A história deve ser dividida em pedaços? | Jacques Le Goff

A história deve ser dividida em pedaços? é o último livro escrito pelo medievalista francês Jacques le Goff, postumamente publicado na França em 2014 e de recente tradução para o português por Nícia Adan Bonatti. O comentador responsável pelo texto introdutório que se lê nas badanas do volume responde à pergunta sobre o que esperar do último escrito do erudito francês com uma palavra: coerência. Nisto nos reinscrevemos plenamente à visão do comentador não-identificado, pois neste ensaio le Goff retoma sua reflexão, já presente em Uma longa Idade Média (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008) sobre as possibilidades várias de periodização da história, argumentando principalmente pela não-pertinência ou pertinência atenuada e meramente parcial do termo “Renascimento” enquanto categoria analítica para dar conta de suposta viragem cultural ocorrida ao longo dos séculos XV e XVI.

A obra está estruturada em oito capítulos, afora preâmbulo e prelúdio. No primeiro capítulo faz-se uma breve espécie de “história dos conceitos” ligados às periodizações pré-modernas da história: a divisão em quatro eras (baseada na profecia dos quatro reinos de Daniel, contida em Daniel 7:13-28) e a divisão em seis eras (difundida por Santo Agostinho e baseada na metáfora orgânica da história como organismo que nasce, cresce e senesce, segundo uma visão pessimista de mundo; ambas comuns nos escritos de intelectuais medievais; a divisão em duas macro-eras como antes de Cristo e depois de Cristo, também proposta na Idade Média por Denis, o Pequeno (século VI EC); a legenda áurea como marcador de divisões no tempo sagrado e, por fim, a periodização voltaireana em séculos, onde o termo não corresponde estritamente a um período de cem anos, mas antes a uma espécie de apogeu de um intervalo que tempo que poderia ser metonimicamente nomeado pelo nome de um de seus personagens-chave: assim o Século de Alexandre, o Século de Augusto, ou, mais próximo de Voltaire e aquele que possivelmente levou à cunhagem do termo, o Século de Luis XIV.

No segundo capítulo, debruça-se o francês sobre o itinerário conceitual do termo “idade média”, destacando sua utilização tardia (século XV), por Petrarca, como forma de nomear um período do qual se busca um distanciamento ideológico. O principal argumento contido no capítulo consiste no apontamento do caráter necessariamente valorativo e não-neutro do ato de nomear um período, enquadrando-o numa visada teórico-metodológica que deve ser constantemente repensada. Desta forma, o binômio antigo/moderno, na Idade Média, expunha a oposição entre pagão/cristão. A antinomia conceitual reveste-se de outros valores, segundo o período e a sociedade que o emprega, de forma que nos séculos XVXVI, recai sobre uma antiguidade idealizada o verniz de uma cultura avançada, da qual as sociedade européias do mencionado período quiseram-se afirmar como herdeiras; ao passo que no século XIX, o romantismo levou à (re)valorização da Idade Média como período de expressão dos particularismos nacionais, entre outros. Tampouco a nomenclatura “idade média” é inconteste, de forma que termos como feodalité permaneceram como alternativas viáveis, ou termos como “antiguidade tardia” fazem uma opção teórica por acentuar, nas narrativas produzidas, as continuidades entre as sociedades pré-cristãs e cristãs (em vias de cristianização) em detrimento de suas diferenças, ou o marxismo elege as forças produtivas como elemento de diferenciação.

O terceiro capítulo argumenta que a ascensão da história ao posto de disciplina passível de ensino e pesquisa universitários levou à necessidade de uma divisão em períodos, baseados nos pressupostos de estabelecimento de “verdade histórica” e de administração do critério de “prova” científica, particulares à escrita da história oitocentista.

O quarto capítulo retoma as obras de Michelet e Jacob Burckhardt enquanto historiadores que lançaram o termo “renascimento” como conceito historiográfico no século XIX (retomando a oposição antes estabelecida por Petrarca). Le Goff assinala que, pese os primeiros escritos micheletianos simpáticos ao período medieval, a morte da primeira esposa do autor desencadeia uma crise geral em sua vida, que se desenvolve num pessimismo que se estende a suas opções historiográficas, de sorte que a Idade Média antes valorizada torna-se uma idade de trevas e erige-se um Renascimento, com R maiúsculo, que seria um “retorno à vida, à claridade, ao paganismo, à sensualidade, ao gozo” (p.49), no qual Michelet lauda a liberdade e a expressão do caráter do principal personagem sua narrativa, o povo. A partir das preleções de Michelet no Collège de France, o termo Renascimento adquire projeção e, simultaneamente, ganha os primeiros contornos de seu mito historiográfico. Burckahardt, por sua vez, colore o Renascimento como a volta a um passado glorioso (o mito da Idade de Ouro, sobre o qual Raoul Girardet discorre em seu livro), renascimento da Antiguidade Pagã, na qual a Itália adquire papel proeminente como berço (por conta das ruínas romanas que compõem a paisagem) e de centro difusor do renascimento, narrativamente sempre oposta à Europa do Norte e, em especial, a Alemanha, futuro berço da Reforma.

O quinto capítulo de le Goff retoma as obras de modernos historiadores do renascimento como Kristeller, Garin, Panofsky e Delumeau, para citar alguns dos principais e destaca as características que tais autores consideram distintivas do Renascimento enquanto período histórico diferenciado da Idade Média, por exemplo, a afirmação da dignidade intelectual humana e a afirmação do lócus privilegiado da humanidade na criação divina; a oposição entre o platonismo renascentista e o aristotelismo escolástico, a controvérsia sobre a extensão da influência de S. Agostinho sobre a Idade Média e o Renascimento (referentes à obra de Kristeller); bem como o caráter da música e das festas populares e o papel desempenhado pelos studia humanitatis em oposição à posição ocupada por Deus na cultura medieval. Em Erwin Panofsky, le Goff encontra um de seus principais referenciais teóricos, apesar de discordância pontual que venha a oferecer em relação a este. Sua tese de Renascimento e renascimentos, da existência não de um corte abrupto com a cosmovisão medieval no século XV, mas de movimentos de transformação que se manifestam no longo período (como o “renascimento carolíngeo” do século VIII) encontram em le Goff em partidário (os outros dois principais referenciais teóricos de le Goff para a escrita do volume são Braudel, enquanto teórico da longa duração e Georges Duby em Histoire Continue).

O sexto capítulo tem como finalidade principal argumentar pela atenuação de diferenças que se pretendem muito fundamentais ente Renascimento e Idade Média, apontando, por exemplo, o avanço na escolarização durante a Idade Média, até mesmo no concernente à escolarização feminina, nos progressos referentes às técnicas de escritura, com a introdução do pergaminho e da organização em códice; a clérigos que se opunham à visão de envelhecimento do mundo agostiniana, proclamando seu tempo como saeculum modernum; a um humanismo presente na Escola de Chartres e subscrito por nomes como Bernard de Chartres e Honório de Autun, seguindo um veio inaugurado por S. Anselmo da Cantuária ao argumentar pelo papel central do homem na criação. Igualmente Hugo de S. Vítor retoma um programa de estudos que valoriza o pensamento antigo. Elementos artísticos como o retrato que tem por fim a verossimilhança e os motivos florais têm demonstrada sua origem medieval, ao passo que a invenção da bruxaria e o aumento dos pogroms teriam aumentado em intensidade na modernidade.

O sétimo capítulo destina-se a argumentar pela necessidade de uma periodização em longa duração e são citados como exemplos, entre outros, a centralização do Estado, com criação de uma burocracia eficiente, etc e o desenvolvimento das regras de etiqueta e dos meios de controle social (cujo principal referencial teórico reconhecido é o sociólogo Norbert Elias). Também a prevalência da agricultura como modalidade econômica e a existência de carestias cíclicas seriam um elemento de união, em longa duração, do que chamamos a primeira modernidade e a Idade Média. A existência de elementos medievais nos textos de Shakespeare é também citada como elemento de reforço da continuidade essencial que le Goff advoga.

A tese de le Goff é bem fundamentada e merece reflexão. Entretanto, em certos pontos, parece haver uma escrita “impressionista” no ensaio, que posso apontar em áreas mais próximas a meus interesses intelectuais, como a literatura. Quanto ao supracitado exemplo de Shakespeare, eu objetaria que é, de alguma forma, de se esperar que se encontrem temáticas e a descrição geral de uma ambiência física medieval em suas obras pois a modernidade não é como uma tempestade que varre todos os lugares ao mesmo tempo e com a mesma intensidade e, tendo Shakespeare herdado de seus pais em algum grau uma cultura dependente da cosmovisão medieval, seria igualmente importante saber como ele a utiliza para sua produção literária e, principalmente, em que medida a modifica (tema que, dados os interesses de argumentação do ensaio, não é sequer mencionado). Por exemplo, a dualidade que se desvela em O Mercador de Veneza entre o bom amigo que Iago aparenta ser e o manipulador que de fato ele é; a característica de ocultamento do self e de sua remodelação (para fazer referência ao belo artigo de Greene) são geralmente apontadas como características tipicamente modernas; ainda que, pode-se dizer, são historicizáveis e têm, com quase toda certeza, algum precedente medieval; igualmente a remodelagem do self e a capacidade de “improvisação” são apontadas por Todorov como característica moderna responsável pelo triunfo do empreendimento espanhol sobre as populações ameríndias. Talvez fosse emblemático o caso do Dom Quixote, de Cervantes. Se vista superficialmente, sua temática é tipicamente medieval: trata-se de uma história de cavalaria, ambientada numa Espanha cuja paisagem ainda é marcada por construções de castelos-fortins e que mal se livrou da presença muçulmana, contra a qual, entretanto, ainda luta nos mares (veja-se Lepanto, na qual Cervantes perdeu uma das mãos); mas o enredo e seu desenrolar subvertem essa tipicidade de primeira mirada e o efeito produzido não é nem a exaltação moralista cristã dos bons feitos nem a propagação das virtudes viris de um guerreiro-modelo; são em contrário, a exaltação do sonho e o elogio da loucura como solução de vida ante um mundo que muda demasiado rápido (Alonso Quijano é um nobre falido que ao ter seus livros queimados retoma a razão, mas também adoece e morre). Aliás, a temática do elogio do sonho e da desrazão, presente também na obra de Calderón de la Barca, La Vida es Sueño, não parece ser tipicamente medieval, ao menos não dos troncos intelectuais principais da tradição medieval, o que, é claro, não exclui a possibilidade de antecedentes. Lastimavelmente le Goff, que não mais está entre nós, não poderá responder às questões que proponho.

A proposta de longa duração é, em suma, interessante, mas pode trazer, em contrapartida, o risco de homogeneização indevida; assim como um corte artificial do tipo “renascimento” poderá obscurecer continuidades culturais de primeira magnitude. Creio, portanto, que o mais adequado seria uma análise adequada ao objeto de estudo, caso a caso, da tradição que o precede e de como ele a manipula, se se lhe subscreve ou se a subverte, e como e quanto.

Referências

GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

GREENE, Thomas. A flexibilidade do self na literatura do Renascimento. In: História e Perspectivas, Uberlândia (32/33): 35-63, Jan.Jul./Ago.Dez.2005

LE GOFF, Jacques. A história deve ser dividida em pedaços? São Paulo: UNESP, 2015.

TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do Outro. São Paulo: Martins Fontes, 1983.


Resenhista

Jorge Steimback Barbosa Junior – Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem interesse nos temas de História Antiga, História da Historiografia e Teoria da História. É bolsista da CAPES. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

LE GOFF, Jacques. A história deve ser dividida em pedaços? São Paulo: UNESP, 2015. Resenha de: BARBOSA JUNIOR, Jorge Steimback. A morte do Renascimento? Faces de Clio. Juiz de Fora, v. 1, n. 2, p. 174- 179, jul./dez. 2015. Acessar publicação original [DR]

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