A história do embaixador Morgenthau: o depoimento pessoal sobre um dos maiores genocídios do século XX – MORGENTHAU (A)

MORGENTHAU, Henry. A história do embaixador Morgenthau: o depoimento pessoal sobre um dos maiores genocídios do século XX. São Paulo: Paz e Terra, 2010. 314 p. Resenha de: SILVA, Rogério Fernandes. Antítese, v. 4, n. 8, jul./dez. 2011.

Demorou 92 anos para que a obra do embaixador dos Estados Unidos Henry Morgenthau fosse traduzida e editada em língua portuguesa. O livro cujo título em nossa língua é extremamente longo: “A história do embaixador Morgenthau: o depoimento pessoal sobre um dos maiores genocídios do século XX (Tradução de Marcello Lino)” diferente do título original em inglês “Ambassador Morgenthaus Story” bem mais simples. A obra é um dos documentos mais importantes do século passado, pois relata o início do extermínio étnico e cultural contra os cristãos armênios (1915-1923), inaugurando uma prática que, com o passar dos anos, seria conhecida através da palavra genocídio. A expressão surgida em 1944 gerou um termo que visava dar um estatuto jurídico específico aos crimes de guerra contra minorias étnicas, religiosas ou culturais na Segunda Guerra Mundial. O livro é dedicado ao presidente americano Woodrow Wilson (1912-1921), idealizador da Liga das Nações. A obra é dividida em 29 capítulos curtos, sendo os  últimos um pouco mais longos, todos eles ricos historicamente. As 324 páginas passam rapidamente, pois o texto é elegante e de fácil compreensão. Pode-se dividir em apresentação em língua portuguesa dos tradutores, um pequeno prefácio do autor e o corpo do livro em duas partes principais. A primeira seria sobre a convivência de Henry Morgenthau com os políticos turcos. A segunda parte começa a partir do capítulo vinte e dois que está relacionada com o genocídio do povo armênio. Na segunda parte, estão muitos dos relatos dos massacres que foram feitos por missionários norte-americanos, pois ao chegarem à capital do império procuravam o embaixador para comunicar as atrocidades.

Diante das informações dessas fontes e de outras um quadro terrível de atrocidades começa a ficar nítido. Demorou um pouco até que a história das atrocidades armênias chegar à embaixada americana com todos os detalhes horríveis. Em janeiro e fevereiro, relatórios fragmentados começaram a surgir aos poucos, mas a tendência, no início, era considerá-los meras manifestações das desordens que haviam prevalecido nas províncias armênias por muitos anos. Quando chegaram de Urumia, tanto Enver quanto Talaat os descartaram como exageros descabidos […]. Naquele momento não estava claro, agora vejo que o governo turco estava determinado a esconderas notíciais do mundo exterior enquanto fosse possível (MORGENTHAU, 2010, p. 255).

Os dois principais grupos envolvidos nos massacres têm origens distintas. Primeiramente é preciso uma breve introdução eles. A nação Armênia fazia parte do Império Otomano. Uma nação de tradição milenar, com língua própria e cultura. São descendentes das tribos hurritas que vieram da Índia a partir do século XVIII a.C. Os armênios são, portanto, do ramo linguístico indo-europeu. Eles chegaram à Ásia Menor e lá se estabeleceram. No primeiro século de nossa era, segundo a tradição, a região foi evangelizada por Bartolomeu e Judas Tadeu, apóstolos de Cristo. Os dois foram martirizados na região, mas implantaram o cristianismo nas áreas montanhosas da Armênia. A nação teve uma história de numerosos martírios um forte indício da implantação a fé cristã na região. No ano de 301, a Armênia tornou-se o primeiro país do mundo a proclamar essa doutrina religiosa como religião de Estado.

Na formação do antigo Império Otomano e, consequentmente, da atual Turquia, o grupo étnico dos turcos seljúcida, ramo dos turcos oguzes, vieram da região onde hoje é o Turquestão, eram um povo guerreiro que aderiu a fé islâmica. A partir do século XI eles invadiram a Ásia Menor e converteram-se ao Islã, através da força, a maior de todos os habitantes desta região. Dominaram os povos de outras etnias, entre estes, os armênios. Em 1071, invadiram a região da Armênia e em 1300 chegaram à Anatólia, tomou todo o leste do Império Bizantino, Constantinopla no oeste caiu, no meado século XV, junto do que restava de tal Império.

Voltando à narrativa de Henry Morgenthau, norte-americano de origem judia, foi embaixador na Turquia no período da Primeira Guerra Mundial e presenciou uma das primeiras atrocidades promovida por um Estado-nação. A Alemanha, no início do século XX, levou a Bulgária, a Romênia e a Turquia a Primeira Guerra como aliadas, Morgenthau era na época embaixador norte-americano em Constantinopla. A obra em questão é um depoimento pessoal de quem conviveu com os políticos turcos, estes diretamente responsáveis pelo mais longo massacre do século XX. Cerca de um milhão e meio de cristãos armênios foram mortos a mando dos fundadores da Turquia moderna, um grupo que ficou conhecido como os Jovens Turcos.

O grupo dos Jovens Turcos pretendia modernizar a sua região de maneira autoritária: Essa afirmação representava o ideal dos Jovens Turcos para o novo Estado, mas era ideal que evidentemente estava além da capacidade de realização do grupo. As raças que foram maltratadas e massacradas durante séculos pelos trucos não podiam se transformar da noite para o dia em irmãs, e os ódios, ciúmes e preconceitos religiosos do passado ainda subdividiam a Turquia em uma miscelânea de clãs em guerra.

Acima de tudo, as devastadoras guerras e a perda de grandes partes do Império Turco haviam destruído o prestígio da nova democracia. Houve muitos outros motivos para o fracasso, mas não é necessário discuti-los neste momento (MORGENTHAU, 2010, p. 22). Os Jovens Turcos formaram um grupo político heterogêneo que pretendia reverter às perdas territoriais e esfacelamento do Império Otomano. Além de promover reformas constitucionais, muitas de caráter secular e pró-ocidente, e assim acabaram impondo suas idéias através de muito derramamento de sangue. Os principais articuladores, para Henry Morgenthau, foram Talaat Paxá, ministro do interior, o germanófilo Enver Paxá, ministro da guerra. Como Morgenthau os descreve? Apesar do ideal inicial dos Jovens Turcos, este acabar sendo deixado de lado por causa das prerrogativas do poder político. Eles não eram mais uma força política regeneradora, pois haviam abandonado qualquer expectativa de reforma. Talaat, Enver e Djermal (outro Paxá) tinham por detrás deles uma comissão de quarenta homens. Morgenthau chega a comparar os Jovens Turcos com gangues americanas, isto por causa do recurso do assassinato e “homicídio oficial” o governo turco não era bem visto pelas autoridades americanas da época.

O embaixador americano conviveu com os administradores do Império Otomano que usurparam o poder com um golpe. Esses homens pretendiam modernizar a nação que acreditavam estar em frangalhos depois de sucessivas derrotas militares.

Para tanto, o embaixador notou que a aproximação da Turquia com a Alemanha levaria o país, contando com capital alemão, a uma reestruturação. Os Jovens Turcos acreditavam na possibilidade de tornar-se uma potência regional graças à aliança com as nações da Europa central. Alguns vislumbravam o Império retornar a sua glória antiga e estender seu poder pelo mundo. Os dirigentes turcos estavam interessados na ajuda modernizadora dos germânicos e esses últimos na posição estratégica da Turquia, que poderia ser utilizada para ameaçar o Império Russo, em caso de guerra.

Como bom americano, o embaixador fala sobre a Doutrina Monroe de forma positiva, para ele foi ela que salvou o México da interferência francesa e faltou igual à Turquia, pois esta acabou nas mãos alemãs sem que nenhuma potência ocidental interviesse (Idem, p.33).

No caso do México, a ingerência desastrada do Imperados francês Napoleão III, na tentativa de estender a influência na América, implantou uma monarquia fantoche no México (1864–67). Com ajuda dos americanos esse governo foi derrubado e o imperador estrangeiro Maximiliano, arquiduque austríaco executado. A Doutrina Monroe podia ser resumida como “América para os americanos” que visava à interferência dos norte-americanos em caso de haver novas ações dos países europeus sobre as Américas. Essa ideologia possibilitou a reserva de mercado para os americanos e intervenções militares em vários países da América Latina.

Vale ressaltar que o primeiro capítulo do livro é dedicado a influência alemã sobre o Império Otomano e ao representante máximo desse poder: o embaixador barão Von Wangenheim, escolhido pessoalmente pelo Kaiser, representante perfeito dos preconceitos teutônicos, raciais e militaristas, em moda no império alemão. Von Wangenheim foi um dos maiores incentivadores da aliança turca com a Alemanha e ficou indiferente diante dos massacres. Para o embaixador americano, a atitude alemã e de seu embaixador no Império Otomano foram responsáveis pelo genocídio durante os anos da Primeira guerra Mundial. Ao descrevê-lo, Henry Morgenthau ressalta: “Ao escrever sobre Wangenheim, ainda me sinto afetado pela força de sua personalidade; […], ele era fundamentalmente impiedoso, despudorado e cruel.” (MORGENTHAU, 2010, p. 19). Consequentemente, Morgenthau via o embaixador alemão como seu antagonista perante a defesa de sentimentos humanitários, segundo ele, em uma terra governada por bárbaros.

A luta para assegurar a integridade dos estrangeiros pelo embaixador, junto às autoridades turcas foi titânica, pois os alemães as instigavam e manipulavam. No princípio dos combates o governo do Império Otomano já estava nas mãos da Alemanha. Os argumentos da oposição civilização versus barbárie foram usados diversas vezes por Morgenthau. A polidez do embaixador não permitia expressar sua opinião publicamente seus preconceitos sobre a cultura turca, que apesar de compreendê-la um pouco, via-os como “selvagens com sede de sangue” (MORGENTHAU, 2010, p. 200).

A época está relacionada à consolidação do Imperialismo, a disputa por mercados lucrativos levam as nações mais industrializadas a ocuparem regiões diversas pelo mundo. Os países europeus acabaram criando Uma das justificativas era que as colônias seriam tuteladas pelas nações mais adiantadas, por isso mais civilizadas.

Seriam como crianças bárbaras aprendendo a crescer como civilizações e o modelo seria a própria Europa Ocidental. No período que exerceu como embaixador em Constantinopla eclodiu a Primeira Guerra Mundial. As nações europeias já estavam há muito tempo em disputa pelas colônias mais lucrativas começam a combater umas as outras, o embate era ansiosamente esperado. O Antagonismo Inglaterra e Alemanha cresceu tanto que leva diversos países ao combate levando outros países com eles.

Porém, existia um medo de que elementos cristãos dentro do Império Otomano se aliar aos russos. A intenção de eliminar os armênios foi premeditadamente planejada com afinco pelos governantes turcos. Quando ocorre a Primeira Guerra Mundial os turcos aproveitam a chance: Para que aquele plano de assassinar uma raça fosse bem-sucedido, dois passos preliminares teriam de ser dados: seria necessário neutralizar o poder de todos os soldados armênios e privar de armas os armênios em todas as cidades e vilarejos. Antes que a Armênia pudesse ser massacrada, era necessário torná-la indefesa (MORGENTHAU, 2010, p. 237).

O governo turco resolveu deportar os armênios sobreviventes dos massacres iniciais, em sua maioria idosos mulheres e crianças e os forçaram a sair de suas casas e marcharem para o deserto, muitos só com as roupas do corpo. Forçados a voltar para sua terra ancestral foram expulsos das cidades e vilarejos, pois estavam espalhados por todo Império. Numerosos morreram no caminho de fome e exaustão; nessas marchas da morte as pessoas eram atacadas e mortas ou feitas prisioneiras para servirem de escravas.

Em vez de simplesmente massacrar a raça armênia, eles decidiram deportá-la. Nas seções sul e sudeste do Império Otomano fica o deserto sírio e o vale da Mesopotâmia […], e hoje uma terra estéril triste e desolada sem cidades, aldeias nem vida de qualquer espécie, povoada apenas por algumas tribos beduínas selvagens e fanáticas (MORGENTHAU, 2010, p. 242).

O autor conta detalhes quase íntimos da diplomacia envolvida e os planos dos embaixadores europeus em Constantinopla. Tramas políticas, movimentos militares, características culturais, físicas e psicológicas dos personagens, nada fica de fora da percepção de Morgenthau. Sua estadia propiciou um relacionamento muito próximo como os protagonistas políticos da região. E essa intimidade fora determinante para seu afastamento voluntario de Constantinopla e retorno aos EUA, não aguentava mais a companhia dos homens responsáveis por tantas mortes. Muitos desses políticos locais queriam que ele permanecesse como embaixador, mas: Meu fracasso em deter a destruição dos armênios transformou a Turquia em um lugar terrível para mim e considerava intolerável a minha associação diária com homens que, por mais gentis, […], ainda exalavam o cheiro do sangue de quase um milhão de seres humanos (MORGENTHAU, 2010, p. 296).

A impressão que fica é a de um Henry Morgenthau que se tornou em Constantinopla uma figura quase quixotesca lutando pelos seus ideais humanitários, porém, amargurado pela sua impotência. Os políticos turcos demonstravam afabilidade para com sua pessoa, mas dissimulavam que iriam resolver em favor dos armênios e continuaram com as mortes. O que o desanimou foi uma estrutura de poder antiga alicerçada na subjugação violenta, no ódio e na intolerância. Portanto, a leitura desse livro é de suma importância, pois nos ajuda a compreender o surgimento do genocídio no século XX, e a sua relação com o Estado-nação moderno. Esse tipo de eliminação em massa persistiu durante todo o século passado, mas ainda ameaça persistir e continuar a desenvolver-se nos tempos atuais.

Rogério Fernandes da Silva – Professor de rede pública da cidade de Maricá e Estadual do Rio de Janeiro, especialista em História do Brasil. E-mail: [email protected].

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