5º Centenário da Primeira Volta ao Mundo: a estadia da frota no Rio de Janeiro | Paulo Roberto Pereira

Paulo Roberto Pereira 2 Primeira Volta ao Mundo
Paulo Roberto Pereira | Imagem: Jornal da PUC, 2017

Em celebração aos 500 anos da viagem de Fernão de Magalhães e Juan Sebastián Elcano, foi realizado, nos dias 12 e 13 de dezembro de 2019, nas dependências do Museu Histórico Nacional, na cidade do Rio de Janeiro, o seminário internacional intitulado 5º Centenário da Primeira Volta ao Mundo: a estadia da frota no Rio de Janeiro. O evento resultou no desenvolvimento do livro homônimo, organizado por Paulo Roberto Pereira (doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor na Universidade Federal Fluminense) e publicado pela Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha, em 2021.

A obra, uma coletânea de 14 artigos elaborados a partir das comunicações apresentadas durante o seminário, contou com a participação de pesquisadores brasileiros e de outros países envolvidos na primeira circum-navegação, como: Espanha, Portugal, Argentina, Chile, Peru e Uruguai. A presente resenha se debruça sobre os primeiros sete artigos que compõem a obra.

O primeiro texto tem por autor Arno Wehling, graduado em História pela Faculdade Nacional de Filosofia do Brasil e em Direito pela Universidade de Santa Úrsula, doutor pela Universidade de São Paulo, professor de Teoria e Metodologia em História na Universidade Federal do Rio de Janeiro e de Direito na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Wehling analisa os “Desafios Jurídicos da Modernidade e a Expedição de Fernão de Magalhães”. Segundo o autor, seu objeto de análise está circunscrito em um momento singular da história, a Idade Moderna, por muitos considerada um período histórico marcado por significativas transformações sociais e políticas. Nesse sentido, a Igreja Católica, outrora, detentora do aparato jurídico, necessitava de mudanças no sistema jurídico vigente, uma vez que renascia o direito romano.

Ao observar o estatuto jurídico da expedição, Wehling afirma que o mesmo foi proposto por Fernão de Magalhães ao Conselho de Castela, principal organização de governo da monarquia espanhola, sem restar pendência ou contencioso jurídico com a Coroa de Portugal. É importante ressaltar que na Idade Média a Igreja Católica exercia um papel teológico-jurídico nas sociedades onde se fazia presente à época. No entanto, a partir de 1517, já se desenhava, por conta da Reforma Protestante, um “novo” direito exercido pelos monarcas emergentes. Para Arno Wehling, a conjuntura político-jurídica, em 1510, estava, de certa maneira, evidente no que concerne à efetiva transição da ação jurídica por parte da Igreja para os Estados.

O autor ainda chama a atenção para o descontentamento do teólogo Francisco de Vitória para com o acordo de Tordesilhas, que foi sancionado pelo Papa, em 1494. Além disso, também expõe a disputa jurídica entre Espanha e Portugal pela posse das Ilhas Molucas, resolvida por meio do Tratado Saragoça, em 1529. Por fim, Wehling afirma que a viagem de Magalhães pode ser considerada como “uma ponta do iceberg” de assuntos jurídicos com um profundo impacto no Direito.

No segundo artigo, “La expedición de Magallanes Elcano: América del Sur, Puerto del Oriente”, María Saavedra Inaraja, licenciada em Geografia e História em 1991, pela Universidad Complutense de Madrid e doutora pela mesma instituição, especialista em América Latina e questões andinas, traz a perspectiva do enquadramento da expedição de Magalhães-Elcano em um campo de entendimento mais amplo, onde se pode observar a mistura de diferentes histórias e lendas de origens distintas. Para Inaraja, a circum-navegação de Magalhães tem paralelo com outras viagens míticas ou lendárias. Segundo a autora, os historiadores devem compreender e estudar fatos, porém, devem também traçar, mediante a historiografia, esses paralelos entre o real e o imaginário. Ela observa que as viagens contaram com muitos elementos dos relatos míticos, como a epopeia mesopotâmica, mostrando como o mundo mítico pode se transformar em real a partir de uma perspectiva geográfica, astronômica e antropológica.

Na sequência, temos o texto de António Filipe Pimentel, graduado em História em 1985, mestre em História Cultural e Política da Época Moderna, doutor em História da Arte pela Universidade de Coimbra em 2003, e, atualmente, professor auxiliar de Nomeação Definitiva da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Em seu artigo intitulado “Na Lisboa de Magalhães: Museu Nacional de Arte Antiga e a Exposição A Cidade Global”, o autor discorre sobre como a Lisboa da época de Magalhães tornou-se uma cidade cosmopolita, com a expansão marítima e os novos ares de transição da Idade Moderna. Porém, possivelmente, Magalhães esteve na cidade durante apenas poucos anos de sua vida, visitando-a apenas em uma breve passagem. O autor analisa a Lisboa do Renascimento a partir do livro A Cidade Global: as ruas de Lisboa no Renascimento, das autoras Annamarie Jordan Gschwend e Kate Lowe, publicado em 2015, que mostra como a cidade era na época de Fernão de Magalhães. Pimentel ainda propõe um paralelo entre as características lisboetas e as do navegador.

Lisboa se transformou por conta do comércio ultramarino, tornando-se um importante centro de projeção mundial, condição que possibilitou uma importante reforma urbana, para alguns um indicativo de seu status de cidade cosmopolita com relevância global. Segundo o autor, a cidade de Lisboa tinha uma forte presença de produtos de consumo e práticas de vida existentes em diversos locais do mundo.

O texto seguinte, “Conectando el Planeta: La Primera Vuelta al Mundo en Perspectiva Global”, de María Luz González Mezquita, doutora em História pela Universidad Complutense de Madrid e professora de História Moderna na Universidad Nacional de Mar de Plata, apresenta a viagem de Magalhães a partir de uma perspectiva específica da historiografia ibérica. A autora aponta que o projeto de Magalhães gerou um notável aumento nas informações territoriais. A partir desse feito, organizaram-se novas representações cartográficas, porém, segundo Mezquita, para além dessa contribuição, é possível compreender a viagem como um acontecimento afeto a uma primeira globalização. Por fim, a autora destaca o impacto de uma viagem que alterou a ordem da “História Universal”.

Como a principal intenção do Seminário era trazer uma visão múltipla dos países que tiveram contato com a viagem de Magalhães, o doutor em História pelo Colegio del México e professor titular do Instituto de História da Pontifícia Universidad Católica de Chile, Rafael Sagredo Baeza, traz a “Representação de Magalhães na Historiografia Chilena no Século XIX”, em cujo texto o autor analisa as representações feitas por José Toribio Medina em suas obras sobre a travessia pelo hoje denominado Estreito de Magalhães, observando como fundamentais para a inserção da História chilena na “Historiografia Mundial”.

Doutora pela University College London, graduada pela Pontificia Universidad Católica del Perú, onde atualmente é professora, Margarita Suárez, em seu artigo “Lima, Calculta y las Cuatro Partes del Mundo: El Impacto del Viagem de Magallanes-Elcano em los Siglos XVI y XVII”, afirma que, com a circum-navegação de Magalhães foi possível estabelecer, pela primeira vez, um intercâmbio de mercadorias, pessoas e culturas; algo que seria, segundo ela, a “primeira globalização”. A autora chama a atenção para as novas redes de comércio criadas por conta da expansão ibérica, destacando ainda como teria se desenvolvido, por meio dessa nova e intensa interação entre os diferentes continentes, essa “globalização precoce”, com redes de intercâmbios e comércio.

O texto seguinte, de José Manuel Garcia, doutor em História pela Universidade do Porto, membro da Academia Portuguesa da História e da Academia da Marinha de Lisboa, intitula-se “América do Sul na Problemática da Primeira Volta ao Mundo de Fernão de Magalhães”. Podemos observar que, com base na análise da cartografia da época, o autor parte do pressuposto de que a passagem pelo Rio de Janeiro permitiu que seu território fosse integrado à “História Universal”. Não obstante, Garcia afirma que a viagem foi essencial para o entendimento do mundo como ele é, e destaca ainda descobertas realizadas graças à viagem, como a constatação de que o planeta Terra é composto por uma porção maior de água.

Por conseguinte, os demais artigos presentes na obra são: “Del Cabo de San Agustín al Río de Solís durante la Primera Circunnavegación del Globo”, do Capitán de Navio José María Blanco Nunez (Espanha), Academico correspondente da Real Academia de la Historia/ Instituto de Historia y Cultura Naval; “Os Navios de Magalhães nas Rotas do Extremo Oriente: das Ilhas Marianas até Timor”, do Capitão de Fragata (fuzileiro naval) Jorge Semedo de Matos, professor da Escola Naval de Portugal; “A Cartografia no Século XVI”, do Almirante de Esquadra Marcos Augusto Leal Azevedo (Brasil), coordenador executivo do Centro de Excelência para o Mar Brasileiro; “Evento-Mundo: Tecnología, Espacio y Tiempo en la Poética de la Cultura”, do professor doutor Guillermo Giucci da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. “Tras Magallanes y Elcano: Primera Circunnavegación y Primera Globalización”, do professor doutor Carlos Martínez Shaw da Universidad Nacional de Educación a Distancia na Espanha e Miembro de Número de la Real Academia de la Historia. “Navegando el Océano: Vida y Muerta en la Mar en el Siglo XVI.”, da professora doutora María Dolores Hìgueras Rodriguez (Espanha). Finalizando com “La Incidencias y Consecuencias de la Travesía del Océano Pacífico” do professor doutor Salvador Bernabéu Albert da Escola de Estudios Hispano-Americanos da Espanha.

A partir da leitura dos textos aqui analisados, é possível perceber o livro 5º Centenário da Primeira Volta ao Mundo: A estadia da frota no Rio de Janeiro enquanto uma obra que dialoga com inúmeras questões que vão além da historiografia marítima ou mesmo da concepção que se tinha sobre uma História Universal. Com uma perspectiva notadamente interdisciplinar, a coletânea apresenta importantes contribuições que transcendem o campo da História, transitando em diversas áreas do conhecimento humano, desde a Geografia e a Cartografia até a Sociologia e o Direito. A partir dessa interdisciplinaridade, pode-se entender que a viagem de Magalhães-Elcano foi um acontecimento histórico essencial para a construção da história humana, trazendo inovações e descobertas que influenciaram as dinâmicas políticas, geográficas e econômicas de épocas posteriores. Assim, mesmo para o público não historiador e leigo no que concerne à história marítima, o livro se mostra um importante instrumento no auxílio à construção do conhecimento acerca das diversas temáticas abordadas a partir da viagem de Fernão de Magalhães e Juan Sebastián Elcano.

Entretanto, muitos autores supracitados utilizaram o termo “História Universal”, que se faz antiquado quanto às novas interpretações da Historiografia Contemporânea, por conotar uma percepção eurocentrista da História e pouco abrangente, uma vez que cada continente ou país comporta uma vasta história e cultura singular para ser integrado como apenas parte de um todo.

Por fim, considero que a circum-navegação de Magalhães-Elcano foi um ponto crucial na História Moderna, haja vista que, entre tantas contribuições, confirmou teorias como a de que a Terra seria redonda. Ademais, o périplo de Magalhães-Elcano trouxe consigo transformações nos paradigmas da época, por ser considerado um dos primeiros processos de globalização. Portanto, a importância da obra reside também no fato de que a própria viagem não restou muitos registros e outras fontes primárias para estudo. No entanto, continua sendo considerada um dos primeiros passos para o desenvolvimento de uma História mais abrangente e marcada por uma transversalidade que busca transcender fronteiras, não apenas políticas, mas também socioculturais, figurando como uma rica fonte secundária para o início de um estudo aprofundado do assunto.


Resenhista

Rebeca Magalhães dos Santos – Graduanda em História pela Universidade Estadual do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Estagiária do Departamento de História da Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha (DPHDM).


Referências desta Resenha

PEREIRA, Paulo Roberto (Org.). 5º Centenário da Primeira Volta ao Mundo: a estadia da frota no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação da Marinha, 2021. Resenha de: SANTOS, Rebeca Magalhães dos. Navigator – Subsídios para a história marítima do Brasil. Rio de Janeiro, v. 17, n. 34, p. 157-160, 2021. Acessar publicação original [DR]

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