A mulher na sociedade de classes: mito e realidade | Heleieth Saffioti

Na segunda metade do século passado, as mulheres passam a reivindicar seu lugar na História, no sentido de questionar as produções intelectuais que até então privilegiavam um homem universal e abstrato, que era sujeito e objeto de sua história. Esse homem representaria a noção de humanidade, o que muito foi questionado, visto que existem dentro das relações sociais diferenças entre os grupos de pessoas, ou seja, estratos sociais, camadas que identificam, separam e excluem as pessoas. Portanto, hoje é impensável falarmos em um homem que represente todas as diferenças de raça, classe e gênero.

Assim, nos anos sessenta do século XX, a mulher passou a ser percebida pela historiografia como um sujeito necessário na elaboração de sua própria história. Segundo Michelle Perrot (2007), uma das referências no campo de estudo da história das mulheres nos dias atuais, até a referida década as narrativas estavam centradas nos personagens participantes do espaço público e como a mulher tinha como seu ambiente “natural” apenas o lar, sua vida não importava para os historiadores tradicionais.

Nesse complexo percurso da percepção da mulher como sujeito integrante da história, vislumbrou-se e ampliou-se abordagens sobre a própria historiografia, estudando-se as relações de gênero, calcadas nas inúmeras relações que envolvem o feminino e masculino (RAGO, 1995).

Atualmente não é muito difícil, no meio acadêmico, encontrar pesquisas que tratem as questões de gênero, raça e classe, não obstante a massiva produção de trabalhos de cunhos marxista e feminista em âmbito nacional, sobretudo no seio da História Social. A partir da década de 1970, estas abordagens têm se mostrado muito úteis na análise da sociedade brasileira.

Nas décadas de 1970 e 1980 foram se intensificando nas universidades os estudos voltados primeiramente para a mulher e o mundo do trabalho. Com núcleos de estudos sendo fundados e o aumento do número de pesquisadores e pesquisadoras nesse campo, outros debates com diversificados enfoques foram se descortinando.

Nos anos 1980, as discussões sobre gênero no Brasil por meio do já efervescente movimento feminista encontraram em pesquisadoras como Margareth Rago, Rachel Soihet e Heleieth Saffioti porta-vozes potentes desse debate. Destacamos que desde a referida década, os estudos de gênero têm alargado o campo de visão ao pensar a respeito das relações entre homens e mulheres. Apesar disso, os estudos de gênero só se consolidariam no país na década de 1990.

Nesse sentido, não se poderia deixar para escanteio o trabalho de Heleieth Saffioti (1934-2010), nascida em Ibirá (SP) e inserida nesse contexto de lutas femininas por espaço e na construção de uma historiografia que privilegiasse as mulheres. A obra aqui resenhada, A mulher na sociedade de classes: mito e realidade, foi publicada em 1967 e representa um marco nas pesquisas que analisam a violência contra as mulheres a partir de estruturas como o racismo, o patriarcado e o capitalismo.

Termos muito atuais, gênero e violência de gênero se alastraram para as comunidades acadêmicas. Apontamos aqui a importância de Heleieth Saffioti para a compreensão do fenômeno da violência a partir do prisma de gênero, considerando também, por meio da interseccionalidade, características como raça e classe na esfera violenta que cerceia os seres humanos.

A tese de livre docência tornou Saffioti uma das pesquisadoras mais proeminentes no país. Seu trabalho foi reconhecido internacionalmente como um dos mais relevantes quanto à análise da situação das mulheres no mercado de trabalho brasileiro. Desde a década de 1970, suas pesquisas são referências nos estudos sobre as desigualdades entre mulheres e homens, sobretudo quanto às diversas formas de violência e exploração advindas do capitalismo.

Como uma das pesquisadoras mais influentes nos estudos de violência de gênero no Brasil, foi responsável por trazer uma proposta diferenciada sobre as supostas diferenças naturais entre homens e mulheres, uma vez que a autora atrela à condição de gênero outros caracteres como a questão de raça e de classe. Não é segredo que o marxismo atravessa todo o seu trabalho.

Na obra, Saffioti buscou compreender como funcionam os diversos mecanismos de exploração das mulheres no sistema capitalista, demonstrando como é estrutural a retroalimentação entre o capitalismo, o patriarcado e o racismo. Segundo sua visão, as dinâmicas de desigualdade social se encontram interconectas em um nó que entrelaça o gênero, a classe e a raça.

O livro se divide em três grandes partes. A parte I, Mulher e capitalismo, trata a respeito do advento do capitalismo e a posição social da mulher dentro desse sistema econômico. Aborda também questões como o trabalho feminino e os “níveis” de consciência do problema da mulher.

Os diversos discursos da Igreja Católica que buscavam legitimar e justificar a submissão da mulher aparecem: “a hierarquia no grupo familial se faz segundo o preceito bíblico de que o homem é a cabeça, e a mulher o coração. Sendo a emoção considerada inferior à razão, ao homem cabe, ‘naturalmente’, o governo da casa e da mulher” (p.145). Pode-se afirmar, a partir de suas considerações, que a família heteronormativa aprisionou por séculos a subjetividade de mulheres e homens.

Defende que o capitalismo garantiu a inserção feminina em setores sociais não privilegiados. Para Saffioti, a emancipação econômica feminina por meio desse sistema econômico não passaria de mera ilusão, uma vez que este seleciona caracteres que servem como elementos a serem excluídos. Nesse sentido, apesar da falsa liberdade, ele funciona mais como um aprisionamento, visto que legitima as hierarquias sociais a partir da divisão da sociedade em classes.

A autora também trabalha inúmeros exemplos de inferiorização das mulheres, destacando que o elemento feminino cede seus diretos em nome da “família”, e que essa organização social funciona como uma espécie de elemento castrador de homens e mulheres. A respeito disso, considera que a família além de normativa, pauta-se numa hierarquia que privilegia o poder pátrio, ou seja, o poder do homem, chefe de família, sobre a mulher (reduzida ao papel de “rainha do lar”).

A parte II, Evolução da condição da mulher no Brasil, trabalha alguns dos aspectos constituintes da formação da economia no país. Emergem questões advindas da posição social da mulher na ordem escravocrata-senhorial e sua sobrevivência na sociedade àquele contexto. A autora também aborda a instrução feminina tanto no período colonial quanto no Império e aparece, além do mais, a instrução feminina na perspectiva das correntes de pensamento da fase pré-republicana e na própria República.

Segundo a pesquisadora, a participação feminina no mercado de trabalho formal não se deu de forma igual em todos os setores. E, grosso modo, as mulheres foram inseridas nas atividades mais precárias dentro do capitalismo. Para Saffioti, o capitalismo seria capaz de se renovar de forma a impedir o avanço (não só quantitativo, mas qualitativo) das mulheres a postos de trabalho que não sejam precarizados.

A parte III, A mística feminina na era da ciência, trata a respeito da psicanálise e da antropologia. Na introdução do capítulo, a autora demonstra como os processos de racionalização, e da própria ciência, são capazes de legitimar hierarquias e desigualdades sociais. O primeiro tópico, portanto, expõe de que forma Sigmund Freud por meio da psicanálise, pôde reproduzir estereótipos quanto aos homens e, principalmente, quanto às mulheres.

De acordo com a autora, “assimilando o ativo ao viril e o passivo ao feminino, a psicanálise freudiana legitimou cientificamente o velho mito, promovendo sua ampla aceitação nas sociedades baseadas na ciência e na tecnologia científica” (p.408-409). Para a pesquisadora, essa mística feminina reproduzida em diversos meios acaba por se tornar um forte adversário para as mulheres, visto que é “difundida por psicólogos, educadores e outros estudiosos das ciências do homem, tidos como os maiores inimigos dos preconceitos” (p.414).

Encerrando sua crítica à psicanálise e partindo para a antropologia, Saffioti destaca o trabalho de Margareth Mead, que estudou a sociedade norte-americana a partir do prisma cultural. No entanto, para Saffioti, essa análise simplesmente do ponto de vista cultural não seria suficiente para o “desvendamento das relações sociais e das estruturas que as determinam, da dinâmica das estruturas parciais e de seu padrão de integração; das potencialidades da práxis no que tange ao destroçamento e à construção de novas estruturas” (p.448).

Afirma que Mead não conseguiu penetrar o cerne da questão, visto que não se utilizou de uma análise que considerasse a estratificação social, levando em consideração justamente a estrutura de classes que retroalimenta a desigualdade entre homens e mulheres. Para Saffioti, os sistemas estratificatórios têm fundamento nas relações entre as classes e que são alimentados pelos sistemas de valores da sociedade, que acabam escondendo a própria estrutura de classes.

Por fim, acrescenta que Mead não conseguiu se dar conta das contradições fundamentais da sociedade que analisou, não se libertando, por exemplo, da ideia de que as pessoas são simplesmente moldadas a partir da anatomia de seu corpo. Para Saffioti, Margareth Mead, apesar do vasto material etnográfico que colheu, e mesmo da excelência de seu trabalho, acabou reproduzindo e reforçando estereótipos sobre o homem e a mulher, assim como Freud.

A originalidade e sensibilidade de Heleieth Saffioti são inegáveis. O livro A mulher na sociedade de classes é, a bem da verdade, uma parte de suas investigações sobre a violência de gênero e a condição da mulher na sociedade capitalista, sendo também o resultado de pesquisas que colocaram em evidência o trabalho de professoras primárias e operárias da indústria têxtil.

Não se deve esquecer que a obra foi produzida em tempos difíceis da história do Brasil (ditadura civil militar). Motivo pelo qual, por sugestão de seu orientador (e amigo) Florestan Fernandes ter transformado a tese de doutorado em livre docência. Mulher, feminista e marxista em uma conjuntura nada favorável, Saffioti foi resistência.

Ademais, um dos grandes desafios na tessitura da obra foi escrever seu trabalho levando em consideração a ausência de bibliografia especificamente sobre gênero no Brasil naquele contexto. Atualmente, para quem se interessa pelas questões feministas e de gênero, a obra representa não só um pontapé, mas ponte para o aprofundamento do estudo de diversas questões, visto que o livro, por sua densidade, traz informações detalhadas de várias épocas do país.

O vasto trabalho de Saffioti permanece atual e necessário, pois muito há de ser feito no que se refere às relações de gênero, de raça e de classe. Enquanto feminista e marxista, foi capaz de fazer uma crítica profunda ao feminismo “pequeno-burguês” do período, que encontrava unicamente na conquista de direitos como o voto a tão desejada emancipação das mulheres.

Saffioti, no entanto, deixou visível que as mulheres estavam duplamente aprisionadas, não bastando simplesmente essa conquista. Outras deveriam vir. E enfim, é evidente que Heleieth Saffioti apontou um caminho possível, acreditando firmemente que “(…) não existe um feminismo autônomo desvinculado de uma perspectiva de classe” (p.12). Responsável por preparar o terreno para as discussões de interseccionalidade, Saffioti permanece atual e necessária, assim como suas contribuições tanto para o feminismo quanto para o marxismo.

Referências

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007.

RAGO, Margareth. As mulheres na historiografia brasileira. IN. SILVA, Zélia Lopes (Org.). Cultura Histórica em Debate. São Paulo: UNESP, 1995.


Resenhista

Ana Beatriz Araújo de Freitas – Mestranda em História pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA); Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

SAFFIOTI, Heleieth I. B. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 3.ed. São Paulo: Expressão Popular, 2013. Resenha de: FREITAS, Ana Beatriz Araújo de. Revista de História da UEG. Morrinhos, v.10, n.1, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

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