Cultura de cohesión e integración social en ciudades chilenas – SABATINI et. al. (CCRH)

SABATINI, Francisco; WORMALD, Guillermo; RASSE, Alejandra; TREBILCOCK, María Pazed.. Cultura de cohesión e integración social en ciudades chilenas. 2013. Pontificia Universidad Católica de Chile, Colección Estudios Urbanos, Santiago: 304p.

Na esteira de um conjunto de estudos internacionais sobre os impactos da globalização e do neoliberalismo implantado em diversos países desde a década de oitenta e noventa, as cidades chilenas têm sido analisadas a partir de diversas perspectivas. O livro Cultura de Cohesión e Integración social en ciudades chilenas, organizado pelos professores Francisco Sabatini, Guillermo Worlmald, Alejandra Rasse e María Paz Trebilcock, discute a possibilidade cultural de gerar menores níveis de segregação ou de criar espaços de mistura entre pessoas de distintas condições sociais. Questionando até que ponto a segregação é produto, apenas, da segmentação produzida pelo mercado ou se há, também, um substrato cultural “pró-segregação”, os autores, em parceria com outros colegas e seus alunos, realizaram uma ampla pesquisa na Grande Santiago, em Valparaíso-Viña del Mar e em La Serena-Coquimbo, com a hipótese de que as condições estruturais da sociedade chilena poderiam estar gerando mais segregação do que as pessoas efetivamente desejariam.

Partindo dessa hipótese, a investigação buscou analisar a disposição dos citadinos à convivência com grupos sociais diferentes, analisando esta possibilidade, não apenas partir de uma dimensão estrutural (a segregação nos tipos de escolas, bairros, lugares de recreação, transporte e trabalho), mas, também (e principalmente), através de uma dimensão cultural (a valoração que fazem os sujeitos sobre as oportunidades de contato, compreendida como um indicador de coesão social). Assim, o trabalho se propõe a compreender a cultura de coesão e integração nas cidades chilenas, entendida como uma base normativa que sustenta a confiança, a cooperação e o reconhecimento entre sujeitos desconhecidos.

Para tanto, o trabalho utilizou vários procedimentos de pesquisa, como um survey nas referidas cidades e estudos qualitativos efetuados em regiões e bairros de “classes médias”, consideradas como aquelas que poderiam ser mais afetadas por políticas de relocalização espacial orientadas para a produção de cidades menos segregadas. Para os autores, a macrossegregação da pobreza em espaços isolados torna a vida desses grupos ainda mais vulnerável, conformando processos de “guetização”, enquanto que a microssegregação, produzida pelo deslocamento de grupos médios a essas zonas, engendraria um processo de “medianização”.

O livro constitui uma coletânea de artigos produzidos por diferentes autores sobre cidades e contextos distintos, configurando-se como abordagens de campo específicas de uma problemática mais ampla, que é analisada pelos organizadores à luz dos achados no último capítulo. Em síntese, os capítulos de campo abordam temas como: a convivência e a indiferença existente entre vizinhos de um heterogêneo bairro de classe média no centro de Santiago; um bairro de Santiago de camadas média-baixas, com trajetórias de mobilidade social que evitam interações com os vizinhos de grupos mais baixos, por não enxergar neles os valores do esforço individual, meritocracia e trabalho; o caso de um bairro de média e alta renda de Santiago, onde os vizinhos buscam construir uma comunidade de iguais, mas que, pela característica heterogênea do bairro, toleram a existência de outros, ainda que somente em espaços formais e distantes; a diversidade social existente nos espaços públicos de Viña del Mar, que contradiz os imaginários que supunham uma cidade mais segregada; o estudo de um bairro em Valparaíso, que afirma as características específicas dessa cidade universitária e de topografia singular de abertura à diversidade; as formas de distinção na conurbação de La Coquimbo-La Serena, que se pautam, principalmente, na forte identidade territorial e na segmentação frente aos novos imigrantes de alta renda, ligados à mineração; e os critérios de distinção existentes no metrô de Santiago, que se baseiam mais em modos de conduta e características corporais do que em critérios socioeconômicos.

Os resultados gerais apresentados no livro apontam que os citadinos chilenos possuem uma atitude favorável à diversidade e uma atitude pessoal de alta disposição ao contato com pessoas de outra classe social. Apesar desta alta valoração, salientam os autores, em função da estrutura segregada das cidades, suas práticas sociais estão marcadas mais por experiências de homogeneidade do que de diversidade. Assim, concluem que, de fato, as atuais formas estruturais da sociedade estariam gerando mais segregação do que os chilenos desejam ou menos diversidade do que estão dispostos, em termos culturais, a aceitar.

Muitos elementos explorados qualitativamente nos capítulos de campo, no entanto, matizam esse achado. O alto nível de disposição ao contato com o outro está associado a um conjunto de restrições e condições. Os níveis de tolerância dependem do espaço (são maiores nos espaços públicos de consumo como os shoppings e nos de passagem, como no metrô, e menores nas escolas e nos bairros, onde se constroem laços mais fortes); dependem, também, de uma estrutura normativa que regule o modo como os contatos se desenvolvem (como o controle social dos shoppings e as regras das atividades laborais); e, ainda, dependem das características dos sujeitos e do compartilhamento de padrões culturais pautados na ideia de trabalho, na valorização do esforço e do mérito individual, tomados como prova de uma vida “decente”. Além disso, a escala da cidade impactaria nesse processo, uma vez que cidades menores ofereceriam maiores oportunidades de integração.

Portanto, para os autores, esses achados indicam que “mais do que rígidas barreiras socioeconômicas ou de classe social, se impõe uma diferenciação baseada em estilos de vida, costumes e elementos culturais” (Sabatini et al, 2013, p. 58, livre tradução). Esta interpretação culturalista se baseia na perspectiva de que a emergência de um mercado plenamente capitalista no Chile desconstruiu a desigualdade social baseada em posições hierárquicas, de modo que “os recursos econômicos de cada um, especialmente na nova sociedade de mercado, passam a ser uma porta de entrada mais que uma barreira à convivência social com um outro diferente” (Sabatini et al, 2013, p. 58, livre tradução), posto que a nova diferenciação teria um fundamento fortemente cultural. Concomitantemente, algumas mudanças político-culturais teriam feito surgir dimensões mais horizontais relativas aos direitos e à ideia de cidadania. Assim, os valores sociais chilenos teriam mudado, passando a incorporar a ideia de autonomia individual, baseada na ideologia da sociedade de oportunidades, trabalho esforçado, individualização e expectativas de mobilidade social.

Contribuiriam também para este processo a ampliação das camadas médias na sociedade chilena e transformações urbanas, como os processos de gentrificação1 e de difusão de shoppings centers, que gerariam, respectivamente, maior aproximação física entre as classes sociais, diminuindo a escala da segregação, e ofereceriam novas experiências de diversidade urbana.

O estudo conclui, também, que a disposição ao contato com o outro se dá mais em função de momentos efêmeros do que da construção de vínculos. Mas, para os autores, mesmo que superficiais, os contatos podem ter importantes efeitos simbólicos sobre os imaginários, ajudando a derrubar ou construir estereótipos, abrindo oportunidades para a criação de futuros vínculos: “a indiferença, que tradicionalmente foi catalogada como uma fragilização da coesão, emerge como um valor com potencial coesivo, na medida em que se torna, junto com as regras, uma base mínima para compartilhar os espaços […]” (Sabatini et al, 2013, p. 283, livre tradução). Assim, sugerem que esta abertura à convivência com o outro, existente nas cidades chilenas, seja aproveitada por políticas urbanas de integração social.

Esses achados, que os próprios autores consideram como surpreendentes, suscitam algumas questões. Além de possíveis questionamentos à perspectiva culturalista, que separa da análise o vínculo estrutural entre os capitais econômico e cultural, e a “aposta” na copresença entre os grupos diferentes, como estratégia de redução da segregação, para além das formas urbanas e dos conteúdos sociais envolvidos; dados os próprios resultados do trabalho, que identificaram um conjunto de distinções, é duvidosa a disposição ampla ao encontro com os outros sujeitos sociais, mesmo na sociedade chilena, onde os níveis de desigualdades são menores quando comparada à brasileira, por exemplo. As condições apresentadas como limites indicam que, na prática cotidiana, os contatos com outros grupos sociais só são aceitos em condições bem restritivas, como o compartilhamento da cultura do trabalho e meritocracia, e, em certos espaços normatizados, onde há controle social. Isto é, os resultados permitem interpretar que não há uma disposição ao inesperado, ao imprevisível, ao diferente na sua diferença, por assim dizer, ou mesmo à pluralidade e à igualdade.

Nem o surgimento de uma sociedade de mercado, baseada na meritocracia, tampouco a proximidade entre classes produzidas pelos processos de “gentrificação” parecem estar contribuindo para ampliar a disposição à heterogeneidade social ou para engendrar formas menos intolerantes de sociabilidade urbana, já que permanecem formas de distinção, evitação e controle social.

A pesquisa, apresentada na forma do livro Cultura de Cohesión e Integración en Ciudades Chilenas, baseou-se em trabalho empírico extenso e apresentou resultados interessantes. Eles, no entanto, vão numa direção diferente de outros trabalhos, como os de Richard Sennet, Mike Davis e Tereza Caldeira, entre outros autores, que têm enfatizado a restrição dos espaços públicos nas cidades contemporâneas, a constituição de uma sociabilidade violenta e uma menor disposição à interação social com grupos heterogêneos.

Sobre estas diferenças e as questões colocadas aqui, pode-se indagar em que medida a sociedade chilena apresenta um desenvolvimento específico, que não acompanha o que a literatura acadêmica tem constatado em cidades estadunidenses, europeias e em outras latino-americanas. Esta e outras questões já valem a leitura deste provocador trabalho, que, seguramente, contribui para o debateno campo dos estudos urbanos de uma perspectiva sociológica.

1 Os autores utilizam a ideia de gentrificação para o processo de alteração do perfil social de determinadas áreas sem que necessariamente haja uma expulsão de moradores mais antigos ou de menores recursos, ou seja, de uma maneira diferente ao conceito original, que tradicionalmente foi utilizado para denominar processos que envolvem atração de novos tipos de atividades e moradores, mas também reinvestimento econômico e melhorias ambientais que significam, não raro, uma “limpeza social”.

Rafael de Aguiar Arantes – Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia, com parte do doutoramento realizado no Instituto de Estudios Urbanos y Territoriales da Pontificia Universidad Católica de Chile. Tem experiência de pesquisa com ênfase em Sociologia Urbana, atuando principalmente nos seguintes temas: metrópoles latino-americanas, segregação e desigualdades sócio-espaciais, condomínios fechados, espaço público e sociabilidade urbana. [email protected]

Cad. CRH vol.28 no.75 Salvador Sept./Dec. 2015

Modelagem de sistemas complexos para políticas públicas – FURTADO et. al. (CCRH)

FURTADO, Bernardo Alves; SAKOWSKI, Patrícia; TÓVOLLI, Marina (Eds). Modelagem de sistemas complexos para políticas públicas. Brasília: IPEA, 2015.

O termo complexidade é oriundo do latim complexus, que significa tecido, entrelaçado, composto em conjunto. Muito utilizada em estudos contemporâneos, tanto nas “hard sciences”, quanto nas ciências sociais, esta noção aponta em direção a uma forma específica de cosmovisão de mundo. Nesse sentido, para uma melhor compreensão do conceito, podemos pensar a complexidade a partir de duas dimensões: uma teórico-epistemológica e outra metodológica.

Do ponto de vista epistemológico, a complexidade está indissociavelmente vinculada ao esgotamento de uma epistemologia de orientação analítica. Isso porque, com o avanço científico, especialmente a partir da segunda metade do século XX, a ciência se deparou com novos enigmas, para muitos dos quais, até hoje, não foram encontradas respostas precisas. Tomemos como exemplo o campo da física. O desenvolvimento da mecânica quântica e o descobrimento de um verdadeiro mundo subatômico fizeram emergir uma série de problemas de natureza complexa, os quais escapam aos limites do método empiricista tradicional. Para estes problemas, os físicos têm apontado respostas teóricas, ou seja, puramente dedutivas, o que tem aproximado, cada vez mais, a física das especulações filosóficas. Consequentemente, a física moderna vivencia um novo paradigma epistemo-metodológico, o da física teórica.

Além disso, outras áreas da ciência também têm se deparado com problemas complexos, para os quais não têm encontrado soluções precisas. A meteorologia, por exemplo, frente às constantes mudanças climáticas, tem encontrado grandes dificuldades ao tentar prever as condições do tempo. Por sua vez, o avanço e a descoberta de novos transtornos psiquiátricos,2 causados tanto por fatores de ordem genética, quanto de ordem social e pessoal (estresse, alimentação, estilo de vida) tem sido um grande desafio às neurociências. No caso das ciências sociais, o surgimento de novos movimentos populares e de novas formas de protesto (Manifestações de Junho, no Brasil, revoltas estudantis no Chile, Los Indignados, na Espanha) tem evidenciado a ineficácia de abordagens teóricas fundacionistas,3 como o marxismo ortodoxo, o estruturalismo, o funcionalismo etc.

Esses novos problemas são de natureza complexa, justamente porque não possuem soluções definitivas, exigindo, assim, uma nova forma de encarar o mundo, seja o biológico, o químico, o psicológico ou o social. Essa nova cosmovisão de mundo (Weltanschauung) deve reconhecer o caráter complexo e misterioso da realidade, a qual é formada por uma rede infinita de inter-relações entre elementos, os quais não podem ser compreendidos de modo analítico-cartesiano, ou seja, separados uns dos outros. Tal como defende Edgar Morin, a epistemologia complexa precisa conceber o real como um organismo sistêmico, isto é, como um sistema complexo.

O trabalho com sistemas complexos exige uma abordagem metodológica igualmente complexa, que mobilize diferentes áreas do conhecimento para tentar dar conta, minimamente, do objeto em questão. Em outras palavras, a metodologia complexa transcende os limites da disciplinaridade, exigindo uma abordagem inter, multi, pluri e transdisciplinar. Pelo viés do pensamento complexo, portanto, torna-se necessário que as diferentes áreas do saber humano se aproximem e se comuniquem conceitualmente para que consigam reduzir, ainda que de forma precária, a complexidade do mundo.

A coletânea Modelagem de sistemas complexos para políticas públicas, lançada recentemente pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), segue, justamente, a linha de raciocínio do pensamento complexo. Editado por Bernardo Alves Furtado, Patrícia Sakowski e Marina Tóvolli, o livro reúne um renomado time de pesquisadores do Brasil e do exterior, oriundos de instituições como Universidade de Tóquio, Universidade de Bielefeld, Instituto Santa Fé, MITRE Corporation, Universidade de Michigan, New England Complex Systems Institute, Universidade de Brasília dentre outras.

Segundo Scott Page, no prefácio da obra, a complexidade intrínseca aos processos políticos e burocráticos envolvidos na formulação de políticas públicas e aos sistemas nos quais essas políticas são aplicadas, pode supor, de imediato, “que a complexidade obteria sua relevância por vontade própria. No entanto, não é o que ocorre” (p. 11). A multiplicidade de conceitos e ideias que compõem o pensamento complexo, e que poderiam enriquecer as políticas públicas, raramente é levada em consideração nesta área.

Partindo desse reconhecimento, o objetivo principal de Modelagem de sistemas complexos consiste em introduzir e explorar os principais conceitos, métodos e enfoques teóricos da complexidade, bem como verificar a maneira pela qual esta nova abordagem pode contribuir, significativamente, para as políticas públicas, que são um dos focos centrais do IPEA. A coletânea, portanto, propõe uma série de métodos para modelagem e aplicação de sistemas complexos voltados ao aprimoramento das políticas. Por sistemas complexos, a obra compreende “atores diversos e que se adaptam, que interagem com seus vizinhos e por conexões de redes” (p. 12). Desta forma, o livro parte de uma abordagem interdisciplinar, reunindo textos escritos por pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, como economia, geografia, física, engenharia da computação, estatística, ciência política.

Composta por 444 páginas, a coletânea está dividida em três partes. A primeira delas, Complexidade: teoria, métodos e modelagem, reúne artigos que conceituam a abordagem de sistemas complexos, suas possibilidades e limitações, métodos e metodologias de aplicação, bem como modelos de simulação e operacionalização desses sistemas para políticas públicas. A segunda parte, Objetos de políticas públicas e a abordagem de sistemas complexos, apresenta artigos, os quais discutem a natureza complexa dos sistemas sociais, adotando o meio ambiente, a economia e as cidades como objetos de políticas. A terceira e última parte, Aplicações de sistemas complexos em objetos de políticas públicas, reflete sobre a aplicação dos supracitados sistemas em políticas no Brasil e no mundo. Também são discutidas formas de aplicação de sistemas complexos para a criação de políticas na educação, no sistema jurídico legislativo, bem como no desenvolvimento sustentável regional.

Modelagem de sistemas complexos é, sem dúvidas, um livro referencial para aqueles que trabalham na área das políticas. No entanto, podemos apontar alguns pontos negativos a respeito da obra. Primeiramente, cabe salientar que, a nosso ver, boa parte das discussões apresentadas no livro restringe-se a uma abordagem rigorosamente técnica, limitando-se à apresentação de plataformas computacionais; ao uso de linguagem matemática para a análise de simulações operacionalizadas em computador; e a abordagens puramente econômicas aplicadas a questões complexas, como o sentimento de agentes sociais, por exemplo. Assim, de um modo em geral, parece-nos que o livro carece de uma reflexão sociológica mais aprofundada, que problematize, do ponto de vista teórico, questões sociais ou relacionadas à subjetividade dos agentes.

O segundo aspecto negativo, que destacamos, está diretamente vinculado à crítica mencionada acima. Como carece de uma reflexão sociológica mais aprofundada, preferindo uma abordagem mais técnica e aplicada, a coletânea não dialoga com autores fundamentais dos estudos sociológicos sobre complexidade. A principal ausência talvez seja a do sociólogo Niklas Luhmann, que não é citado em nenhum dos 17 artigos que compõem a obra. Luhmann pode ser considerado um dos pensadores sociais mais importantes da segunda metade do século XX e o principal expoente da Teoria dos Sistemas no âmbito das ciências sociais. Em sua vasta obra, o sociólogo alemão desenvolve uma teoria geral da sociedade, que tem como tema norteador a relação entre os diferentes sistemas sociais – política, economia, educação, direito – e a redução de complexidade do mundo.4

Além de Luhmann, também não são trazidos à discussão outros importantes autores que refletem, sociologicamente, sobre a relação entre complexidade, sistemas sociais e políticas públicas. Não são citados, por exemplo, os trabalhos desenvolvidos pelo Núcleo de Investigación en Sistemas Sociales y Complejidad Sociocultural – NISS, do qual fazem parte pesquisadores como Marcelo Arnold (atual presidente da ALAS5), Hugo Cadenas, Anahí Urquiza, Antonieta Urquieta, dentre outros. Vinculado à Faculdade de Ciências Sociais da Universidade do Chile, o NISS conta, inclusive, com uma linha de pesquisa intitulada Exclusión Social, Intervençión y Políticas públicas, que tem por referencial teórico a complexidade e a teoria dos sistemas sociais.

A nosso ver, reflexões sociológicas sobre complexidade, sistemas sociais e políticas públicas, como as desenvolvidas pelos autores supracicitados, enriqueceriam consideravelmente a coletânea organizada pelo IPEA.

1 Gratuitamente disponível para download através do link http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/150727_livro_modelagem_sistemas.pdf. Acesso em: 4 de dezembro de 2015.

2 O relatório Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, publicado em 2010, aponta classificação para 297 tipos diferentes de distúrbios psiquiátricos. A versão anterior, de 1994, apresentava apenas 106 transtornos. Ou seja, em seis anos, o número de transtornos psiquiátricos conhecidos aumentou mais de 180%.

3 Uma abordagem fundacionista é aquela que pensa a realidade em termos essencialistas. No caso do marxismo ortodoxo, o fundacionismo se manifesta no determinismo econômico presente na ideia de luta de classes e na relação base x superestrutura. No caso do estruturalismo e do funcionalismo, a dimensão de fundação está presente na forma transcendental como as noções de estrutura e sistema são abordados respectivamente.

4 Luhmann desenvolve uma análise teórica referencial, a qual se debruça sobre a relação entre a ascendente complexificação das sociedades modernas, o caráter contingente do mundo atual e o processo de diferenciação funcional dos sistemas sociais na tentativa de conter (minimizar) tal complexidade. Ao realizar essa análise, o pensador alemão mobiliza um poderoso aparato conceitual, no qual estão inseridas as noções de contingência, complexidade, risco, globalização, auto-organização etc.

5 Associação Latinoamericana de Sociologia.

Everton Garcia da Costa – Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Seus principais interesses de pesquisa estão nas áreas de Teoria Social Contemporânea, Sociologia da Educação, Estudos Sociais da Ciência, Epistemologia, Ciência e Tecnologia (C&T). [email protected]

Cad. CRH vol.28 no.75 Salvador Sept./Dec. 2015

Riqueza e miséria do trabalho no Brasil III – ANTUNES (CCRH)

Ricardo ANTUNES, Riqueza e miséria do trabalho no Brasil III. São Paulo: Boitempo, 2014. Resenha de: FESTI, Ricardo Colturato. Cadernos CRH, v.28 no.75 Salvador Sept./Dec. 2015.

O terceiro volume de Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil deu continuidade a um ousado projeto de pesquisa e reflexão realizado por dezenas de pesquisadores e estudantes e foi organizado e dirigido pelo sociólogo e professor da UNICAMP, Ricardo Antunes. Inicialmente intitulado “Para onde vai o mundo do trabalho? As formas diferenciadas da reestruturação produtiva no Brasil”, o projeto consolidou-se enquanto um trabalho coletivo de investigação teórica e empírica que, nestas duas últimas décadas, produziu inúmeras dissertações e teses acadêmicas, além de um amplo diálogo entre pesquisadores nacionais e estrangeiros, e resultou numa coleção que já publicou dois volumes.

O livro em questão está divido em três partes. A primeira, “O sistema global do capital e a corrosão do trabalho”, é dedicada às reflexões mais globais sobre as novas modalidades do trabalho no Brasil e no mundo. A segunda, “As formas de ser da reestruturação produtiva no Brasil e a nova morfologia do trabalho”, apresenta os resultados das pesquisas empíricas e analíticas sobre os vários ramos da economia, num esforço de compreender as particularidades da reestruturação produtiva do capital e suas consequências para o mundo do trabalho brasileiro. Já a terceira parte, “Os sindicatos na encruzilhada: ação e resistência dos trabalhadores”, reúne os artigos relacionados ao mundo sindical, aos movimentos dos trabalhadores e às suas reações a essas mudanças.

Umas das qualidades dessa coleção está na proximidade teórica encontrada na multiplicidade de textos, teses e opiniões, criando um fio condutor entre os autores e seus capítulos. Essa coerência teórica, nem sempre comum em coletâneas de textos, reflete uma posição metodológica e epistemológica frente à realidade concreta, entendida, não enquanto um caos incognoscível e explicável por tipologias externas à própria realidade, mas enquanto um movimento do real concreto, que pode ser explicado pelo cientista social a partir da abstração das totalidades parciais e dos complexos que compõem o todo, no caso, a própria sociedade capitalista. As determinações e mediações que compõem esse metabolismo social nem sempre são evidentes e, por isso, a teoria se confronta sempre com essa realidade na busca de sua afirmação/atualização.

Esse é o esforço de István Mészáros em “Marx, nosso contemporâneo, e seu conceito de globalização”, na primeira parte do volume III. O autor analisa, em seu artigo, alguns aspectos centrais do capitalismo contemporâneo, ressaltando a atualidade da teoria marxista. Também encontramos nos artigos de Alain Bihr, Jesus Ranieri, Patrícia Collado, Giovanni Alves e Caio Antunes um esforço em atualizar e problematizar alguns conceitos marxianos, tais como “trabalho abstrato”, “trabalho imaterial”, “fetichização”, “alienação” e “estranhamento”, a partir das novas questões postas pelo atual estágio da sociedade do capital.

Segundo Mészáros, há mais de três décadas o sistema capitalista tem-se mostrado incapaz de resolver (ou adiar) as suas próprias crises e contradições, tornando-as acumulativas e, portanto, estruturais. Essa crise não se resume à esfera econômica, mas “revela-se, certamente, como verdadeira crise de dominação em geral” (p. 29). A queda crescente da produtividade global e o aumento espantoso do desperdício, para a obtenção de maior acumulação de capital, são alguns aspectos da manifestação dessa crise estrutural. No mundo do trabalho, as consequências são devastadoras: a intensificação crescente do trabalho, o reaparecimento do “mais-valor absoluto” em países que incluem as “democracias ocidentais” (para não falar das periferias), o aumento das jornadas de trabalho (principalmente em países como Japão, Alemanha e Itália), o aumento do desemprego e da informalidade, a flexibilização das leis trabalhistas, a terceirização etc.

Nessa sociedade da “produção destrutiva”, o italiano Pietro Basso, em “A jornada de trabalho no início do século”, destaca e analisa os fenômenos do prolongamento das jornadas médias de trabalho e da emergência daquilo que Nilo Netto, outro coautor do livro, denomina de walmartização. Segundo Basso, se, nos anos 1990, o prolongamento da jornada média de trabalho ocorria por meio do recurso das horas extras – muitas vezes com o consentimento dos próprios trabalhadores e/ou seus sindicatos –, a partir dos anos 2000, passou a ocorrer, nos países de capitalismo avançado, como é o caso da França e da Alemanha, um aumento efetivo da jornada de trabalho.

walmartização, nome advindo das formas de relação de trabalho e gestão inauguradas pelo hipermercado Walmart, é uma combinação entre os elementos do velho taylorismo (altos investimentos tecnológicos e parcelamento das funções) e do toyotismo (o just in time e a obsessão do desperdício zero), acrescidos por um componente novo, que não estava presente em seus modelos genuínos: a baixíssima remuneração salarial dos empregados do hipermercado e de toda a cadeia de produtores e fornecedores. O mais dramático desse “modelo de gestão” walmartizado é que a precariedade de seus empregados se sustenta com a precariedade do conjunto da classe trabalhadora, pois esta, devido aos seus baixos salários, é a principal consumidora do Walmart.

A extensão dessa precariedade objetiva para uma precariedade que envolve a esfera da subjetividade é analisada pela socióloga francesa Danièle Linhart em “Modernização e precarização da vida no trabalho”. A autora elabora o conceito de precariedade subjetiva para explicar o fenômeno de mal-estar, sofrimento e insegurança verificados em trabalhadores assalariados de empregos estáveis, como é o caso dos funcionários públicos. Na sociedade contemporânea, afirma a autora, “o assalariado é um indivíduo, uma pessoa sozinha, sem ajuda, confrontado com imposições e ideais não ajustados às realidades concretas do trabalho” (p. 52). A precariedade subjetiva está, portanto, relacionada tanto com a perda de uma identidade de classe entre os trabalhadores quanto com o enfraquecimento da ação coletiva e sindical. Esses dois processos deram lugar, nas últimas décadas, a uma complexa relação em que o capital passou a mobilizar, canalizar e formatar, a seu favor, a subjetividade dos assalariados.

Por fim, ainda na primeira parte do livro, o texto de Patrícia Villen, inspirado nos trabalhos de Basso, recoloca o problema da imigração no Brasil a partir de uma perspectiva do trabalho. Sua preocupação expressa uma opção metodológica presente nesses três volumes: a necessidade de uma intersecção entre os estudos sobre o mundo do trabalho com outras áreas das ciências sociais, tais como gênero, raça-etnia, sexualidade, geração-juventude etc.

A segunda parte do livro, composta por dez artigos, constitui um mapeamento das formas de ser da reestruturação produtiva e da nova morfologia do trabalho no Brasil. Os textos expressam pesquisas empíricas feitas nos setores da construção civil, telemarketing e telecomunicações, educação, trabalho informal, trabalhadores da arte, agroindústria e hipermercados.

Sávio Cavalcante e Selma Venco nos conduzem a uma reflexão sobre os ramos de telemarketing e telecomunicações. O primeiro autor, em seu artigo “O setor de telecomunicações no Brasil: tendências da prestação de serviços e da situação do trabalho na década de 2000”, oferece-nos uma caracterização e um mapeamento dos estudos publicados ao longo da década de 2000 sobre as telecomunicações. Já Selma Venco, em “Novos contornos da divisão internacional do trabalho: um jogo de xadrez no planeta?”, analisa como as empresas de telemarketing, de desenvolvimento de softwares e de telerradiologia utilizam-se de uma força de trabalho qualificada e barata, encontrada em países da periferia, como são os casos do Brasil e da Argentina, para impulsionar seus lucros, criando, assim, novas formas de divisão internacional do trabalho.

O trabalho informal de rua é analisado por Bruno Durães num artigo resultante de uma pesquisa de fôlego realizada conjuntamente com as professoras da Universidade Federal da Bahia, Graça Druck e Iracema Guimarães. Entrevistando 191 trabalhadores de rua, a pesquisa abrangeu vendedores ambulantes, camelôs, taxistas, vendedoras de acarajé, motoristas de transporte escolar e trabalhadores autônomos. Esses trabalhadores se inserem, segundo Durães, “quase sempre em uma imediaticidade exorbitante”, tendo que vender algo hoje para comer amanhã, ou, simplesmente, vender hoje para pagar o que comeu ontem. A conclusão do autor é que esses trabalhadores de rua não são autônomos (como muitos deles se reconhecem), pois estão inseridos na condição de funcionalidade e subsunção ao capital, “na condição de trabalhador gratuito e de exército de reserva”.

O mundo rural, em particular a agroindústria, é objeto de estudos de três autoras. Maria A. de Moraes Silva reflete sobre a nova morfologia do trabalho nos canaviais paulistas, enquanto Maira Augusta Tavares expõe as consequências da intensificação e do prolongamento da jornada de trabalho nesse setor. Num terceiro artigo, Claudia Mazzei Nogueira analisa as condições de trabalho da Sadia/Brasil Foods no segmento avícola, no Oeste Catarinense. Ela demostra como a intensificação do processo de trabalho ocorre nesse setor, numa articulação das dimensões de gênero com a exploração do trabalho, numa evidente piora das condições de vida das mulheres.

Os leitores encontrarão, também, nesta segunda parte do livro, um artigo de Fábio Villela sobre o trabalho na construção civil e uma reflexão acerca do “intelecto coletivo”, conceito extraído dos Grundrisse de Karl Marx. Na área da educação superior, Maria Izabel da Silva, em colaboração com Nogueira, analisa o trabalho docente voluntário. E, por fim, Maria Aparecida Alves apresenta sua reflexão sobre a precarização do trabalho na área de apoio técnico aos espetáculos do Theatro Municipal de São Paulo.

Na terceira parte do livro, dedicada às ações e resistências dos trabalhadores, encontraremos artigos que analisam tanto os setores mais estáveis e tradicionais, de forte barganha sindical, quanto os novos e precários do mundo do trabalho e as suas dificuldades na impulsão das lutas sindicais no Brasil.

O artigo de Sidartha Sória, “Sindicalismo e fundos de pensão no governo Lula…”, aborda a formação de uma elite sindical que, desde o final do segundo governo de FHC, passou a defender ideologicamente e a gerir fundos de pensão como uma extensão das atividades sindicais no mundo financeiro. Advindos da burocracia dos sindicatos do setor bancário, mas, também, de telecomunicações e urbanitário, dentre outros, essa elite sindical se consolidou e se expandiu nos dois mandatos presidenciais de Lula, compondo, inclusive, parte significativa dos núcleos de decisões desses governos. O estudo de Sória contribui para uma reflexão mais ampla sobre os caminhos percorridos por um amplo grupo de militantes, que, no passado, compuseram o novo sindicalismo, mas que se tornaram, ao passar dos anos, similar ao que ocorreu com a direção majoritária do PT, em “serviçais qualificados do capital”.

Porém, se uma parte do sindicalismo se converteu, durante o lulismo, em acionistas do mercado financeiro, através dos fundos de pensão, encontramos, justamente nos setores mais precarizados e fragmentados da classe trabalhadora brasileira, novos potenciais de luta e resistência. Esse é o tema que tanto Ruy Braga como Paula Marcelino tratam em seus textos. Em “A formação do precariado pós-fordista no Brasil: limites do atual modelo de desenvolvimento periférico”, Braga, com seu conceito de precariado, busca compreender a forma de ser e agir da fração mais precarizada do operariado brasileiro, que, desde os anos 1950, tem como característica a sua inquietação social e política.

Por fim, vale ressaltar a importância política do artigo que abre o terceiro volume desta coleção, escrito por Ricardo Antunes e Graça Druck e intitulado “A epidemia da terceirização”. No momento em que o livro é lançado, em meio à maior crise política do governo Dilma Rousseff e de uma significativa ofensiva ideológica dos setores reacionários, o projeto do ex-deputado federal Sandro Mabel (PMDB), o PL 4330/2004, era aprovado na Câmara dos Deputados e seguia para apreciação do Senado. O artigo faz uma análise crítica ao projeto e alerta para o fato de que, caso ele seja sancionado, a precarização do trabalho no Brasil dará um salto significativo, com um aumento exponencial da terceirização em todos os níveis e setores. A escolha desse texto como abertura do livro revela o comprometimento político e social dos intelectuais que participam deste projeto acadêmico e sua clara opção por uma sociologia comprometida com a classe trabalhadora.

Ricardo Colturato Festi – Doutorando em sociologia. Professor de Sociologia do COTIL-UNICAMP. Pesquisa sobre movimento operário brasileiro e a problemática da consciência de classe. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em sociologia do trabalho, atuando principalmente nos seguintes temas: movimento operário, controle operário, marxismo, pensamento social. E-mail: [email protected].

A Estranha Derrota – BLOCH (CCRH)

Juarez José Tuchinski dos Anjos

BLOCH, Marc. A Estranha Derrota. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011. (167p.) Resenha de: ANJOS, Juarez José Tuchinski dos. Pela história e pela França. Cadernos do CRH, Salvador, v.25 n.64 Jan./Apr. 2012.

PELA HISTÓRIA E PELA FRANÇA: o testemunho de Marc Bloch

Ler Marc Bloch está entre os exercícios intelectuais que mais renovam o desejo de ser historiador. Por outro lado, é atividade que propõe constantemente um problema inerente ao ofício: o da responsabilidade que temos com os homens e mulheres do nosso tempo, junto dos quais, somos também atores do que um dia será, para outros historiadores, a história que buscarão compreender. Poucas vezes pensamos nisso. Num momento de crise, Marc Bloch pensou, com extraordinária sobriedade. Sua reflexão sobre a questão – ou antes, seu testemunho, como ele próprio preferiu chamá-lo – está agora disponível para os leitores brasileiros que acolhem a primeira tradução de A Estranha Derrota. Diferentemente da maioria das obras de Bloch, essa, a princípio, não é uma pesquisa historiográfica. Ao menos, no sentido de Os Reis Taumaturgos ou A Sociedade Feudal. Mas, sob outro prisma, toda ela é um escrito de história, na qual o autor é também ator, o historiador é, ao mesmo tempo, testemunha que pensa e interroga o próprio testemunho, por força da prática de um ofício onde aprendeu e ensinou a realizar a “triagem entre o verdadeiro e o falso; a olhar e observar muito” (p. 11). Como todo testemunho, esse teve também um contexto de produção que precisa ser visitado.

Entre julho e setembro de 1940, no começo do Regime de Vichy na França (o período em que o país esteve ocupado pelo exército alemão, com um “governo fantoche” centralizado na cidade de Vichy), Marc Bloch escreveu um testemunho sobre os eventos ocorridos nos meses anteriores: a guerra na França e a rendição de sua nação às tropas de Hitler. Embora ainda não estivesse sob ameaça direta, sentia – e isso se lê nas entrelinhas – que poderia ser uma das vítimas em potencial do poder contra o qual seu escrito era uma forma de reação. O manuscrito foi entregue a amigos seus, um dos quais precisou enterrá-lo no quintal de casa, para que não fosse destruído. Um ano depois de Bloch ter sido fuzilado, o texto foi, literalmente, desenterrado e entregue à sua família. A exemplo da Apologia da História, foi também transformado em livro, embora só tenha alcançado sucesso na década de 1990.

A edição brasileira consta de cinco partes. Além do escrito que lhe dá o título, contém outros três do punho de Bloch: o seu Testamento, redigido em 1941; as possíveis epígrafes por ele escolhidas para o prefácio de A Estranha Derrota e uma crítica em versos intitulada O General que perdeu seu exército. O texto que completa a obra é sobre Marc Bloch. Trata-se dos seus Elogios Militares¸ que pediu para serem lidos em seu funeral.

Sua preocupação, no primeiro capítulo, foi realizar a “Apresentação do Testemunho”, onde oferece elementos para a crítica do seu relato. Creio que tais elementos podem ser resumidos em quatro. Em primeiro lugar, trata-se do testemunho de um historiador que sabe que, em toda experiência histórica, e particularmente nessa em que foi ator, ninguém pode “pretender tudo ter observado ou conhecido. Que cada um diga francamente o que tem a dizer. A verdade nascerá dessas sinceridades convergentes.” (p. 31). Em segundo lugar, é o testemunho de um judeu “se não pela religião, que não pratico, aliás, como nenhuma outra, ao menos por nascimento” (p. 12). E prossegue, no mesmo momento em que o governo de Vichy se comprometia a entregar os judeus que viviam na França: “Só reivindico minha origem num único caso: diante de um antissemita.” (idem). A terceira credencial que o autoriza a testemunhar a derrocada da França está no fato de ser, também ele, francês, apaixonado por seu povo e seu país. “Nasci aqui, bebi na fonte de sua cultura, fiz do seu passado o meu, só respiro bem sob seu céu e tenho me esforçado, por meu lado, para defendê-la o melhor que puder.” (p. 14). Por fim, a credencial que lhe permitiu ser testemunha ocular, estar no front e nos bureaux: ser capitão do exército que, na guerra anterior, lutara por seu país e que, na Segunda, mesmo podendo ser dispensado pela idade, resolveu continuar (idem). Essas são, no seu conjunto, o que ele designa como “as delimitações de minha experiência”, onde, não obstante, pôde “observar no cotidiano os métodos e os homens” (p. 31). E é sobre esses homens e seus métodos que ele se propõe, nas duas partes seguintes, a testemunhar.

O segundo capítulo – O Depoimento de Um Vencido – faz análise incisiva das causas que levaram a França à derrota. De quem é a culpa? Do comando. Mas, como historiador, Marc Bloch delimita o que se esconde sob essa designação abstrata: “os erros de comando foram, fundamentalmente, os de um grupo humano” (p. 34). E esse grupo de homens foi cometendo uma série de erros e equívocos: escolha inadequada da estratégia de defesa (p. 44), má organização dos serviços de informação (p. 48), “pensamento em atraso” (p. 51), desperdício de forças humanas (p. 60), a aliança com a Inglaterra, frustrada pelo sentimento da anglofobia (p. 68), e o desânimo dos chefes (p. 104). Essas causas, no conjunto, têm origem no que ele define como uma grande crise de gerações que levou França a pensar que venceria a Segunda Guerra com as mesmas táticas e técnicas da Primeira, enquanto os alemães viviam a guerra servindo-se dos meios e recursos do próprio tempo. Assim, Bloch “testemunha”, reafirma aquilo que tantas vezes, como historiador, foi alvo de seus combates: o desconhecimento do passado e a incorreta compreensão da História como receita para o presente (contra a qual ele e Lucien Febvre lutaram durante suas trajetórias acadêmicas), impedem de viver e agir adequadamente nesse mesmo presente, “pois a História é, por essência, ciência da mudança. Ela sabe e ensina que dois eventos nunca se repetem de modo absolutamente igual, pois as condições nunca coincidem exatamente.” (p. 110). E arremata afirmando que o historiador “do mesmo modo, sabe muito bem que, se no intervalo de duas guerras seguidas, a estrutura social, as técnicas, a mentalidade se modificaram, as duas guerras jamais serão iguais”. (p. 111) Compreender o passado, assim, poderia ter ajudado os líderes da França a agirem de modo diferente, naquele presente. E terem, quem sabe, mais chances de êxito na guerra que precisaram travar.

O terceiro capítulo – “Exame de Consciência de um Francês” – trata daquilo que Marc Bloch considera “raízes de um mal-entendido grande demais para não ser incluído entre as principais razões do desastre” (p. 116). Ele passa a tratar da apatia do povo francês em face de um inimigo e de uma guerra que, desde o início, esteve fadada ao fracasso, pela falta de engajamento dos franceses, um mal entendido amor à Pátria (p. 129) – alicerçado na crença de que as cidades abertas seriam preservadas, as crianças seriam poupadas, as cidades patrimônio seriam preservadas, a paz seria alcançada se, simplesmente se rendessem – que apressou o fim de uma luta que mal começara. Bloch, que morreria vítima da guerra, não faz apologia da Guerra. Antes, mostra que ela, indesejada, deveria ter sido assumida para evitar o mal maior que a ocupação representou na França, situação em que “a sorte da França deixou de depender dos Franceses. (p. 156). E conclui: “Depois que as armas que não empunhamos com a necessária firmeza caíram de nossas mãos, o futuro de nosso país e de nossa civilização constitui exatamente o que está em jogo nesta luta, na qual não somos, na maioria, mais do que expectadores um pouco humilhados.” (idem).

Bloch lamentava, sobretudo, a humilhação de uma guerra que, agora, parecia-lhe, de fato, uma estranha derrota.

Como todo testemunho histórico, o texto de Bloch precisa ser relativizado no que diz respeito a uma visão bastante marcada pela experiência militar que o leva a ser tão exigente com os outros como, por hábito, o era consigo mesmo. Entretanto, A Estranha Derrota ainda conserva o vigor que motivou sua escrita: denunciar como, muitas vezes, a preguiça, a falta de comprometimento com as realidades nas quais estamos imersos, que produzimos e podemos modificar, podem ser o maior mal para a vida daqueles que amamos. A condição de ator histórico, que Marc Bloch destaca e propõe, é um desafio para todo historiador, que tem, por característica fundamental, se “interessar pela vida” (p. 11).

 

 

Recebido para publicação em 14 de julho de 2011
Aceito em 05 de outubro de 2011

Juarez José Tuchinski dos Anjos  Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná, na linha de História e Historiografia da Educação. Doutorando em Educação pela mesma universidade. Desenvolve pesquisas em torno das seguintes temáticas: História da Educação, História da Infância e da Criança, História das Práticas de Educação não escolarizadas. [email protected]

Acessar publicação original

CRH | UFBA | 1969

Caderno CRh2 CRH

Caderno CRH (1969-), uma revista de Ciências Sociais publicada a cada quatro meses, é organizada e editada pelo Centro de Recursos Humanos – CRH, em co-edição com a Editora da Universidade Federal da Bahia (Universidade Federal da Bahia). ) – EDUFBA. A revista abrange artigos de textos não publicados de reconhecido interesse acadêmico e tópicos atualizados sobre ciências sociais, nomeadamente ensaios bibliográficos e resenhas de livros publicados recentemente.

O Centro de Recursos Humanos é um órgão suplementar da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia; um centro interdisciplinar orientado para pesquisa, ensino complementar e extensão universitária (cursos de educação continuada) em áreas sociais. Criado em 1969, visa pensar criticamente sobre a natureza e o caráter do desenvolvimento brasileiro e suas heterogeneidades e especificidades regionais, em sintonia com os melhores pensamentos sobre as ciências sociais nacionais.

Em 2004, a revista foi consolidada como uma revista nacional de ciências sociais, sendo publicada a cada quatro meses. O alcance de seus objetivos acadêmicos foi mostrado pelo apoio que recebeu de uma representação significativa da academia nacional e internacional, que têm colaborado como autores, coordenadores de dossiês, revisores, leitores e membros do Conselho, que mostrou que  CADERNO CRH tem ultrapassou os limites restritos das instituições, sendo aberto à rede de colaboradores nacionais e centros estrangeiros, garantindo o processo regular de avaliação e seus padrões de publicação, apoiados por um grupo de revisão altamente conceituado.

A abreviatura de seu título é  Cad. CRH , que deve ser usado em bibliografias, notas de rodapé e referências e tiras bibliográficas.

Acessar as resenhas

Acessar dossiês

Acessar sumários

Acessar arquivos