A mitologia maldita: estereótipos políticos e raciais na gênese da indústria cultural | Renato da Silveira

A filósofa Julia Kristeva postula que “a semiótica utiliza-se dos modelos linguísticos, matemáticos e lógicos e os liga às práticas significantes que aborda. Esta junção é um fato tanto teórico quanto científico, portanto profundamente ideológico, e que desmistifica a ‘exatidão’ e a ‘pureza’ do discurso”.1 Para efeito do presente texto, proponho expandir a definição de Kristeva e incluir a imagética no escopo dos modelos linguísticos. Claude Lévi-Strauss afirma que “os mitos despertam no Homem pensamentos que lhe são desconhecidos”.2 O diálogo entre estas duas citações ajuda a entender a problemática apresentada pelo antropólogo e artista visual Renato da Silveira, em A mitologia maldita. Dessa forma, o título da obra já indica o caminho pelos quais o autor nos convida a caminhar: as tortuosas trilhas para se entender e, acima de tudo, enfrentar o racismo, tanto em sua forma de discurso quanto prática social e política.

À medida em que a leitura avança, o título do livro se torna quase autoexplicativo. Quando Lévi-Strauss afirma que os mitos são capazes de despertar pensamentos desconhecidos, está se referindo à sua busca pelos “elementos invariantes [na estrutura dos mitos] entre diferenças superficiais”, que podem ser decantados em palavras e em canções, podem ser também representados em imagens, além de ganharem vida sob a forma de rituais. Por esta via, uma narrativa mítica é aberta e multifacetada. Por conseguinte, e de modo bastante simplificado, para um dado conjunto de narrativas míticas dá-se o nome de mitologia. Lévi-Strauss se consagrou, na antropologia, por desenvolver uma teoria bastante complexa a respeito da autocompreensão mitológica dos povos originários da América tropical. Seu objetivo era, como deixa explícito no primeiro volume de Mitológicas, “mostrar de que modo categorias empíricas… definíveis com precisão pela mera observação etnográfica, e sempre a partir do ponto de vista de uma cultura particular, podem servir como ferramentas conceituais para isolar noções abstratas e encadeá-las em proposições”.3 Pode-se dizer que o empreendimento de Silveira é o “oposto complementar” ao de Lévi-Strauss, na medida em que o objetivo de seu livro é compreender o modo pelo qual os europeus, no decorrer do século XIX, forneceram as “ferramentas conceituais” para (re)formular a categoria Outro, dando respaldo às mitologias depreciativas calcadas no racismo que serviu de alicerce para projetos coloniais. Para tanto, Silveira analisa um repertório de textos, imagens linguísticas e visuais, manufaturado em diversos objetos produzidos pela indústria cultural, a exemplo de livros, revistas, quadrinhos, filmes, pinturas e canções.

“Uma imagem vale mais que mil palavras”. Conforme este juízo amplamente difundido no senso comum, fotografias, pinturas, gravuras, quadrinhos, memes, figuras, grafites, rabiscos, pichações, enfim, expressões visuais são capazes de sintetizar discursos e ideias que supostamente tornariam a linguagem, oral ou escrita, dispensável. Contudo, A mitologia maldita joga por terra este lugar- -comum, conforme se desenvolvem seus dez capítulos. A obra é o resultado da dedicação do autor, no decorrer das últimas três décadas, à pesquisa bibliográfica e iconográfica, com o objetivo de escancarar as bases ideológicas da construção da ideia europeia de Outro, isto é, dos “estereótipos políticos e raciais [que estão] na gênese da indústria cultural” (subtítulo do livro). Como se diz por aí, é um livro escrito para o público não especializado que tem o potencial de atrair o interesse de leitores acadêmicos, das ciências humanas e sociais. É escrito numa linguagem sofisticada, risonha, gaiata, muito envolvente, de fácil compreensão. Mas sob o manto da descontração e do deboche, o estilo do autor nos envolve e nos engana. Não é fácil falar de temas tão pesados, tais como a violência, o racismo, a tortura, a partir de uma linguagem aparentemente leve e descontraída que, ao seduzir pela forma, choca pelo conteúdo. Assim, o autor vai convidando o leitor a se envolver em sua prosa, se deixando levar pela abundância de imagens. Algumas ilustrações, todavia, não receberam um tratamento editorial mais cuidadoso, embora a iconografia seja elemento fundamental para se entender os argumentos apresentados pelo autor.

O livro é dividido em três partes. A primeira, denominada “Formadores de opinião”, é composta por cinco capítulos dedicados a apresentar os alicerces do discurso europeu a respeito do Outro, produzido, sobretudo, a partir do século XIX. Grosso modo, podem ser organizados a partir das seguintes rubricas: 1) o lugar dos viajantes, exploradores e missionários (europeus, principalmente) na formação de uma mentalidade maldita; 2) a tortura física naturalizada como tecnologia maldita; 3) a depreciação simbólica como estratégia de dominação; 4) a ideologia racista chancelada pelas ciências; 5) a peleja católicos x protestantes na consolidação de projetos coloniais ou a colonização como missão de salvação religiosa.

A segunda parte, intitulada “Estereótipos”, é formada por dois capítulos. O sexto é dedicado a apresentar o surgimento do mito da pureza racial, sintetizada na figura do ariano. Enquanto o sétimo reitera o papel da ciência como fonte de validação ideológica das práticas racistas, ou como cientistas passaram a ocupar o lugar dos missionários de distintas confissões religiosas, contribuindo para a consolidação de

estereótipos depreciativos… transferidos para a cultura de massa emergente, para os folhetins populares, as caricaturas dos jornais, os romances de aventura e de terror, as histórias em quadrinhos e, nas primeiras décadas do século XX, para o cinema de Hollywood (p. 245).

Dois dos capítulos finais (8, 9) estão organizados na Parte III, denominada “Os protagonistas”. Aqui é quando Silveira “deita e rola”, “casa e batiza”, “pinta e borda” – afinal, nestes capítulos o autor se dedica a fazer a crítica semiótica à imagética dos quadrinhos infantis como parte de uma pedagogia maldita (cap. 8); bem como o racismo contra negros era parte da estética das artes plásticas e artes cênicas, para produzir entretenimento para adultos europeus e norte-americanos (cap. 9). Por sua vez, o capítulo 10 (também da parte III) é o início do fim e uma volta ao começo do livro.

O acervo de imagens é composto por representações de objetos culturais, tais como cartazes de filmes, de espetáculos teatrais, capas de livros, voltados para reforçar a imagem de africanos como bestas selvagens e de asiáticos como trapaceiros e afeitos aos vícios morais. A superioridade dos europeus, no que se refere aos aspectos intelectuais e retidão de caráter, é o plano de fundo desta iconografia maldita. As ilustrações são a pedra de toque para se compreender como este imaginário se consolidava (apesar da abundância iconográfica, senti falta de mapas!).

Os primeiros a entrar em cena são os “Exploradores” (cap. 1) e seus relatos de viagens às longínquas terras africanas, dando conta das maravilhas e da exuberância do ambiente, ao tempo em que associam os povos africanos aos seres da natureza. Depois é a vez das figuras dos imperadores, colonizadores ingleses, alemães, belgas e franceses darem as caras para usurpar o continente africano, redesenhando seu mapa. Os relatos dos viajantes, exploradores e missionários do século XIX deram sustentação ideológica para esses países europeus disfarçarem o colonialismo sob roupagem de missão civilizadora, atualizando, portanto, a estratégia aplicada na “conquista da América”, cujo mote ideológico era a expansão dos limites da Cristandade, isto é, um projeto colonial baseado na catequese católica. A primeira parte do livro apresenta os personagens-chave e a leitura cuidadosa é fundamental para entender uma estratégia típica da prosa de ficção, adotada pelo autor, que consiste em recapitular histórias e ideias para dar sentido às ações (no caso específico, argumentos), ao longo de todo o livro.

O ponto de partida é o relato do missionário escocês, David Livingstone, que, dotado de “sensibilidade antropológica” (p.33), foi capaz de perceber que “o Cristianismo só teria algum sucesso se assumisse a tradicional lógica da acumulação do sagrado e se fundisse com as crenças locais” (p. 33). Suas viagens pelo continente africano foram realizadas entre os anos de 1840 e 1873, período em que o Império Britânico deu início ao processo de colonização daquele território, ao tempo em que envidava esforços para proibir o tráfico humano para as Américas. Os novos empreendimentos coloniais europeus na África exigiam volumosa mão de obra para cuidar da agricultura, do extrativismo e da mineração, dentre outras atividades exploratórias que dariam sustentação, no século XIX, à economia dos estados-nação europeus, na maioria já despossuídos de suas rentáveis colônias nas Américas.

Em seguida, é apresentado o resumo das façanhas de Pierre Brazza, nascido na Itália, que ganhou fama e fortuna realizando viagens de exploração pelo continente africano, a partir de 1875, para benefício da bandeira francesa. Em suas distintas expedições, além de produzir detalhadas descrições da geografia natural e humana da região, foi um agente da república francesa encarregado de enfrentar a concorrência belga, representada na figura de Henry Stanley, contratado pelo sinistro rei Leopoldo III “para conquistar o território” (p. 51).

Munko Park é o terceiro personagem e convida o leitor a recuar ao século XVIII. Este escocês, compatriota de Livingstone, era formado em medicina e partiu para o continente africano, em 1795, época em que os europeus ainda não haviam ali criado as fronteiras artificiais da colonização. O objetivo da expedição era encontrar a nascente do rio Níger, “penetrando o interior do continente, rumo a uma região da qual nenhum europeu tinha voltado vivo” (p. 56) – e Park não foi uma exceção. Além disso, antecipando o engenho e a arte da antropologia, disciplina que somente surgiria algumas décadas depois, ele elaborou uma taxonomia dos grupos étnicos e seus modos de organização cultural, política e econômica, fornecendo as informações prévias ao empreendimento colonial que seria implementado pelo Império Britânico, no decorrer do século seguinte.

Em um mundo dominado por homens, suas barbas espessas, botas de couro cujos canos se alongam até os joelhos, Mary Kinsley, a quarta personagem da série, destoa com “sua saia blindada”, capaz de protegê-la dos perigos africanos (p. 72). Filha de um médico e intelectual britânico, as primeiras expedições de Mary Kinsley começaram ainda na biblioteca de seu pai, como complemento para a formação recebida na Universidade de Cambridge, onde aprendeu “a observar os fatos do ponto de vista científico” (p. 68). Realizou duas viagens à África, em 1893 e 1895, que resultaram na publicação de um livro recheado de análises supostamente científicas, no entanto pautadas em ideias preconcebidas acerca dos modos de vida, crenças e sistemas de valores africanos, geralmente qualificados como inferiores aos similares europeus.

Os livros e documentos revelam que a colonização belga no Congo produziu uma das mais violentas e tristes passagens da história deste período. Henry Morgan Stanley, sem dúvida, é o personagem-chave para se entender o contexto de instalação do regime de terror, disfarçado de projeto “civilizador”, implementado pelo rei Leopoldo da Bélgica. Sua fama de explorador habilidoso nascera logo em sua primeira viagem ao continente, em 1871, quando foi encarregado de encontrar David Livingstone, que estava desaparecido. Por ter sido o primeiro homem branco a cruzar o território africano, Stanley conquistou o prestígio que lhe garantiu os recursos necessários para financiar diversas expedições, ajudando a organizar um sistema de exploração econômica que incluía trapacear, brutalizar, torturar e massacrar os povos africanos.

A partir das obras selecionadas por Silveira, é possível vislumbrar o papel dos viajantes e missionários para a formação, na Europa, de uma mentalidade maldita a respeito da África e suas gentes. A seleção de imagens incluídas no livro dá uma dimensão da condescendência dos europeus em relação aos negros, por se considerarem superiores em termos tecnológicos, morais, estéticos, culturais. Os negros são representados em suas posições subalternas na estrutura social das cidades metropolitanas europeias e norte-americanas, enquanto isso, nas colônias os agentes e administradores coloniais naturalizavam assassinatos de crianças, massacres de populações inteiras, exploração sexual de mulheres, decapitação de trabalhadores e camponeses rebeldes, como algo corriqueiro dos regimes de terror e disciplina. Ainda, está registrado o repertório de xingamentos “étnicos”, incorporados às línguas europeias (p. 118 e 119) no decorrer do século XIX.

Se, tal como afirma Kristeva, os signos linguísticos não são neutros nem puros, mas se sustentam e dão sustentação a práticas e discursos ideológicos, logo, este pequeno levantamento apresentado por Silveira reforça o argumento de que a construção da ideia de Outro como sujeito subalterno foi o resultado de um poderoso combo, mistura de violência física e violência simbólica.4 Neste caso, o dispositivo linguístico em forma de xingamentos constitui um mecanismo de naturalização da subalternidade que se realiza através de acordos inconscientes.

Em Mitológicas 2, Lévi-Strauss convida o leitor a “incursionar” pela “terra redonda” da mitologia, o que significa dizer que a leitura não precisa se subordinar

a um ponto de partida obrigatório. Começando por qualquer lugar, o leitor tem a garantia de completar o itinerário, contanto que direcione seus passos sempre no mesmo sentido e que avance com paciência e regularidade.5

A escrita de Mitologia maldita parece ter sido orientada por princípio semelhante, pois é possível alterar a ordem de leitura dos capítulos e criar um itinerário baseado em afinidades temáticas, distintas daquelas previamente fornecidas por Silveira. Assim, o capítulo 3 (“Publicidade & propaganda”) pode ser entendido como uma espécie de prelúdio do que será desenvolvido nos capítulos 8 (“A aventura cômica e o herói infantil na história em quadrinhos”) e 9 (“O negro cenográfico”). Lidos em sequência, estes três capítulos (3, 8 e 9) são a espinha dorsal do livro e traçam a passagem do racismo manufaturado nos textos produzidos pelos viajantes (“Exploradores”),missionários (“Catolicismo e Protestantismo”), intelectuais (“A mãe de todos os estereótipos: sua excelência, o ariano”), dos capítulos 1, 5 e 6, respectivamente, para a pedagogia sutil da produção artística. A mais insidiosa dessa pedagogia está entretecida nas histórias em quadrinhos, porquanto semeia certas ideias entre o público infantil. A esta altura é impossível não traçar um paralelo entre a literatura de Monteiro Lobato (Sítio do Pica-Pau Amarelo) e a de Hergé (Tintin).

Seguindo a proposta de alterar a ordem de leitura, é possível encontrar diversas afinidades temáticas na produção escrita dos cientistas, detalhada no capítulo 4 (“Racismo científico)” e no capítulo 7 (“Fazendo a cabeça do Outro”), para entender o modo a partir do qual o vazio deixado pelo discurso religioso foi facilmente ocupado pela ciência, o que ajuda a entender que o racismo desse último período não era um projeto vinculado a um determinado grupo, mas uma ideologia das sociedades. O capítulo 10 (“Imperadores benditos e inimigos malditos”) facilmente forma par com o capítulo 2 (“O despotismo na vida cotidiana”) e ambos reforçam o sentido sui generis do conceito de civilização, tal como praticado pelas nações europeias em solo africano, na forma de um imperialismo “que … designa não só a teoria, como também a prática de um centro metropolitano que domina um território distante, transmutado ou não em colônia” (p. 382).

Como já foi dito, a pesquisa de suporte apresentada neste livro se concentra nos discursos, práticas e imagens que, desde o século XIX, influenciaram a indústria cultural do século XX, particularmente a produção cinematográfica e as artes visuais (sobretudo quadrinhos) do hemisfério norte (especialmente dos Estados Unidos). Apesar de A mitologia maldita ter desembarcado no Brasil somente na página 292, por ocasião das peripécias da pequena Shirley (Temple) entre os negros, nos confins da Floresta Amazônica, quando a menina encarna a típica “white savior”, este livro em muito nos diz respeito, pois sistematiza a mentalidade racista que herdamos das sociedades europeias, desde o período colonial, e atualizamos através dos diferentes produtos culturais importados das metrópoles temperadas do hemisfério norte. Assim, é um livro fundamental para ajudar o leitor brasileiro a refletir a respeito do nosso passado colonial de escravidão, regime este igualmente sustentado por uma ideologia racial muito semelhante à que gerou o imperialismo europeu do século XIX e a indústria cultural do século XX.


Notas

1 Julia Kristeva, Introdução à semanálise, São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 32.

2 Claude Lévi-Strauss, Mito e significado, Lisboa: Edições 70, 1974, p. 9, 16.

3 Claude Lévi-Strauss, Mitológicas 1 (o cru e o cozido), São Paulo: Cosac & Naify, 2004, p. 19.

4 Para o conceito de violência simbólica, ver Pierre Bourdieu, Sur l’État. Cours au Collège de France (1989‑1992), Paris: Points, 2015.

5 Claude Lévi-Strauss, Mitológicas 2 (o mel e as cinzas), São Paulo: Cosac & Naify, 2005, p. 9.


Resenhista

Núbia Bento Rodrigues – Universidade Federal da Bahia. https://orcid.org/0000-0001-5166-2942


Referências desta Resenha

SILVEIRA, Renato da. A mitologia maldita: estereótipos políticos e raciais na gênese da indústria cultural. Salvador: Edufba, 2021. Resenha de: RODRIGUES, Núbia Bento. A mitologia maldita do racismo nosso, de cada dia. Afro-Ásia, 66, p. 720-728, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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