A Cultura no Mundo Líquido Moderno – BAUMAN (PL)

O autor Zygmunt Bauman (1925-2017) foi um importante pensador das dinâmicas sociais contemporâneas a partir da sua formação em sociologia e filosofia. Considerando-se um sociólogo crítico, seus estudos acerca da modernidade estiveram pautados no conceito – por ele cunhado – de liquidez, compreendendo que todas as relações no mundo contemporâneo são marcadas pela fluidez em contraponto à solidez presente anteriormente ao período do capitalismo industrial. De origem polonesa, o autor foi professor das universidades de Leeds e Varsóvia, tendo diversos livros publicados que visam explicitar e criticar a era da (pós-) modernidade e da globalização, tempo sinalizado pelo individualismo, a cultura do consumo, as relações líquidas e fluídas, entre outros aspectos.

No livro “A Cultura no Mundo Líquido Moderno”, Bauman traça um panorama histórico, presente e possível – porém imprevisível – futuro nas relações culturais que envolvem desde o surgimento do conceito de cultura enquanto uma missão de aculturação amplamente difundida pelos iluministas; até o surgimento de movimentos políticos como o multiculturalismo que relativizam as diferentes culturas existentes no mundo globalizado em prol dos interesses do capital mundial e do conforto de intelectuais. O autor leva em consideração as problemáticas envoltas à (i)migração, bem como a perspectiva da transformação da cultura em mercadoria juntamente à exacerbação do consumo, apontando possíveis soluções aos inúmeros entraves advindos do paradigma da modernidade líquida.

Assim sendo, o professor introduz o tema da cultura na obra a partir da trajetória histórica do conceito. Atualmente, a cultura é um bem que as pessoas anseiam consumir: da popular à erudita, sem distinção e/ou classificação, todos os tipos de cultura são bem-vindos no mundo líquido do consumo. Nesse sentido, Bauman afirma que em decorrência desse cenário houve o fim da hierarquia cultural antes instituída. Apesar disso, a elite cultural ainda existe, todavia com a nova característica onívora. Ser parte da elite cultural no século XXI significa poder consumir o maior quantitativo possível de culturas distintas.

No entanto, em períodos anteriores à contemporaneidade, a cultura foi tida como forma de recortar as classes por meio da distinção, em que cada classe possuía gostos e preferências culturais específicos do seu poder econômico e social. Com isso, o intercâmbio cultural entre dominantes e dominados não ocorria. Essa era a razão de ser da cultura, a mais importante de suas funções, ou seja, a cultura era um dispositivo útil para separar as classes e manter a estrutura social e, sobretudo, o status quo. A cultura, nesse contexto, regulava a sociedade a partir de significantes, separando o que era recomendável do suspeito e que, portanto, deveria ser evitado.

Nos primórdios do surgimento e consolidação do termo “cultura”, a mesma era tida como um instrumento a serviço dos iluministas para levar “luz” às sociedades, orientando a evolução social por meio da educação das massas com vistas a uma condição humana única e universal, baseada no eurocentrismo. Assim, definia-se a cultura como uma ação, uma missão que visava cultivar uma nova sociedade pautada nos princípios da cultura francesa, refinando gostos, costumes e regras das sociedades ditas “atrasadas”. As missões culturais aproximavam os ignorantes (base) da sociedade dos detentores do conhecimento (topo), na qual estes últimos esclareciam os primeiros com a educação, elevando e enobrecendo-os, instituindo uma nova ordem. Desse modo, o projeto iluminista conferiu à cultura a tarefa de cultivar e construir uma nova sociedade, a nação do antigo Estado Soberano que iria compor, por meio de uma nova ordem, o Estado-Nação.

As perspectivas de aculturação expandiram-se para diversos territórios e, dessa forma, povos foram colonizados enquanto a missão cultural tornava-se global baseada nos princípios do universalismo. Ancorada no argumento de que países desenvolvidos eram perfeitos e deveriam ser copiados como uma fórmula mágica, a missão proselitista objetivava salvar os homens “selvagens” da “barbárie”, homogeneizando o mundo. Como resultado desse processo, o Estado – Nação se fortaleceu através da formação de um corpo cívico cultivado e dos territórios conquistados, na qual a cultura transformouse em uma ferramenta de manutenção do equilíbrio do sistema e proteção do Estado, servindo ao status quo; passando da condição revolucionária à apaziguante conservadora.

Após desempenhar o papel de aculturação e dizimar inúmeras tradições de comunidades em nível mundial, a cultura em meio aos processos que tornaram a modernidade de sólida à líquida e fluída tornou-se uma ferramenta para atender às necessidades individuais, guiada pela moda. Neste sentido, no que tange à cultura, a modernidade líquida põe fim às tradições dado o seu caráter hereditário, homeostático, de sustentação de status quo e de manutenção, considerando que a cultura assume um caráter que foge às características típicas de legados.

Hoje, a cultura entra na lógica fluída do consumo, sendo oferta, produto, mercadoria, contrapondo-se às proibições, normas, padrões, regulações e exigências da tradição. A cultura na contemporaneidade seduz, propõe, semeia novos desejos e necessidades de consumo; estabelece novos cenários de mudança sem rumo e utopias (se opondo à missão iluminista), servindo a um mercado de consumo volátil que indica para as rápidas aquisições e descartes, de forma irresponsável e descomprometida.

Por conseguinte, a tradição é substituída pela moda em constante devir. Ademais, ser e pertencer à elite cultural significa não mais consumir a cultura erudita, mas sim, seguir fielmente e acriticamente a lógica de consumo em que há pouca seletividade e muita tolerância, marcada pela univocidade descolada de qualquer lugar no mundo e/ou ambiente cultural. A liquidez, as redes, flexibilidades etc. sobrepõem o pertencimento, a identidade, a lealdade e a tradição. A cultura global é, assim, a cultura do consumo, simultaneamente em que ocorre o consumo da cultura.

Deste modo, a cultura da modernidade líquida segue a uma tendência global de grande liberalização dos mercados com ofertas que promovem a circulação de produtos velozmente entre aquisição e descarte, orientados para consumidores. A cultura é atração renovada todos os dias para gerar novos consumos momentâneos, bem como desejos e necessidades intermináveis e insaciáveis. A mesma está subordinada ao que é moda no momento, pois tem clientes a seduzir enquanto função primordial. Assim, observa-se que nesse primeiro momento, Bauman coloca-se de forma crítica frente ao cenário cultural por ele descrito, reduzindo a cultura a elemento de consumo, ou seja, uma mercadoria produzida para clientes e consumidores, renegando as tradições e todos os modos antigos de se considerar a cultura, desde as missões iluministas até a função de manutenção do status quo.

Após a análise conceitual, a obra traz uma relevante e longa reflexão acerca da moda, as identidades líquidas e as utopias nos dias atuais. No que concerne à moda, Bauman realiza ponderações iniciais acerca desta enquanto fenômeno social em constante devir, mas sem perder o ímpeto das constantes revoluções quando ocorre a uniformidade. Isto porque a moda é guiada pela contradição entre os desejos de homogeneidade e heterogeneidade, ligados à segurança e a liberdade demandada pelos indivíduos. Visando atender aos anseios e exercer dominância, a moda está em constante negociação referente ao acordo entre igualdade social e isolamento individual. O acordo é revisto toda vez que algo é apropriado pela massa, necessitando assim de novos elementos únicos que, novamente serão apropriados; ou seja, o devir da moda é representado pelo ciclo da igualdade versus distinção.

Tal fenômeno exerce dominância exacerbada sobre a sociedade, pois quanto mais os indivíduos aderem a seus princípios, mais irregular e instável torna-se pela submissão à sua lógica, adquirindo legitimidade. Sob o comando da moda, os indivíduos e os grupos sociais são direcionados quanto ao que comer, ler, consumir, se portar, bem como adquirem tarefas que se referem à obtenção e adequação a um estilo de vida e atenção ao que é novo e atual. Estes, ainda devem estar sempre atualizados ao que é lançado no mercado, descartando velhos e adquirindo novos produtos, pois é através da aquisição e posse de símbolos que se referencia ao que o indivíduo “pertence”. Há uma grande pressão social para que os indivíduos sigam a moda, fazendo-se necessário a absorção de seus princípios para sobreviver no sistema e evitar o temido fracasso.

Em verdade, a moda é um processo constantemente excludente, na qual as pessoas a perseguem todo o tempo, porém, nunca a alcançam devido ao progresso da moda que está sempre um passo à frente com novas tendências que as pessoas tentam “incluir-se” para não serem excluídas socialmente. Para tal, o indivíduo deve revolucionar-se constantemente para estar de acordo com a moda e, por conseguinte, ao progresso que mantém a estrutura basilar do sistema em pleno funcionamento. A moda, assim como o acordo que estabelece com cada individuo nunca é, sempre se torna, ou seja, nunca estabiliza no tempo, tornando-se uma grande indústria que está a serviço do progresso, seguindo a atual lógica de consumo e, por isso, tem seu estado de devir mais intensificado para seguir sendo um dos motores da produção capitalista.

É nesse contexto que a cultura torna-se subjugada à moda que conduz os indivíduos a consumir identidades que se tornam líquidas pela velocidade com que são adquiridas e descartadas por meio de mercadorias-símbolo de estilos de vida. A partir disso, Bauman inicia uma análise acerca do surgimento das identidades fluídas enquanto decorrente da liquidez da cultura aliada ao devir da moda. As identidades fluídas são “camaleões” que se adequam ao ambiente como forma de sobreviver e de defesa por conta da cultura abrangente que impõe, aliada à ideologia do mercado, a lógica de rápidas aquisições e descartes de símbolos culturais em formato de mercadoria.

Assim, pessoas mudam de identidade – e estilo de vida – permanentemente em razão de se revolucionarem em busca de seguir as tendências da moda, obedecendo à cultura ou às multiculturas em voga do momento contemporâneo. Em verdade, a criação de uma cultura de identidades fluídas tornou-se essencial para uma economia orientada para o consumo, no qual essa perspectiva se conecta com a elite cultural onívora cultural que consome sem distinção como a nova concepção cultural diferente da anterior que buscava distinguir as classes. As identidades fluídas circulam entre os indivíduos, pois a moda dita a cultura do momento, apontando as identidades que as pessoas deverão absorver e se identificar.

Mediante esse contexto, a fuga torna-se um dos objetivos das pessoas para desligar-se da lógica perversa estabelecida, ou seja, fugir do dever imposto pelo capital de permanecer fiel à moda em busca de sobreviver e não fracassar. Bauman analisa ainda que, não há mais as utopias do passado como as que buscavam uma boa sociedade, mas sim, a tentativa de salvaguarda da fúria da moda, do progresso, do mercado e do capital no âmbito do espaço privado. A fuga torna-se a nova utopia em um mundo de consumo que causa um grande mal-estar nos indivíduos, esperando-se que esta traga a felicidade em meio a uma segurança com mais certezas do que incertezas. No entanto, essa utopia é privatizada1, desregulamentada e individualizada, diferindo da antiga que se constituía em um sonho de boa sociedade, ou seja, coletivamente e para todos.

Do lado oposto da fuga está a caça, atividade que, na visão do autor, é incessante na modernidade líquida, realizada pelos indivíduos como modo de fugir da/na complexa e infeliz realidade de mal-estar. A fuga e a constante caça, juntas, formam um contexto altamente paradoxal, todavia ambas são adotadas pelos indivíduos como modo de atingir a inalcançável felicidade em um mundo de incertezas, bem como um meio de não refletir a auto condição. As utopias da modernidade líquida, em suma, alienam os indivíduos no qual o único sentido de viver se dá através da prática do consumo (caça). Acríticos, irreflexivos, os indivíduos são infelizes, possuem identidades fluídas em decorrência de seguir ferozmente o devir da moda, consumindo as múltiplas culturas sem distinção e altamente relativizadas pelas era do multiculturalismo.

A caça é uma analogia ao consumo, uma forma de fugir do mal-estar através do entretenimento acrítico. Para amenizar as frustrações do mundo líquido, busca-se o consumo (caça) que, na verdade, nunca satisfaz e nem torna o indivíduo completo, mas sim, cada vez mais vazio e insaciável. É por meio dessa lógica que os indivíduos mantêm-se conformados em meio ao caos, na qual a ausência de reflexão por meio do consumo é uma ferramenta de manutenção do sistema e da ordem, impossibilitando revoluções. Por conseguinte, o sistema incansavelmente busca entreter as pessoas por meio da caça irresponsável e como única razão de viver e ser, a fim de impedir a condição crítica.

O caçador – indivíduo consumidor – na modernidade líquida está em constante devir, assim como a moda, sem tempo e espaço para desfrutar de todos os produtos e identidades adquiridas, pois é tentado para a próxima caçada. Não há a esperança do fim da caçada, apenas a sua manutenção enquanto utopia, porém, uma utopia estranha, pois não há um fim estabelecimento a ser alcançado, mas sim o desejo de que o processo perdure. Ao invés de buscar a utopia, vive-se nela. Ou seja, não há a pretensão de mudanças, experiências futuras e mudança do tempo presente como as antigas utopias fundadas em um futuro melhor com pontos e objetivos a alcançar. Vive-se na “mudança” (não) esperada. Não há mais esperança de superação, afinal os indivíduos estão demasiadamente ocupados com a caça para pensar em utopias. De fato, todos estão alienados e presos à lógica da caça, em que o desprendimento com vistas à construção de uma utopia coletiva geraria aos indivíduos altamente individualistas uma exclusão, sanção e sentimento de derrota, inferioridade e fracasso em função dos demais que não parariam a caçada de consumo.

Após a argumentação apresentada por Bauman para justificar seu posicionamento acerca da existência das identidades fluídas e líquidas no mundo contemporâneo baseado, sobretudo no fenômeno da moda e das utopias; o autor passa a discutir o fenômeno cultural desde a construção do Estado-Nação ao mundo globalizado, pretendendo fazer uma análise das mutações que ocorreram ao longo dos anos. Parte-se do cenário sólido e homeostático da cultura destituído com a globalização, mas altamente valorizado pela funcionalidade e a essencialidade que a cultura trazia a partir das suas funções naquele momento – alimentar o status quo e manter a distinção de classes. No entanto, esse contexto é modificado por um conjunto de fatores, dentre eles os processos de imigração que ocorreram desde o mundo sólido ao líquido, culminando no multiculturalismo.

A migração moderna em massa ocorreu como parte da modernização, dividida em três fases distintas compondo a história dos processos migratórios de pessoas tidas como dejetos da criação da ordem e do crescimento econômico. A primeira fase constitui-se no movimento de povos europeus às terras vagas. Nações foram dizimadas e aculturadas com novos “cultivo” através da “missão do homem branco”. A segunda fase se deu através da migração de retorno dos colonialistas juntamente aos colonizados nativos de diferentes níveis culturais. Estes se estabeleceram em cidades nas quais os imigrantes deveriam se adaptar e assimilar-se à cultura posta, ou seja, ajustar-se à visão de mundo local que visava unificar a nação sob a égide do Estado Moderno. Assim, as minorias – agora compostas pelos imigrantes – foram submetidas a processos de aculturação das missões proselitistas de cultivo.

Por fim, a última fase da migração, ainda em voga e ganhando força, é chamada pelo autor de “a era das diásporas”. Nessa etapa há uma grande mistura de religiões, etnias, línguas que se encontram em arquipélagos de colônias conduzidas pela lógica da redistribuição dos recursos vivos em meio à queda das fronteiras dos Estados soberanos fruto da globalização, compostos por indivíduos que buscam a sobrevivência. As diásporas se espalham por todo o globo em diversos territórios ditos soberanos, diferindo tal migração das anteriores em decorrência dos muitos caminhos possíveis com risco das armadilhas de cidadania e lealdade dupla. Não há mais território certo para os migrantes se destinarem, pois os caminhos da migração estão em constante devir, abertos, fechados e reabertos.

A terceira fase da migração associada às diásporas tornaram questionáveis as relações entre identidade e nacionalidade, pois não há mais uma identidade específica que o indivíduo vai adquirir e auto pertencer por ter nascido e/ou sido criado em determinado local. Nesse sentido, o conjunto de fatores que impulsiona a migração resulta no crescimento das diásporas étnicas, nas quais as pessoas (minoria étnica) lutam para se adaptar à cultura do país-destino e os nativos para se habituar a viverem rodeados de diásporas. Por conseguinte, ambos têm de lidar com realidades desfavoráveis, em que não se possui controle. Os modos de vida (culturas e identidades) coexistem sem direção estabelecida, entrando oras em conflito, oras em intercâmbio, em que a hierarquia cultural é substituída pela disputa pelo direito à diferença, todavia sem solidariedade mútua, no qual o futuro torna-se imprevisível.

Não obstante, há poucas políticas públicas e agentes políticos realmente interessados em pôr fim aos problemas culturais isolacionistas (que separam nativos e imigrantes em aglomerações étnicas), pois há como pano de fundo a estratégia de ocupar o proletariado com as disputas pelo direito à diferença em pequenas guerras entre si que evite a reflexão, a união o conseguinte questionamento dos super ricos, mantendo-os no poder. A ausência da solidariedade mútua impede que as comunidades se unam contra o poder global desengajado e distante, circulantes por todo o território mundial sem exercer qualquer tipo de responsabilidade com as questões locais, deixando para o proletariado a tarefa de superação, cura e limpeza das guerras promovidas pelos agentes do capital mundial. A facilidade de deslocamento da elite global ocorre em grande medida pela discordância entre a camada composta pela classe subalterna que se dispersa e permite que suas forças de luta se esvaiam para lutar por direitos, postos de trabalho, contra a exploração dos recursos naturais etc., abrindo espaço para o grande poder se apropriar de tudo e elevar seus padrões de acumulação, tornando os ricos mais ricos, e os pobres mais pobres.

Além disso, há para além dos supracitados a problemática disseminada pela esquerda cultural relacionada à desigualdade – ocasionada em verdade pela má distribuição de riquezas e recursos – como algo intrínseco à diferença cultural e às escolhas humanas em seguir alguma cultura desprivilegiada, dotando os super ricos de pouca preocupação; escolha essa protegida pelo direito à diferença, tolerância mútua e a aceitação de toda diversidade cultural digna de proteção e respeito. O multiculturalismo substitui a ideia de que há uma hierarquia cultural, para a de que há culturas diversas que devem ser respeitadas e toleradas à sua maneira “original”, isto é, se pobres continuar pobres; e se ricas, continuar ricas e pertencentes à antiga elite. Sem perspectivas de ascensão, há uma extensa relativização das (sub) condições de vida dos grupos desfavorecidos culturalmente.

Desta forma, ao invés de buscar-se a superação da desigualdade material e social, torna-se indiferente à realidade de diversas culturas “em prol” da defesa das múltiplas identidades culturais, entendendo que a condição material e social está e é indissociável de tipos específicos de cultura, compondo as suas características que devem ser vangloriadas, segundo o multiculturalismo. Todavia, nos bastidores há um singelo interesse dos poderes globais para que as atuais condições se mantenham exatamente da maneira que estão, ou seja, que as minorias étnicas e as disparidades existentes entre estas e as classes “superiores” não sejam reduzidas e/ou superadas, enquanto forma de manutenção da ordem vigente e dos privilégios.

Neste sentido, retira-se a responsabilidade dos super ricos do poder global de atender e melhorar a condição de vida dos habitantes de determinada comunidade, pois se entende que a pobreza é algo intrínseco à cultura e deve ser mantido e relativizado, isto é, outros padrões de vida não devem se impor àquela cultura nativa. Ademais, a pobreza é vista como parte da cultura e um apelo estético do movimento urgido. Portanto, o debate para elevar o nível de vida desses indivíduos deve ser evitado, segundo a esquerda cultural que são, na visão de Bauman, os modernistas sem modernismo.

O multiculturalismo disseminado pela esquerda cultural é contraditório, pois influi em tendências separatistas e conflituosas entre as diferentes culturas tendo como cerne a migração, impossibilitando o diálogo multicultural em que cada indivíduo e grupo social acobertam-se na sua própria cultura com suas próprias condições “intrínsecas”, sem apropriação de alheias. Embora o multiculturalismo promova em discurso a coexistência mútua e harmoniosa entre as diferentes culturas, não há propostas de intervenção a fim de promover a solidariedade. Tem-se, nesse contexto, a indiferença à diferença como aprovação do pluralismo cultural, cunhada pelo multiculturalismo, prática política que representa essa teoria e corrente de caráter liberal por meio da tolerância às identidades e culturas escolhidas ou herdadas.

Embora com caráter de modernidade, o multiculturalismo tem caráter conservador de engessar, cristalizar e cimentar as culturas sem oportunizar a ascensão a fim de manter as identidades vivas e fomentar a diversidade. No bojo dos conflitos, o multiculturalismo é usurpado pelas forças globais, agindo em prol da globalização perversa e selvagem, tornando-se argumento para o poder global ocultar e camuflar seus impactos e ações que geram impactos negativos diversos. As desigualdades das condições de existência a partir da perspectiva multicultural são justificadas não mais pela inferioridade inata da raça, instituído pela hierarquia cultural, mas sim pelo resultado de múltiplas escolhas no que concerne ao estilo de vida, ora, o “direito à diferença”.

No entanto, é fatídico que muitos indivíduos estão fadados às escolhas realizadas pelos poderes superiores, abstraídas as predileções ao que é imposto pelo local de nascimento, como exemplo de critério. Nesse sentido, os indivíduos devem padecer das suas próprias escolhas. Esse novo multiculturalismo visa demonstrar que a desigualdade humana deve ser aceita pela consciência moral coletiva como algo e um fato que está além de qualquer possibilidade de intervenção, como uma condição que não deve ser modificada em decorrência do venerável valor cultural, em prol da diversidade.

Em suma, o multiculturalismo enquanto ideologia do fim da ideologia é visto pelas classes instruídas – intelectuais e elite cultural – como solução para o mundo moderno das diásporas por sua capacidade de relativização e de isenção de incumbências. A ação do multiculturalismo se dá por meio da negligência à situação de cada grupo social, dando-lhes a responsabilidade de desatar seus próprios nós. Por conseguinte, cada ser dentro da sua individualidade deve buscar elucidação aos próprios obstáculos (socialmente criados) sem esperança de auxílio do desmontado Estado de bem-estar social. Bauman critica severamente a posição dos intelectuais que, em busca de fama e poder, ocultam assuntos e se isentam de pensar, refletir e intervir sobre/na sociedade contemporânea. Deste modo, são junto com as forças econômicas extraterritoriais igualmente culpados e negligentes com problemas sociais e culturais que agonizam por todo o mundo.

A cultura num mundo de diásporas, apresentada por Bauman no quarto capítulo da obra, está imersa em uma sociedade marcada pelo excesso de escolhas e opções aos indivíduos; ininteligível, imprevisível, livre e indiferente ao que o bem e o mal. Individualmente ou em parcerias, as pessoas fazem suas próprias escolhas ao próprio rigor e argumento; sem questionamentos, deixando que as consequências e resultados das opções tomadas sigam seu próprio caminho, sem intervenções. A sociedade, nova administradora da vida moderna, delega ao individuo a responsabilidade por seus próprios desafios de vida, bem como para administra-la sozinho.

A partir da liberdade pelas escolhas culturais realizadas, observou-se que isso implicava em duas premissas: que as pessoas passam a ter o direito de ser diverso – o direito à diferença – e, também, o direito de indiferença à diversidade dos outros. Nesse ponto, Bauman retoma a crítica ao multiculturalismo no que tange aos conflitos que se estabelecem entre as culturas contrariando o diálogo multicultural que deveria haver, na qual as culturas apenas coexistem, mas não dialogam e/ou obtêm benefícios e prazer com a existência múltipla.

Enquanto solução para o embate que existe dentro da perspectiva da pluralidade cultural, o autor sinaliza para uma definição mais clara do direito à diferença, reforçando a necessidade de um processo político de reconhecimento cultural que aplique igual valor ao teor de cada costume e criações das diferentes culturas. Após a evidência de que uma cultura merece sobreviver, não haverá dúvidas de que a mesma e sua diferença deve ser preservada para o futuro em que tal processo deve ocorrer cabendo, de um lado, respeitar o direito de uma comunidade de salvaguardar seu modo de vida das pressões oriundas do governo em termos de aculturação, atomização e ou assimilação; bem como, o direito de autodefesa do individuo em relação a membros do interior da comunidade que possuam autoridade e queiram impor e/ou sucumbir o direito de escolha, coagindo-o a aceitar opções indesejadas. Constatando que o equilíbrio entre essas duas facetas é altamente complexo, propõe-se que a discussão seja alicerçada constitucionalmente, em que a universalidade e respeito aos direitos dos indivíduos são basilares para qualquer processo político de reconhecimento cultural democrático e sensato.

Ademais, com vistas a findar com as perspectivas isolacionistas, alienantes e segmentadas da cultura que colocam comunidades (nativos e imigrantes) em conflito no bojo do multiculturalismo em decorrência de sentimentos de ameaça e incerteza, Bauman cita a necessidade de segurança e autoconfiança em meio ao “torvelinho global” enquanto condição essencial para o diálogo entre as diferentes culturas. Todavia, o multiculturalismo não permite que as pessoas foquem suas atenções e energias para averiguar as causas e raízes da incerteza que instalam o sentimento de rivalidade entre as comunidades; mas sim, que os indivíduos e seus respectivos grupos estejam em constante planejamento da próxima guerra e futuros choques nos campos de batalha multicultural, conflitos que são vantajosos e rentáveis para as forças do poder global, conforme discutindo anteriormente.

Em verdade, pretende-se que a cultura seja defendida sob o aspecto das cruzadas culturais e perspectivas homogeneizadoras opressoras (missões proselitistas de cultivo do Estado nação e moderno) e da indiferença cruel e arrogante do não engajamento e do distanciamento (multiculturalismo da modernidade líquida globalizada). Assim, ao estabelecer um equilíbrio, sobretudo através do diálogo, pode-se haver o debate entre as culturas e suas características, não eximindo que méritos e defeitos das diferenças podem ser apontados para chegar a um acordo sobre o reconhecimento.

Baseado nesse pressuposto, Bauman em “A cultura numa Europa em processo de unificação” discute, de modo particularmente ufanista, o continente europeu enquanto grande exemplo a ser seguido pelo mundo (eurocentrismo pós-moderno?), considerando que é hoje um grande mosaico de diásporas que teve de se adaptar às diferenças envoltas ao conviver com o Outro. Deste modo, os demais países do mundo devem buscar a solução dos problemas da cultura no mundo líquido na solidariedade calorosa e amizade sem abandonar a distinção, tendo por inspiração a herança comum europeia. No entanto, as afirmações de Bauman quanto à hospitalidade dos europeus frente ao outro diferente leva a questionamentos no que concerne aos progressos migratórios contemporâneos, principalmente no que concerne à recepção das diásporas advindas de guerras, como os refugiados da Síria, em que diversas polêmicas circundam a denominada pela mídia “crise dos refugiados”.

Finalmente, no último capítulo de sua obra, denominado “A cultura entre o Estado e o Mercado”, Bauman traz inicialmente a perspectiva administrativa do Estado francês sobre a cultura, que visava o pluralismo incentivando de diversas formas iniciativas de grupos e artistas culturais. No entanto, uma relação paradoxal se estabeleceu entre os gerentes públicos da cultura e os artistas, nas quais ambos aspiravam resultados opostos quanto à cultura e, portanto, estavam em constante conflito e antagonismo. Apesar disso, ambos – artistas e gerentes do Estado – são dependentes uns dos outros não sendo possível apontar solução para o conflito de interesses.

Com a chegada da modernidade líquida, os gerentes estatais são trocados pelos agentes do mercado que atribuem novas funcionalidades e utilidades à cultura com base na lógica do consumo com todas as premissas agregadas, como a transformação da cultura em mercadoria – bens de consumo –, ditando como se dará as criações artísticas. Nesse contexto, as galerias de arte são substituídas por eventos efêmeros, voláteis, que promovem o consumo rotativo com a exacerbação do lucro, fugindo ao próprio sentido e natureza da criação artística. Assim sendo, são os clientes e seus saldos bancários que decidem o futuro e o destino dos produtos culturais, na qual a linha que divide uma arte boa ou ruim está ligada diretamente ao seu saldo e estatística de venda, bem como ao lucro obtido.

Diante disso, Bauman aponta para uma série de questionamentos acerca do futuro da cultura relacionada aos impactos que a mudança de gerência poderá causar, bem como se a cultura sobreviverá ao cenário multicultural do consumo e da liquidez. Sem respostas, o autor apenas analisa que o patrocínio pelo Estado da cultura não o salvou da desregulamentação e privatização de funções relacionadas às artes, tendo a administração concernente à cultura sendo repassada aos poderes do mercado. No entanto, Bauman não exime o Estado cultural de cumprir alguns papéis, como por exemplo, de estar inclinado à promoção das artes, fortalecendo o encontro entre artistas e seu público (consumidor contemporâneo) e patrocinando a criatividade cultural que demanda urgentemente de subsídio.

Por fim, diante do exposto e versado por Bauman durante os seis capítulos de sua relevante obra para refletir o cenário cultural contemporâneo, conclui-se que a cultura no mundo líquido moderno globalizado – sob a égide da lógica do mercado de consumo que dizima hábitos, costumes, a essência da arte, transformando-a em mera mercadoria a ser adquirida e rapidamente descartada; bem como considerando os movimentos do multiculturalismo que dissemina impulsos de relativização conferindo (mais) benefícios aos poderes globais – faz emergir uma grande incógnita para as próximas décadas no que tange ao futuro da cultura e os impactos que serão percebidos adiante. Nesse sentido, o otimismo é escasso ao averiguar que a cultura alicerçada nos princípios do liberalismo e da globalização traz um conjunto de problemáticas, paradoxos, contradições e antagonismos que descartam qualquer previsibilidade, mas que, decerto são cenários que não devem ser negligenciados.

Nota

1. Em diversas apresentações públicas, Bauman tem apontado para essa perspectiva acerca da utopia, como pode ser visto na entrevista por ele concedida à Grifa Filmes. Disponível em: http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,a-utopia-foi-privatizada-afirmou-zygmunt-bauman-ementrevista-inedita,70001669976. Acesso em 03 de março de 2016.

Larissa Prado Rodrigues –  Graduanda em Turismo/UFS. E-mail: [email protected]


BAUMAN, Zygmunt. A Cultura no Mundo Líquido Moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. Resenha de: RODRIGUES, Larissa Prado. A cultura no mundo líquido moderno: das missões proselitistas iluministas ao multiculturalismo. Ponta de Lança, São Cristóvão, v.10, n. 19, p.166-179, jun/ dez, 2016. Acessar publicação original [DR]

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