A construção da memória da Revolução Cubana: a legitimação do poder nas tribunas políticas e nos tribunais revolucionários | Giliard da Silva Prado

“Vá pra Cuba! Vá estudar História!”, assim que o Prof. Dr. Jaime de Almeida inicia seu Prefácio para a obra do historiador Giliard da Silva Prado, A construção da memória da Revolução Cubana: a legitimação do poder nas tribunas políticas e nos tribunais revolucionários. Tal comentário e o tema do trabalho de Prado são profundamente atuais no contexto político em que vivemos. Numa intensa e fixa polarização da esquerda e da direita políticas os brasileiros estão cada vez mais sujeitos a optarem por um desses parâmetros. Uma das funções da historiografia, nesse debate, é apresentar que necessitamos avaliar cuidadosamente os elementos históricos que estão a nossa frente, construindo nosso pensamento crítico. A Revolução Cubana é um caso emblemático nesse debate, primeiro por conta do que sugere o comentário de Almeida no início, muito utilizado pelos que se reconhecem à direita ao clamarem o imperativo a qualquer indivíduo identificado como de “esquerda”. Segundo, pelo fato de que alguns historiadores julgarem que não podemos olhar criticamente os feitos da Revolução e do regime socialista que se implementou posteriormente a 1961, defendendo a ferro e fogo o governo e fazendo vista grossa para seus erros e tensões.

Como defendido por Prado (2018) na “Apresentação” de sua obra: “apontar os defeitos do edifício da Revolução Cubana não significa negar seus méritos”. A metáfora empregada pelo autor e que também nos apropriamos no título desta resenha refere-se ao processo de pesquisa de Prado e a seu produto final. Por meio de sua proposta (planta), analisando suas fontes históricas (matérias-primas) a partir do objetivo visado (edifício), Prado redigiu e finalizou seu trabalho (prazo de execução). Nas palavras do historiador (2018):

[…]este é um livro que trata da história da construção e da manutenção, ao longo de cinco décadas, do edifício da Revolução Cubana. Neste trabalho, eu vou além de simplesmente mostrar a fachada de um prédio que apresenta evidentes sinais de desgaste. Eu removo o revestimento das paredes e revelo ao leitor parte do que foi encoberto com o tempo. Demonstro os diferentes materiais com que foi feita essa construção e como foram sedimentadas determinadas memórias. (PRADO, 2018, p. 07)

Mas, então, o que a obra de Prado nos proporciona relacionado ao intenso debate que existe sobre a Revolução Cubana? Ele nos apresenta uma reflexão sobre alguns dos discursos da principal figura política cubana no contexto pós-revolucionário, Fidel Castro (Cuba, 1926-2016), para legitimar a Revolução e seu próprio poder frente a ela, apontando, assim, seus desejos implícitos e as memórias defendidas. Ao analisar os discursos de Castro podemos compreender parte da construção do “edifício” da memória da Revolução Cubana – que estruturou sua visão das políticas governamentais que executou e seus esforços de legitimação.

Historiador formado pela Universidade Federal de Sergipe (UFES) e mestre pela Universidade de Brasília (UnB), este livro é fruto de seu doutoramento em História também realizado na UnB (com estágio na École des Hautes Études en Sciences Sociales [EHESS]), defendido em 2013. O doutorado em questão concorreu ao Prêmio de Melhores Teses da ANPUH em 2015. De redação formidável, Prado, atual professor de História da América da Universidade Federal de Uberlância (UFU), traz um trabalho de grande relevância para a historiografia, contribuindo com uma reflexão que dialoga com as produções recentes de História de Cuba que analisam as produções oficiais do governo cubano pós-Revolução.

A pesquisa de Prado, realizada entre 2009 e 2013, e publicada como livro em 2018, também dialoga com a “era das comemorações” na América Latina (de 2008 a 2025), em razão dos aniversários de Independência de diversos países do continente e do centenário da Revolução Mexicana e cinquentenário da Cubana. Isto destaca ainda mais o livro de Prado por analisar um processo histórico que significou a transformação política, econômica, social e cultural de um país por um grupo que ainda detêm poder político e influência no contexto internacional.

A obra está dividida em quatro capítulos, além da “Introdução” e “Conclusão” e uma “Apresentação” do autor para seu livro e do prefácio de Almeida. Prado analisa, a partir dos conceitos de memória, de práxis e uso da linguagem, os discursos proferidos por Fidel Castro (e alguns de seu irmão, Raúl Castro [Cuba, 1931-]) nas comemorações das datas consideradas importantes da Revolução, com maior ênfase nas de 26 de Julho – data do ataque realizado pelo M-26 ao Quartel Moncada em 1952 –, considerada pelos guerrilheiros como o “início da luta insurrecional, caminho para a vitória”, e data escolhida para denominar o grupo de rebeldes liderados por Fidel Castro, Movimiento 26 de Julio (M-26), cujo ações acarretaram na Revolução em janeiro de 1959.

O historiador visa compreender como os discursos de Fidel Castro nas efemérides da Revolução (consideradas, pelo autor, como práticas) foram essenciais para definir os rumos do governo cubano. O autor discute o que foi defendido por Fidel acerca das relações dos EUA e URSS, como ambos países foram representados ao longo dos anos em tais discursos. Ainda, Prado destaca sobre determinados casos em que exguerrilheiros do M-26 e militantes do Partido Socialista Popular (PSP)1 foram posteriormente considerados “inimigos” do governo e, finalmente, submetidos a julgamentos utilizados como tribunas políticas de legitimação pelos Castro.

Introduzindo seu trabalho, Prado apresenta historicamente o processo da luta insurrecional empreendido pelo M-26 até a tomada do poder em janeiro de 1959, como também as questões e conceitos a ser desenvolvidos ao longo de seus quatro capítulos. Ao longo de toda sua obra, o autor salienta a importância dada pelo governo cubano, desde janeiro de 1959, para construir e legitimar a Revolução e a si próprio, elegendo determinando os indivíduos que deveriam ser consagrados como heróis e os locais marcantes do processo revolucionário a ser instituídos como lugares de memória, tais como museus e calendários celebrativos com as datas principais da guerrilha, como o já mencionado 26 de julho de 1952 (Moncada), mas também o 1º de janeiro de 1959 (tomada do governo pelos rebeldes) e 1º de maio (dia internacional do trabalho). Algo a ser destacado é que Prado disponibilizou uma tabela com todas as celebrações, o que permite uma leitura congruente para possíveis leitores que não sejam especializados no tema.

Em seu primeiro capítulo, “A gestão da memória da Revolução Cubana: nas comemorações do 26 de Julho”, Prado argumenta que o processo de legitimação da Revolução iniciou logo após a tomada do poder pelos rebeldes, assim como a seleção das datas que seriam relembradas e comemoradas. A data 26 de Julho foi considerada a mais significativa, chamada o dia da “rebeldia nacional” e os discursos de Fidel e Raúl Castro nessas comemorações foram palco de grande relevância para a construção dos significados da Revolução. Prado salienta a necessidade de compreender essas comemorações como templos de memória (que detêm grande força para construir memórias e representações à sociedade) que afirmavam a Revolução num estado perpétuo de construção.

Sobre a relação da Ilha com os EUA, em “O principal inimigo da nação cubana: os Estados Unidos”, o autor argumenta que esta não foi imediatamente negativa, mas começou a deteriorar-se após a declaração oficial de Fidel Castro em 1961 que a Revolução era de caráter socialista. Tal pronunciamento foi ocasionado em virtude dos eventos ocorridos dias antes na Baía dos Porcos, ação militar desempenhada pela CIA (EUA), que demonstrou a necessidade da defesa militar da Ilha. Segundo Prado, o discurso de Fidel quanto aos Estados Unidos pautou-se, essencialmente, em defender que Cuba estava em constante perigo dada a proximidade geográfica com os EUA e de seus possíveis ataques que poderiam ocorrer a qualquer momento. E, em função desse estado de alerta constante que Cuba deveria sustentar, determinadas ações políticas passaram a ser justificadas, como a militarização da população e aquisição de melhores armamentos.

Esse discurso esteve baseado num forte vocabulário bélico em que consideravam os EUA como “inimigo” (não ignorando, no entanto, que havia diferentes posicionamentos políticos e sociais sobre esse país) e também na formulação de representações – negativas ou positivas – de seus presidentes, a depender de suas posições políticas sobre Cuba (como de George W. Bush [mandato de 1989-93], republicano e anticomunista, ou Jimmy Carter [1977-81], democrata e mais cordial referente à Ilha, e o também democrata John F. Kennedy [1961-3], que organizou ataques armados como o da Baía dos Porcos).

No capítulo seguinte, “A instável amizade com a União Soviética”, o mais longo e bastante descritivo, são debatidas a relação entre a URSS e Cuba e suas alterações ao longo dos anos de 1959 até 2009, posto diferentes interesses e necessidades do governo cubano. Tal amizade iniciou-se com Fidel Castro afirmando manter grande distância ideológica da URSS, passando, posteriormente, à aproximação com a URSS em praticamente todos os aspectos devido às necessidades econômicas e de apoio militar contra possíveis investidas dos EUA e, finalmente, novamente criticando e afirmando possuir diferenças ideológicas com a URSS após a queda do bloco socialista em 1989-91.

Semelhante ao caso dos EUA, o vocabulário bélico foi recorrente nos discursos de Fidel, declarando a URSS como “amiga” da nação. O mesmo se observa quanto às representações positivas ou negativas dos principais políticos soviéticos (positivamente, no caso do bolchevique revolucionário Vladimir Lenin [1922-4] e, negativamente no caso de Mikhail Gorbachev [1988-91], responsável pela extinção da URSS em 1991). Relacionado ao contexto interno, Prado discute como Fidel Castro buscou retirar, ao máximo, militantes do PSP (que já possuíam grandes conexões com a URSS antes da consolidação da Revolução) da cúpula do poder e, assim, conduzir ele mesmo sua relação com a URSS.

No quarto e último capítulo, “Os inimigos que “traíram” a pátria: os dissidentes cubanos”, o historiador problematiza quatro casos em que os tribunais foram utilizados como tribunas políticas pelo governo cubano, referente a sujeitos que possuíam pensamentos políticos diferenciados do dos irmãos Castro e aparentavam desejar tomar o governo para si. Assim sendo, Prado analisa os casos contra exguerrilheiros do M-26 como “Huber Matos” ([Cuba, 1918 – EUA, 2014]) em 1959 e os “Ochoa” (Arnaldo Ochoa [Cuba, 1941-89]) e “Abrantes” (José Abrantes [Cuba, ?- 1991]) em 1989. E o caso dos militantes do PSP, “Marquitos” (de Marcos Rodríguez [Cuba, ?-1964]) e “Ordoqui” (Joaquín Ordoqui [Cuba, ?-1964]) em 1964.

Assim, Fidel (e Raúl) mobilizou acusações analisadas nos tribunais (como casos de traição ou corrupção) contra estes indivíduos para condená-los e, desse modo, retirá-los do alcance de qualquer tipo de poder de Cuba, seja por expurgo, prisão ou declarando e aplicando a pena de morte. Tais tribunais foram usados, portanto, tribunas políticas para legitimação política dos Castro, essencialmente de Fidel, que se autodeclarou como o principal juiz dos casos e pôde desprestigiar outros atores políticos que estavam relacionados aos réus e que desejava fora de Cuba.

O autor proporciona um estudo bem detalhado e rigorosa análise da documentação, no entanto, talvez pudesse ter empreendido um diálogo mais amplo com alguns trabalhos que apresenta em suas referências. No caso de Mariana Villaça, Cinema Cubano: Revolução e Política Cultural (2010), essa historiadora mostra que, apesar das censuras e controle estatal sobre as instituições cubanas, o Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos (chefiado por Alfredo Guevara [Cuba, 1925- 2013]) e a Casa de las Américas (presidida por Haydée Santamaría [Cuba, 1922-80]), ambos órgãos de grande importância no contexto cultural latinoamericano, desfrutavam de determinado poder político e não respondiam integralmente aos preceitos defendidos por Fidel em seus discursos. Prado argumenta ao longo de seu trabalho que os discursos de Fidel Castro eram inquestionáveis e, desse modo, não permitiam quaisquer tipos de diálogos ou ações individuais que fossem contra tais preceitos: vemos, por meio dos embates ocorridos dentro do ICAIC ou envolvendo a Casa de las Américas que negociações ocorreram. Os discursos foram essenciais para definir as ações do governo e a memória construída, todavia, o autor trata-as como irrefutáveis e incapaz de ser contornadas, e notamos, por meio dos trabalhos de Silvia Miskulin (2009; 2003), que resistências (individuais e coletivas) ocorreram no campo artístico e intelectual.

Também gostaríamos de apontar que Prado nomeia excessivamente Fidel Castro como o “líder da Revolução”. Ainda que a Revolução Cubana tenha esse caráter personalista, outros sujeitos atuaram junto a Fidel, e a repetição dessa alcunha de líder da Revolução parece fortalecer o discurso do próprio Fidel.

De todo modo, o “edifício” da memória da Revolução Cubana ainda não está finalizado e há uma ampla gama de abordagens que podem ser feitas pela historiografia. Ressaltamos que essa obra é de grande importância para os historiadores que pretendem compreender as formas de legitimação do governo de Castro. Também permite observar o que foi valorizado oficialmente, ao longo das décadas, o comportamento adequado que a sociedade cubana deveria possuir. O livro demonstra como, continuadamente, os historiadores não podem naturalizar os acontecimentos e discursos, mas sim fortalecer seu pensamento crítico, sem permitir que suas paixões deturpem seu olhar sobre Cuba, a Revolução e as imagens mitificadas dos heróis Fidel Castro e Ernesto “Che” Guevara (Argentina, 1928 – Bolívia, 1967).

Por fim, com o trabalho de Prado é possível responder a questão proposta por Almeida no Prefácio: “como ultrapassar a memória oficial da Revolução Cubana, modelada e difundida pelo núcleo dirigente, e tomar a experiência vivenciada pelas sucessivas gerações de cubanos como um problema a enfrentar com as ferramentas da historiografia?” Essa indagação não contempla apenas a obra em questão e pode ser inspiração para outros estudos compreender historicamente Cuba e sua história recente.

Nota

1 O PSP foi um dos primeiros partidos comunistas cubano, fundado em 1925. A união entre eles, o M26 e outros grupos, foi essencial para derrubar o governo de Batista em 1959.

Referências

MISKULIN, Sílvia Cezar. Os intelectuais cubanos e a política cultural da Revolução (1961-1975). São Paulo: Ed. Alameda, 2009.

______. Cultura ilhada: imprensa e Revolução Cubana (1959-1961). São Paulo: Xamã, 2003.

PRADO, Giliard da Silva. A construção da memória da Revolução Cubana: a legitimação do poder nas tribunas políticas e nos tribunais revolucionários. Curitiba: Appris, 2018. 300p.

VILLAÇA, Mariana Martins. Cinema Cubano: Revolução e Política Cultural. São Paulo: Alameda, 2010.


Resenhista

Carolina de Azevedo Müller – Mestranda em História na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) desde 2019. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

PRADO, Giliard da Silva. A construção da memória da Revolução Cubana: a legitimação do poder nas tribunas políticas e nos tribunais revolucionários. Curitiba: Appris, 2018. Resenha de: MÜLLER, Carolina de Azevedo. A construção do edifício da memória da Revolução Cubana. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Uberlândia, v. 17, n. 1, p. 418-424, Jan./Jun. 2020. Acessar publicação original [DR]

 

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