa Tiburi riafferma l’idea per cui le passioni sono sempre frutto di un apprendimento e si formano in noi attraverso l’esperienza. Il fascista, perciò – o colui che utilizza il fascismo come azione politica – è quell’individuo che ha vissuto e vive costanti esperienze di odio e diviene, con il passare del tempo, incapace di provare affetto per l’altro. Parafrasando l’autrice, questo individuo è stato ed è capace di introiettare l’«odio molto prima di riuscire a pensarlo»7.

È chiaro, in considerazione delle tematiche affrontate nel libro di Tiburi – la crisi e il fallimento della politica nella quotidianità brasiliana, la democrazia e l’autoritarismo, la questione di genere, con un’analisi su ciò che ha chiamato la logica dello stupro, la questione dell’aborto, la paura e l’odio in televisione, i problemi etnici-razziali, specialmente per ciò che riguarda la questione indigena – che l’autoritarismo è molto più che presente nella vita brasiliana. È stato sistematicamente trasformato in una pratica giornaliera e banale, producendo quello che Félix Guattari ha chiamato i microfascismi8. Perché il fascismo sia una realtà, sostiene, bisogna che sia alimentato da pratiche quotidiane, da una routine che lo riproduca e che sia in grado di normalizzarlo. Questo non sarebbe quindi solamente un modo di riprodurre il fascismo come pratica e alternativa, ma, ancor più, di sterminio della democrazia, non quella che abbiamo oggi, di facciata, ma quella che desideriamo, a cui ambiamo. Ciò che risulta abbastanza evidente nel libro è che, fino ad ora, tutte le trasformazioni intraprese dalla società o dalle istituzioni sociali come la scuola non sono state sufficienti a formare una nuova gioventù critica e svincolata dai brutali atti di razzismo e di violenza, simbolica e fisica, contro l’altro. Nelle strade, negli stadi di calcio, nei bar e persino negli ambienti di lavoro si moltiplicano gli atti di razzismo e di esclusione, come sottolinea l’autrice del libro9. Riusciremo a superare, discutendone in modo critico, ciò che è già stato chiamato il fascino, der schöne Schein, di una cultura della violenza e del rifiuto dell’altro nel nostro quotidiano? Il libro risponde a questa domanda in modo sufficientemente obiettivo, affermando che solo attraverso il dialogo e il ritorno alla politica saremo in grado di rigettare l’agire fascista non considerandolo come un alternativa.

Il volume, inoltre, affronta, a partire da Nietzsche e dalla sua teoria dell’eterno ritorno, il cosiddetto peso del rancore, di quello che non può essere dimenticato, di ciò che ogni individuo e società sopporta per un lungo periodo. Bisogna comprendere in certi contesti quali siano i mezzi attraverso cui si produce il risentimento e come questi stessi siano in grado di creare uno spazio per la disseminazione dell’odio. Gli esempi attuali del riemergere dell’odio si sono moltiplicati negli ultimi anni, specialmente in Brasile: contro i neri, le donne, gli omosessuali, i migranti interni o coloro che sono immigrati per ragioni politiche o economiche. Persino nell’ambito degli sport di massa, in particolare nel calcio, la moltiplicazione degli atti di razzismo – non sempre affrontati con la necessaria severità dalle autorità responsabili – e spesso, troppo spesso, perpetrati da giovani, mostrano nel contesto della crisi economica globale, con un tasso di disoccupazione elevato e una frustrazione collettiva, un grande vuoto nel campo della rappresentanza politica e una mancanza di azioni da parte della società civile per porre fine all’incessante costruzione di quel che Peter Gay ha chiamato «l’altro conveniente»10.

I fallimenti e le omissioni del nostro processo educativo sono stati in grado di porre un freno all’emancipazione da questo atto e hanno posto le condizioni perché potesse prosperare e risorgere l’odio razziale, di classe, di gruppo, di genere e contro tutti coloro che vengano identificati intenzionalmente o meno, come un “altro” essenzialmente diverso. L’analisi di questi temi è il centro di gravità di gran parte dei capitoli del libro, attraverso vari esempi che disvelano la quotidianità della società brasiliana.

I diversi saggi che riflettono sulla questione femminile e su tematiche in cui la discussione è molto accesa, come lo stupro e la legalizzazione dell’aborto, risultano dunque fondamentali per avvalorare la difesa costante da parte dell’autrice del rispetto, della tolleranza, della diversità come elementi in grado di inibire la moltiplicazione di sintomi, atti e comportamenti permanenti di discriminazione e di odio, molto spesso legati ad un semplice e brutale disegno volto al ritorno ad un passato che è stato vissuto come un trauma. È in quest’ottica che il libro si trasforma in una lettura necessaria per comprendere il Brasile e le sue attuali sfaccettature. Attraverso l’interpretazione di Márcia Tiburi, è possibile capire che anche le democrazie consolidate dal punto di vista istituzionale, come quella brasiliana, corrono rischi costanti quando le pratiche fascistizzanti diventano una faccenda quotidiana.

Notas

1 TIBURI, Márcia, Como conversar com um fascista. Reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro, Rio de Janeiro, Record, 2015, p. 191.

2 Per approfondire, cfr., URL:

<http://200.238.101.22/docreader/docreader.aspx?bib=20160308&pasta=Mar%C3%A7o\Dia %2008 > [consultato il 26 maggio 2016].

3 SCHURSTER, Karl, A história do tempo presente e a nova historiografia sobre o Nacional Socialismo, Tesi di Dottorato – Storia comparata, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012.

4 Cfr. BHABHA, Homi K., I luoghi della cultura, Roma, Meltemi, 2001 [Ed. originale The location of culture, London, Routledge, 1994].

5 TIBURI, Márcia, op. cit., p. 29.

6 Per approfondire si veda il documentario: Heil Hitler, Herr Lehrer! (LISKA, Peter, Heil Hitler, Herr Lehrer! Jugend unterm Hakenkreuz, 3sat, Germania, 2010, 50’). Il film è ricavato dal libro di Jürgen Kleindienst. Cfr. KLEINDIENST, Jürgen, Herr Lehrer: die Kindheit unter dem Hakenkreuz, 1933-1939, Frankfurt am Main, JKL, 1985.

7 TIBURI, Márcia, op. cit., p. 30.

8 Per approfondire l’argomento si veda: GUATTARI, Félix, Revolução molecular. Pulsações políticas do desejo, São Paulo, Brasiliense, 1981.

9 Cfr. l’articolo su «El País»: ALTARES, Guillermo, «Cerca de 26% dos judeus europeus dizem ter sofrido preconceito por causa de sua religião», in El País, 6 maggio 2014, URL:

< http://brasil.elpais.com/brasil/2014/06/05/sociedad/1401978023_851631.html > [consultato il 22 maggio 2016]. Su un altro fronte, gli atti di razzismo contro i neri, i beurs, i pardos, persino se si tratta di celebri giocatori di calcio, si moltiplicano con estrema frequenza e, quando i loro perpetratori vengono identificati, ci sorprendiamo per la loro giovanissima età.

10 GAY, Peter, O Cultivo do Ódio, São Paulo, Companhia das Letras, 1996.

Karl Schurster – È Schurster è stato ricercatore post-doc e ha conseguito il dottorato in Storia presso l’UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Insegna come professore dell’Universidade de Pernambuco nel campo di studi della Storia del Tempo presente ed è membro permanente del corso di Laurea in Scienze della Formazione presso la stessa università. Attualmente sta realizzando un secondo stage postdottorale presso la Freie Universität Berlin sotto la direzione del professor Stefan Rinke. I suoi interessi sono rivolti allo studio della politica internazionale, con particolare interesse sui conflitti, in particolare le guerre mondiali e l’olocausto. È stato vincitore del 2° posto al Premio Jabuti, assieme a Francisco Carlos Teixeira e Francisco Eduardo Almeida per il coordinamento dell’Atlântico: a história de um oceano, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2013.

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A construção social dos regimes autoritários – Brasil e América Latina; África e Ásia; e Europa – ROLLEMBERG; VIZ QUADRAT (CTP)

ROLLEMBERG, Denise; VIZ QUADRAT, Samantha (Org). A construção social dos regimes autoritários – Brasil e América Latina; África e Ásia; e Europa. [Rio de Janeiro]: Civilização Brasileira, 606 p. Resenha de TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. A Construção Social dos Regimes Autoritários. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 06 – 06 de janeiro de 2012.

A Civilização Brasileira e as pesquisadoras Denise Rollemberg e Samantha Viz Quadrat, ambas do Núcleo de Estudos Contemporâneos/NEC, da UFF, apresentam-nos uma volumosa e imprescindível coletânea de trabalhos sobre os chamados “regimes autoritários”. Trata-se de uma coleção II de amplíssima e necessária abrangência, composta de três volumes — “Brasil e América Latina”, “África e Ásia” e “Europa” —, todos acompanhados de um ensaio introdutório bastante informado e que já nos apresenta os pontos centrais do trabalho.

Para as organizadoras, cabe a superação de teses tradicionais de explicação das ditaduras, quase sempre centradas em conceitos fossilizados ou “combatentes” da Guerra Fria, tais como “populismo” e “totalitarismo”. Na crítica contra tais esquemas simplificadores, as autoras propõem-se a discutir uma nova abordagem composta por teses inovadoras: a ambivalência entre sociedade e Estado nas ditaduras; a busca do consenso por parte dos ditadores e de suas instituições; o papel dos intelectuais como ponte entre regimes autoritários e população.

No seu conjunto , em especial no volume sobre “Brasil e América Latina”, brotam análises de extrema riqueza e variedade, comprovando que, mesmo sob ditaduras, a maioria das pessoas busca projetos e estratégias de convívio, de realização pessoal e profissional, ao lado de mecanismos de sobrevivência que, no limite, implicam conviver, dialogar, colaborar ou fingir não ver “o rinoceronte no quarto ao lado”, como na expressão de Eugene Ionesco.

Neste sentido destacam-se os ensaios primorosos de Marcos Napolitano e das próprias Denise Rollemberg e Samantha Quadrat, além de Daniel Aarão Reis, que inovou nos estudos de regimes ditatoriais ao estudar o período de 1964-1985 no Brasil. Vários outros pontos são ainda de suma importância, incluindo aí — em tempos de debate sobre a nossa recém-criada Comissão da Verdade — a questão da pronta, e quase total, conversão de todos à democracia no imediato período pós-ditaduras. Trata-se, neste caso, da construção de memórias regeneradoras, capazes de promover “esquecimento”, “perdão” ou “passar currículos a limpo”. Neste sentido, o belo ensaio sobre o “pensar-duplo” na França pós-ocupação alemã,   no volume “Europa”, serviria de modelo para entender boa parte do processo de democratização no Brasil pós-1985 e da oposição em face da Comissão da Verdade.

Todo esse debate encontra-se exemplarmente discutido no ensaio introdutório, de ambas as autoras. Este é imprescindível para o projeto da coleção ao identificar e explicitar os principais eixos do debate historiográfico (e político, pela própria natureza do texto) que se apresentarão nos ensaios subsequentes. Lamento apenas que o mesmo ensaio seja repetido em cada volume. Mesmo imaginando que se possa comprar cada livro individualmente, caberia indubitavelmente assinalar as características e vicissitudes das ditaduras em cada um dos continentes, suas especificidades e os “espelhos” buscados.

A questão e a natureza dos regimes de “apartheid” — que atingiram a África do Sul, Zimbábue/Rodésia e Namíbia —, por exemplo, estão ausentes, não se discutindo suas possibilidades de construção enquanto ditaduras de forte conteúdo racialista e social, malgrado a imensa literatura sul-africana. Da mesma forma, a questão das classes sociais e de seus interesses — exagerada e de forma mecanicista — tratada na historiografia marxista dos anos de 1945-1980 ficam relegadas. Talvez fosse o caso de se retornar, agora sem a ganga de um marxismo oficial, ao debate sobre empresariado, burocracia de Estado e classes sociais nas ditaduras.

Temos ainda uma outra discordância quando, à pagina 13 do ensaio, as autoras descartam o estudo das ditaduras varguistas de 1930-1934 e de 1937-1945, em razão dos “estudos estarem bem desenvolvidos”. Não creio que seja este o caso. Há, isto sim, uma abundante literatura sobre o período. Contudo, na ótica inovadora proposta pelas organizadoras — expressa, por exemplo, nos textos de Angela Castro, do CPDOC/FGV, Jorge Ferreira, da UFF e Maria Helena Capelato, da USP — falta muito a ser feito numa história das instituições ditatoriais no Brasil.

A aplicação das riquíssimas hipóteses propostas no ensaio introdutório da coleção implicaria no (re)estudo de áreas fundamentais para a compreensão do varguismo ditatorial, como instituições políticas e constitucionais, os órgãos de governo, o processo de decisão política, a burocracia e sua construção profissional, clubes de futebol, associações carnavalescas, as igrejas e o Estado Novo, entre outros. Talvez seja esta uma nova tarefa.

No seu conjunto a coleção apresenta artigos de autores brasileiros e estrangeiros de pouco acesso ou mesmo desconhecidos do público brasileiro. Assim, a presença de grandes nomes Pierre Laborie, Robert Gellately e Francisco Sevillano Calero — só em relação com as ditaduras europeias — enriquece imensamente o trabalho e o torna imprescindível. Da mesma forma, estudiosos latino-americanos, africanos e árabes tornam a coleção um recurso de grande valor para os alunos dos mais diversos cursos das áreas de ciências humanas e sociais.

As temáticas apresentadas — e que devem servir de exemplo de abordagens para futuros trabalhos brasileiros — são inovadoras e comprovam a estreita relação entre sociedade e Estado em regimes ditatoriais. A visão heroicizada, pós-ditatorial, de uma sociedade civil vitimada pelo Estado, em que um grupo era constituído de “heróis da resistência”, enquanto outro era de “colaboradores”, não mais se sustenta. Eis aqui, ao meu alvitre, a principal contribuição da coleção. Da leitura inicial do ensaio emerge uma situação de ambivalência, de busca de condições de (bem)viver ou sobreviver sob as ditaduras. Daí emergem também a delação, a participação e o consentimento na aniquilação física, cívica ou mental do outro como um dado “normal” nos regimes ditatoriais. Em quase todos os casos a maioria poderia dizer, em sua defesa, que eram temas estranhos às suas vidas. Da mesma forma, a capacidade de sedução — e de sua resposta, o consentimento — é elemento central da análise proposta, de forma rigorosa e rica, pelas organizadoras. Em suma, as ditaduras, para nosso horror e reflexão, constroem-se, conforme Rollemberg e Quadrat, na naturalidade da sociedade humana. Creio que tais conclusões, por mais duras que sejam, são uma nova e fértil via de trabalho.

Aberto o caminho, podemos acreditar que novos trabalhos — como as inúmeras teses que ambas orientam — caminharão em direção a uma História mais nuançada, mais real e também mais humana.

Notas

2 A construção social dos regimes autoritários— Brasil e América Latina; África e Ásia; e Europa, coleção organizada por Denise Rollemberg e Samantha Viz Quadrat. Editora Civilização Brasileira, 606 páginas (“Brasil e América Latina”, R$ 69,90); 392 páginas (“África e Ásia”, R$ 59,90); e 309 páginas (“Europa”, R$ 49,90).

Francisco Carlos Teixeira da Silva – Nascido em 1954, Rio de Janeiro, bolsista de produtividade CNPq. Graduação e Licenciatura em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1976), Especialização em História (UFF, 1979), Mestrado em História do Brasil pela Universidade Federal Fluminense (1980), Magister in Geschichtewissenschaft (Freie Universität, Berlin, 1983), Doutorado em História Social pela Universidade de Berlin/UFF (1990) e Pós-doutorado pela Universidade Técnica de Berlin e USP (1999/2000) e pela Universidade Livre de Berlin, 2011/12; Professor Titular de História Moderna e Contemporânea, da Universidade do Brasil/UFRJ, de 1993 até 2012 ). Professor Emérito da ECEME, Professor de Estratégia e Relações Internacionais da EGN e |Professor Conferencista da ESG. Autor de vários trabalhos de História Social no Brasil, com foco no desenvolvimento agrário e nas origens da pobreza no país, e de relações internacionais, conflitos e negociações. Principais teses:Mestrado: A Formação Social da Miséria, 1980; Doutorado: A Morfologia da Escassez, 1990; Tese de Titular: O Concerto Europeu e o Pensamento Conservador, UFRJ, 1993. Alguns dos trabalhos publicados: História Geral do Brasil (Coord. de Maria Yedda Linhares); Domínios da História (Coord. de Ciro Cardoso e Ronaldo Vainfas); Mundo Rural e Política (com o CPDA/UFRRJ); História e Imagem (Tempo Presente, Rio, 1997); Mutações do Trabalho (SENAC, Rio, 2000-); História da Agricultura Brasileira (Brasiliense, São Paulo, 1985); Sociedade Feudal (Brasiliense, São Paulo, 1990); Terra Prometida (com Maria Yedda Linhares, Campus, Rio, 2001) e Memória Social dos Esportes (organizador, v. 1 e v. 2, Mauad, Rio, 2004 e 2006). Em História das Relações Internacionais destacam-se os seguintes trabalhos: Conflitos e das Guerras: O Século Sombrio (Elsevier, São Paulo, 2005), Enciclopédia de Guerras e Revoluções do Século XX (Mauad, Rio, 2005); História do Século XX (Record, sob coord. de Daniel Aarão Reis et alii); Corporativismo em Português (Coord. de Francisco Martinho, Lisboa/Rio, 2008); Ordens e Pacis (Coord. de Alexander Zhebit, Mauad, 2008); Os Impérios na História (obra coletiva sobre a crise dos grandes estados, São Paulo, Campus, 2009); Neoterrorismo (com Alexander Zhebit, Grama, Rio, 2009). Organizador de O Brasil na Segunda Guerra Mundial (Rio, Multifoco, 2011) e Terrorismo na América do Sul (Rio, Multifoco, 2011 ) e Relações Brasil-Estados Unidos (com Sidnei Munhoz, Maringá, EDUEM, 2011). É professor-conferencista da Escola Superior de Guerra na área de Segurança Internacional e da ECEME em Estratégia Internacional. Articulista do Jornal das Dez, Globo News e consultor de várias empresas na área de relações internacionais. Foi Assessor da Presidência da Finep (2008-2010) e Membro dos Comitês Pro-Sul e Pro-África do CNPq. É também Professor Emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército brasileiro, detentor da Medalha do Pacificador, a Ordem de Tamandaré e do Medalha Amigo da Marinha e Cavaleiro da Ordem do Mérito Naval. Professor Convidado de “Ambientes e Cenários do Século XXI” da FDC.

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