A irresponsabilidade médica | Philippe Meyer || Contra a desumanização da medicina: crítica sociológica das práticas médicas modernas | Paulo Henrique Martins

No último século, a medicina sofreu profundas transformações, fruto da incorporação de recursos diagnósticos e terapêuticos inimagináveis ao final do século XIX. Da eletrocardiografia à tomografia computadorizada, da descoberta da penicilina aos modernos marcapassos cardíacos, muitas das melhorias foram aplicações diretas da física, da química e da biologia ao ato médico de cuidar dos enfermos. A medicina adquiriu status de ciência e, antes de tudo, alcançou uma eficácia anteriormente imprevista na capacidade de curar, aumentar o tempo de vida e fazer viver melhor.

Com sucesso variável, cada nação desenvolveu seus esforços de universalização do acesso da população a tais recursos, cada vez mais caros e eficazes. Formou-se, assim, um mercado consumidor de produtos farmacêuticos, médico-hospitalares e serviços de saúde, movimentando hoje gigantescos orçamentos públicos e privados. O ato médico passou a ser objeto de interesses econômicos e, por que não dizer, ditado também por uma dinâmica de mercado. O conhecimento de como funciona a medicina e, principalmente, a definição de como ela deve funcionar deixou de ser interesse da classe médica e passou a ser objeto de atenção de toda a sociedade. Leia Mais

Uma latente filosofia do tempo | Reinhart Koselleck

Com relativo atraso, as principais obras de Koselleck encontram-se traduzidas no Brasil. Crítica e crise (2009 [1959]), O futuro passado (2006a [1979]), Estratos do tempo (2014 [2000]) e Histórias de conceitos (2020 [2006]), publicados pela Editora Contraponto, reúnem os textos principais do autor, na diversidade de direções em que ele desenvolve suas ideias. O trabalho de tradução é quase sempre excelente, com uma linguagem clara, notas explicativas e didáticas, que esclarecem as dificuldades inerentes à tradução de textos que envolvem discussões históricas e etimológicas complexas, como é o caso em Koselleck. Crítica e crise, o primeiro livro da série, faria uma exceção ao grupo, pois consta com frases alteradas, abreviadas e fundidas com outras, o que exigiria uma revisão completa para deixar o texto mais fiel ao original. A parte boa é que se trata de uma exceção no conjunto.

Dado esse passo importante, é natural que agora se abra o caminho para textos menos conhecidos, avulsos ou presentes em coletâneas fora do campo dos livros principais do autor. Essa é a via seguida por Uma latente filosofia do tempo, publicado pela Editora Unesp, com organização de Hans Ulrich Gumbrecht e Thamara de Oliveira Rodrigues (que também assina um excelente prefácio) e tradução de Luiz Costa Lima. O livro é composto por quatro textos: “Estruturas de repetição na linguagem e na história”, “Sobre o sentido e o não sentido da história”, “Ficção e realidade histórica” e “Para que ainda investigação histórica?”, retirados de uma obra publicada postumamente, em 2010, pela Suhrkamp, com titulo Sobre o sentido e o não sentido da história, na qual estão reunidos trabalhos que abarcam 40 anos da produção de Koselleck, alguns deles inéditos. A seleção de Gumbrecht e Thamara Rodrigues é inteligente e apresenta-nos um Koselleck heterogêneo e heterodoxo, defensor de uma variedade de teses, esquemas, sugestões e observações com os quais sempre aprendemos muito. Leia Mais

Justificação e crítica: Perspectivas de uma teoria crítica da política – FORST (C-FA)

FORST, Rainer. Justificação e crítica: Perspectivas de uma teoria crítica da política. São Paulo: Unesp, 2018. Resenha de: MORALLES e MORAES, Felipe. O que é mais importante vem primeiro. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v 24 n 1 Jan-Jun, 2019.

Rainer Forst é um dos mais proeminentes representantes contemporâneos da teoria crítica da Escola de Frankfurt. Em seu dizer – oportunamente reproduzido na contracapa da edição brasileira publicada recentemente pela Unesp e cuidadosamente traduzida por Denilson Luis Werle –, a filosofia crítica começa com uma tentativa de evitar os “becos sem saída” nos quais a própria filosofia política vem se metendo.

A tarefa que se coloca esse discípulo de Habermas é, como explicado no prefácio, desfazer os dualismos enganadores. À primeira vista, o livro Justificação e crítica consiste em uma reunião de artigos publicados anteriormente, em diferentes locais e sem sistematicidade, como os três capítulos finais que discutem a obra de Henrik Ibsen, Hannah Arendt e a literatura utópica. Há um fio condutor dos artigos reunidos, porém, que é enfrentar falsas oposições, como entre imanência e transcendência; dominação e liberdade; igualitarismo e suficientarianismo; paz e justiça; iluminismo e pós-colonialismo; redistribuição e reconhecimento; a fim de defender que, por trás delas, há algo mais importante, que é o direito fundamental à justificação.

A linhagem kantiana da crítica de Forst é notável. À sua época, Kant tinha por alvo a oposição entre, por um lado, o ceticismo, com sua tese da impossibilidade do conhecimento universal e necessário sobre o mundo; e, por outro lado, o dogmatismo metafísico, com sua pretensão de decifrar o mundo a partir da razão pura. É conhecida a solução kantiana de rejeitar o tribunal tanto da natureza sensível (empirismo), quanto de um ser, bem ou valor superior ao sujeito (racionalismo dogmático), para alçar a razão como o tribunal do uso legítimo e ilegítimo de suas faculdades (racionalismo crítico). A filosofia crítica continua merecendo seu nome na medida em que denuncia as ilusões para as quais é arrastada a razão no interesse emancipatório de conhecer o mundo e agir corretamente.

A tarefa kantiana de Forst não se limita, contudo, a desmascarar essas ciladas da razão, como também faziam, cada um a seu modo, Marx e as primeiras gerações da Escola de Frankfurt. Há um objetivo maior em comparação com esses críticos da modernidade: colocar a razão ao abrigo dos ataques céticos e dogmáticos. Por isso, uma segunda tarefa filosófica que permeia Justificação e crítica é a de fundamentação dos direitos humanos e da justiça. A obra complementa análises precedentes de Forst, nas quais o autor reconstrói e busca superar as aporias do debate entre liberalismo e comunitarismo, em Contextos da justiça, com edição brasileira pela editora Boitempo (2010 [1994]), ou apresenta uma concepção construtivista moral e política da justiça e dos direitos humanos, em Direito à justificação, ainda sem tradução (2012[2007]). Nesta resenha, contento-me em apresentar (1) a resolução forstiana de dois impasses internos à teoria crítica e (2) a fundamentação trazida em Justificação e crítica (daqui em diante JC), para depois tecer (3) alguns comentários sobre a tradução e (4) levantar quatro possíveis objeções ao modelo de teoria crítica em questão.

  1. O primeiro impasse enfrentado por Forst diz respeito à ideia de crítica imanente da sociedade, que os teóricos críticos tradicionalmente contrastaram com o que seriam críticas transcendentes, platônicas ou idealizadas. O argumento do autor é que essa contraposição mostra-se ilusória, porque ninguém está totalmente inserido em um contexto ou prática social, havendo sempre possibilidade de questionar e criticar reflexivamente essa prática. Os conflitos sociais surgem, com efeito, com um “não” às formas de justificação da dominação existente. Eles estão sempre questionando e transcendendo costumes, relações econômicas e instituições.

Assim, se consideramos os seres humanos como seres que participam ativamente na definição das relações e ordens sociais válidas, estamos diante de um padrão a um só tempo imanente e transcendente. A recusa às justificações vigentes pode ser traduzida como uma pretensão de que as relações sociais não sejam arbitrárias, isto é, que sejam justificadas recíproca e universalmente. Segundo Forst, a razão é, ao mesmo tempo, a mais imanente e a mais transcendente das capacidades humanas: a capacidade de se orientar por justificações. A crítica da sociedade precisa se orientar pelo critério da reciprocidade e da universalidade das justificações, em lugar da divisão artificial entre imanência e transcendência (JC, p. 17-8).1

Outro impasse na teoria crítica que merece destaque está na discussão entre duas gramáticas internas às lutas sociais: redistribuição ou reconhecimento. Trata-se de uma disputa em vários níveis, encabeçada por Nancy Fraser e Axel Honneth.

Ambas gramáticas são indeterminadas do ponto de vista de quais lutas sociais são justificáveis – argumenta Forst. Antes da pretensão por paridade de participação, no modelo de Fraser (duplipartido em redistribuição e reconhecimento), ou da pretensão por reconhecimento, no modelo de Honneth (tripartido nas esferas do amor, da igualdade jurídica e da estima social), é preciso uma gramática normativa que diferencie as pretensões justificáveis das injustificáveis, isto é, aquelas que podem, ou não, ser justificadas de modo recíproco e universal aos que participam nos respectivos contextos de justiça (JC, p. 185 e 192). É certo que, conforme o contexto, surgirão pretensões legítimas de igualdade econômica e política ou de valorização social; primeiro, porém, vem a instância da possibilidade de produzir e questionar essas pretensões. A gramática normativa é a das condições para que os sujeitos se justifiquem e demandem justificações: o direito básico à justificação. A abordagem de Forst é denominada, por isso, “o que é mais importante vem primeiro” – na feliz tradução de das Wichtigste zuerst ou first-things-first da edição inglesa (2014). Ele afirma dar uma “guinada política” diante das abordagens antecedentes, ao colocar em primeiro plano exercício e distribuição social do poder de justificação (JC, p. 196).

Daí repetir Forst nos artigos que a tarefa primeira de uma teoria crítica da justiça é visar ao estabelecimento de uma estrutura básica de justificação na qual as pessoas possuam procedimentos e condições materiais de exigir, produzir e questionar justificações – o que não se confunde, nem exclui, a perspectiva mais utópica de uma estrutura básica justificada, na qual todos os procedimentos e condições materiais foram justificados universal e reciprocamente. Isso lhe permite dar um passo atrás nas disputas entre modelos de justiça distributiva (pois o poder de justificação sobre as estruturas de produção e distribuição antecede a discussão sobre o que será distribuído – recursos, bem-estar ou capabilities ); na tensão entre paz e direitos humanos (porque ambos estão subordinados a um princípio de justiça, que reivindica a entrada no domínio das justificações recíprocas e se contrapõe às injustiças que acompanham conflitos violentos); nas críticas feministas, negras e pós-coloniais contra machismo, etnocentrismo e iluminismo (que se apoiam na exigência de uma justificação aceitável para todos, de modo que é a própria justiça a tornar visível sua realização imperfeita).2

  1. A fundamentação forstiana do direito fundamental à justificação diferencia-se da fundamentação kantiana, porque se baseia, em lugar de uma razão prática pura, em uma razão que se efetiva contextualmente na forma de justificações. Ela pode ser resumida do seguinte modo. Toda crítica pressupõe a recusa à arbitrariedade. E entende-se como arbitrária qualquer relação que não possa ser razoavelmente aceita por todos os concernidos. Acontece que interesses básicos humanos podem sempre abrigar arbitrariedades. Vínculos afetivos, sentimentos de pertença ou concepções de vida boa (como as emergentes em uma cultura machista, racista, eurocêntrica, por exemplo) podem ser razoavelmente recusados por outras pessoas. Logo, uma perspectiva crítica da sociedade não consegue fundamento racional em interesses humanos básicos. Para Forst, a razão deveria ser compreendida não como um interesse humano básico, mas pura e simplesmente como justificação discursiva. Uma relação deixa de ser arbitrária, então, se ela pode ser justificada discursivamente para todos os concernidos. Logo, a crítica da sociedade pressupõe um poder de todos de exigir, produzir e questionar justificações na sociedade: um direito universal à justificação. A justiça (entendida como negação da arbitrariedade) e os direitos humanos (entendidos como direitos de não se sujeitar ao arbítrio de outrem) têm fundamento nesse direito básico à justificação.

Com essa fundamentação, Forst sublinha que os seres humanos não são seres passivos, necessitados e sofredores, mas sim reivindicam reconhecimento como sujeitos reflexivos e autônomos. Eles não somente participam de relações sociais, normas e instituições que constantemente reivindicam validade, mas também examinam suas justificações, as rejeitam e redefinem. Daí falar de relações sociais como ordens de justificação. A justificação efetiva que legitima e constitui as relações de poder é comparada, em meio aos conflitos sociais, com a justificação devida – que tem a qualidade de ser recíproca e universal. Essa vinculação entre justificações dadas e devidas; entre ordens produzidas por justificações e obstáculos ao direito fundamental à justificação; em suma, entre descrição e normatividade dá-se por meio (i) da descoberta das relações sociais que não podem ser justificadas recíproca e universalmente, (ii) da crítica às justificações falsas ou ideológicas, no sentido de um bloqueio ao direito à justificação, e (iii) da explicação do fracasso ou ausência de estruturas efetivas de justificação (JC, p. 195-6). Nesse sentido, permanece ele no interior da “velha questão de por que a sociedade moderna não está em condições de produzir formas racionais de ordem social”, ou seja, da investigação de por que as ordens de justificação se tornam dominações arbitrárias (JC, p. 20-1).

  1. Antes de adentrar nas possíveis críticas, três breves questões sobre a tradução.

Werle conserva a tradição da sociologia weberiana de traduzir Herrschaft como “dominação”, a qual aproxima as noções de dominação e legitimidade. Toda forma de dominação é legítima, na medida em que se entenda o conceito de legitimidade em um sentido estritamente descritivo, sem sobrepor um sentido normativo e crítico, como prioriza Forst: a qualidade de uma ordem normativa de explicar e justificar seu poder vinculativo geral aos seus subordinados (2015a, p. 189). Diferentemente da tradição weberiana, porém, Forst distingue a forma neutra (e possivelmente justa) Herrschaft da forma injusta Beherrschung (JC, p. 27). Para reproduzir no português, seria necessário algo como a distinção entre “domínio” e “dominação”, não tão intuitiva ao leitor e que pouco contribuiria para a clareza da argumentação.

Andou bem o tradutor, pois, em se manter fiel à tradição e traduzir Herrschaft e Beherrschung respectivamente como “dominação” e “dominação arbitrária”.

Uma opção que também merece comentário é a tradução da necessidade de um consentimento baseado em procedimentos de justificação institucionalizados e, ao mesmo tempo, em um sentido contrafactual, de modo recíproco e universal, com a expressão “no modo subjuntivo” (JC, p. 51 e 141). Diferente dos equiparáveis im Konjunktiv e konjunktivisch utilizados por Forst, que remetem mais diretamente, na língua alemã, à situação irreal, o subjuntivo da língua portuguesa é um modo verbal que tem vários tempos, dos quais só o pretérito representa um modo contrafactual.

Acredito que, novamente se distanciando do original, mais clara seria a expressão “no modo contrafactual”, como na tradução inglesa (2014, p. 34 e 83). O consentimento é contrafactual porque a pretensão normativa mostra-se válida moralmente na medida em que não lhe podem ser opostas justificações gerais e recíprocas. A pretensão normativa não é rejeitável, o que independe de um consenso ou aceitação efetiva (2012[2007], p. 21).

Uma opção mais polêmica é a tradução da concepção de pessoa de Forst als begründendes, rechtfertigendes Wesen, isto é, como um ser fundamentador e justificador, em termos menos carregados: “como sujeito que fundamenta e justifica” (JC, p. 159). Essa opção oferece mais consistência à argumentação, ao custo de minimizar a pretensão antropológica de Forst, como se verá a seguir.

  1. O aspecto desconcertante da obra – ou “irritante” para usar a tradução preferida nessa edição (JC, p. 135) – é sua vinculação ao individualismo metodológico: a argumentação parte de conceitos a priori, do “a priori da justificação” (JC, p. 192), em detrimento da análise social e histórica das relações de justificação. Essa análise até aparece no texto, mas só a título de ilustração. Tal ponto foi levantado por Rúrion Melo em sua crítica ao construtivismo moral de Forst: a praxis da justificação funda-se em pressupostos morais que independem da gênese histórica e política e que não oferecem um diagnóstico de época de como as reivindicações por justiça tornam-se reivindicações por respeito aos sujeitos de justificação (2013, p. 26-8). O aspecto metodológico não desmerece, no entanto, os objetivos traçados por Forst de afastar dualismos enganadores e de fundamentar o projeto de uma teoria crítica da justiça.

Na dimensão da ontologia social reside um problema mais grave para a teoria crítica defendida pelo autor. A teoria do direito à justificação não contém só uma tese sobre o domínio da teoria crítica da política (devemos investigar a distribuição do poder de justificação na sociedade), mas também uma tese ontológica (as esferas sociais são ordens de justificação). A questão que se coloca é se não bastaria, em lugar da tese ontológica, uma tese, por assim dizer, sociológica (há uma relação necessária entre esferas sociais e relações de justificação). Soa bastante implausível, com efeito, que todos os fenômenos de dominação operem no interior de ordens de justificação. Ainda que tais ordens existam, estão envolvidas por poderes anônimos – como autovalorização do capital, incremento da técnica, massificação social –, que conservariam sua intensidade mesmo diante de uma estrutura básica de justificação. O que sempre causou perplexidade na modernidade foi por que tantas pessoas se identificam com a desigualdade e a dominação arbitrária e deixam de questioná-las. Seus grilhões não são de ferro, mas imaginários. Que todos tivessem garantias de exigir justificativas dos demais não significa que os poderes sistêmicos seriam amplamente questionados. Se a justificação permanecesse potencialmente aberta, esses poderes ainda não desmoronariam como tais, não ficariam vulneráveis, nem seriam desmascarados como injustificáveis, porque continuariam produzindo, de modo massivo e duradouro, bloqueios à atividade crítica. Daí a dificuldade de pensar em uma primazia ontológica da justificação.

A questão acerca da ontologia social surge sempre e novamente diante das tentativas de compreender a sociedade com base em um eixo único – como acontece comumente em relação ao sistema capitalista (cf. Dardot & Laval, 2016, p. 31 e 3845; Jaeggi, 2015, p. 15) ou à ideia de liberdade (cf.

Honneth, 2011, p. 9 e 35-40). Não é preciso supor metafisicamente, como ainda é comum entre os teóricos críticos, que todas esferas sociais e todos valores da sociedade moderna estejam fundidos em uma lógica, valor ou razão. No caso da teoria crítica de Forst, não é possível ignorar que há ordens que não se estabelecem por justificações, senão por seu bloqueio sistemático. Mais plausível parece supor uma relação necessária entre as esferas sociais e as justificações, mas sem excluir a relação concomitante com estruturas que impedem que as esferas sociais sejam planejadas, controladas ou direcionadas por razões. É o que sinaliza Forst ao mencionar os complexos de justificação ideológica, que naturalizam a dominação e se esquivam de questionamento crítico (JC, p.170). Poderes sistêmicos parecem ser ordens que dependem necessariamente de justificações, mas que dependem delas de uma forma necessariamente preconfigurada e entravada, o que impede a abolição, ou mesmo reforma dessas ordens. Por isso, a dominação sistêmica antes determina justificações do que é por elas determinada.3

Ao responder a críticas contra seu conceito de poder, Forst vai admitir a necessidade de distinguir a dominação relacional da estrutural, insistindo, então, na conexão que existe entre essas estruturas e a produção de justificações e ações dos que se beneficiam delas ou dos que poderiam modificá-las: “nós devíamos nos livrar da oposição não-dialética entre considerações de poder estruturais ou entre agentes [inter-agential], porque claramente precisamos de ambas” (2018, p. 303).4 A sociedade moderna parece estruturada tanto em ordens de justificação, quanto em ordens sistêmicas, mesmo que entre elas subsista uma relação necessária, que se poderia chamar, mais convincentemente, liames de justificação, muito mais frágeis. Isso significa recusar a ontologia social monista de Forst e retornar a uma relação dualista, entre mundo da vida e sistema, como desenvolvido por Habermas (1995[1981]).

Essa crítica à pretensão ontológica da teoria de Forst não afeta, contudo, a abordagem defendida. A preocupação do filósofo alemão é que o direito à justificação precisa considerar o que há de racional na história e manter a distinção entre lutas sociais emancipatórias e não-emancipatórias, entre justificações boas e ideológicas, que é a pressão pela reciprocidade e universalidade adentrando todas esferas sociais, aí compreendidas as esferas de dominação sistêmica (2015c, p. 52-3). O direito à justificação não requer a tese extravagante de que todas as esferas sociais são realmente ordens de justificação. Em suas palavras:

Isso é uma razão importante para separar a análise, primeiro, sobre o exercício de poder entre agentes da análise, segundo, sobre formas estruturais de poder que expressam, constrangem e permitem tais formas de poder e, terceiro, do caráter e formação de recursos inteligíveis [ noumenal ] ou condições de fundo que levam e suportam essas estruturas, especialmente as narrativas de justificação em que se apoiam (2018, p. 306).

Além da crítica ao sentido ontológico da teoria do direito à justificação, é preciso acrescentar uma crítica à sua pretensão antropológica (os seres humanos são seres justificadores), a qual está no centro do argumento da obra Direito à Justificação (cf. 2007, p. 13 e 38-9) e é reproduzida nos trabalhos mais recentes (cf. 2018, p.317-8). Não que a imagem de uma sociedade plenamente transparente e baseada em conteúdos e razões não rejeitáveis razoavelmente entre indivíduos dotados de um direito igual à justificação seja vaga e idealista, que ela abstraia das relações sociais ou que tome os sujeitos como unidades atomizadas. Nada disso. Afinal, as justificações dadas são sempre aqui e agora, conforme a situação e os conflitos reais, envoltas e obscurecidas por emoções, ideologias, ameaças; e as justificações devidas são aquelas voltadas pragmaticamente ao estabelecimento de uma estrutura básica de justificação (JC, p. 143).5 A questão que se coloca é se a ideia normativa de um direito individual à justificação volta a ser escorada em um interesse básico humano.

Em vez de o direito fundamental à justificação ser apresentado somente como condição de possibilidade para qualquer discurso crítico, cai-se na tentação de justificar a justificação. Forst invoca a natureza humana para justificar o dever de reconhecer os outros como seres justificadores, em outras palavras, como seres que usam e necessitam de justificações (JC, p. 159). A carência por justificações e a capacidade de as produzir, exigir e questionar são convertidas em um direito moral, embora possam ser tão arbitrárias quanto qualquer outra carência ou capacidade. A questão é saber se a argumentação forstiana prescinde desse fundamento. De fato, não é necessário vincular o direito à justificação a uma antropologia. Em Justificação e crítica, Forst parte de que não uma capacidade ou carência humana, mas um princípio moral representa o critério último para julgar sobre a legitimidade das relações sociais. A tradução brasileira tem razões, pois, para minimizar o apelo ao ser justificador. Evita-se confundir o fundamento moral do direito à justificação seja com o fundamento em capacidades e carências humanas, seja com o fundamento em uma concepção de vida boa (a vida autônoma e reflexiva), do qual Forst busca se distanciar (JC, p. 90 e 105).

A maneira de conectar a dimensão moral da justificação aos demais contextos da justiça vem a reboque, ainda assim, das pretensões ontológica e antropológica, das quais se tentou resguardar até aqui a teoria crítica de Forst. O direito de recusar razões não-recíprocas e não-universais tem como objeto “toda ação ou norma que pretende ser legítima”, em uma “teoria abrangente dos direitos humanos” (JC, p.111). Acontece que, salvo a dimensão moral, as razões para agir não são recíprocas e universais. A justificação das ações individuais é incapaz, na maioria dos casos, de generalização, pois depende de premissas éticas, econômicas, jurídicas ou políticas compartilhadas, sem as quais não há ação justificada. Nesse aspecto, Seyla Benhabib tem razão em apontar que reciprocidade e universalidade funcionam para justificar deveres perfeitos, em uma estrutura básica de justificação, não deveres imperfeitos.

É incompreensível como tais critérios poderiam guiar agentes individuais na justificação discursiva de suas ações éticas, políticas, jurídicas e econômicas (2015, p. 5-7). Respondendo, Forst exemplifica que a reciprocidade exclui o apelo a verdades religiosas ou à vontade da maioria para proibir a construção de minaretes ou o uso de vestes religiosas pelas mulheres (2015b, p. 50), o que está correto; todavia, a reciprocidade nada esclarece se o patrimônio urbanístico deve ter preferência à construção de templos, se certas vestes devem ter primazia à igualdade de gênero, quer dizer, acerca de conflitos entre valores e razões diferentes e irreconciliáveis. As dificuldades emergem na medida em que o direito à justificação seja alçado a uma teoria moral abrangente, capaz de regular todas as ações que tocam outras pessoas, em vez de uma teoria política, no sentido rawlsiano do termo (2005[1993], I, §2).

Nenhuma dessas críticas obscurece o que se pode reconhecer como avanços importantes na teoria crítica contemporânea, em razão do esforço de Forst de “limpar o terreno” dos “entulhos conceituais” acumulados nas controvérsias sobre esse modo de fazer filosofia. Trata-se de uma obra incontornável para todos que se engajam na tarefa de fazer um diagnóstico das sociedades contemporâneas do ponto de vista emancipatório, isso quer dizer, da justiça.

Notas

1 Essa questão vai ser retomada na obra mais recente de Forst (2015a, p. 13-5).

2 Sobre esse último ponto, ver especialmente os argumentos de Forst contra as críticas feministas à ideia de pessoa de direito e às linguagens políticas universalistas (1994, p. 117-123 e 199-209).

3 Devo essa ideia de poder sistêmico a conversa com José Ivan Rodrigues de Sousa Filho.

4 Sobre isso, ver respostas a Steven Lukes, Clarissa Hayward e Albena Azmanova (2018).

5 Forst insiste nesses pontos ao responder às críticas de que sua teoria seria ingênua e racionalista quanto às motivações humanas, ou excessivamente vaga e abstrata quanto à determinação dos direitos humanos, como acusam Seyla Benhabib (2015b), Simone Chambers (2015c), Simon Susen, Steven Lukes, Mark Haugaard e Matthias Kettner (2018).

Referências

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DARDOT, P., & Laval, C. (2016).A nova razão do mundo: Ensaio sobre a sociedade neoliberal [2009]. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo, SP: Boitempo.

FORST, R. (1994).Kontexte der Gerechtigkeit: Politische Philosophie jenseits von Liberalismus und Kommunitarismus. Frankfurt am Main: Suhrkamp.

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HABERMAS. J. (1995).Theorie des kommunikativen Handelns: zur Kritik der funktionalistischen Vernunft [1981]. Band 2. Frankfurt am Main: Suhrkamp.

HONNETH, A. (2011). Das Recht der Freiheit: Grundriß einer demokratischen Sittlichkeit Frankfurt am Main: Suhrkamp.

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RAWLS, J. (2005).Political liberalism [1993]. Expanded edition. New York: Columbia University Press.

Felipe Moralles e Moraes – Universidade Federal de Santa Catarina E-mail: [email protected],

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Contra os Retóricos – SEXTO EMPÍRICO (RA)

SEXTO EMPÍRICO. Contra os Retóricos. Introdução, Tradução e notas de Rodrigo Brito e Rafael Huguenin. Marília: UNESP, 2013. Resenha de: DINUCCI, Aldo. Revista Archai, Brasília, n.15, p. 153-155, jul., 2015.

Até certa altura do século XX compreendia- se, nos meios de pesquisadores de filosofia antiga, o dito de Whitehead segundo o qual tudo o que fora escrito depois de Platão serviria tão somente como notas de rodapé aos diálogos do ateniense 1 como uma confirmação da suposta inferioridade e redundância das filosofias helenísticas em relação àquelas de Platão e Aristóteles. Entretanto, tal visão logo se viu superada pelo trabalho acadêmico de eminentes pesquisadores que reuniram os fragmentos das obras dos filósofos helenistas e começaram a estudá-los. Von Arnim, no princípio do século XX, já coletara os fragmentos dos antigos estoicos 2. Décadas depois, Anthony Long e David Sedley completaram uma importante obra 3 na qual selecionaram e comentaram fragmentos dos estoicos, dos céticos e dos epicuristas. Filósofos destacados como Dudley 4 pesquisaram o que nos chegou dos cínicos. Lukasievicz 5 e Benson Mates 6, notáveis lógicos contemporâneos, debruçaram-se sobre a lógica estoica. E a lista não parou mais de aumentar. Hoje, filósofos de vulto, como Suzanne Bobzien, Jonathan Barnes, Julia Annas e Nicholas Rescher 7 dedicam-se ao estudo dos filósofos helenistas. A tal ponto valorizou-se o estudo destes filósofos que, entre norte-americanos e europeus, não se concebe mais que um pesquisador de filosofia antiga ignore ou não dedique parte de seu tempo ao estudo dos helenistas.

O filósofo francês Pierre Hadot, também responsável pela valorização do estudo dos filósofos helenistas, foi um dos primeiros a enfatizar o caráter existencial dessas filosofias, que se traduz pela complementaridade entre teoria e prática. Essa ligação da filosofia com a ação, da filosofia eleita como escolha de vida, é o diferencial dessas filosofias, tanto em relação àquelas de Platão e de Aristóteles, quanto no que tange à filosofia moderna e contemporânea que, herdeiras do medievo, trazem consigo a ferida da separação medieval entre a filosofia e a prática filosófica – melhor ainda: da extirpação desta última em nome de uma moralidade cristã fundada no dogma teológico 8.

O ceticismo é um dos quatro pilares do helenismo filosófico, sendo os outros o estoicismo, o cinismo e o epicurismo. Sua aposta é alta: a busca da imperturbabilidade através da suspensão de juízo e da superação dos dogmatismos filosóficos. No Brasil, o ceticismo antigo tem sido pesquisado por grandes filósofos do cenário nacional, tais como Danilo Marcondes Filho e Luiz Bicca, só para citar dois nomes que nos vêm imediatamente à mente. Entretanto, faltavam as traduções dos textos primários, em especial a tradução das obras de Sexto Empírico, médico e filósofo que viveu provavelmente entre 160 e 210 d.C. e que é um dos expoentes do ceticismo antigo, ao lado de Pirro de Élis (360-270 a.C.). Essa lacuna começou a ser preenchida, em 2013, pelos jovens pesquisadores Rodrigo Pinto de Brito e Rafael Huguenin (ambos graduados em filosofia pela UERJ e mestres e doutores em filosofia pela PUC-RJ) com a publicação pela UNESP da tradução bilíngue e anotada de Contra os Retóricos, de Sexto Empírico.

Rafael e Rodrigo fazem ambos parte do Viva Vox, grupo de pesquisa da Universidade Federal de Sergipe que conta com a maior biblioteca especializada em filosofia helenista da América Latina, biblioteca que vem se constituindo com o apoio de sucessivos editais do CNPq. Além de editor-júnior da revista de filosofia Prometeus 9, Rodrigo Pinto de Brito é o responsável, junto com Cesar Kiraly, doutor em filosofia, professor da UFF e autor de Ceticismo e Política (São Paulo: Giz editorial, 2012), pela organização dos Colóquios sobre Ceticismo, evento que ocorre desde 2012 no Rio de Janeiro.

Dos tratados de Sexto, três nos chegaram: Esboços de Pirronismo e dois outros (con)fundidos na obra intitulada Adversus Mathematicos. Cada um dos seis primeiros livros dessa obra recebe um nome diferente: Livro I –  Contra os Gramáticos; Livro II – Contra os Retóricos; Livro III – Contra os Geômetras; Livro IV – Contra os Aritméticos; Livro V – Contra os Astrólogos; Livro VI – Contra os Músicos. Os livros VII, VIII, IX, X e XI perfazem outra obra, que nos chegou incompleta, sendo os livros VII e VIII intitulados Contra os Lógicos; os livros IX e X, Contra os Físicos; e o Livro XI, Contra os Éticos.

Contra os retóricos, a obra comentada, traduzida e anotada pela dupla de jovens filósofos cariocas, corresponde ao livro II de Adversus Mathematicos. Em Contra os Retóricos, Sexto busca demonstrar a impossibilidade de ensinar a retórica e negar que a retórica seja uma arte (techne). Começando pela constatação da multiplicidade de concepções coexistentes de techne, Sexto conclui pela falta de consistência da noção. O próximo passo do filósofo é a tentativa de provar que é impossível definir tal techne, através do exame da definição platônica, aristotélica e acadêmica de retórica. Sexto volta-se então para a concepção estoica, buscando refutá-la ao final do opúsculo. A obra de Sexto, essencial para a compreensão do ceticismo antigo, é riquíssima como fonte de fragmentos de outras correntes filosóficas da Antiguidade. Sexto é a principal fonte para conhecermos a lógica estoica, sendo um dos poucos comentadores antigos que têm real compreensão do escopo de tal lógica (Diógenes Laércio, nossa segunda mais importante referência no assunto, nada faz senão citar verbatim o manual de lógica de Díocles de Magnésia).

A tradução comentada e anotada de Contra os Retóricos é realizada com esmero. As notas são abundantes e relevantes, constituindo-se como ferramenta de pesquisa da mais alta qualidade. Lamenta-se, entretanto, que a EDUNESP não tenha ainda disponibilizado graciosamente o pdf da obra, de modo a difundi-la como se deve. Que se tome como exemplo, para isso, os Classica Digitalia 10, da Universidade de Coimbra, que combinam edições físicas excelentes com a divulgação gratuita em formato digital.

Contra os Retóricos pode ser adquirido diretamente pelo site da editora EDUNESP, no link: http://www.editoraunesp.com.br/catalogo-detalhe asp?ctl_id=1486. Estão todos convidados então para, junto com Sexto, buscarem a imperturbabilidade através da razão crítica e da suspensão de juízo.  Dos mesmos pesquisadores teremos, neste ano de 2015, a publicação de Contra os Gramáticos, obra que se encontra já no prelo, também pela EDUNESP.

Notas

1 “The safest general characterization of the European philosophical tradition is that it consists of a series of footnotes to Plato”(WHITEHEAD, A. N. (1929). Process and Reality. An Essay in Cosmology. Gifford Lectures Delivered in the University of Edinburgh During the Session 1927–1928. Cambridge, Cambridge University Press, p. 39).

2 VON ARNIM, H. (2005). Stoicorum Veterum Fragmenta Volume 1: Zeno or Zenonis Discipuli [1903]. Berlim. De Gruyter.

3 LONG, A. A. & SEDLEY, D. N. (1987). Hellenistic Philosophers (volumes 1 & 2). Cambridge,. Cambridge University Press.

4  DUDLEY. D. R (1937). A history of cynicism. Londres,  Mithuen & co.

5 LUKASIEWICZ, J. (1970). On the History of the Logic of Proposition [1934]. IN: Jan Lukasiewicz Selected Works. Amsterdam, North-Holland Pub. Co.

6 MATES, B. (1961), Stoic Logic. Berkeley-Los Angeles, University of California Press.

7  Refi ro-me aqui par- Refiro-me aqui particula rmente ao impressionante trabalho de 1966: Galen and the syllogism (Pittsburgh, University of Pittsburgh Press), no qual Rescher comenta um tratado de Galeno sobre lógica que nos chegou em árabe.

8  HADOT, P. (1995). Philosophy as way of life. New Jersey, Blackwell, p. 107.

9  http://seer.ufs.br/index.php/ prometeus.

10  Cf. classicadigitalia.uc.pt

Aldo Dinucci – Professor associado da Universidade Federal de Sergipe – Sergipe, Brasil. E-mail: [email protected]

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A história deve ser dividida em pedaços? | Jacques Le Goff

A história deve ser dividida em pedaços? é o último livro escrito pelo medievalista francês Jacques le Goff, postumamente publicado na França em 2014 e de recente tradução para o português por Nícia Adan Bonatti. O comentador responsável pelo texto introdutório que se lê nas badanas do volume responde à pergunta sobre o que esperar do último escrito do erudito francês com uma palavra: coerência. Nisto nos reinscrevemos plenamente à visão do comentador não-identificado, pois neste ensaio le Goff retoma sua reflexão, já presente em Uma longa Idade Média (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008) sobre as possibilidades várias de periodização da história, argumentando principalmente pela não-pertinência ou pertinência atenuada e meramente parcial do termo “Renascimento” enquanto categoria analítica para dar conta de suposta viragem cultural ocorrida ao longo dos séculos XV e XVI. Leia Mais

Política Externa Brasileira: a busca da autonomia/de Sarney a Lula | Tullo Vigevani e Gabriel Cepaluni

As potências médias têm política externa? O que significa ter autonomia nas relações internacionais? Quais os melhores caminhos para alcançá-la? Como as noções de autonomia se relacionam com a crescente interdependência econômica global? E como é processada diante dos movimentos de integração regional? Guiados por tais problemas, Tullo Vigevani e Gabriel Cepaluni – professores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) – pensam a experiência internacional contemporânea do Brasil. Por um lado, as reflexões teóricas sobre os significados de autonomia delimitam o foco do estudo sobre a política externa brasileira após o fim do regime militar. De outro, a investigação empírica confere substância à construção conceitual sobre as formas peculiares de como a busca por autonomia se manifestou em cada contexto. Sob uma abordagem dialógica entre geral/particular e abstrato/concreto, os autores explicitam a co-constituição e a simbiose entre o pensamento teórico e o empírico.

No primeiro capítulo, Vigevani e Cepaluni debatem as diferentes noções de autonomia nas Relações Internacionais e apresentam suas próprias formulações. De acordo com os autores, a literatura latino-americana compreende autonomia como uma noção que se refere a uma política externa livre dos constrangimentos impostos pelos mais poderosos. Nesse sentido, autonomia é o espaço do não-impedimento e da autodeterminação. É a capacidade de resistir ou neutralizar as forças externas que restringem a liberdade de um Estado de traçar seus próprios rumos. Essa visão se contrapõe às noções presentes nas teorias mainstream, que reduzem seu significado à igualdade jurídica da soberania dos Estados. Leia Mais

Brasil arcaico, Escola Nova: ciência, técnica e utopia nos anos 1920-1930 – MONARCHA (RBHE)

MONARCHA, Carlos. Brasil arcaico, Escola Nova: ciência, técnica e utopia nos anos 1920-1930. São Paulo: Editora Unesp, 2009. Resenha de: PEREIRA, Lucas Carvalho Soares de Aguiar. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, v. 12, n. 2 (29), p. 267-280, maio/ago. 2012.

Carlos Monarcha é professor titular na Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Araraquara. Autor dos livros A reinvenção da cidade e da multidão: dimensões da modernidade brasileira (1990), Escola Normal da Praça: o lado noturno das luzes (1999) e Lourenço Filho e a organização da psicologia aplicada à educação (2001). Atualmente coordena pesquisas sobre as “figurações da infância deficiente”, interrogando as estruturas teórico-metodológicas da produção científica sobre o “problema do anormal”.

O livro em epígrafe consiste um ensaio dividido em cinco partes: “A caminho”, “Melancolia e mal-estar”, “Torvelinho da vida moderna”, “À procura do indivíduo perdido e solitário” e “O discurso do inconsciente”. Além de um belo epílogo intitulado “Por um bravo novo mundo”. A primeira parte trata de novos projetos pedagógicos no século XIX, desde a Europa até sua circulação mundial. Na segunda, encontramos interrogações sobre os projetos da Escola Nova no Brasil republicano. Já na terceira parte, os leitores se deparam com uma reflexão sobre o tempo moderno e as idealizações de modelos cognitivos para as massas. E, finalmente, na quarta e na quinta partes, o autor deteve-se sobre os processos de medidas e classificações corporais e mentais e de difusão da psicanálise, respectivamente, observando a construção da normalização dos sujeitos, bem como de seus desvios.

Brasil arcaico, Escola Nova poderia ser só mais uma leitura entre as inúmeras que temos à nossa disposição sobre o tema da Escola Nova, não fosse a capacidade de o autor construir uma representação sensível e arguta desse tema, além de apresentar uma visão de conjunto, conferindo-lhe outro sentido e contribuindo para o debate acadêmico e para os interessados em geral. É uma leitura cujo ritmo é lento, detalhado e refletido, tal como o autor anuncia em seu prefácio (p. 16). Justamente pela polifonia de sua narrativa, que incorpora diversos discursos, sonhos e desejos do período, mas que ainda nos são caros. Monarcha escreve um “ensaio documentado” (p. 16) de uma história de sensibilidades, de formas de conferir sentido ao mundo, de sonhos postos em práticas, fundidos a instituições, corpos e personalidades de várias gerações. Mas antes de tudo é uma história de um problema, o da Escola Nova. Não simplesmente um problema de pesquisa sobre o qual ele se debruçou, teceu, desmanchou e refez outros pontos com destreza. Mas sim uma história que procurou compreender como esse problema foi construído, proposto e revisto ao longo da primeira metade do século XX, especialmente no decorrer das décadas de 1920-1930.

O autor traça inicialmente um panorama das transformações ocorridas no pensamento pedagógico ao longo do século XIX e no início do XX, que teriam uma forte relação com o desenvolvimento técnico e científico e com as transformações econômicas e sociais daquele tempo. A chamada Escola Nova “armou-se com o rigor epistemológico próprio da ciência analítica, ou seja, observação dos fatos, manejo do método experimental, quantificação e generalização da experiência” (p. 32). Essa hipótese é apresentada no primeiro capítulo da primeira parte do livro e se desdobra ao longo desse ensaio, sem que o autor se refira a ela o tempo todo, pois ele o faz na própria narrativa, carregada dos discursos de diferentes atores.

Assim, Monarcha busca compreender como se pôde constituir uma série de saberes sobre a infância, atravessados e atravessando os saberes pedagógicos desde fins do século XIX. Dessa forma, é fácil entender sua preferência por perseguir discursos dos precursores de uma pedagogia de massa, e pelos autores e atores que, ao firmarem uma “concepção de educação como atividade pessoal, espontânea e ativa, mas também, e sobretudo, como alento necessário para reerguer o mundo” (p. 46), acabaram por promover e participar de uma expansão planetária dos ideais, sonhos, desejos e sensibilidades próprios do movimento da Escola Nova.

Falamos de sonhos, desejos, sensibilidades, pois não é disso que se trata quando grupos humanos se mobilizam por alguma causa? Os exemplos descritos pelo autor indicam que grupos de intelectuais brasileiros se organizaram com base em uma sensibilidade que foi construída e retroalimentada pelo próprio movimento de sua constituição. E a formação de uma sensibilidade política atenta à infância e à formação das futuras gerações é um dos pontos que pretende ser explicado pelo livro. Se a educação das sensibilidades não é exatamente o foco desse estudo, ela toma parte importante em sua constituição. Ao procurar entender como foi possível a formação de inúmeros saberes científicos sobre a formação ética, psíquica e física da infância, o autor aponta para as possibilidades da educação de um tipo específico de sensibilidades para as crianças, nos idos das décadas de 1920 e 1930. Essa é a leitura que Monarcha faz da inúmeras reformas e propostas de reformas da educação que surgiram diante da “I Grande Guerra” e suas repercussões mundiais; reformas essas que compuseram importantes realizações na constituição da escola de massa.

É assim que somos introduzidos às propostas de intelectuais envolvidos num chamado “mercado planetário de ideias” (p. 57), quando da criação da Liga Internacional pela Educação Nova, que se apresentava como um movimento cumpridor do seu dever histórico na trama teleológica do progresso. Desse panorama internacional e geral, mesclado com observações de processos ocorridos no Brasil, que é apresentado nos quatro primeiros capítulos da primeira parte, somos conduzidos ao “Espírito novo no redemoinhar brasileiro”, capítulo cinco dessa seção. Nele o autor constrói a hipótese de que a geração de 1920, composta por produtores de bens simbólicos preocupados com uma revolução cultural, amparados numa clássica luta entre o antigo e o moderno, possuía uma dívida significativa com a geração de 1870. Essa hipótese reforça outros trabalhos que indicam essa mesma dívida intelectual, mas sua importância deve-se à indicação das tensões observadas pelos próprios escolanovistas no projeto de passagem de um imaginado Brasil arcaico e atrasado para um tão sonhado Brasil renovado e desenvolvido. Tensões explicitadas por reiteradas propostas de mudanças que reatualizavam os desejos da geração progressista e liberal do final do século XIX.

Na segunda parte, “Melancolia e mal-estar”, o historiador analisa o mal-estar das elites políticas e intelectuais diante das ruínas históricas de uma “República desfigurada”, título do primeiro capítulo dessa seção. As frustrações dos republicanos acabaram alimentando incertezas e um chamado “horror moral” desses grupos sociais diante da “população brasileira”, que ocupava uma vasta e confusa região denominada sertão. O autor (p. 92) define essa noção, baseado em relatos originais, como “terra de ninguém, habitada por homens e mulheres dotados de força rude, porém, inconscientes de si, confins subjugados pelo caos da natureza e afastados da ordem nacional”. O sertão aparece, nos discursos analisados, como signo de doença, um grande desejo de construir a nação por meio da educação, que regeneraria e curaria o corpo doente do país, que se disseminou no campo político e pedagógico. O sanitarismo, como processo de intervenção médica no corpo social, passa a ser tomado pela pedagogia e por projetos pedagógicos brasileiros.

Essa seria uma das bases para formação de uma “ficção científica”, que percebia a sociedade humana como um organismo vivo, constituindo-se uma ambiência capaz de desenvolver uma sensibilidade intelectual e política que orientou novos projetos políticos e propostas pedagógicas. Para o autor (p. 112), “o clima mental dos anos 1920 pôs em movimento a mística de regeneração dos costumes do governo e do povo”, que seria um pressuposto geral das movimentações sociais e políticas dos anos de 1910-1920 e da chamada Era Getuliana. A consciência nacional, para diferentes grupos escolanovistas, “seria construída por esforço concentrado de cultura” (p. 119). E esses grupos acreditaram ser preciso tocar e verificar os corpos, “esclarecer a alma coletiva e formar o espírito nacional” (p. 121). Era o princípio de elaboração de uma formação discursiva totalizante, que procurava constituir um Estado forte. Essa incursão do autor nos discursos de diferentes intelectuais brasileiros é importante para revermos algumas construções historiográficas míticas do caráter totalitário do governo Vargas, pois suas reflexões indicam que a formação de um espírito nacional pautado numa ideia de um Estado forte, ainda que reforçando certo tipo de liberalismo, é anterior à consagrada era totalitária dos anos de 1930.

Ao apontar os grupos envolvidos nesses projetos, o autor lança mão da noção de intelligentsia sem, entretanto, explicitar seu entendimento a respeito desse conceito. Na historiografia, é comum nos depararmos com o uso dessa noção funcionando mais como uma simples adjetivação do que como conceituação, mas dificilmente encontramos uma definição mais precisa do termo, tampouco sua importância para os objetos em análise, o que contribuiria para o debate historiográfico – especialmente na obra em questão, uma vez que o autor se propôs, num desafio heurístico, a trilhar outros caminhos e indicar novas abordagens sobre o tema da Escola Nova. A despeito disso, o trabalho deixa uma forte contribuição para a historiografia, indicando um fértil caminho de problematização das propostas escolanovistas, entendidas como integrantes de uma ampla rede política e social – com variadas manifestações culturais – que teria integrado intelectuais diversos e estimulado a elaboração de diferentes projetos político-pedagógicos para a população brasileira, que se espalharam tanto nas relações escolares quanto nas dinâmicas urbanas, as mais diversas.

Um exemplo disso pode ser observado na argumentação que se segue na terceira parte, “Torvelinho da vida moderna”. Esse é o conjunto de capítulos que mais se aproxima da recente produção em história da educação preocupada com a educação das sensibilidades e dos sentidos. O autor (p. 128) traça um percurso dos modernistas, que criaram uma espécie de fé no futuro e supunham “ter a percepção da transitoriedade da duração das coisas e das ideias” em meio a uma propagada era da velocidade. A “superação do Brasil arcaico” teria se dado por meio da conjugação de “aspectos do organicismo medieval com a energia e racionalidade moderna”, o que, para o autor (p. 136), configurou-se como uma ideologia do conhecimento. A “confiança na educação para a criação de um ser humano dotado de um código de sentimentos e interesses à cultura de seu tempo” (p. 139), por meio da ciência e da técnica, assumiu função ideológica de modernização, com um caráter de formação de representações e sentimentos em comum.

A tríade ação, prática e experiência tornou-se importante para o desenvolvimento da educação dos sentidos, via lição de coisas. Assim, diversos autores passavam a ter a convicção de que os sentidos e as sensibilidades são educados e poderiam ser mais bem orientados por meio de projetos pedagógicos. Nada de novo no campo da educação se pensarmos na tradição das lições de coisas mas essa postura tomou outra configuração no início do século XX. A ânsia de unir escola, vida e trabalho levou à consagração do “modelo formativo destinado a imprimir nas massas um jeito de ser e viver feito de experimentação e realismo por estar envolvido com os afazeres do mundo” (p. 179). Apresentando essas originalidades, em virtude também do ritmo da cidade industrial – que criava “novo estados de consciência e de alma” (p. 180) –, Monarcha (p. 173) revê os feitos dos escolanovistas, defendendo a tese de que o “chamado ‘movimento do Estado Novo’ não iniciou, mas fechou um ciclo de especulações e realizações aberto pela geração ilustrada de 1870”.

Nas duas últimas partes, “À procura do indivíduo perdido e solitário” e “O discurso do inconsciente”, é retomada uma série de saberes que mediram, diagnosticaram, examinaram, testaram, nomearam e classificaram os corpos e a psique de milhões de pessoas, adultos e crianças. Concomitante ao desejo de “aumentar a eficiência e o rendimento da ‘machina escholar’”, havia um esforço de fazer com que as pessoas fossem “transmutadas em documentos vivos para extração de dados caracteriológicos” (p. 218). As enquetes disseminadas naquele momento serviram de base para identificação de uma variedade de tipos mentais, como avançados, atrasados pedagógicos, retardados físicos médios, indisciplinados natos e débeis orgânicos para constituir as classes homogêneas.

O autor argumenta que os diferentes trabalhadores da pedagogia atuaram ativamente na sociedade por terem suas sensibilidades educadas pela grandeza da razão científica; tida como chave para o sucesso na criação de mecanismos efetivos para educação dos sentidos e sensibilidades das crianças, já que poderia transformá-las em um eficiente tipo racial, mental e social de um tão sonhado Brasil. Esse seria o “sintoma da certeza que acometia os peritos-funcionários dispostos a transpor muros e operar nos meios sociais e reorganizá-los com critérios de ordem de grandeza” (p. 236), preparando os jovens para suas respectivas funções sociais e econômicas, uma vez que cada tipo mental constituiria um tipo de trabalhador.

Eis que entram em cena a psicanálise e as ciências psi, que circularam por diversos setores culturais, como planos editoriais de livros científicos, colunas de jornais e revistas, romances e programas de rádio, bem como blocos carnavalescos. A discussão dessa parte nos impulsiona a pensar novos problemas e projetos de pesquisa interessados na história da educação do gênero e da sexualidade na escola, como a educação sexual defendida por Porto-Carrero e Deodato de Moraes, tanto na I Conferência Nacional de Educação, de 1927, como em publicações e cursos realizados na Associação Brasileira de Educação (ABE), mas também em pesquisas interessadas na educação da sexualidade na dinâmica cultural e social, que se desenvolveram a partir da década de 1920.

Além disso, a psicanálise foi utilizada como arma contra as afecções neuróticas e doenças mentais da criança, fracassos escolares e possibilidades de desenvolvimento de condutas criminosas. Para o autor (p. 290), “esse imaginário cientista da vida e do corpo era produzido por influentes nomencladores às voltas com ensaios de individualização de condutas incriminadas”, incrustando “a subjetividade num férreo esquema teórico ao Leito de Procusto” (p. 270). Tudo isso é realizado com base na análise de uma vasta documentação sobre clínicas escolares, testes psicológicos e outros projetos que produziram um conhecimento científico sobre a consciência a inteligência e as possibilidades de desenvolvimento das pessoas comuns.

Assim somos levados ao epílogo, “Por um bravo novo mundo”, e a rever a problemática do livro. Partindo de debates sobre Huxley, o autor percorre as experiências pedagógicas de anarquistas e comunistas, bem como as empreitadas dos desejos liberais. Somos convocados a realizar uma leitura do empreendimento da Fordilândia na Amazônia brasileira, como a realização de uma utopia moderna, intimamente ligada aos desejos de Roberto Mange (apud MONARCHA, 2009, p. 246), para quem “o operário formado é uma roda dentada que se adapta a qualquer sistema de engrenagens de formação idêntica”. Esses desejos de um mundo novo, anunciados por diversos saberes políticos, científicos e sociais, perpassaram e  foram perpassados pela pedagogia.

O autor reafirma, enfim, a tese da importância da pressão da base material sobre a esfera da cultura, sem, entretanto, realizar uma análise mecanicista. Para ele, as ciências surgidas e fortalecidas nesse momento constituíram-se como possibilidades concretizadas pela política e na política (p. 302). Donde a formulação das noções de educação para o trabalho, para a vida, para o desenvolvimento moral, para a cultura e preparo da alma humana, tão disseminadas em diferentes, e por vezes antagônicas, tradições políticas. Donde a anexação pela pedagogia da “arte de explorar diferenças” (p. 303), legado ainda caro aos educadores do século XXI. Em tempos da Política nacional de educação especial na perspectiva da educação inclusiva e da Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência, esse livro possui um importante papel para reflexão da prática pedagógica contemporânea, uma vez que nos convida a compreender e observar problemas ainda por serem resolvidos. Pela relevância e atualidade do tema, pelo exemplo de tratamento metodológico da documentação e do problema, trata-se, pois, de importante publicação do campo da educação, da área da história da educação e, em especial, da história da educação das sensibilidades modernas, científicas e políticas.

Referências

Brasil. Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência. Protocolo Facultativo à Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência. Brasília:

Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, 2007.

______. Política nacional de educação especial na perspectiva da educação inclusiva. Brasília: MEC/SEESP, 2008. Documento elaborado pelo Grupo de

Trabalho nomeado pela Portaria Ministerial n. 555/2007, prorrogada pela portaria n. 948/2007, entregue ao Ministro da Educação em 7 de janeiro de 2008.

Lucas Carvalho Soares de Aguiar Pereira – Mestrando do Programa de Pós-Graduação: Conhecimento e Inclusão Social em Educação, na linha de pesquisa de História da Educação – FAE – UFMG. Bolsista CNPq. E-mail: [email protected]

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Brutalidade jardim: a Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira | Christopher Dunn

Publicado em 2001, nos Estados Unidos, Brutalidade jardim: a Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira é fruto da descoberta da música tropicalista pelos norte-americanos na década de 1990. Partindo do seu encantamento pelas canções e da perspectiva dos estudos culturais, o brasilianista Christopher Dunn escreveu uma história da Tropicália a partir de um recorte temporal amplo, mesmo admitindo que o movimento tropicalista foi atuante somente entre os anos de 1967 e 1969. A cronologia proposta por Dunn para tratar da Tropicália tem início na Semana de Arte Moderna de 1922 e alonga-se até o ano 2000.

O título do livro destaca a ligação do movimento tropicalista com o modernismo; a expressão “brutalidade jardim” foi retirada de um romance de Oswald de Andrade, “padrinho literário e espiritual da Tropicália”, e utilizada na letra de Torquato Neto para a música “Geleia geral”. O autor utiliza a expressão para se referir, também, à realidade brasileira após o golpe militar, que exploraria a imagem do paraíso tropical – e as premissas ideológicas embutidos em seu uso – e a violência imposta pela ditadura. Jardim e brutalidade coexistem, então, em uma aproximação contraditória. Leia Mais

Leituras e Leitores na França do Antigo Regime | Roger Chartier

Roger Chartier historiador francês vinculado à atual historiografia da Escola de Annales, onde trabalha sobre a história do livro, da edição e da leitura, e que nesta obra apresenta oito ensaios que constituem uma história cultural em busca de textos, crenças e gestos aptos a caracterizar a cultura popular tal como ela existia na sociedade francesa entre a Idade Média e a Revolução Francesa. O intelectual francês mostra que a cultura escrita influencia mesmo àqueles que não produzem ou lêem textos, mas interagem com eles. Ao revisitar a chamada Biblioteca Azul, coleção de livros acessíveis vendidos por ambulantes (romances de cavalaria, contos de fada, livros de devoção), além de documentos próprios da chamada “religião popular” e textos sobre temas que se dirigem a um público geral, como a cultura folclórica, o autor enfoca as tênues fronteiras entre a chamada cultura erudita e a popular, mostrando como se ligam duas histórias: da leitura e dos objetos de leitura. Leia Mais

A experiência como fator determinante na representação espacial da pessoa com deficiência visual | Sílvia Helena Ventorine

O livro de Sílvia Helena Ventorine é resultado de sua dissertação de mestrado defendida no Curso de Pós-Graduação em Geografia da UNESP de Rio Claro, no ano de 2007. Com base na sua larga experiência e pesquisa com alunos deficientes visuais (cegos e de baixa visão), a autora trás informações imprescindíveis para graduandos e professores de geografia do ensino fundamental e médio que buscam conhecimento de como trabalhar com alunos deficientes visuais.

O livro aborda a deficiência visual como um todo, mostrando e analisando as especificidades do que é uma pessoa com baixa visão e uma pessoa cega. Para isso, em seu levantamento bibliográfico a autora elenca diversos teóricos dando maior ênfase para Vygotsky, David Warren, Custforth, Veiga e Vasconcelos. A autora ressalta que o trabalho de Vygotsky relacionado a deficientes visuais indica a importância das relações sociais e a linguagem no desenvolvimento cultural desses indivíduos. Utiliza David Warren para nortear a sua pesquisa no que se refere ao desenvolvimento da criança cega em que apresenta suas características com relação ao período sensório-motor. Leia Mais

O capitalismo tardio. Contribuição à revisão crítica da formação e do desenvolvimento da economia brasileira | João Manuel Cardoso de Mello

A Editora Unesp, em parceria com a Facamp está relançando um conjunto de obras clássicas sobre a história econômica do Brasil. Uma destas, O Capitalismo Tardio, de João Manuel Cardoso de Mello, estava esgotada há doze anos. Trata-se de sua tese de doutorado, defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, um Instituto criado em 1967, tendo como núcleo a área de economia, em 1975. No prefácio da tese — excluído das edições em livro — João Manuel Cardoso de Mello explica que sua intenção inicial era “examinar o papel do capital estrangeiro em nosso desenvolvimento”. Entretanto, à medida que o trabalho avançava o autor foi percebendo as fragilidades da escola de economia política na qual se educara, a Cepal (Comissão econômica para a América Latina e Caribe). O propósito se deslocou, assim, para a ideia de que “era preciso pensar o desenvolvimento brasileiro como formação de um certo capitalismo, de um capitalismo que nascera tardiamente”. Leia Mais

Política social e racial no Brasil – 1917-1945 – DÁVILA (RBHE)

DÁVILA, Jerry. Diploma de brancura. Política social e racial no Brasil – 1917-1945. São Paulo: Unesp, 2006. Resenha de: GONÇALVES, Mauro Castilho Gonçalves. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, n. 24, p. 193-219, set./dez. 2010

O tema da eugenia marcou as discussões educacionais no Brasil desde a segunda metade do século XIX quando começaram a chegar aos trópicos as primeiras ideias relacionadas ao branqueamento da população brasileira. Esse arcabouço ideológico influenciou polí­ticas e práticas, chegou à escola pública, decidindo o futuro, não muito promissor, da população negra. Nessa linha, direciona-se o livro Diploma de brancura. Política social e racial no Brasil – 1917-1945, escrito por Jerry Dávila, traduzido por Cláudia Sant’Ana Martins e publicado pela Unesp no ano de 2006. Historiador porto-riquenho, Dávila é professor associado na Universidade da Carolina do Norte em Charlotte. É especialista no tema relações raciais e tem lecionado no Brasil, especialmente na Universidade de São Paulo e na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

No prefácio à edição brasileira, o autor destaca, num primei­ro momento, as transformações nas políticas raciais brasileiras, particularmente em função das ações afirmativas lideradas por movimentos negros, desde a emergência do Movimento Negro Unificado, criado em oposição ao regime militar. Sabemos, hoje, o quanto esse debate se fortaleceu no Brasil até consolidar-se, por exemplo, na questão das cotas, objeto de muitas discussões travadas no âmbito da política e da sociedade civil.

O livro em tela é o resultado das pesquisas que o autor efetuou, nos anos de 1995 e 1996, nos arquivos do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, da Iuperj, no Arquivo Geral da Cidade (RJ), dentre outros. A tese foi defendida na Brown University. Ainda no prefácio, Dávila expõe os argumentos que o motivaram a pesquisar seu tema no Brasil, especialmente no período que compreendeu as primeiras  décadas do século XX, “quando as instituições educacionais con­temporâneas foram formadas, o pensamento racial ajudou a guiar as políticas públicas” (p. 12). Dois momentos da história contemporâ­nea brasileira são analisados pelo autor: a chamada República Velha e a Era Vargas, o que justifica o recorte cronológico apresentado no subtítulo do livro, pois, segundo o historiador porto-riquenho, nessas conjunturas foram desenvolvidas “políticas públicas tanto inspiradas nas correntes intelectuais e científicas internacionais quanto em sua leitura das mazelas do povo brasileiro” (p. 12).

O campo pesquisado pelo autor foi o Rio de Janeiro das pri­meiras décadas do século XX e suas escolas públicas e o impacto que sofreram a partir da implementação de reformas educacionais lideradas por Afrânio Peixoto, Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo. Oautor analisa as contradições internas das reformas: de um lado, realizadas para expandir o ensino público e de outro, provocando fortes desigualdades no tratamento dos alunos pobres e negros e as formas como os reformadores, especialmente na década de 1930, aproveitaram a oportunidade histórica de, à luz das ciências eugênicas e da lógica da indústria moderna, colocar em prática a crença de que pela educação o Brasil alcançaria seu pleno desenvolvimento.

O livro está dividido em seis capítulos. No primeiro, o autor discute as articulações e projetos oriundos do Ministério da Edu­cação e Saúde (MES) na gestão de Gustavo Capanema em torno do tema “Educando o homem brasileiro”, um conjunto de ações inspiradas no nacionalismo, na ciência eugênica, sob o comando de um Estado forte. De início, é apresentada a correspondência trocada entre Gustavo Capanema e Oliveira Viana, datada de 30 de agosto de 1937. O conteúdo refere-se aos questionamentos de Capanema quanto à constituição física do homem brasileiro. Estava na pauta a encomenda de uma estátua do “Homem Brasileiro”, feita para ornamentar a entrada do novo prédio do Ministério da Educação e Saúde no Rio de Janeiro, símbolo da arquitetura mo­derna, projetado por Charles Le Corbusier, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Tal encomenda gerou uma polêmica no Ministério. O escultor Celso Antonio apresentou um projeto que Capanema discordou: o “Homem Brasileiro” segundo a perspectiva do artista era um caboclo, de raça mestiça, ou seja, “tudo o que Capanema esperava que o Brasil deixasse para trás” (p.49). Para o ministro, o futuro do Brasil era branco e forte. Oartista recusou-se a seguir as orientações do ministro e a escultura foi cancelada. Com esse preâmbulo, o autor inicia o primeiro capítulo analisando as políticas de educação empreendidas na gestão Capanema, sob a inspiração da teoria eugênica. Ainda nesse capítulo, Dávila discorre sobre o que ele denomina “eugenia brasileira”, liderada por nomes como Renato Kehl, Fernando de Azevedo (secretário da Sociedade Eugênica de São Paulo), Edgar Roquette Pinto, Afrânio Peixoto, dentre outros. Nesse particular, em se tratando do tema da eugenia em São Paulo nas primeiras décadas do século XX, Dávila não explora uma produção do período relevância histórico-educacional: os Annaes de Eugenia, organizados pela Sociedade supracitada e publicados pela Revista do Brasil no ano de 1919. Dali poderia retirar outras importantes interpretações sobre a problemática da eugenia brasileira.

Uma problematização é levantada pelo autor para guiar sua reflexão neste capítulo. Para ele, os projetos educacionais dos eugenistas, que se firmaram na década de 1920 e ganharam ple­na expressão durante a Era Vargas, lançam luzes sobre uma das questões mais paradoxais do Brasil moderno: como a ideia de que o Brasil era uma democracia racial se tornou o mito orientador da nação durante a maior parte do século XX, principalmente diante de desigualdades raciais visíveis de tamanha proporção? Questão que o autor responde a partir da análise das relações de interde­pendência entre educação e saúde, presentes nas políticas públicas engendradas nas primeiras décadas do século XX, em especial no governo Vargas e materializadas em reformas do sistema escolar em capitais como o Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Salvador e Belo Horizonte, por intermédio de um revezamento efetuado pelos principais representantes do escolanovismo brasileiro: Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira, Lourenço Filho, Carneiro Leão e Afrânio Peixoto.

As reformas deram ênfase à educação higiênica, e à formação física e moral das crianças, utilizando-se do referencial teórico-metodológico da psicologia moderna em emergência nos círculos intelectuais e acadêmicos brasileiros. Ocaso mais exemplar foi o da criação, no Rio de Janeiro, do Instituto de Pesquisas Educacionais (IPE), instituição arquitetada por Anísio Teixeira, quando diretor do Departamento de Educação. OIPE passou a produzir pesquisas a partir de seus quatro setores: Testes e Medidas, Rádio e Cinema Educativos, Ortofrenia e Higiene Mental e Antropometria.

No segundo capítulo intitulado “Educando o Brasil”, o leitor encontrará a apresentação e a análise de como se efetuou a conso­lidação do uso da ciência estatística no interior dos quadros gover­namentais, especialmente no MESpara a produção de amostragens quantitativas sobre a situação educacional brasileira. Nessa linha, o resultado mais emblemático foi a criação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Na sequência, Dávila discorre sobre a estrutura do MES, sob a direção de Francisco Campos e Gustavo Capanema e conclui apresentando a situação da cidade e da educação pública no Rio de Janeiro dos anos de 1930, dando ênfase à configuração do espaço urbano e o lugar social das elites e das populações menos abastadas, em especial da raça negra.

No capítulo “O que aconteceu com os professores de cor do Rio?”, o autor discute o que ele denomina “processos históricos que levaram ao gradual branqueamento do quadro de professores do Rio de Janeiro” (p. 147). Utilizando-se de fontes iconográficas, pesquisadas especialmente no arquivo de Augusto Malta no Rio e nos anuários do Instituto de Educação, Dávila defende a tese segundo a qual para os reformadores o “professor moderno” era branco, feminino e de classe média (p. 148), paradigma que con­trastava radicalmente com a situação do sistema público de ensino carioca no início do século XX. Para o autor, esse quadro inicial foi, aos poucos, se modificando na medida em que os reformadores passaram a defender uma visão diferenciada do novo professor. Além disso, as políticas de formação dos novos quadros de docentes baseavam-se em metodologias consideradas avançadas e modernas, “uma elite moderna treinada cientificamente, muito bem-educada, refletindo as normas rigorosas da saúde, temperamento e inteli­gência, e dotada de um senso corporativo de identidade e classe social semelhante ao dos militares” (p. 165), ou seja, a caminho da profissionalização.

Na sequência, o tema tratado é o da “Educação Elementar”. Aqui Dávila analisa a principal reforma do sistema escolar carioca, reali­zada por Anísio Teixeira entre os anos de 1931 e 1935. Segundo o autor, a ação reformista desse pioneiro “combinou as principais ten­dências científicas que governavam a política social: o nacionalismo eugênico, racionalização sistemática e profissionalização” (p. 42). Segundo o autor, Teixeira projetou uma reforma do sistema de ensino adotando princípios e técnicas emprestadas dos Estados Unidos. Para Anísio Teixeira, os grandes obstáculos da modernização da educação pública eram os pais e o currículo existente. Para tanto, criou um sistema de ensino racionalizado, dividido em quatro departamentos: “Curricular, Matrícula e Frequência, Promoção e Classificação de Alunos e Prédios e Aparelhamentos Escolares” (p. 213). Dávila detalha com precisão e crítica as funções e as principais realizações desses setores durante a gestão de Anísio Teixeira.

O quinto capítulo apresenta uma interessante discussão sobre o que o autor denomina “A Escola Nova no Estado Novo”, período em que Anísio Teixeira foi afastado do sistema escolar por intermé­dio da pressão dos oponentes católicos e, em seu lugar, assumiram militares sob forte influência da Igreja católica. Após a exclusão de Teixeira e sua equipe, o Departamento de Educação foi ocupado pelo ex-ministro da educação Francisco Campos, por pressão do prefeito do Rio de Janeiro, Pedro Ernesto Batista. Porém, logo de­pois, com a consolidação do golpe do Estado Novo, Campos passou a ocupar o cargo de Ministro da Justiça de Vargas. O interessante nesse capítulo está relacionado com a leitura de Dávila acerca da participação e influência dos militares e dos grupos católicos na condução das políticas de educação no Rio de Janeiro, fortemente influenciadas pelo paternalismo e nas relações entre educação, raça (eugenia) e nacionalismo. Essa discussão, segundo nossa avaliação, pode ainda ser explorada no campo das pesquisas em História da Educação, a partir, por exemplo, das publicações católicas veicu­ladas no período da ditadura Vargas.

No último capítulo, é apresentada a situação do ensino secun­dário no Rio de Janeiro no período, por intermédio de um estudo de caso: o Colégio Pedro II, instituição modelo que treinava uma reduzida elite no sentido de adotar “a linguagem do nacionalismo eugênico” (p.43), posto que a grande maioria da população era impedida de avançar no processo de escolarização. Para o autor, o referido Colégio materializava, via escola, o projeto de Vargas, especialmente no período mais radical de ditadura.

Para analisar a questão da raça no interior do Colégio, Dávila pesquisou dois jornais estudantis, Pronome e O Arauto, esse úl­timo investindo quase sempre no tema da educação física e sua importância na formação do caráter dos alunos. Além disso, o jornal divulgava atividades promovidas pelo Colégio, dentre elas uma conferência sobre eugenia. Outra fonte de difusão da eugenia, segundo o autor, encontrava-se em livros escritos por professores do Pedro II, destaque para Raja Gabaglia e Jonathas Serrano, len­tes de Geografia e História, respectivamente. “Os dois principais livros de Jonathas Serrano, História da civilização e Epítome de história do Brasil adotavam uma perspectiva nacionalista, católica e eurocêntrica” (p. 323).

Jerry Dávila, por fim, apresenta uma relevante discussão te­mática, contribuindo, sem dúvida, na ampliação das fontes e no aprofundamento teórico da abordagem escolhida. A partir de sua opção histórica e historiográfica, o autor expõe ao público leitor novos conhecimentos sobre eugenia e sua relação com as políticas públicas de educação nas primeiras décadas do século XX, forne­cendo um mapeamento de fontes de pesquisa alternativas e pistas a serem exploradas e analisadas pelos pesquisadores da área.

Mauro Castilho Gonçalves – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. E-mail: [email protected]

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As cidades no tempo | Margarida Maria CArvalho, Maria Aparecida de S. Lopes e Susani Silveira Lemos França

A história das cidades é vista, desde os tempos antigos, como uma analogia da vida humana. Já no final do período clássico grego, surgem biografias de Atenas, Esparta, Tebas etc. A homologia traçada entre as fases da vida humana – como nascimento, vida e morte – e o processo de formação, desenvolvimento e decadência da cidade é perceptível ainda nas biografias de Plutarco, escritas no primeiro século de nossa era. Não obstante, a teoria evolucionista de Charles Darwin reforça as concepções dos fisiocratas modernos, os quais despontam com a visão de ascensão e queda de um sistema citadino como algo natural, construindo-se, assim, uma espécie de símile entre a sobrevivência dos mais aptos na natureza e as cidades mais preparadas para dominar as demais.

A complexidade desses pensamentos revela a acepção de domínio natural de uma cidade sobre as outras, pautada, na maioria dos casos, em sua distinção econômica, política, religiosa ou literária. Nesse sentido, deparamo-nos com a noção de singularidade sustentando a criação de uma cidade-modelo e excluindo as diferenças sob o argumento da unidade administrativa. Ora, vemos através da história o quanto essa concepção de singularidade nos conduz à intolerância, refletida nas tentativas de eliminação da diversidade cultural. Leia Mais

Ensaios sobre o capitalismo no século XX | Luiz Gonzaga de Mello Belluzo

Responda rápido: o que o grupo de rock Capital Inicial, o magnum opus de Karl Marx, O Capital, e a revista CartaCapital têm em comum? Não, não é a similaridade de nomes: é que todos eles se opõem, ao menos intelectualmente, ao capitalismo, ainda que dele não possam prescindir. O mesmo talvez deva ser dito desta coletânea sobre o velho capitalismo e suas novas roupagens.

Não sei se o autor aprecia o grupo de rock brasiliense, mas ele fez seu capital inicial escrevendo uma tese sobre “valor e capitalismo”, tornou-se um grande leitor de Marx (e de outros pensadores da economia, favoráveis e contrários ao capitalismo) e é membro do conselho editorial de CartaCapital, de onde foi tirada a maior parte dos artigos. A “mais valia”, neste caso, é que, além de textos sobre a história da economia capitalista, sobre a globalização e sobre os intelectuais críticos ao capitalismo, o livro também comporta quatro artigos sobre futebol, mas estes pertencem a uma espécie de “hora da saudade”, sem trazer valor agregado ao conjunto dos ensaios de vulgarização que integram as três primeiras partes. Leia Mais

Luta subterrânea. O PCB em 1937-1938 | Dainis Karepovs

Só muito recentemente os historiadores brasileiros tomaram a si a tarefa de estudar a história dos partidos políticos no Brasil, área, até então, essencialmente ocupada por sociólogos e cientistas políticos. Em que pese este fato, demasiado relevante para as ciências humanas e sociais, tendo em vista as possibilidades metodológicas que se abriram com os estudos destes profissionais, são ainda poucos os trabalhos que recortam o tema à maneira dos historiadores. Ainda que se deva destacar o mérito do pioneirismo com que sociólogos e cientistas políticos promoveram tais estudos ao primeiro plano das grandes temáticas e preocupações da academia, não deixa de surpreender positivamente quando um pesquisador renuncia ao uso corrente de categorias funcionais, tipos ideais ou explicações essencialmente macroestruturais, numa investigação sobre as atividades e o pensamento de um partido político como o PCB, certamente o mais pesquisado do Brasil e um dos mais conhecidos entre os Partidos Comunistas do mundo, para mergulhar no universo pouco conhecido dos pormenores da produção intelectual e política dos seus principais dirigentes. Leia Mais

Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora | Bruno Latour

A recente edição em língua portuguesa do livro Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora nos convida, a nós leitores brasileiros, à leitura de mais um trabalho de Bruno Latour. Particularmente, instiga-me saber por que, dentre tantos autores dos chamados estudos sociais da ciência, Latour tanto se destaca entre nós. Afinal este é o terceiro livro deste filósofo e professor do Centre de Sociologie de l’Innovation (CSI),1 aqui publicado.2 Muito embora, alguns haverão de retrucar, se trate de obras quase obrigatórias, uma vez presentes nas referências bibliográficas da maior parte dos trabalhos sobre as relações entre ciência, tecnologia e sociedade.

No entanto, Ciência em ação distingue-se de grande parte da produção anterior de Latour, lembrando que sua primeira edição, em língua inglesa, é de 1987 pela Havard University Press. Distingue-se por não ser um estudo denso de uma instituição de pesquisa ou de um fato científico, a exemplo dos precedentes Laboratory life (com Woolgar, 1979) e Les microbes: guerre et paix (1984). Não, aqui seguimos um Latour entretido com uma série de estudos de caso, alguns realizados por outros pesquisadores.3 Um Latour preso à tentativa de estabelecer as recorrências e as singularidades entre as situações e os contextos relatados nesses estudos, para então pensar nas problemáticas e métodos compartilhados por seus autores. Pensar, portanto, na possibilidade de um campo de pesquisa interdisciplinar dedicado às relações entre ciência, tecnologia e sociedade. Reivindicando, sobretudo, uma forma de análise não centrada no social nem só no técnico, porém capaz de respeitar a dinâmica não hierárquica e não-linear de suas imbricadas relações. Leia Mais