A descoberta do homem e do mundo | Adauto Novaes

descoberta do homem e do mundo é o resultado do primeiro ciclo de conferências promovido pela Funarte sobre os quinhentos anos do descobrimento do Brasil. Segundo o organizador do evento e do livro, Adauto Novaes, até o ano 2000 três outros ciclos completarão a série de palestras sobre o mesmo tema.

A partir do título, pode-se já perceber que a descoberta em questão constitui não apenas a do Novo Mundo e de seus habitantes, conseqüência imediata das grandes navegações, mas igualmente a descoberta de um homem novo a habitar o mundo velho. Dizendo de outra forma: os descobrimentos e o nascimento da modernidade são facetas de um mesmo tempo de passagem, quando o homem europeu descobre-se — ao desvelar a América —, e inventa-se civilizado — ao construir o discurso sobre a diferença, concretizada no selvagem. O ponto de partida da coletânea e de todo o projeto parece então ser o de reforçar claramente a relação existente entre modernidade e descobrimentos, ao ponto de tomá-la quase como natural, suficiente e necessária.

Vista da perspectiva do nosso tempo, quinhentos anos depois dos eventos, depois dos adventos do iluminismo, da revolução e do capitalismo imperialista, depois das ciências naturais, da antropologia, da corrida espacial e da tecnologia de informação, aquela relação entre os dois pólos da equação parece mesmo ser natural. Talvez não fosse exatamente assim para os homens de 1530 ou 1540, quando, apesar de já desvelado todo o orbe, o sentido de modernidade parece ser ainda mais afim da redescoberta dos textos antigos do que dos relatos dos navegadores, e o impacto da transformação geográfica do mundo parece não ser ainda sentido pelos que se consideram modernos.1

Seja como for, o livro assume em grande medida a afirmação nietzschiana, retomada por Benjamim, de que a história deve servir ao presente. Em última instância, essa perspectiva está perfeitamente de acordo com um projeto que quer se debruçar não apenas sobre o momento da descoberta do Brasil, mas sobre os quinhentos anos de desdobramentos. O único problema de submetermos a história aos anseios do presente é o de eventualmente perdermos a perpectiva que os homens do passado tinham sobre o seu próprio tempo, e assim projetarmos sobre eles, assumindo-as como se fossem deles, questões que pertencem ao nosso tempo. Todos os autores integrantes do livro, em maior ou menor medida, enfrentam este desafio, e o resultado constitui um painel bastante interessante sobre os possíveis encaminhamentos para o problema.

O volume traz uma introdução do organizador e 22 artigos de pensadores e críticos advindos do campo da história (em suas vertentes social, política, econômica e cultural), e também da filosofia e da crítica literária. Como três outros ciclos de palestras parecem estar programados (o que deve resultar em três outros volumes), este primeiro livro da série intenta dar uma visão a mais ampla possível sobre o tema, com o intuito de formular as bases a partir das quais trabalhos mais específicos, e mesmo monografias pontuais, possam ser desenvolvidos nos próximos livros. Esse objetivo não foi de todo alcançado, mas falemos antes do muito que o livro alcança, e da enorme riqueza das análises que ele nos traz.

Muitas são as entradas possíveis para um volume tão variado como este. Creio que há pelo menos dois vetores que podem dirigir a nossa leitura. Um primeiro vetor, horizontal, nos é dado pela seqüência dos artigos, a qual, conscientemente ou não, parece dispor os assuntos em uma ordem de importância derivada da metáfora marxista do edifício social. Ou seja, ultrapassada a leitura dos capítulos introdutórios, que trazem as disposições gerais sobre o tema dos descobrimentos e sobre os contextos sócio-históricos de Portugal e de toda a Europa, a aventura da descoberta do homem e do mundo revela-se ao leitor primeiramente a partir dos seus fundamentos econômicos e materiais, para daí passar ao enredo político e à superestrutura ideológica.

Esse vetor horizontal de leitura apresenta-nos então cinco movimentos distintos, que podem ser assim vistos de acordo com a própria seqüência dos autores: a) os textos de Gerd Bornheim e Vitorino Magalhães Godinho instauram o primeiro movimento, onde se investiga o conceito mesmo de descobrimento; b) Bartolomé Benassar, Luís Krus, Maria Helena da Cruz Coelho, João Marinho dos Santos, Humberto Baquero Moreno e José V. de Pina Martins trazem-nos as disposições gerais do Portugal medieval e renascentista, no que concerne ao estatuto da geografia, do imaginário sobre o mar, da ideologia da expansão, dos primeiros sinais da modernidade e do papel do humanismo na cultura portuguesa. Esses são artigos de fundo, que não atacam ainda a questão diretamente, mas sedimentam o caminho para o leitor; c) o terceiro movimento se constitui pelos trabalhos de Luiz Felipe de Alencastro, Francisco Contente Domingues e Paulo Miceli, que atacam o problema pela via dos seus fundamentos e materiais, com atenção ao desenvolvimento das técnicas de navegação e ao dia-a-dia no mar; d) o quarto movimento apresenta-nos os embates políticos em torno dos descobrimentos, com os artigos de Jean-François Courtine, João Adolfo Hansen, Eduardo Subirats, Newton Bignotto e Maria das Graças do Nascimento, os quais nos trazem desde as reflexões de Francisco de Vitória até os posicionamentos políticos de Vieira, passando pelo debate de Valladolid, entre Las Casas e Sepúlveda, bem como pelo pensamento de Maquiavel e Erasmo em torno aos descobrimentos e à modernidade; e e) o último movimento delineia-se com os textos de Jean Delumeau e Marilena Chauí, os quais nos revelam a profunda implicação ideológica do milenarismo de Joaquim da Fiori para os descobrimentos, seja como fundamento para o pensamento de um Colombo ou um Vieira, seja como elemento integrante dos conceitos-chave de Novo Mundo e de progresso, constituintes das ideologias nacionais americanas. O livro traz ainda quatro autores com textos pontuais, que são como que interlúdios entre esses movimentos: Frank Lestringant, sobre a França Antártica dos huguenotes; Luís Filipe Barreto, sobre a imagem do Oriente no Portugal do século XVI; António Borges Coelho, sobre o papel dos cristãos-novos e dos judeus nas descobertas; e Jorge Coli, sobre a “invenção” pictórica dos descobrimentos no século XIX brasileiro.

Um segundo vetor de leitura, vertical, organiza os textos com base em dois eixos paralelos, dados pelos artigos de Bornheim (‘A descoberta do homem e do mundo’, que empresta título ao livro) e de Magalhães Godinho (‘Que significa descobrir?’). O primeiro autor dá o tom para os textos que pensam o conceito e o ato de ‘descobrir’ mais a partir dos seus desdobramentos (que nesse contexto constituem o nascimento da modernidade) do que a partir das descobertas em si mesmas. Godinho, ao contrário, enfoca o descobrir através da aventura das navegações, considerada como construção de novos conceitos de espaço e tempo. Em uma proporção de praticamente um para um, os textos dividem-se entre os que enfocam a modernidade e os que enfocam os descobrimentos; entre os que se dirigem à descoberta do Novo Mundo e de um novo homem (o selvagem), e os que se dirigem à descoberta de um mundo novo (universal) e de um homem novo (marcado pelo espírito crítico e pela consciência da alteridade).

Faces de uma mesma moeda, os textos de Magalhães Godinho e Bornheim espelham-se e se completam, construindo entre os dois grupos de textos, ao longo do livro, essa mesma rede de espelhamento. A relação de complementaridade entre os dois eixos fica patente, sobretudo, quando Magalhães Godinho insiste na validade do conceito de descobrimento, em detrimento do politicamente correto conquista, justificando sua insistência pelo fato de ser o descobrimento a construção de um espaço operacional, no qual o homem europeu se reinventa e igualmente se descobre, pensamento esse que está na base do texto de Bornheim. Seja qual for o vetor de leitura escolhido pelo leitor, esses dois artigos são fundamentais para uma compreensão geral do volume.

Quero deter-me rapidamente nos três textos que considero as pedras angulares dos movimentos centrais do livro, quais sejam as análises econômicas, políticas e ideológicas dos descobrimentos. São eles: ‘A economia política dos descobrimentos’, de Luiz Felipe de Alencastro; ‘A servidão natural do selvagem e a guerra justa contra o bárbaro’, de João Adolfo Hansen; e ‘Profecias e tempo do fim’, de Marilena Chauí.

Luiz Felipe de Alencastro, seguindo a obra-mestra de Magalhães Godinho2, constrói uma perfeita síntese da economia política dos descobrimentos. A necessidade estrutural de expansão no Portugal medieval, em face dos jogos de poder entre a coroa, o clero e a aristocracia; o papel comercial da coroa e da burguesia mercantil na aventura marítima; as relações de dependência nas quais Portugal se enreda com seus competidores colonialistas, tais como Inglaterra e Holanda; as relações econômicas e políticas entre Portugal e Espanha; esses e outros tópicos fundamentais para a compreensão do quadro no qual se dão a descoberta e a colonização do Brasil estão tratados nesse artigo da maneira mais clara e eficiente possível. Cabe ainda ressaltar que Alencastro chama atenção para a necessidade da releitura política de certas fontes primárias, tais como a Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, e os textos de Vieira, ambos tradicionalmente relegados a segundo plano por muitos historiadores como apenas uma fantasia desconectada da realidade, no caso de Mendes Pinto, e como um virtuose barroco, no caso de Vieira. A reavaliação das fontes deve ser prática constante da historiografia, atitude que realça ainda mais a importância do texto de Alencastro.

O texto de João Adolfo Hansen é importante, antes de mais nada, por colocar em evidência o conteúdo político de Vieira, esse homem-chave do império colonial português no século XVII, como Alencastro antes sugeria. Em segundo lugar, por trazer à tona a imperiosa necessidade de procurarmos levar em conta o significado dos textos no momento em que eles foram produzidos, em lugar de projetarmos sobre o passado as questões hodiernas. Uma frase de Hansen, tal como “Não me parece historicamente adequado permanecer no âmbito moral da crítica aos colonizadores” (p. 348), dá a medida exata de sua atitude em relação à abordagem do passado, ao dirigir-se, ainda que veladamente, contra leituras projetivas e moralizantes, tais como a que Alfredo Bosi faz do discurso de Vieira em relação aos escravos.3

Quem ler, por exemplo, o artigo de Hansen, intitulado ‘O discreto’, presente no volume da Funarte Libertinos e libertários 4, encontrará lá essa mesma atitude crítica que marca todos os trabalhos desse autor e que o coloca na linha de frente dos que estão hoje abordando o período colonial, qual seja, a de que o historiador deve buscar entender o passado, na medida do possível, a partir de categorias mentais que faziam parte do tempo que se está a estudar e procurar discernir o passado ele-mesmo daquilo que constitui projeção hodierna. As projeções do presente sobre o passado, na linha benjaminiana, não são em si mesmas problemáticas, desde que praticadas a partir da consciência de que se está produzindo um processo de leitura, mais importante para uma compreensão do nosso tempo do que para o entendimento do passado.

Marilena Chauí escreve o último e mais longo artigo do livro, sobre a presença do milenarismo como moldura mental dos descobrimentos. Seu trabalho possui grande valor não apenas pela riqueza da análise, mas igualmente pelo fato de que, com seu texto, a autora faz ressaltar a importância das molduras ideológicas como parte ativa do processo histórico. Ainda que Chauí tenha receio de ir às últimas conseqüências, e se resguarde, afirmando que as idéias são ‘determinadas’ pelo processo histórico (p. 488), seu texto configura por si mesmo a negação dessa sobredeterminação. Tanto assim é que, creio, o texto de Chauí seria muito mais útil, dentro da estrutura do livro, se entrasse no início do volume, pois esclarece sobremaneira, por exemplo, os textos de Courtine e Subirats sobre as injunções políticas dos descobrimentos.

Quero ainda comentar rapidamente o texto de Jorge Coli, ‘A primeira missa e a invenção da descoberta’. O artigo está, a princípio, um tanto solto no corpo do livro, por ser uma análise pontual. As proposições que, entretanto, podem ser retiradas de seu texto são de profunda valia enquanto conceito de história e comprensão do trabalho historiográfico. Analisando o quadro de Vítor Meireles, A primeira missa no Brasil, de 1861, e comparando-o a outros quadros do mesmo período, assim como a quadros historicamente subseqüentes sobre o mesmo tema, Coli demonstra como a nossa compreensão moderna do descobrimento passa necessariamente pela leitura fundacional que os intelectuais e artistas, no século XIX brasileiro, fizeram dos textos do século XVI. Trata-se aqui não de projeção inconsciente sobre o passado, mas da compreensão perfeitamente lúcida de que a história é também processo de leitura, cujas categorias devem ser explicitadas. Coli não fere a proposição de Hansen de que falei anteriormente, mas realça-a, ao trazer à tona as categorias mentais que emolduram a leitura que um determinado tempo histórico faz de outro.

Como nota negativa, tenho a dizer que o livro padece de um certo galocentrismo. Não se trata aqui de animosidade com o pensamento francês, representado pela esmagadora maioria dos não-falantes de português integrantes do volume e também pela formação da maioria dos brasileiros e portugueses ali presentes. Trata-se, sobretudo, de reconhecer que algumas das mais sólidas análises sobre os descobrimentos e o colonialismo português, bem como sobre a expansão européia em geral, vêm de escolas inglesas e norte-americanas, quando não holandesas ou indianas (o que a tradição universitária brasileira parece não reconhecer). É lamentável que autores como Stuart Schwartz, James Lockhart, James Tracy, Barbara Solow, Leslie Bethell, M. N. Pearson, A. J. R. Russell-Wood, Philip D. Curtin, Immanuel Wallerstein, David Eltis, Niels Steensgaard, Sanjay Subrahmanyam, entre tantos outros, todos mais ou menos ligados à grande tradição de estudos iniciada com Charles Boxer, não estejam presentes em um colóquio e um livro como estes. Da mesma maneira, Wolfgang Reinhard, John Thorton, Malyn Newitt ou K. N. Chaudhuri são nomes fundamentais quando se fala hoje em expansão colonial européia nos mais diversos quadrantes do globo.

No que concerne ao nascimento da ciência moderna, e especialmente ao papel aí desempenhado por alguns autores portugueses, o pioneirismo de R. Hooykaas encontra hoje o seu continuador em H. Floris Cohen, um dos poucos autores a dar a d. João de Castro o seu lugar devido na história da ciência. Aliás, parece-me incompreensível a ausência no livro de trabalhos sobre d. João de Castro, Garcia de Orta e Francisco Sanches, autores portugueses que estão na base tanto dos descobrimentos como da modernidade.

Essa nota fica aqui menos como reparo do que como sugestão para os próximos ciclos de palestras.

Notas

1 A propósito, vale conferir o livro de J. S. da Silva Dias, A política na época de d. João III. Coimbra, Universidade de Coimbra. 1969.

2 Verificar Os descobrimentos e a economia mundial, de Vitorino Magalhães Godinho (Lisboa, Presenca, 1984).

3 Ver Alfredo Bosi, Dialética da colonização (São Paulo, Companhia das Letras, 1994).

4 Ver mais detalhes do artigo em Adauto Novaes (org.), Libertinos e libertários (São Paulo/Rio de Janeiro, Companhia das Letras/Funarte,1996).


Resenhista

Marcos Vinicius de Freitas – Professor de literatura portuguesa e brasileira da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).


Referências desta Resenha

NOVAES, Adauto (Org.). A descoberta do homem e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Resenha de: FREITAS, Marcos Vinicius de. Rumo aos Quinhentos anos. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.6, n.1, mar./jun. 1999. Acessar publicação original [DR]

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