Modelagem de sistemas complexos para políticas públicas – FURTADO et. al. (CCRH)

FURTADO, Bernardo Alves; SAKOWSKI, Patrícia; TÓVOLLI, Marina (Eds). Modelagem de sistemas complexos para políticas públicas. Brasília: IPEA, 2015.

O termo complexidade é oriundo do latim complexus, que significa tecido, entrelaçado, composto em conjunto. Muito utilizada em estudos contemporâneos, tanto nas “hard sciences”, quanto nas ciências sociais, esta noção aponta em direção a uma forma específica de cosmovisão de mundo. Nesse sentido, para uma melhor compreensão do conceito, podemos pensar a complexidade a partir de duas dimensões: uma teórico-epistemológica e outra metodológica.

Do ponto de vista epistemológico, a complexidade está indissociavelmente vinculada ao esgotamento de uma epistemologia de orientação analítica. Isso porque, com o avanço científico, especialmente a partir da segunda metade do século XX, a ciência se deparou com novos enigmas, para muitos dos quais, até hoje, não foram encontradas respostas precisas. Tomemos como exemplo o campo da física. O desenvolvimento da mecânica quântica e o descobrimento de um verdadeiro mundo subatômico fizeram emergir uma série de problemas de natureza complexa, os quais escapam aos limites do método empiricista tradicional. Para estes problemas, os físicos têm apontado respostas teóricas, ou seja, puramente dedutivas, o que tem aproximado, cada vez mais, a física das especulações filosóficas. Consequentemente, a física moderna vivencia um novo paradigma epistemo-metodológico, o da física teórica.

Além disso, outras áreas da ciência também têm se deparado com problemas complexos, para os quais não têm encontrado soluções precisas. A meteorologia, por exemplo, frente às constantes mudanças climáticas, tem encontrado grandes dificuldades ao tentar prever as condições do tempo. Por sua vez, o avanço e a descoberta de novos transtornos psiquiátricos,2 causados tanto por fatores de ordem genética, quanto de ordem social e pessoal (estresse, alimentação, estilo de vida) tem sido um grande desafio às neurociências. No caso das ciências sociais, o surgimento de novos movimentos populares e de novas formas de protesto (Manifestações de Junho, no Brasil, revoltas estudantis no Chile, Los Indignados, na Espanha) tem evidenciado a ineficácia de abordagens teóricas fundacionistas,3 como o marxismo ortodoxo, o estruturalismo, o funcionalismo etc.

Esses novos problemas são de natureza complexa, justamente porque não possuem soluções definitivas, exigindo, assim, uma nova forma de encarar o mundo, seja o biológico, o químico, o psicológico ou o social. Essa nova cosmovisão de mundo (Weltanschauung) deve reconhecer o caráter complexo e misterioso da realidade, a qual é formada por uma rede infinita de inter-relações entre elementos, os quais não podem ser compreendidos de modo analítico-cartesiano, ou seja, separados uns dos outros. Tal como defende Edgar Morin, a epistemologia complexa precisa conceber o real como um organismo sistêmico, isto é, como um sistema complexo.

O trabalho com sistemas complexos exige uma abordagem metodológica igualmente complexa, que mobilize diferentes áreas do conhecimento para tentar dar conta, minimamente, do objeto em questão. Em outras palavras, a metodologia complexa transcende os limites da disciplinaridade, exigindo uma abordagem inter, multi, pluri e transdisciplinar. Pelo viés do pensamento complexo, portanto, torna-se necessário que as diferentes áreas do saber humano se aproximem e se comuniquem conceitualmente para que consigam reduzir, ainda que de forma precária, a complexidade do mundo.

A coletânea Modelagem de sistemas complexos para políticas públicas, lançada recentemente pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), segue, justamente, a linha de raciocínio do pensamento complexo. Editado por Bernardo Alves Furtado, Patrícia Sakowski e Marina Tóvolli, o livro reúne um renomado time de pesquisadores do Brasil e do exterior, oriundos de instituições como Universidade de Tóquio, Universidade de Bielefeld, Instituto Santa Fé, MITRE Corporation, Universidade de Michigan, New England Complex Systems Institute, Universidade de Brasília dentre outras.

Segundo Scott Page, no prefácio da obra, a complexidade intrínseca aos processos políticos e burocráticos envolvidos na formulação de políticas públicas e aos sistemas nos quais essas políticas são aplicadas, pode supor, de imediato, “que a complexidade obteria sua relevância por vontade própria. No entanto, não é o que ocorre” (p. 11). A multiplicidade de conceitos e ideias que compõem o pensamento complexo, e que poderiam enriquecer as políticas públicas, raramente é levada em consideração nesta área.

Partindo desse reconhecimento, o objetivo principal de Modelagem de sistemas complexos consiste em introduzir e explorar os principais conceitos, métodos e enfoques teóricos da complexidade, bem como verificar a maneira pela qual esta nova abordagem pode contribuir, significativamente, para as políticas públicas, que são um dos focos centrais do IPEA. A coletânea, portanto, propõe uma série de métodos para modelagem e aplicação de sistemas complexos voltados ao aprimoramento das políticas. Por sistemas complexos, a obra compreende “atores diversos e que se adaptam, que interagem com seus vizinhos e por conexões de redes” (p. 12). Desta forma, o livro parte de uma abordagem interdisciplinar, reunindo textos escritos por pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, como economia, geografia, física, engenharia da computação, estatística, ciência política.

Composta por 444 páginas, a coletânea está dividida em três partes. A primeira delas, Complexidade: teoria, métodos e modelagem, reúne artigos que conceituam a abordagem de sistemas complexos, suas possibilidades e limitações, métodos e metodologias de aplicação, bem como modelos de simulação e operacionalização desses sistemas para políticas públicas. A segunda parte, Objetos de políticas públicas e a abordagem de sistemas complexos, apresenta artigos, os quais discutem a natureza complexa dos sistemas sociais, adotando o meio ambiente, a economia e as cidades como objetos de políticas. A terceira e última parte, Aplicações de sistemas complexos em objetos de políticas públicas, reflete sobre a aplicação dos supracitados sistemas em políticas no Brasil e no mundo. Também são discutidas formas de aplicação de sistemas complexos para a criação de políticas na educação, no sistema jurídico legislativo, bem como no desenvolvimento sustentável regional.

Modelagem de sistemas complexos é, sem dúvidas, um livro referencial para aqueles que trabalham na área das políticas. No entanto, podemos apontar alguns pontos negativos a respeito da obra. Primeiramente, cabe salientar que, a nosso ver, boa parte das discussões apresentadas no livro restringe-se a uma abordagem rigorosamente técnica, limitando-se à apresentação de plataformas computacionais; ao uso de linguagem matemática para a análise de simulações operacionalizadas em computador; e a abordagens puramente econômicas aplicadas a questões complexas, como o sentimento de agentes sociais, por exemplo. Assim, de um modo em geral, parece-nos que o livro carece de uma reflexão sociológica mais aprofundada, que problematize, do ponto de vista teórico, questões sociais ou relacionadas à subjetividade dos agentes.

O segundo aspecto negativo, que destacamos, está diretamente vinculado à crítica mencionada acima. Como carece de uma reflexão sociológica mais aprofundada, preferindo uma abordagem mais técnica e aplicada, a coletânea não dialoga com autores fundamentais dos estudos sociológicos sobre complexidade. A principal ausência talvez seja a do sociólogo Niklas Luhmann, que não é citado em nenhum dos 17 artigos que compõem a obra. Luhmann pode ser considerado um dos pensadores sociais mais importantes da segunda metade do século XX e o principal expoente da Teoria dos Sistemas no âmbito das ciências sociais. Em sua vasta obra, o sociólogo alemão desenvolve uma teoria geral da sociedade, que tem como tema norteador a relação entre os diferentes sistemas sociais – política, economia, educação, direito – e a redução de complexidade do mundo.4

Além de Luhmann, também não são trazidos à discussão outros importantes autores que refletem, sociologicamente, sobre a relação entre complexidade, sistemas sociais e políticas públicas. Não são citados, por exemplo, os trabalhos desenvolvidos pelo Núcleo de Investigación en Sistemas Sociales y Complejidad Sociocultural – NISS, do qual fazem parte pesquisadores como Marcelo Arnold (atual presidente da ALAS5), Hugo Cadenas, Anahí Urquiza, Antonieta Urquieta, dentre outros. Vinculado à Faculdade de Ciências Sociais da Universidade do Chile, o NISS conta, inclusive, com uma linha de pesquisa intitulada Exclusión Social, Intervençión y Políticas públicas, que tem por referencial teórico a complexidade e a teoria dos sistemas sociais.

A nosso ver, reflexões sociológicas sobre complexidade, sistemas sociais e políticas públicas, como as desenvolvidas pelos autores supracicitados, enriqueceriam consideravelmente a coletânea organizada pelo IPEA.

1 Gratuitamente disponível para download através do link http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/150727_livro_modelagem_sistemas.pdf. Acesso em: 4 de dezembro de 2015.

2 O relatório Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, publicado em 2010, aponta classificação para 297 tipos diferentes de distúrbios psiquiátricos. A versão anterior, de 1994, apresentava apenas 106 transtornos. Ou seja, em seis anos, o número de transtornos psiquiátricos conhecidos aumentou mais de 180%.

3 Uma abordagem fundacionista é aquela que pensa a realidade em termos essencialistas. No caso do marxismo ortodoxo, o fundacionismo se manifesta no determinismo econômico presente na ideia de luta de classes e na relação base x superestrutura. No caso do estruturalismo e do funcionalismo, a dimensão de fundação está presente na forma transcendental como as noções de estrutura e sistema são abordados respectivamente.

4 Luhmann desenvolve uma análise teórica referencial, a qual se debruça sobre a relação entre a ascendente complexificação das sociedades modernas, o caráter contingente do mundo atual e o processo de diferenciação funcional dos sistemas sociais na tentativa de conter (minimizar) tal complexidade. Ao realizar essa análise, o pensador alemão mobiliza um poderoso aparato conceitual, no qual estão inseridas as noções de contingência, complexidade, risco, globalização, auto-organização etc.

5 Associação Latinoamericana de Sociologia.

Everton Garcia da Costa – Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Seus principais interesses de pesquisa estão nas áreas de Teoria Social Contemporânea, Sociologia da Educação, Estudos Sociais da Ciência, Epistemologia, Ciência e Tecnologia (C&T). [email protected]

Cad. CRH vol.28 no.75 Salvador Sept./Dec. 2015

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