A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964 | Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Rodrigo Patto Sá Motta

RC Destaque post 2 11 golpe de 1964

A obra A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964 traz uma compilação de artigos escritos por profissionais de diversas áreas do conhecimento, tais como História, Sociologia, Economia, Ciência Política e Relações Internacionais, a respeito da ditadura civil-militar (1964 a 1985). Seu lançamento ocorreu em 2014, há exatos cinquenta anos do golpe militar acorrido em 1964. O ano de 2014 foi marcado por inúmeros eventos organizados por universidades e outras instituições em que se buscou refletir sobre o período do regime militar no Brasil e seus impactos na formação da moderna sociedade brasileira, em termos políticos, culturais, econômicos e sociais2.

Em meio a todo esse contexto de debate e reflexão sobre a ditadura civil-militar foram publicados vários trabalhos sobre o tema, entre eles, a obra do jornalista Carlos Chagas, A ditadura militar e os golpes dentro do golpe: 1964-19693 e a coletânea de artigos Ditadura: o que resta da transição, organizada pelo sociólogo Milton Pinheiro4.

Ambas as obras tem um caráter transdisciplinar e contribuem muito para alimentar o debate histórico acerca do período. Na obra aqui resenhada, A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964, são apresentadas novas análises, que partem de fontes e metodologias diversas, tais como o uso da história oral como ferramenta para resgatar a memória de um período, a análise de periódicos de época e, ainda, de documentos oficiais publicados por órgãos como o IBGE. Sendo assim, os artigos reunidos dão um novo frescor a temas já explorados pela historiografia, tanto por sua variedade documental quanto metodológica.

Tendo como fio condutor central, que perpassa a maior parte dos capítulos apresentados, a discussão sobre o processo de modernização autoritária e conservadora que foi empreendida durante o período militar. Podemos observar que em todos os aspectos da sociedade brasileira analisados na obra, sejam estes, econômicos, sociais, políticos ou culturais, mudanças foram empreendidas, para que em outros aspectos tudo continuasse exatamente do mesmo jeito. Os artigos vão apresentando cada um a sua maneira a temática “transformar para conservar”; modernizar sim, alterar a ordem social jamais. E as bases metodológicas utilizadas são bastante amplas e abrangem, entre outras, aquelas que se utilizam dos preceitos difundidos pela Nova Historia Cultural e pela Nova Historia Política.

O primeiro artigo, escrito por Daniel Aarão Reis e intitulado A ditadura faz cinqüenta anos: história e cultura política nacional-estatista, funciona como uma espécie de introdução à obra, pois observa permanências e rupturas na sociedade brasileira nos últimos 50 anos e faz uma análise bibliográfica e de fontes primárias, tais como discursos proferidos por várias figuras públicas, em momentos específicos, antes, durante e após o regime militar.

O autor também discute a própria delimitação temporal do período ditatorial, que tem oficialmente como marco inicial o ano de 1964, e como fim o ano de 1985 com a eleição indireta para presidente. O marco inicial do período não é questionado por Reis, que considera o fim do regime algo mais fluido, levando em consideração a importância do ano de 1979, marcado pela revogação dos Atos Institucionais, e o ano de 1988, marcado pela promulgação da nova Constituição. Essa fluidez cronológica seria para ele algo bem característico do que foi o regime militar e a própria transição democrática. O autor questiona até que ponto a cultura política característica do período não teria sido construída antes da ditadura, e perdurado depois dela, embora sofrendo metamorfoses.

Nesse aspecto, o artigo tem um caráter bastante introdutório aos demais capítulos, pois cada um deles, partindo da temática escolhida, aborda aspectos contraditórios do período analisado.

O segundo capítulo, intitulado As oposições à ditadura: resistência e integração, de Marcelo Ridenti, traz uma extensa análise bibliográfica de historiadores e de autores do pensamento político e sociológico, e aborda o modo relacional com que as oposições à ditadura devem ser compreendidas, envolvendo zonas intermediarias entre a colaboração e a resistência, pois o próprio regime ditatorial instaurado se encontrava nessa dubiedade, alternando entre o confronto e a negociação, entre o uso da força e a tentativa de convencimento e legitimação. Afinal, se a justificativa para o golpe era a preservação da democracia, era de suma importância manter uma fachada democrática.

O capitulo também aborda a estruturação e a atuação da oposição clandestina e da oposição institucional, assim como, a conseqüente repressão e desarticulação dessas oposições, sendo que algumas delas compartilhavam as iniciativas modernizadoras do governo. Uma modernização conservadora, apoiada tanto pelas classes dirigentes, quanto por vários setores da sociedade civil que, beneficiadas por essas medidas, ignoravam as arbitrariedades do regime.

O terceiro capítulo, A modernização autoritário-conservadora nas universidades e a influência da cultura política, escrito por Rodrigo Patto Sá Motta, dá continuidade à discussão proposta no capítulo anterior, pois analisa as contradições e o impacto do processo de modernização da estrutura universitária brasileira durante o regime militar e o modo como essa modernização conservadora e autoritária interferiu nas tênues relações de colaboração e resistência ao regime no meio universitário. Motta argumenta que o conceito de modernização conservadora foi o grande paradoxo da ditadura, que expressava simultaneamente impulsos modernizadores e conservadores. O desejo modernizador envolvia o desenvolvimento econômico e tecnológico, e o impulso conservador relacionava-se à necessidade de preservar a ordem social e os valores tradicionais. Ou seja, o objetivo central do regime era transformar para conservar, um conceito bastante explorado nos capítulos seguintes que tratam das mudanças sociais e econômicas do período militar. A discussão é feita por meio de análise bibliográfica e tendo como principal fonte as pesquisas realizadas pelo próprio autor, adaptadas para o artigo.

O capítulo seguinte, Mudanças sociais no período militar (1964-1985), escrito por Francisco Vidal Luna e por Herbert S. Klein, aborda as transformações ocorridas em nossa sociedade durante o período militar, momento de consolidação do mercado interno brasileiro. Segundo os autores, o período também marcou a consolidação de um moderno sistema de bem estar social, embora baseado em um modelo tecnocrático e autoritário. No período militar houve um crescimento vertiginoso das cidades e uma significativa redução da população rural. Apesar da modernização da agricultura brasileira não houve mudanças na estrutura da propriedade fundiária, que é concentrada até hoje, e encontra-se nas mãos de uma classe agro-empresarial. Ampliou-se também a desigualdade social principalmente no que diz respeito à exclusão racial, assim como a disparidade regional; pois enquanto em algumas regiões, como Sul e Sudeste, ocorriam avanços significativos nos níveis de riqueza, saúde e educação, o mesmo não ocorria em outras, como é o caso do Norte e do Nordeste. Ou seja, acelerava-se o crescimento econômico, mas ampliava-se a desigualdade, mesmo nas áreas urbanas de concentração industrial, onde se evidenciaram os problemas relativos à urbanização, moradia e saneamento.

Também é de Luna e Klein a autoria do capítulo cinco, Transformações econômicas no período militar (1964-1985), o qual, como o próprio nome sugere, faz um levantamento da evolução econômica ocorrida entre as décadas de 1960 e 1980. Os autores iniciam o artigo analisando o governo de João Goulart marcado por uma crescente agitação política e por uma inflação de 80% ao ano, fatores que teriam contribuído para o golpe militar em abril de 1964. Luna e Klein também analisam o programa de estabilização e reformas, implementado pelos militares, que se beneficiava do regime autoritário em vigor, mas das quais não se beneficiaram a maior parte dos trabalhadores que viram seus ganhos diminuírem cada vez mais.

Mas como o governo autoritário precisava de legitimidade política, e a única maneira de consegui-la seria com o crescimento econômico, o período entre 1967 e 1973, certamente o mais repressivo de todo o período militar, apresentou altas taxas de crescimento da economia devido a um amplo sistema de subsídios e mecanismos de controle de preços. Medidas que teriam contribuído para aumentar o papel do estado na economia e o aumento do mercado consumidor, mas que vieram acompanhadas de um processo de concentração de renda, que contribuiu para aprofundar as desigualdades sociais, como salientam os autores. Os capítulos quatro e cinco, escritos por Luna e Klein, além da análise bibliográfica, fazem um amplo uso de documentos primários, tais como boletins, relatórios e estudos de diferentes instituições para acompanhar a evolução social e econômica do Brasil nas últimas décadas.

Já no capítulo seis, Revisitando o tempo dos militares, de Renato Ortiz, o autor utiliza em seu artigo fontes primárias e bibliográficas e estabelece uma discussão sobre a modernização conservadora que foi empreendida na sociedade brasileira durante o governo militar e o modo como isso teria influenciado o processo de transição política da fase autoritária para a democracia. Ortiz inicia a discussão contextualizando a idéia de modernização conservadora em diversos períodos da formação histórica brasileira, da Primeira República ao Estado Novo, apreendendo um processo social calcado em um modelo político conservador, no qual os valores democráticos ficariam em segundo plano. O período militar teria combinado repressão política com expansão econômica, ação policial com incentivo às atividades empresariais, ou seja, modernização com conservadorismo, uma combinação ambígua de controle e expansão, em que se fundamentou nossa sociedade.

O capítulo seguinte, Para onde foi o ‘novo sindicalismo’? Caminhos e descaminhos de uma prática sindical, é de autoria de Ricardo Antunes e Marco Aurélio Santana e tem basicamente análise bibliográfica. Os autores discutem os rumos tomados pelas práticas sindicais originadas em fins dos anos 1970. Para os autores esse novo modelo de sindicalismo teve impulso no movimento grevista iniciado em 1978, e que culminou na organização de centrais sindicais, como a Central Única dos Trabalhadores em 1983. Já os anos de 1990 seriam marcados pela consolidação de novas práticas sindicais, devido à conjuntura política e econômica nacional e internacional, fortemente influenciada pelo processo de privatizações e pela demanda em torno da flexibilização das leis trabalhistas. O artigo termina por situar a questão do sindicalismo no Brasil, nos anos do governo Lula, um período em que a alta cúpula sindical ascendeu a cargos da burocracia estatal, enfraquecendo a velha bandeira de autonomia dos sindicatos em relação ao Estado, uma das características mais marcantes do “novo sindicalismo”.

O capítulo oito, escrito por Anderson da Silva Almeida e intitulado A grande rebelião: os marinheiros de 1964 por outros faróis, é um artigo produzido a partir da dissertação de mestrado do autor; no qual faz análise de diversos periódicos e revisita o movimento dos marinheiros de 1964, ocorrido às vésperas do golpe militar, que atuou como um catalisador das insatisfações desses trabalhadores com o tratamento recebido pelos superiores e com a desvalorização da carreira em um contexto de enfrentamentos. A questão central era a grande disparidade no tratamento dado pela instituição aos Marinha um microcosmo da situação presente na sociedade brasileira.

No capítulo seguinte, O aparato repressivo: da arquitetura ao desmantelamento, Mariana Joffily faz um estudo do funcionamento da repressão durante o regime militar, que incluía uma diversidade de atos praticados por parte da polícia política e de diversos órgãos de informação e segurança concebidos a partir da “Doutrina de Segurança Nacional”. A doutrina enxergava como a principal ameaça a ordem vigente o chamado inimigo interno, que era o cidadão comum imbuído de ideais comunistas. Para combater essa ameaça era preciso agir unificando os comandos políticos e militares, atuar por meio da ação psicológica e ter controle das informações que levassem a um conhecimento profundo do inimigo, a fim de prever e neutralizar suas ações.

Segundo Joffily, os métodos de vigilância, detenção e obtenção de informações eram violentos e operavam além da fronteira da legalidade, desrespeitando a legislação autoritária erigida pelo próprio regime. O processo de distensão “lenta, gradual e segura”, provocou uma cisão no seio da repressão, pois havia aqueles militares alinhados a ideia da abertura e aqueles dispostos a perpetuar a linha de combate sem tréguas ao inimigo interno. Nesse processo, alguns dos órgãos que compunham a estrutura repressiva foram desmontados, enquanto outros tiveram sua função modificada ao longo dos anos. Em sua análise a autora utiliza fontes documentais primárias e bibliográficas.

O capítulo dez, escrito por Carla Simone Rodeghero e intitulado A anistia de 1979 e seus significados, ontem e hoje, é resultado de pesquisa realizada pela autora, no estágio de pós-doutorado, e aborda a grande complexidade que envolve a relação entre anistia e a ideia de esquecimento. A autora analisa o caso da lei de anistia promulgada em 1979, que, além de não contemplar a demanda social por uma “anistia geral, ampla e irrestrita”, implicou em um esquecimento forçado e imposto, na medida em que a violência praticada pelos agentes do estado foi devidamente “anistiada” sob o manto dos chamados “crimes conexos”. Essa questão serviu de argumento para que a Ordem dos Advogados do Brasil perpetrasse uma ação, julgada improcedente, junto ao Supremo Tribunal Federal revogando o perdão dado aos agentes do estado, alegando que os crimes praticados por estes não se enquadrariam na categoria de crimes conexos prevista na lei de anistia.

O capítulo seguinte, intitulado Por que lembrar? A memória coletiva sobre o governo Médici e a ditadura em Bagé e escrito por Janaína Martins Cordeiro, é o resultado parcial de uma pesquisa mais ampla de pós-doutoramento desenvolvida pela autora, que analisou o posicionamento ideológico da cidade natal de Garrastazu Médici sobre os anos de chumbo, tendo por base os princípios da história oral. Por sua proximidade e orgulho de seu “filho mais ilustre”, a cidade compartilhou fortemente do entusiasmo desenvolvimentista promovido durante o governo de Médici. Essa relação de deferência e respeito permaneceu até o inicio dos anos de 1980, momento da abertura política, quando a cidade muda de posicionamento, pois, a despeito da relação de familiaridade com o ex-presidente Médici, a cidade teve que acompanhar os processos nacionais de reconstrução do passado, e, portanto, aderiu à memória coletiva nacional do período militar – o que não deixa de ser curioso – pois, segundo a autora, Bagé teria vivido muito mais sob os anos de ouro do que sob os anos de chumbo.

O capítulo doze, O engajamento, entre a intenção e o gesto: o campo teatral brasileiro durante a ditadura militar, escrito por Miriam Hermeto, traça um panorama da cena teatral brasileira no período militar, conceituando teatro “engajado” e “desengajado”, partindo do caráter político e ideológico das produções. Propõe, ainda, uma análise da atuação da indústria cultural sobre o setor, e suas relações com a política de modernização conservadora implementada no governo militar. A autora faz uso de fontes variadas, tais como entrevistas, periódicos e ainda fontes bibliográficas.

No capítulo final, escrito por Miriam Gomes Saraiva e Tullo Vigevani, intitulado Política externa do Brasil: continuidade em meio à descontinuidade, de 1961 a 2011, os autores, por meio de análise bibliográfica e de fontes primárias, realizam análise das tendências da política externa brasileira antes e durante o período militar e o modo como essas tendências teriam influenciado a política externa do governo Lula. Saraiva e Vigevani analisam a PEI (Política Externa Independente) dos governos de Jânio Quadros e João Goulart e a PR (Pragmatismo Responsável) do governo Geisel identificando algumas de suas principais características na chamada autonomia pela diversificação do governo Lula.

Como se pode observar, os capítulos abordam diferentes temáticas, que vão desde aspectos culturais, econômicos e sociais do período militar, até questões consideradas inconclusas por muitos autores, como é o caso da lei de anistia, de 1979, e toda a complexidade que a envolve. O caráter transdisciplinar da obra enriquece e complementa a historiografia brasileira sobre o período analisado, pois é característica marcante da História e estreita relação com outras áreas do conhecimento, tais como a Sociologia, a Antropologia, a Filosofia, a Economia e outras. O lançamento desta obra coletiva, num momento bastante emblemático para a sociedade brasileira, os cinquenta anos do golpe militar, foi importante porque trouxe à tona uma série de novas perspectivas para os historiadores que se ocupam em estudar o período e também reflexões para a sociedade brasileira sobre um período específico de nossa história que ainda é muito mal compreendido pela maioria dos brasileiros.

Notas

2. Vários desses eventos foram promovidos pela Universidade Estadual Paulista, tal como, o seminário Golpe Militar: 50 anos – memória, história e direitos humanos, em parceria com o Cedem da UNESP/SP e Fundação Perseu Abramo, e em Bauru um evento de mesmo nome foi promovido pelo Observatório de Educação e Direitos Humanos da UNESP/Bauru.

3. CHAGAS, Carlos. A ditadura militar e os golpes dentro do golpe: 1964-1969. Rio de Janeiro: Record, 2014.

4. PINHEIRO, Milton (org.). Ditadura: o que resta da transição. São Paulo: Boitempo, 2014.

Referências

CHAGAS, Carlos. A ditadura militar e os golpes dentro do golpe: 1964-1969. Rio de Janeiro: Record, 2014.

PINHEIRO, Milton (org.). Ditadura: o que resta da transição. São Paulo: Boitempo, 2014.

REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.


Resenhista

Léa Mattosinho Aymore – 1. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História e Sociedade da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP/Assis.


Referências desta resenha

REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. Resenha de: AYMORE, Léa Mattosinho. Os 50 anos do golpe militar e o processo de modernização conservadora que fundamentou a sociedade brasileira atual. Faces da História, Assis, v.3, n.1, p.205-210, jan./jun., 2016. Acessar publicação original

[IF]

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.