Dandara Katheryn: a mulher de nome bonito | Anderson Cavichioli

Dandara dos Santos Imagem Arquivo pessoalBBC News
Dandara dos Santos | Imagem: Arquivo pessoal/BBC News

O céu das travestis deve ser belo como as paisagens deslumbrantes da recordação, um lugar para passar a eternidade sem se entediar. As lobas travestis biscates que morrem no inverno são acolhidas com especiais pompa e alegria, e naquele mundo paralelo recebem toda a bondade que este mundo mesquinho lhes negou.

Enquanto isso, as que permanecem por aqui, bordamos com lantejoulas nossas mortalhas de linho.

(O Parque das Irmãs Magníficas, Camila Sosa Villada, 2021, p. 177)

Quão impactante e intenso podem ser um minuto e vinte segundos? Um minuto e vinte segundos é o tempo de duração de um vídeo que foi divulgado nas mídias sociais e que reproduz atos de extrema violência cometidos através de um crime de transfobia. Este crime aconteceu no início do ano de 2017 contra a travesti Dandara Katheryn, brutalmente assassinada por um grupo de homens em Fortaleza, no estado do Ceará. Parte de seu assassinato foi gravado e divulgado.

Este caso faz parte de um fenômeno amplo, a transfobia, que transpassou a pesquisa de mestrado de Anderson Cavichioli, dando espaço, posteriormente, à publicação do livro Dandara Katheryn: a mulher de nome bonito. Esta dissertação foi defendida no ano de 2019 e foi publicada no ano de 2021 pela editora Devires.

Anderson Cavichioli, além de mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Brasília (UnB), é bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Direito Penal. Atualmente exerce a função de delegado da Polícia Civil do Distrito Federal. É um dos fundadores e atual presidente da Rede Nacional de Operadores de Segurança Pública LGBTI+ (RENOSP LGBTI+), associação composta por operadores de segurança pública atuantes em diferentes instâncias e que se identificam como LGBTI+, na busca pela defesa dos direitos humanos e enfrentamento da lgbtfobia intra e extra institucional. Também se denomina como ativista dos Direitos Humanos e pessoas LGBTI+, desenvolvendo pesquisas sobre esta temática.

A editora Devires, por sua vez, teve sua fundação datada em 16 de janeiro de 2017 e tem como proposta editorial publicar textos acadêmicos e/ou literários que abordam temáticas dos estudos das sexualidades e dos gêneros, raça, classe, entre outros marcadores sociais, levando em consideração que ainda há uma lacuna no mercado editorial no que diz respeito às produções que enfoquem os campos de estudos referentes a sujeitos que foram e são subalternizados e, de certa forma, vulnerabilizados e/ou objetificados (EDITORA DEVIRES, 2022). A editora tem como propósito a divulgação de obras e autoras/es que dialogam a partir de desconstruções e estranhamentos de estigmas e hierarquizações que, social e historicamente, cristalizaram-se em nossos contextos, além de protagonizar discussões que abarcam os estudos queer, descoloniais, transfeministas, entre outros. Por se tratar de uma editora relativamente recente, esta vem ganhando destaque nos últimos anos.

Dandara Katheryn: a mulher de nome bonito não tem a pretensão de reviver a morte, nem a vida, de Dandara, o que poderia reproduzir toda a violência experienciada, mas produzir reflexões sobre as políticas de produção de morte em larga escala existentes em nossos contextos, e nomeá-las a partir de diferentes aspectos. Mortes essas que acontecem com quem ousa afrontar as normativas de gênero e de sexualidade. Morte de quem ousa afrontar os binarismos estabelecidos. Morte de uma parcela da população que serve como alvo. Morte de sonhos. Morte simbólica. Morte física.

A jornalista e professora Débora Diniz, responsável por orientar a dissertação da qual resultou em livro, ressalta no prefácio que o volume deve, preferencialmente, ser lido todo de uma vez, “para que a dor se arrebate em indignação de uma só vez” (DINIZ, 2021, p. 10). Concordo com Débora, penso que livros intensos como este devem ser acompanhados de mergulhos de cabeça.

O mergulho que Anderson Cavichioli nos propõe é composto por 37 breves capítulos, além de prefácio, prólogo, posfácio e referências bibliográficas, que são distribuídos ao longo de 199 páginas.

Os capítulos são sintetizados em poucas páginas, entre duas e três, mesclando reflexões teóricas e movimentações ocorridas durante a realização do mestrado do autor, que consistiram em, ora acompanhar os desdobramentos do assassinato de Dandara, ora se debruçar em alguns aspectos das vivências dela, a partir de memórias relatadas por algumas pessoas de seu convívio, como familiares e amigos.

Anderson entrelaça a teoria e a prática, a escrita e a vivência, de maneira consistente. A obra foi embasada nas contribuições teóricas de autores e autoras como: Judith Butler, Virgínia Vergueiro, Achille Mbembe, Michel Foucault, Paul B. Preciado etc. As análises realizadas se pautaram, principalmente, nas perspectivas dos estudos queer, levando em consideração que, assim como nesses estudos, a intenção do autor foi a de abrir discussões e provocar tensionamentos em relação às lógicas sociais que são pautadas no ideal de uma cisheteronormatividade, ideal esse que acaba por desumanizar quem está afastado da matriz cisheterossexual. Como o próprio autor salienta, Dandara foi uma das tantas vítimas desse afastamento. Foi desumanizada por não pertencer à matriz cisheterossexual.

O autor ressalta que há um conjunto de saberes-poderes, que se transfiguram em códigos morais, que perpassam os nossos contextos e desumanizam olhares. Esses saberes-poderes colonizam corpos, vidas, sujeitos… e os hierarquizam. O corpo de Dandara se configurava como um daqueles que são condizem com o topo, e nem com os primeiros degraus, dessa hierarquia, portanto foi desumanizado, tornando-se abjeto.

Cavichioli nos chama a atenção sobre quão desafiante é falar sobre corpos dissidentes sem que haja essa hierarquização e desumanização. O autor também atenta para o fato de que, por não ser uma pessoa transgênero, ele aborda tais assuntos, mas sem tomar um protagonismo, havendo, segundo ele, uma responsabilidade e um dever ético em se discutir essas temáticas, abrindo possibilidades de diálogos. É nessa abertura de diálogos que se encontra, de fato, a necessidade de se avolumar obras como esta.

Dandara foi uma vítima da política de produção de morte. Perante a lei, ela nunca existiu. Nunca teve seu nome retificado. Nunca foi nomeada pelo nome que escolheu para si. Foi enterrada com um nome masculino.

No livro, Dandara é a única pessoa nomeada. No livro, ela existe. Ela existiu. “Nomear é fazer existir” (Anderson CAVICHIOLI, 2021, p. 72). O autor enfatiza que

Nomear Dandara é um ato de responsabilidade, uma forma de reconhecer sua existência como alguém cujos direitos foram violados, como tardiamente admitiram os sistemas de justiça nacional e internacional. Sua história exige o testemunho de seu extermínio. Nomeá-la é forçar a reconhecer seu rosto, identificá-la como a travesti assassinada à luz do dia, abandonada à decisão de vida ou morte sobre sua vida precarizada e destituída de humanização (CAVICHIOLI, 2021, p. 45).

Também compreendo como um ato de responsabilidade a abrangência de espaços para que as temáticas das formas de vida consideradas dissidentes sejam cada vez mais discutidas, levadas em consideração, nomeadas… havendo possibilidades para que esses sujeitos dissidentes sejam os escritores de suas próprias histórias, sejam os produtores de suas resistências e de suas existências.

O autor realiza uma denúncia sobre a precarização de dados sobre violência lgbtfóbica no Brasil, sobre os retrocessos advindos de um governo conservador e sobre as restrições de políticas públicas voltadas à comunidade LGBTQIA+ em um país permeado por violências estruturais. Infelizmente, ao falar sobre histórias de travestis, quase sempre haverá o atravessamento de histórias de morte. Falar de morte é, antes de tudo, muito complexo. Pensar as causas e os efeitos de mortes que abrangem casos que não são isolados, envoltos por nuances que vão além de análises individuais. Anderson Cavichioli, ao falar sobre Dandara, além de reconhecê-la em sua individualidade, repercute sobre todo um fenômeno de violência transfóbica estrutural. Apesar de ser um assunto que causa incômodo, que rasga o peito… Anderson trata desse assunto com muito cuidado, respeitando a história de Dandara e de tantas outras travestis de corpo e de alma assassinadas.

Anderson descreveu Dandara como um exemplo de possibilidade de desestabilização dos espaços de poder, pois, ao reivindicar-se mulher, desviava dos binarismos de gênero de nossa sociedade, se distanciava das normativas. Lutava por seu nome. São nessas possibilidades de vivências diversas que circulam as resistências. Nas páginas finais, ele enfatiza que é necessário lutar pelas vidas e resistir.

A obra em questão, ao debater assuntos relacionados a um caso específico, sinaliza denúncias às incalculáveis violências enfrentadas por sujeitos dissidentes de sexualidade e de gênero, exemplificando o horror que pode estar atravessado às normativas, gerando uma política de morte em relação a estas vidas preteridas através de um fenômeno estrutural que ocorre de maneira ampliada, a transfobia.

Portanto, traz contribuições no que diz respeito ao campo dos estudos de gênero e das sexualidades, contribuindo para a ampliação, de uma forma crítica e ética, da literatura que vem se avolumando nos últimos anos acerca das transexualidades e das travestilidades. No livro, o autor aborda a temática das transexualidades e travestilidades sem as patologizá-las e sem incluí-las a padrões que fogem à concepção de normalidade. Além do mais, Cavichioli se propõe realizar discussões interseccionais que perpassam perspectivas de gênero, classe, sexualidade, religiosidade e raça ilustradas em um contexto do Brasil contemporâneo, embasando sua narrativa com autoras e autores que se dispõem a tratar de temáticas voltadas à contemporaneidade.

Referências

CAVICHIOLI, Anderson. Dandara Katheryn: a mulher de nome bonito Salvador: Devires, 2021.

Diniz, Débora. “Prefácio”. CAVICHIOLI, Anderson. Dandara Katheryn: a mulher de nome bonito Salvador: Devires, 2021. p. 09-10.

EDITORA DEVIRES. Salvador, 2022. Disponível em Disponível em https://editoradevires.com.br/ Acesso em 10/05/2022.
» https://editoradevires.com.br/

SOSA VILLADA, Camila. O parque das irmãs magníficas São Paulo: Planeta, 2021.


Resenhista

Daniela Cecilia Grisoski – Psicóloga pela Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná (UNICENTRO), possui Mestrado em Psicologia pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e atualmente é doutoranda em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mails: [email protected]; [email protected]  https://orcid.org/0000-0003-3848-5704


Referências desta Resenha

CAVICHIOLI, Anderson. Dandara Katheryn: a mulher de nome bonito. Salvador: Devires, 2021. Resenha de: GRISOSKI, Daniela Cecilia. Notas sobre Dandara Katheryn por Anderson Cavichioli. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, v. 30, n. 3, e87542, 2022.  Acessar publicação original [DR]

Uma história feita por mãos negras | Beatriz Nascimento, organizado por Alex Ratts

Beatriz Nascimento Imagem AdUFRJ 2
Beatriz Nascimento | Imagem: AdUFRJ

Nascida em Aracaju (SE), Maria Beatriz Nascimento (1942-1995)[1] produziu reflexões diversas e dispersas em artigos, entrevistas, roteiros cinematográficos sobre a história do negro no Brasil, ganhando visibilidade no debate historiográfico no país, nos últimos anos, por conta da publicação de seus textos em livros (Ratts, 2006; 2021), reveladores da atualidade de suas ideias sobre as relações raciais e de gênero. Graduada em História, em 1971, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ela contribuiu, decisivamente, para a rearticulação do movimento negro no Rio de Janeiro, seja “participando das reuniões no Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA), situado na Universidade Cândido Mendes (UCAM)”, seja criando coletivos como o Grupo de Estudos André Rebouças (GTAR), na Universidade Federal Fluminense (UFF). Ela cursou especialização em História do Brasil, na Universidade Federal Fluminense, ingressando no Mestrado Acadêmico, sem concluí-lo (Pinn; Reis, 2021, p. 3). Em 1995, o curso de Mestrado na Escola de Comunicação, na UFRJ, sob a orientação de Muniz Sodré, foi interrompido, abruptamente, por sua morte prematura. Grande parte dessa experiência de vida e trajetória acadêmica está no livro Uma história feita por mãos negras, organizado por Alex Ratts, e lançado em 2021.

Beatriz Nascimento Uma historiaA recuperação de suas ideias está vinculada à emergência das perspectivas decoloniais dos estudos de gênero e de raça no contexto da presença de governos de centro-esquerda no Brasil, entre 2003-2016, haja vista que os atuais “estudos sobre escravidão, o movimento social e operário, o tempo presente, a memória, a história da historiografia, dentre outras”, estão em conexão, consciente ou não, com as “pautas que emergiram da luta pela redemocratização no país, desde a década de 1970” (Pereira, 2022, p.31). Leia Mais

Mujer saber, feminismo | Teresa Díaz Canals

Teresa Diaz Canals terceira mulher da esquerda para a direita com alunas do curso ‘Feminismos Historia politica y eticidad 2018 Imagens Las Tres Juanas
Teresa Díaz Canals (terceira mulher, da esquerda para a direita) com alunas do curso “‘Feminismos: Historia, política y eticidad” (2018) | Imagens: Las Tres Juanas

Escrever pode ser um ato de resistência. Como afirmou Gloria Anzaldúa (2000, p. 232) “escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você” (ANZALDÚA, 2000). A escrita do livro Mujer, Saber, Feminismo de Teresa Díaz Canals (2018) é também uma forma de contestar as tentativas de silenciamento que, emergentes numa sociedade sexista, advertiram à autora “não mexer com estes assuntos” (Teresa DÍAZ CANALS, 2018, p. 3). O volume assume o compromisso de historicizar a trajetória de mulheres cubanas submetidas ao epistemicídio (Ramón GROSFOGUEL, 2013). Ao fazê-lo, o livro não só enuncia uma ausência epistêmica, mas produz reflexões sobre os estudos de gênero e feministas, enquanto uma matriz de pensamento e de luta política fundamental na sociedade cubana.

Para resenhar este livro adotei uma política de localização (Adrienne RICH, 2002 [1984]), frisando minhas posições sociais enquanto feminista, pesquisadora do campo dos estudos de gênero em Cuba, mulher negra e cisgênero que pertence a uma geração de cubanas/os que nasceu no seio de importantes conquistas sociais revolucionárias, as que criaram várias agendas políticas não isentas de paradoxos. Uma política de localização implica considerar que os conhecimentos que produzimos são afetados pelos lugares que habitamos, começando pelo nosso próprio corpo enquanto território mais próximo. Atenta a essas questões optei por aderir ao conceito de epistemicídio enunciado pelo porto-riquenho Ramón Grosfoguel (2013), considerando quem subscreve que “o conhecimento produzido pelas mulheres (ocidentais e não ocidentais) também é inferiorizado e marginalizado pelo cânone do pensamento” (GROSFOGUEL, 2013, p. 35, tradução minha)1. Assim nomeia-se um tipo específico de apagamento de saberes, o sexismo epistêmico. Foi a partir desta formulação que mergulhei na obra Mujer, saber, feminismo. Leia Mais

Garota/mulher/outras | Evaristo Bernardine

Garota, mulher, outras é um romance arrebatador. Vencedor do Booker Prize em 2019 – uma das mais importantes premiações da Inglaterra – é de ler com a alma, leitura de fazer reverberar nossas memórias e histórias – mesmo as que ainda vamos querer (re)descobrir. Leia Mais

Gender and Diplomacy. Women and Men in European Embassies from the 15th to the 18th Century | Roberta Anderson, Laura Oliván Santaliestra e Suna Suner

1 En marzo de 2016 varios especialistas provenientes de diferentes casas de estudio de Europa y Rusia se reunieron en las instalaciones del Don Juan Archiv (Viena) para reflexionar en torno a la relación entre género y diplomacia entre los siglos XV y XVIII. El evento contó con la coordinación académica de Suna Suner, Laura Oliván Santaliestra y Reinhard Eisendle. El libro que reseñamos, publicado en 2021, recoge los trabajos presentados en el mencionado simposio. Se trata de una publicación de referencia que desarrolla una línea de investigación con notoria actualidad en el mundo académico: la historia diplomática de las mujeres. Leia Mais

Madre y patria!: eugenesia, procreación y poder en una Argentina heteronormada | Marisa Adriana Miranda

Marisa Miranda
Marisa Adriana Miranda | Foto: Universidad Nacional de La Plata

Madre y PatriaEl último libro de la investigadora Marisa Miranda es una obra crucial para el desarrollo de los estudios sobre las sexualidades, la eugenesia y los cuerpos en Argentina. Situado y crítico, este trabajo establece una línea de tiempo de larga duración, donde da cuenta de los complejos dispositivos que legitiman el ideario de la preocupación por la descendencia. Atraviesa y desnuda las lógicas que construyen el ideario eugenésico en el país, en clave de género, y propone volver a mirar la preocupación poblacional bajo la lupa de la maternidad y la raza como obligaciones patrióticas durante el siglo XX. Este libro constituye un aporte superador a los debates sobre la eugenesia en Argentina. El lugar de la heteronormatividad – como dimensión futura del eugenismo –, el catolicismo, sus dimensiones legales y culturales, y sus instituciones son parte esencial del análisis innovador de la prolífera investigadora.

Miranda avanza en el estudio de las lógicas que imperaron en el modelo patriarcal en Argentina. Desde una matriz foucaulteana, propone ejes que ordenan su trabajo y provocan a sus lectores a la hora de construir una problematización sobre los cuerpos. La temporalidad abordada requiere de una dimensión densa y profunda de variables relacionadas. Leia Mais

El estupro: delito, mujer y sociedad en el Antiguo Régimen | Margarita Torremocha Hernández e Alberto Corada Alonso

O desenvolvimento do campo de estudos de história das mulheres desde pelo menos a década de 1970, inserido em um contexto de herança política de movimentos feministas (Tilly, 1994), é já bastante conhecido. Ao longo das décadas foram empreendidos esforços para compreender a complexidade histórica no que tange às personagens femininas afastando-se de conceitos que apenas as descrevam enquanto objeto de análise, aderindo a categorias que auxiliam a posição destas enquanto voz principal da apreciação científica (Scott, 1990). Neste sentido, desenvolveram-se, coligados à história das mulheres, os estudos sobre a história das relações de gênero, mantendo ênfase no caráter social e cultural das distinções baseadas no sexo.

No interior desse cenário, há alguns anos os historiadores, de ambos os sexos, têm cada vez mais direcionado interesses em desvendar questões e problemáticas que englobam mulheres, gênero e justiça em várias temporalidades e espacialidades. Os esforços têm resultado em importantes pesquisas que demonstram a decisiva presença feminina, bem como suas vicissitudes, em espaços que, frente ao silêncio historiográfico e de algumas fontes (Perrot, 2008), estariam destinados a atuação masculina.

O grupo de pesquisadores reunido por Margarita Torremocha Hernández1 tem prestado grandes contribuições para a área, sempre com pesquisas de excelência que trazem em seu bojo significativas descobertas. Configura-se em um centro irradiador de importantes trabalhos, nomeadamente sobre o Antigo Regime na Península Ibérica, colaborando com temas de história social, história da cultura jurídica e história do direito.2 A presente obra resenhada, El estupro: delito, mujer y sociedad en el Antiguo Régimen, configura-se em um dos resultados do projeto de investigação no qual a equipe trabalhou: Justicia, Sociedad y Mujer en la Edad Moderna a la Contemporaneidad: Castilla, Portugal y Italia. O livro reúne nove investigações de grande envergadura que discutem temáticas acerca do delito de estupro nos espaços correspondentes à Espanha e Portugal ao longo do Período Moderno (compreendendo, também, importantes reflexões acerca do medievo) e à Itália na contemporaneidade.

As pesquisas abarcam fontes documentais variadas para análise do delito e das personagens nos casos envolvidas, como legislação, informes e doutrina jurídicos, biografias, registros notariais, literatura, cinema, teatro, procedimentos judiciais advindos de jurisdição eclesiástica, régia e privada.3 Apresentam uma série de importantes análises acerca do pensamento jurídico; das mudanças legislativas; das cotidianidades; da cultura; das relações comunitárias; sociais; familiares; políticas e institucionais a respeito não somente do delito de estupro, mas também da complexidade englobada pela lógica do matrimônio -tanto pela perspectiva religiosa (configurando-se em uma tônica em várias das relações analisadas em determinadas pesquisas) quanto pelo manejo das questões morais e de honra.

Neste sentido, na apresentação da obra, Margarita Torremocha expõe, especificamente em referência aos processos judiciais, a dimensão que podem oferecer para a visualização dessa complexidade: são eles que deixam entrever em que medida a religião, a honra e a linhagem interferem na ponderação de um magistrado ao mesmo tempo que carregam elementos que discorrem sobre os feitos, os sentimentos, as relações sociais e as cotidianidades.

Ainda em sede destas fontes, explica a autora que o estupro usualmente fora tratado em conjunto (ou confusão) com violação, mancebia, tratos ilícitos e rapto. Assim, clarifica que o delito, segundo a concepção jurídica do Antigo Regime, era delimitado por duas características principais: o engano e a condição de honrada ou de “donzela honesta” da mulher. Ou seja, para a configuração do estupro perante as instituições não era suficiente a violação contra a mulher, mas sim contra a sua virgindade ou a sua honra. Pode-se afirmar, inclusive, que antes de configurar-se um crime contra a integridade física era, principalmente, um crime contra a honestidade. Consequentemente, a discussão processual tocava nomeadamente à perda da virgindade, ao descumprimento à castidade e ao ferimento da honra, situação que disseminava a mácula à família da vítima e até mesmo à comunidade em que vivia.

Exposta esta definição, essencial à compreensão das investigações, passa-se à apresentação dos artigos presentes na obra. O primeiro trabalho4 traz à tona um panorama mais geral, no sentido diacrônico, acerca da tratativa do crime em comparação às pesquisas que seguem na obra. O autor Félix Martínez Llorente possui como enfoque o processo de conceitualização jurídica do delito através da análise legislativa de impacto na tradição europeia. Por meiode uma perspectiva de longa duração, abrange as permanências e as rupturas nas compreensões do delito perpassando pelas disposições do direito romano clássico, do direito visigodo, do direito canônico, da tradição do iuscommune, do direito castelhano do período moderno até os fins do século XVIII.

A conclusão consta expressa já nas primeiras linhas do artigo: o desenvolvimento da definição do estupro foi relativamente tardio sobretudo por ser uma prática que, na apreensão social, transita nas searas do pecado, da moral e do crime. A regulamentação legislativa fora iniciada no direito romano a partir da figura stuprum na lei contrária ao adultério em 18 a.C. no intento de proteção da mulher em razão das justas núpcias e o requisito do engano como diferenciador fora inserido no século III. Este permanecera – não sem diferentes nuances – até transformar-se no requisito principal no Antigo Regime, sobretudo nas experiências dos reinos espanhóis. Em fins do XVIII, salienta o autor, o ajuizamento de causas contra o estupro entrou em decadência, movimento este reforçado pela Real Cédula de 30 de outubro de 1796, que ordenou que não se prendessem mais os acusados. Esse estudo é uma apresentação ampla do panorama histórico a respeito do delito na seara legislativa e seu posicionamento em primeiro no interior da obra ora resenhada auxilia ao leitor na compreensão das investigações que estão na sequência.

A segunda pesquisa porta um cunho quantitativo, e igualmente informativo, como contexto dos trabalhos a seguir, através do qual os autores Alberto Corada Alonso e Diego Quijada Álamo realizam a abordagem do delito no Reino de Castela a partir dos processos mantidos no Arquivo da Real Chancillería de Valladolid. Intitulando-se El estupro en el Antiguo Régimen: una visión cuantitativa desde el Archivo de la Real Chancillería de Valladolid, o trabalho reúne mostra original e total de 2.035 casos ocorridos no espaço castelhano a partir de 1480 até os anos 1830 e a análise dos dados é realizada por intermédio de classificações distintas: através da temporalidade, da espacialidade, da competência jurisdicional, da separação entre momentos processuais, do delito (somente estupro e estupro com outra causa), da mulher estuprada (segundo seu estado civil e segundo seu ofício), do estuprador (segundo o grau de parentesco ou relação com a estuprada, dados sobre o ofício e sobre o estado civil) e dos demandantes do processo (se mantinham parentesco com relação à vítima, qual era a profissão do demandante e, por derradeiro, dados a respeito da duração do pleito. Tendo em vista a amplitude do estudo, as conclusões possíveis são, pois, várias. Contudo, demandam o relacionamento dos dados coligidos com pesquisas que adotem o viés qualitativo, ressalva esta que os autores expressam ao final do artigo.

Após esses dois trabalhos panorâmicos, Margarita Torremocha Hernández foca-se na compreensão do pensamento jurídico analisando a dimensão dos discursos como influenciadores do âmbito jurídico processual na definição da identidade do gênero feminino no terceiro capítulo da obra.5 A pesquisa objetivou conhecer a mentalidade de Meléndez Valdés a respeito do delito de estupro através de uma visão e um aporte concretos: um informe solicitado à Real Chancelaria de Valladolid em novembro de 1795, requerendo a uniformidade do tratamento processual da matéria, assumido pelo juiz Juan Meléndez Valdés enquanto membro do Tribunal em março de 1796. Após 11 tópicos de argumentações, o jurista concluiu que o foro não deveria dar conhecimento a esses casos, forçando as mulheres a cuidarem de si mesmas e a guardarem sua honestidade. Em seguida, foi publicada a Cédula Real de 30 de outubro de 1796 – que, segundo Llorente, fora uma das razões da decadência de denúncias de estupro no XVIII –, acatando dois dos argumentos de Valdés: a redução do aprisionamento e o estabelecimento do limite de idade de 25 anos da vítima como requisito de enquadramento no delito. Em que pese o informe não tenha impactado a ordem jurídica espanhola de fins do século XVIII a ponto de realizar amplas reformas imediatas, Torremocha salienta que representa um elemento chave por ter sido um dos juristas preocupados em delimitar o crime de estupro e estabelecer um marco legislativo novo. Assim, sua perspectiva, e consequentemente seu discurso, absorve muitas das visões circulantes no período, sendo representativa das mudanças que ocorrem na cultura jurídica de fins do Antigo Regime.

A título de exemplo, é importante citar a defesa de Valdés à limitação embasada na faixa etária da mulher estuprada. A discussão a respeito das idades dos envolvidos e seus desdobramentos encontrava-se em circulação na Península Ibérica e em Portugal havia sido introduzida uma limitação já em 1603 pelas Ordenações Filipinas (Livro V, tít. XXIII, §2). De acordo com essa compilação, no tocante à prescrição para ingresso de querela, a determinação era que o ajuizamento deveria ocorrer dentro do período de um ano contado a partir da data em que se deixava de ter afeição entre as pessoas envolvidas no delito, sendo que este prazo somente poderia ser elastecido caso a vítima fosse menor de 25 anos ou comprovasse impedimento de denunciação em período anterior.

Na sequência da obra ora resenhada, o trabalho de autoria de José Pablo Blanco Carrasco6 traz à tona uma perspectiva metodológica micro, realizando um estudo mais aproximado e qualitativo de casos selecionados. O foco centra-se na tratativa do delito por tribunais eclesiásticos, bem como a relação das personagens envolvidas no crime com a comunidade através do mercado matrimonial, a partir dos processos coletados no Arquivo Diocesano de Sigüenza e no Arquivo Diocesano de Ciudad Rodrigo.

Ambientado pelos cenários apresentados nos artigos precedentes, tanto no que tange à diacronia legislativa quanto na numeração quantitativa e na inserção da atmosfera mental apresentada, o autor verticaliza a análise no interior das práticas e compreensões do supracitado mercado apontando conclusões na seara da história social. Assim, afirma que a regra imperante nas dinâmicas estudadas era a semelhança ou igualdade entre as famílias envolvidas7 e a ocorrência de um caso de estupro era um fator demolidor da integridade da estima social da família. Ou seja, a prática era enfrentada como um delito político e, no interior dos casos trazidos à luz por Carrasco, a projeção comunitária acarretava a quebra das chances de casamento das mulheres pertencentes à mesma família. Um elemento que pode servir de meio para uma explicação à extensão da mácula era o fato de que, no âmbito das relações pré-nupciais, a ocorrência de um estupro dava ensejo ao debate acerca do consentimento não forçado de uma mulher, mesmo que houvesse violência moral.

Nesse ponto, as questões supracitadas nos trabalhos precedentes a respeito da conceitualização do delito, a partir da ocorrência do engano na experiência espanhola, adquire reproduções no social. Isso é, o engano poderia ser visto como violência moral, porém no seu interior ainda havia o consentimento da mulher estuprada na ocorrência do delito. A existência deste consentimento significava que a mulher teria o direito a utilizar livremente de sua vontade neste terreno, cedendo à sedução quando lhe aprouvesse. Em agindo uma mulher da família, desse modo, vinculavam-se a este os comportamentos das demais, gerando um amplo impacto social da ocorrência do delito nas dinâmicas comunitárias com relação à família.

Isabel Drumond Braga, autora da quinta investigação constante da obra8, traz ao estudo a contribuição acerca de Portugal moderno e salienta uma das características mais importantes acerca da justiça portuguesa do Antigo Regime: a dimensão da misericórdia, da clemência e do perdão. Para o vislumbre dessa nuance, as fontes principais da investigação são as cartas de perdão, redigidas por sujeitos condenados pelos magistrados (mas que receberam o perdão das suas vítimas) requerendo exclusão (ou comutação) da aplicação da pena e encaminhadas à apreciação régia. Com a finalidade de aporte contextual, a autora realiza análise de excertos literários e da legislação portuguesa da época sobre o delito (com menções a determinadas normas vindas do medievo) vislumbrando a tratativa formal, suas permanências e descontinuidades no tempo e no espaço.

Assim, conclui que também em Portugal moderno o estupro correspondia a um delito grave, do foro moral, cuja proteção era do pudor e a defesa era da virgindade. As diferentes tonalidades das aplicações dos procedimentos e da circulação de mentalidades, além da análise social, são ensejadas pelo estudo das cartas de perdão, considerando que possibilitam a reconstrução de vários cenários crimes de violação. Ao mesmo tempo em que trazem descrições de casos em que mulheres foram forçadas violentamente, há também alusão a seduções enganosas e falsas promessas de casamento – situações estas que podem vir a camuflar casos de violação. Processados os casos, diversas razões faziam com que, na prática, os ofensores restassem impunes: para além dos pedidos de perdão obtidos, a autora menciona a cominação de pena mais branda que a ordenada pela legislação (o que não significava a execução também dessa pena), a ausência de julgamento no caminhar processual e a própria disparidade entre o número de ocorrências e a institucionalização de denúncias e queixas. Nessa esteira, conclui que a violação era, em maior ou menor medida, efetivamente perseguida, porém o castigo não era uma prática eficaz.

Entre os pontos abordados, é possível relacionaras experiências apresentadas em diferentes espacialidades, mesmo que os trabalhos demonstrem uma diferença entre Espanha e Portugal no que tange à existência do engano. As fontes sugerem que nas ocorrências do delito nos espaços espanhóis a sedução era um requisito de certa forma mais taxativo que nas práticas portuguesas. Isso é, os elementos que o engano envolvia eram, certamente, tomados em conta no momento da decisão em sede das cartas de perdão, todavia não há a sugestão de que foram estritamente necessários no momento da condenação dos sujeitos pelo crime, situação diferente daquelas abordadas nas práticas castelhanas. Nestas experiências, o engano aparentemente adquiria vestes de instituto jurídico enquanto requisito necessário para a configuração do delito.

Enfocando os estudos na espacialidade aragonesa, na sexta investigação9 Encarna Jaque Martínez realiza um aporte geral focado nas práticas institucionais sobre a tratativa acerca do delito. A autora perpassa o estudo pelas legislações aragonesas medieval e moderna no intuito de contextualizar os casos de sua fonte principal: os processos por estupro mantidos no Arquivo Diocesano de Zaragoza e no Arquivo Histórico Provincial de Zaragoza. A análise desta documentação é realizada a partir da classificação entre estupros puros ou simples (em que há a violação de “donzela”), aqueles em que o tipo criminal se mescla com outros crimes (casos em que os argumentos jurídicos utilizados na prática dos foros contribuíam para a ausência de clarificação a respeito do estupro) e aqueles conseguidos através de palavra de casamento.

A autora expõe que aparentemente o tribunal secular apresentava maior tolerância à conduta masculina que à feminina, enquanto o tribunal eclesiástico mantinha procedimentos mais respeitosos e sensíveis à mulher, sendo mais favorável ao matrimônio. No primeiro, a responsabilização pela ocorrência do crime era majoritariamente depositada sobre a mulher e sua desonestidade, argumento básico que ensejava a exclusão de pena ao homem através da compreensão de que a negligência feminina não poderia ocasionar punição masculina. No segundo, havia atenção à frequente desigualdade social entre as partes, motivo pelo qual, segundo a autora, as sentenças findavam por ser mais abertas à possibilidade do matrimônio ou do dote.

Os apontamentos específicos acerca do ramo eclesiástico vão de encontro com os estudos de Daniel Baldellou Monclús e José Antonio Salar Auséns no sétimo capítulo10, em que enfocam especificamente os processos de tribunais eclesiásticos aragoneses. Ao longo do texto apresentam semelhanças e diferenças entre os tratamentos secular e eclesiástico, afirmando, sumariamente, que a visão eclesiástica era constituída a partir do matrimônio (por esta razão algumas vezes eram mesclados com casos de esponsais não cumpridos) enquanto que a tratativa civil mantinha maior atenção à honra e ao patrimônio (a maioria dos casos levados a estes tribunais estavam frequentemente relacionados a violações e agressões). Analisando as sentenças dos casos selecionados, os autores afirmam que a ponderação mantinha em consideração o relacionamento entre o homem e a mulher envolvidos – se havia contatos prolongados no tempo, se fora realizada uma promessa de casamento, se houve coação ou violação –, o que resultava na possibilidade de pagamento de dote compensatório. Às mulheres vitimadas, a ocorrência de um estupro era um fator de quebra de posição social, e receber a sentença eclesiástica favorável a si significava alguma recuperação no interior do tecido social. Assim, afirmam os autores, os interesses se cruzavam: de um lado o desejo de controle de uniões constituídas de modo alheio à ordem social e, de outro, o desejo de restauração da honra, após uma situação de violação e humilhação em que socialmente a culpabilização recaía sobre a mulher. Os tribunais eclesiásticos, concluem, representavam um importante recurso de resposta a estas mulheres.

A oitava investigação11, de autoria de Tomás A. Mantecón Movellán, é realizada a partir da análise de experiências e trajetórias particulares em sociedades católicas do Mediterrâneo, tendo os processos judiciais como documentação histórica principal. A classificação da investigação segue a divisão entre subcapítulos12, realizada a partir da conexão entre os casos encontrados nos procedimentos judiciais. A partir destas análises, o autor sublinha que os processos demonstram as tolerâncias sociais, institucionais e governativas, a assimetria dos gêneros nos impulsos sexuais e de poder e o impacto das diferentes culturas ao longo do espaço Mediterrâneo. Conclui, assim, com apontamentos para a seara social a partir das evidências da documentação sobre as capacidades dos sujeitos no interior de seus cenários sociais particulares, para negociação e renegociação de relações sexuais, conjugais e sociais. O estupro, sendo considerado em situações complexas, era um delito que se encontrava em amplo relacionamento com as redes de poder articuladas, e este apontamento conecta-se de modo direto com as citadas conclusões de José Pablo Blanco Carrasco acerca do mercado matrimonial na Idade Moderna. Isto é, a ocorrência do crime fazia parte de um grande manejo de situações sociais e comunitárias, englobando a noção de representar um delito político.

A última investigação constante desta obra altera o foco da Península Ibérica para a Itálica e ambienta-se na história contemporânea. Daniela Novargese, autora do artigoLa giustizia era altrettanto violenta degli stupratori. Donne e violenzasessuale in Italia, un lungo, tormentatopercorso normativo, conduz as análises a partir de casos, de manifestações culturais e de movimentos políticos ocorridos na Itália entre os anos 1965 e 1996 que detiveram ampla repercussão e que em maior ou menor medida geraram impacto na sociedade italiana a ponto de culminar nas alterações legislativas ocorridas no Código Penal Italiano em 1996. Inicia discorrendo sobre os casos de Franca Viola13, em 1965, e de Rosaria Lopez e Donatella Calosanti14, em 1975, pela atenção nacional que detiveram. Em razão do impacto provocado, assumiram contornos paradigmáticos e simbólicos no imaginário coletivo social, abriram espaços de discussão acerca do crime de estupro bem como ensejaram o início de proposições de reforma legislativa em 1977 pela deputada Angela Maria Bottari. Estas proposições, acrescidas de manifestações culturais e políticas de mulheres nas décadas de 70, 80 e 90, foram importantes para que em 1996 fossem realizadas algumas reformas no texto legislativo, incluída a alteração de título do crime de estupro: de Delitos contra a moralidade pública e o bom costume para Dos delitos contra a pessoa. Embora não completamente satisfatória, a alteração foi politicamente necessária no sentido do alcance do consenso. A inserção do crime em outro título, conclui a autora, representou muito mais do que simplesmente alteração de título no interior do código penal. Foi a alteração do próprio bem jurídico tutelado: antes era a moral, a partir de 1996 passou a ser a pessoa ofendida, fazendo com que a liberdade sexual constituísse um corolário insuprimível da pessoa individual.

O título da presente obra, El estupro: delito, mujer y sociedad en el Antiguo Régimen, por amplo, abarca bem o conteúdo da maior parte dos artigos nela coligidos à exceção da derradeira investigação por não se aproximar absolutamente às questões de Antigo Regime. No tocante ao esforço das pesquisas em abordar as temáticas relacionadas ao “delito”, “mulher” e “sociedade”, acredita-se que logrem êxito tendo em vista que todas possuem um aporte muito rico de informações e análises destes três elementos a partir de diferentes perspectivas metodológicas. O equilíbrio aparenta pender mais ou menos para o delito em razão de abordagens exclusivamente legislativas em determinadas passagens de alguns estudos, porém em nada prejudica as conclusões e as conexões com o social. A respeito dos elementos “mulher” e “sociedade” é importante mencionar que a plenitude da abordagem desenvolvida pelos pesquisadores trabalha com a categoria de gênero, tendo em vista a consideração, a todo tempo, das relações entre homens e mulheres – ensejada até mesmo em decorrência da própria definição do delito nos períodos analisados.

Por fim, cabe salientar que a obra representa valiosa produção dos investigadores envolvidos, trazendo em seu bojo importantíssimas reflexões e construções do conhecimento à história das relações de gênero; à história das mulheres; à história social; à história cultural; à história da cultura jurídica e à história do direito. Demonstram as complexidades englobadas pelo delito de estupro aos níveis social, institucional e cultural, evidenciando as profundidades das questões de gênero e proporcionando ao leitor o conhecimento de uma documentação rica, variada e relevante.

Notas

1 Doutora em História pela Universidade de Valladolid (1989), professora vinculada ao Departamento de Historia Moderna, Contemporánea, América, Periodismo, Medios de Comunicación Audiovisual y Publicidad e investigadora das linhas de pesquisa em história das universidades hispânicas, história social, história social da delinquência, história da festa pública e história da mulher (Sítio eletrônico do Instituto Universitario de Historia SIMANCAS, Universidad de Valladolid [http://www3.uva.es/simancas/Master_Europeo/profesorado/torremocha_hernandez.htm– acesso em: abril 2019]).

2 Os trabalhos da equipe desenvolvem-se oficialmente desde 2008 (Hernández Torremocha & Braga, 2015: 7) em sede de projetos de pesquisa financiados pelo Ministerio de Economía y Competitividad, em razão do apoio do Proyectos de Investigación Fundamental, vinculado ao IV Programa Nacional de Investigación Científica, Desarrollo y Innovación Tecnológica. Os projetos de investigação desenvolvidos denominam-seJusticia y Mujer. Los Tribunales Penales en la definición de una identidad de género. Castilla y Portugal (1550-1800) – em atividade entre 2008 a 2011, 2013 a 2016 –e Justicia, Sociedad y Mujer en la Edad Moderna a la Contemporaneidad: Castilla, Portugal y Italia – em atividade de 2017 a 2020. Vinculados aos quais já existem duas publicações: em 2015, As mulheres perante os Tribunais do Antigo Regime na Península Ibérica, sob coordenação de Margarita Torremocha e de Isabel Drumond Braga, e, em 2017, La mujer en la balanza de la justicia (Castilla y Portugal, siglos XVII y XVIII), sob coordenação de Margarita Torremocha e de Alberto Corada Alonso.

3 Insta salientar que seis das nove investigações possuem procedimentos judiciais enquanto documentação história principal.

4 Denomina-se Una notación histórica sobre el delito de estupro hasta la codificación penal.

5 Intitulado El estupro en el Informe jurídico de Meléndez Valdés. Una visión ilustrada de un delito contra el honor familiar (1796).

6 Intitulado “Adónde irán los secretos?” Reflexiones en torno al estupro y el mercado matrimonial en la Edad Moderna.

7 Para que isso pudesse ser auferido, eram observados a honra provada do grupo familiar (representando a honestidade da mulher que vai contrair o casamento), o peso público das famílias, medido normalmente pela participação em ofícios de república, o respeito à justiça, o pertencimento a grupos sociais de boa estima e, cada vez mais com maior peso mas não de modo conclusivo, a renda e as possessões materiais, que podem melhorar as deficiências da casa mas sem diluí-las completamente.

8 Denominada Punir a Violação, perdoar os Violadores: entre a justiça e a clemência no Portugal Moderno.

9 Denominada “Y sobre todo pido justicia”: el delito de estupro en Aragón (siglos XVI y XVII).

10 Intitulado Culpable hasta que se demuestre lo contrario: el estupro ante los tribunales eclesiásticos de Aragón en el siglo XVIII.

11 Denominada Estupro, sexualidad e identidad en sociedades católicas del Mediterráneo durante el Antiguo Régimen,

12 Quais sejam, o estupro e maus usos da promessa matrimonial, evidenciando as possibilidades de estabelecimento de algum tipo de relação entre os personagens envolvidos com ou sem um expresso pacto de ajuda mútua; o poder e a pressão social que permeiam muitos casos de estupro, sublinhando as negociações entre as partes em sede processual bem como o diálogo com as instituições judiciais, os familiares e os entornos sociais; por derradeiro, a mobilidade geográfica, os usos da sexualidade e do matrimônio como meios de empreender rupturas e novas relações em diferentes espacialidades.

13 Franca Viola foi raptada e estuprada pelo ex namorado em 1965, momento em que a existência de matrimônio excluía a possibilidade de o cônjuge ser enquadrado no crime de estupro e em que existiam muitos casos de rapto embasado em sedução, solucionado com núpcias reparadoras. Franca Viola negou os instrumentos legislativos vigentes colocados à disposição na busca de tutelar a honra feminina.

14 Rosaria Lopez e Donatella Calosanti foram sequestradas e estupradas por três homens. Rosaria Lopez perdeu a vida em decorrência da violência sofrida. Donatella Calosanti conseguiu livrar-se e acusou, com muita dificuldade, os violentadores através de um processo decorrido entre 30 de junho e 29 de julho de 1976.

Referências

PERROT, Michelle, Minha história das mulheres. São Paulo, Contexto, 2008.

PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Livro V. 14ª ed. (Recompiladas por Candido Mendes de Almeida segundo a primeira de 1603 e a nona de Coimbra de 1821). Rio de Janeiro, Typographia do Instituto Philomathico.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. Porto Alegre, Faculdade de Educação da UFRGS, v. 16, n. 2, jul./dez. 1990, pp.5-22.

TILLY, Louise A. Gênero, história das mulheres e história social. cadernos pagu (3), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 1994, pp.29-62.

TORREMOCHA HERNÁNDEZ, Margarita & ALONSO, Alberto Corada. La mujer en la balanza de la justicia (Castilla y Portugal, siglos XVII y XVIII). Valladolid, Castilla Ediciones, Colección Historia, 2017.

TORREMOCHA HERNÁNDEZ, Margarita & BRAGA, Isabel Drumond. As mulheres perante os Tribunais do Antigo Regime na Península Ibérica. Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015.


Resenhista

Vanessa Caroline Massuchetto – Doutora em História do Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, [email protected]  https://orcid.org/0000-0003-0390-7890


Referências desta Resenha

HERNÁNDEZ, Margarita Torremocha; ALONSO, Alberto Corada. El estupro: delito, mujer y sociedad en el Antiguo Régimen. Valladolid: Ediciones Universidad de Valladolid, 2018. Resenha de: MASSUCHETTO, Vanessa Caroline. História, delito e relações de gênero: um panorama sobre o delito de estupro na Europa. Cadernos Pagu. Campinas, n.61, 2021. Acessar publicação original [DR]

Michael Young, Social Science & The British Left, 1945-1970 / Lise Butler

BUTLER Lise 1

Design sem nome 1All historical actors ultimately defy our neat labels. Practically speaking however, some are more defiant than others. One such figure is the dynamo ‘social entrepreneur’, Michael Young. (1) It has become a cliché to rattle off the dizzying array of institutions, projects and ideas with which Young was involved in his long and energetic career. But then, it is difficult to resist a list as eye-catching as: the Labour Party’s 1945 manifesto; the foundational sociology text Family and Kinship in East London (1957); the concept of ‘meritocracy’; the Consumer Association and Which? Magazine; and the Open University. While Young’s professional life is tricky to pin down, its diversity–and his archive at Churchill College, Cambridge–offers a promising avenue through which to approach post-war Britain. In this rich, textured, and revelatory book, the historian Lise Butler has seized this opportunity with both hands. Leia Mais

A mulher na sociedade de classes: mito e realidade | Heleieth Saffioti

Na segunda metade do século passado, as mulheres passam a reivindicar seu lugar na História, no sentido de questionar as produções intelectuais que até então privilegiavam um homem universal e abstrato, que era sujeito e objeto de sua história. Esse homem representaria a noção de humanidade, o que muito foi questionado, visto que existem dentro das relações sociais diferenças entre os grupos de pessoas, ou seja, estratos sociais, camadas que identificam, separam e excluem as pessoas. Portanto, hoje é impensável falarmos em um homem que represente todas as diferenças de raça, classe e gênero.

Assim, nos anos sessenta do século XX, a mulher passou a ser percebida pela historiografia como um sujeito necessário na elaboração de sua própria história. Segundo Michelle Perrot (2007), uma das referências no campo de estudo da história das mulheres nos dias atuais, até a referida década as narrativas estavam centradas nos personagens participantes do espaço público e como a mulher tinha como seu ambiente “natural” apenas o lar, sua vida não importava para os historiadores tradicionais. Leia Mais

Rachel Carson: la revolución entrañable | Carmen Velayos Castelo

Espera-se de um livro, primeiramente, que a sua leitura seja prazerosa. Ao tratar-se de uma obra fruto de um trabalho de pesquisa, soma-se a expectativa de reconhecer, entre as suas linhas, o rigor empregado em sua elaboração, desde as etapas iniciais da investigação científica até a redação final. Tudo isso encontrarão o leitor e a leitora na obra Rachel Carson: la revolución entrañable, de Carmen Velayos Castelo. A autora é professora de filosofia moral e política da Faculdade de Filosofia da Universidade de Salamanca (Espanha), e entre suas áreas de pesquisa estão a ética, a ecoética, a relação entre filosofia e felicidade, assim como questões de gênero. A obra, por sua vez, foi publicada na coleção Memoria de Mujer, da Editora da Universidade de Salamanca que, desde 2015, publica estudos sobre a mulher em todos os âmbitos científicos. Leia Mais

The death of nature: women, ecology, and the Scientific Revolution | Carolyn Merchant

Lançado em 1980, The death of nature completa, em 2020, 40 anos de publicação e ainda carecia de uma resenha em português. Apesar do tempo passado desde o lançamento, o livro de Carolyn Merchant apresenta algumas reflexões e contribuições ainda atuais.

Merchant é professora emérita da University of California, Berkeley, e possui publicações nas áreas de epistemologia feminista, história ambiental e história das ciências. É uma das referências do ecofeminismo, movimento que associa ecologismo e feminismo, identificando relações entre a exploração da natureza e das mulheres. Contudo, ainda hoje a autora tem pouca inserção nos cursos e programas de história ambiental e das ciências no Brasil, sobretudo quando a comparamos com outras autoras feministas, como Evelyn Fox Keller e Donna Haraway. Entretanto, isso não é exclusividade brasileira. Apesar do interesse do campo ambiental e feminista, o livro foi marginalizado por historiadores anglófonos e filósofos da ciência moderna, além de ter encontrado um “clima frio” para sua recepção dentro da historiografia da ciência ( Park, 2006 ). Leia Mais

La mujer que salvaba a los niños – MULLEY (SEH)

MULLEY, C. La mujer que salvaba a los niños. Barcelona: Alienta Editorial, 2018. Resenha de: SÁNCHEZ, Elena Duque. Social and Education History, v9, n.1, p.121-123, feb., 2020.

El presente libro es una biografía de Eglantyne Jebb, nacida en 1876 en Ellesmere (Reino Unido) en una familia de clase media intelectual, que tal y como se detalla en el libro, poseían una casa en la que en todas las habitaciones era posible encontrar libros. Una pasión, la lectura que Eglantyne inició desde pequeña y no abandonó hasta su muerte. Licenciada en historia por la universidad de Oxford decidió en 1899 comenzar a dar clases en una escuela para niños y niñas de clase trabajadora y con situación económica precaria. Esta experiencia la llevó a apasionarse por la educación y por la búsqueda de mejores metodologías de aprendizaje y a estudiar la carrera de magisterio.

Tal y como se muestra a través del libro, los varios problemas de salud que tuvo nuestra Eglentyne generaron que tuviera que pasar largos períodos sin trabajar. Fue a partir de 1916 que empezó a unirse aún más a su hermana Dorothy, que movida afiliada a Liga internacional por la paz y la libertad y activista pacifista. Dorothy estaba convencida que la promoción de una visión más humanitaria de los enemigos de la Gran Bretaña se podría conseguir una paz negociada (recordemos que para esas fechas, ya se había iniciado la I Guerra Mundial). Uno de los proyectos de Dorothy para combatir la información sesgada sobre la guerra en los periódicos de Gran Bretaña, fue la de publicar noticias de la misma guerra, pero en periódicos de los países enemigos o neutrales. Con el objetivo de mostrar el sufrimiento de ambos bandos y no justificar la guerra. Entre su equipo de colaboradoras y traductoras se encontraba su hermana Eglentyne que dominaba con fluidez el francés y el alemán En 1919, entre cuatro y cinco millones de niños y niñas se estaban muriendo de hambre en Europa. Dorothy creó en marzo la Oficina de Información sobre el Hambre con el objetivo de recoger información fiable de la verdadera situación de los niños y niñas víctimas colaterales de la guerra. En estos momentos se empezaron también a elaborar y distribuir folletos de niños y niñas austríacas hambrientas, mostrando así las secuelas que estaba teniendo la guerra para un colectivo totalmente inocente. Motivo por el que fue detenida Eglentyne y otra compañera y llevadas a juicio. El motivo fue la distribución de propaganda no autorizada por el gobierno.

La propaganda involuntaria de dicho juicio fue aprovechada por las dos hermanas y convocaron una “Reunión contra la hambruna” el 19 de mayo de 1919. Fecha que se considera la creación de Save de Children. En dicha reunión Eglentyne dio un mensaje muy poderoso sobre los niños y niñas: “Tenemos un único objetivo, salvar a tantos como sea posible. Tenemos una sola regla, les ayudaremos sea cual sea su país, sea cual sea su religión” (p.319).

Aunque existían otras organizaciones humanitarias en terreno de guerra, la realidad era que los niños y sus necesidades no eran tenidos en cuenta.

Siendo así que Save the Children se convirtió en la primera organización benéfica especial creada para niños sin hogar y la primera fundada por mujeres. También es la mayor organización internacional independiente para la mejora de la infancia. Y, por lo tanto, también ha contribuido a crear conciencia de la existencia de derechos de un colectivo totalmente invisibilizado como eran los niños y niñas.

A partir de su creación, el trabajo se centró en recaudar fondos para hacer llegar la ayuda al máximo de niños y niñas y a crear una conciencia de que éstos ser considerados terreno neutral. Para hacer aún más clara esta posición de la asociación, se decidió poner su sede en Ginebra, considerado país neutral.

Al trabajo en Save the Children como presidenta de Eglentyne, se unió su empeño por crear un documento con reconocimiento que reuniera los derechos imprescindibles de los niños y niñas, tal y como se detalla en el capítulo 15, llevó a Eglantyne a elaborar un inicial redactado llamado “Carta del niño” con cinco puntos que fue el punto de partida de la promulgación de los Derechos del niño y la niña por parte de las Naciones Unidas.  En este libro se pueden encontrar los detalles de la trayectoria de una mujer que se rebeló también contra las imposiciones sociales de su época y consiguió hacer partícipe a la humanidad de la necesidad de poner en el centro del bienestar a los niños y niñas.

Elena Duque Sánchez – Universidad de Barcelona. E-mail: [email protected].

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El poder femme. Virginia Woolf/Simone de Beauvoir y Victoria Ocampo | José Amícola

Este libro digital1 se nos presenta como resultado material de un arduo trabajo realizado por el doctor José Amícola a lo largo de varios años. Las ideas centrales han sido estudiadas y expuestas en diversos seminarios que ha brindado en las universidades de La Plata (UNLP), de Mar del Plata (UNMdP), Santa Rosa (UNLPam) y Viedma (COMAHUE-CURZA). Es así que nos entrega un estudio profundo y sistematizado que hace dialogar a tres destacadas figuras femeninas del campo de las letras de la primera mitad del siglo XX: Virginia Woolf, Simone de Beauvoir y Victoria Ocampo, quienes logran alzar su voz en espacios masculinos. Amícola explica en la “Introducción” que la Comparatística y los Gender Studies (Estudios de Género) lo proveen de bases sólidas y actuales para abordar el estudio de estas figuras con relación al sistema-género imperante en sus épocas. Nos propone tres conceptos clave en su estudio: “reacción”, “comunidades interpretativas excluyentes” y “sistema-género”. La reacción es entendida como respuesta creativa a textos anteriores y a situaciones planteadas por la sociedad (p. 13) y funciona para comprender las acciones e ideas de estas mujeres como emergentes relacionados a su contexto. Las comunidades interpretativas excluyentes parten del concepto de “campo intelectual” de Bourdieu (p. 14) y se refieren a grupos cerrados con el poder ser, tanto exclusivos como excluyentes. Su frontera permite el ingreso de aquellos considerados dignos y pares, mientras que rechaza a otros que no cumplen estas condiciones; por supuesto, las fronteras no son estables ni rígidas y habrá sujetos que fluctúen entre el adentro y el afuera. Son interpretativas pues proponen su propia percepción de la realidad, que luego se convertirá en predominante (p. 15). Finalmente, el sistema-género permite plasmar la oposición masculino-femenino como elemento que rige los comportamientos de hombres y mujeres a partir de la división de géneros, en la que siempre lo masculino se presenta como superior y lo femenino como subordinado. Leia Mais

A mulher de pés descalços | Scholastique Mukasonga

Na famosa carta às mulheres escritoras do terceiro mundo, Glória Anzaldúa explicita algumas das constrições vivenciadas pelas mulheres de cor que fazem da palavra escrita uma forma de inscrição no mundo. O lançar-se no papel é compreendido como um desafio e um risco para essas mulheres que, contudo, são conclamadas poeticamente pela autora à escrita, na medida em que tal gesto circunscreve uma forma de (auto)reconhecimento e poder: “o que nos valida como seres humanos, nos valida como escritoras”.1 Em seu apelo à expressão, a missiva remete a um conjunto plural e diverso de produções de mulheres que afrontaram os mecanismos históricos de interdição do acesso à literatura e por meio de seus textos constituíram espaços outros de existência, muitas vezes em contraposição ao lugar subalternizado a elas relegado pelas forças hegemônicas globais. Problematizando as possibilidades de transfiguração que atuam como corolário de certa noção de autonomia da literatura, tais escritoras produzem obras nas quais, em consonância com a proposição de Anzaldúa, experiência pessoal, história e ficção constituem um amálgama de notável força estética. Leia Mais

Gabriela Mistral. Somos los andinos que fuimos | Magda Sepúlveda Eriz

Desde sus primeras páginas, la Dra. Magda Sepúlveda nos advierte que este no es un libro para encontrarse con la educadora, con la madre y la poetisa de las rondas; no a simple vista o no en la forma banal que le damos a estas labores cuando nos referimos a la escritora. En este nuevo siglo en que buscamos con efervescencia reencontrarnos con las figuras literarias señeras de antaño, la autora nos advierte, a través de un complejo entramado de aportes teóricos y declaraciones afines a su propuesta, que muchos personajes insignes que creemos representativos de nuestra idiosincrasia, identidad o tradiciones han sido vaciados de su contenido original, para ser consumidos por la masa en el remanso de lo que se quiere sostener por cultura nacional. El caso de la poeta Gabriela Mistral no escapa a esta realidad, pues acostumbramos ubicarla en el selecto recinto del verso al abnegado pueblo, en la figura de la maestra cercana al infante. Ante esto, la premisa de la autora es que se ha desconocido la vertiente indígena, proletaria y mujeril de Mistral, despachando, con una retórica de empequeñecimiento, su pensamiento e intectualidad a un reducto filial y blanqueado por el patronazgo idiosincrático chileno. En contra de esta posición, la Dra. Sepúlveda nos declara en su hipótesis: “Mistral diseña una conciencia andina, con saberes y modelos discursivos pertenecientes a esa región cultural. […] configura una retórica de signo andino, para hablar de sí misma y de las subjetividades latinoamericanas oprimidas” (p. 18).

A partir de la enunciación de su conjetura, se comprende que el “Prólogo. Gestos de darme agua”, dividido en “Los estudios culturales transandinos” y “Mistral desde el imaginario social”, haga hincapié en una posición descentrada de la hegemonía cultural, política y artística con una marcada ascendencia hacia lo trashumante de la condición andina de la poeta de Montegrande, defendida y enaltecida en cada una de sus obras. Con ello, Mistral, y de acuerdo a la lectura de la Dra. Sepúlveda, busca reconectar al latinoamericano con su ancestralidad andina e indígena, además de campesina y feminil. Leia Mais

La violenza contro le donne nella storia. Contesti, linguaggi, politiche del diritto – FECI; SCHETTINI (BC)

FECI, Simona; SCHETTINI, Laura Schettini. La violenza contro le donne nella storia. Contesti, linguaggi, politiche del diritto. (Secoli XV-XXI). Roma: Viella, 2017. 287p.  Resenha de: GUANCI, Vicenzo. Il Bollettino di Clio, n.9, p.73-74, feb., 2018.

Le guerre di fine Novecento si sono distinte non solo per il 95% di vittime civili non combattenti ma per l’uso del corpo delle donne come arma. In particolare le guerre etniche nella ex Jugoslavia e in Ruanda hanno messo in evidenza come gli stupri di guerra fossero programmati e usati come un’arma vera e propria. Un’arma particolarmente efficace nelle società patriarcali fondate su una concezione proprietaria del corpo femminile. La guerra non solo rende legittimo infrangere i comandamenti divini del non rubare e non uccidere ma anche quello di non desiderare la “donna d’altri”; lo stupro della “donna del tuo nemico”, infatti, ha la duplice funzione di umiliare nell’immediato il nemico incapace di proteggere la “propria” donna e di garantirsi in aggiunta effetti dirompenti che vanno oltre la fine del conflitto.

Del resto, la retorica nazional-patriottica usa la metafora della nazione-donna da difendere e lo sfondamento dei confini un disonore; proprio questo fece assumere allo stupro un valore chiave nei conflitti tra nazionalismi, rendendolo nel corso del Novecento una tra le più efficaci e ricercate pratiche di guerra.

Ma andiamo per ordine. Il volume curato da S. Feci e L. Schettini affronta il tema della violenza maschile sulle donne nell’Europa degli ultimi cinquecento anni. Le fonti principali sono di tipo giuridico: testi normativi e atti processuali.

Analizzati e interpretati alla luce del contesto storico e sociale nel quale venivano utilizzati e applicati.

Ad esempio, in età moderna (e medievale) le prerogative del capofamiglia di esercitare un diritto di correzione (ius corrigendi) nei confronti della moglie, dei figli, dei domestici era considerato ovvio, riconosciuto ovunque in Europa e nei domini coloniali, qualsiasi fosse la confessione religiosa, la situazione patrimoniale della famiglia, il contesto politico e sociale. Era considerato, altresì, ovvio l’uso della forza per correggere e imporre comportamenti adeguati all’obbedienza e al rispetto che si deve al capofamiglia.

Tuttavia, l’uso della “forza” non doveva eccedere, sconfinando nella “violenza”. In questo caso, la moglie poteva ricorrere a istituzioni e magistrature per denunciare gli abusi. Diventava in quel caso decisiva la testimonianza dei vicini, la percezione che il contesto sociale aveva delle violenze. Va detto che la tendenza naturale di magistrati sia ecclesiastici che laici era quella di salvaguardare l’unità della famiglia limitandosi, nei casi più favorevoli alle donne, ad un ammonimento al maschio violento.

La cosa interessante è che l’esame attento delle carte processuali, pur narrando storie di violenze prolungate nel tempo e di progressiva gravità, consentono di individuare un limite, una “soglia”, pur flessibile, tra l’uso della forza per correggere comportamenti ritenuti inaccettabili e l’abuso violento e ingiustificato.

Oggi la violenza contro le donne, in particolare i tanti femminicidi degli ultimi anni, da qualcuno è stata vista come un ultimo colpo di coda del patriarcato declinante.

Non è detto. La partita è lunga. L’indagine storica può aiutare a capire di più e meglio. Si pensi, per esempio, al rifiuto inflessibile e religiosamente fanatico del “matrimonio affettivo” in molte società, ritenendo un sacro obbligo divino per il pater familias scegliere lo sposo per la “propria” figlia. La storia ci fa capire tanto. Prima di tutto ci rende chiari i tratti costitutivi del patriarcato ancora presente nelle nostre società contemporanee; in secondo luogo, fa piazza pulita di ogni generalizzazione e semplificazione circa i contesti nei quali è presente la violenza maschile contro le donne. Essa non conosce confini geografici né epoche storiche; non ha barriere culturali né di classe né tantomeno religiose.

“D’altronde, scrivono nell’introduzione le curatrici nell’Introduzione, tra uomini e istituzioni era e resta a lungo in atto una partita circa i margini di immunità e impunità spettanti al pater familias, condotta e giocata con variazioni ed esiti difformi nel tempo e nei diversi contesti, ma assai viva.”

Vicenzo Guanci

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A guerra não tem rosto de mulher | Svetlana Aleksiévitch

A primeira versão do livro da bielorrussa Svetlana Aleksiévitch foi publicada em sua língua original na década de 1980 e, no Brasil, em 2016. A publicação brasileira foi, muito provavelmente, uma pronta resposta de nosso mercado editorial ao potencial de vendas atrelado a uma autora agraciada com o Prêmio Nobel, que Svetlana recebera em 2015: com o selo no Nobel estampado na capa, o livro percorreu, rapidamente, as livrarias do país e tornou-se um objeto de interesse para quem pouco (ou nada) sabia sobre a participação feminina na Segunda Guerra Mundial. “A Guerra não tem rosto de mulher” reúne, ao longo de seus dezessete capítulos, relatos de mulheres soviéticas que participaram dos teatros de operação contra a Alemanha Nazista. Trata-se de uma antologia polifônica, construída ao longo de um périplo no qual Svetlana percorreu mais de cem cidades da então União Soviética. Embora seja uma obra que atingiu o grande público, está longe de apresentar uma análise superficial sobre a Segunda Guerra. Pelo contrário, o livro de Aleksiévitch oferece interessantes perspectivas aos estudos das guerras, sobretudo na intersecção com os estudos de gênero. Leia Mais

Volverse Palestina | Lina Meruane

Lina Meruane es escritora, periodista y docente, y se ha hecho conocida tanto por sus libros de cuentos y novelas Las Infantas (1998), Póstuma (2000), Cercada (2000), Fruta podrida (2007) y Sangre en el ojo (2012), como por sus trabajos ensayísticos y crónicas Viajes virales (2012), Contra los hijos (2014) y Volverse Palestina (2013/2014).

Sus textos narrativos tienden a centrarse en el cuerpo, los cuerpos, todos femeninos: cuerpos adolescentes en Las Infantas; cuerpos sufrientes, incluso en estado de putrefacción, en Fruta podrida y Sangre en el ojo; cuerpos en lucha por dominar a otro cuerpo y cuerpos que carecen de todo abrigo y enfrentan así al mundo porque no les queda otra. Meruane escribe en un contexto literario de post-dictadura. Allí el sufrimiento y la lucha de las figuras se convierten en señales liberadoras, a la vez que potencialmente fatales. Sus textos se valen de un lenguaje velado y corporal pasible, llegado el momento, de expresar lo inexpresable, de acusar recibo del daño y del deterioro que desean comunicar, incluso si se trata de expresarse en voz alta antes de sucumbir. Leia Mais

Botitas Negras en Calama. Género, magia y violencia en uma ciudad minera del norte de Chile – KRAUSHAAR (RCH)

KRAUSHAAR, Lilith. Botitas Negras en Calama. Género, magia y violencia en uma ciudad minera del norte de Chile. Santiago de Chile. Ceibo Ediciones, 2016. 398p. Resenha de: ESPIRITO-SANTO, Diana. Revista Chilena de Antropología, n.34, p.109-111, jul./dic., 2016.   

Este texto fue tomado de la presentación del libro, el 16 de Noviembre, en la Sala de Teatro Cinema.

Sabía que la antropóloga Lilith Kraushaar trabajaba con magia, relaciones y políticas de género, violencia y economía del poder en el culto a un espíritu de una señora que había muerto trágicamente en una ciudad minera en el norte de Chile. Pero no más. Cuando ella me pidió que participara de la presentación de su libro Botitas Negras en Calama, me di cuenta de que su trabajo era más que una simple etnografía de la biografía (y necrografía) de una mujer del ambiente. Además de trazar una historiografía rizomática, plural, de los hechos y del contexto de su construcción posicionada en múltiples sectores de la sociedad calameña, el libro también intenta entender la gran fe que sus varios caminos y encarnaciones, así como las intersecciones del significado de su muerte, siguen inspirando en los habitantes de estas precarias economías políticas. Este trabajo demuestra destreza en múltiples niveles de análisis discursivo y narrativo, socio-histórico y de cultura material, y es la combinación experta y sensible de estos métodos sumamente antropológicos, lo que es verdaderamente inspirador. Así es que gracias a Lilith por haber escrito este libro.

Botitas Negras es Irene Iturra, una mujer de 27 años brutalmente asesinada en los alrededores de Calama en 1969. Los detalles de su muerte son violentos en cualquier estándar: fue encontrada con la cara, cuero cabelludo y pechos cortados, sin una mano, piel y tendones de brazo, y semi-desnuda, como si hubiera sido violada. Se notó que vestía botas negras, la marca que la sexualizó desde ese momento, y que además la identificó. Tanto en los medios de comunicación, en la policía como en la población se genero un sinnúmero de hipótesis coherentes con la división sexual y económica del trabajo, y también con las ideologías de género y poder de ese tiempo y espacio: que había sido víctima de un triángulo amoroso, de alguna venganza o ira de parte del “marido”. Finalmente, cuando se produjo la imagen de “prostituta” en los medios de comunicación, se vio el asesinato como una conclusión casi naturalizada de un “ambiente” sexualmente depravado, y se apuntó a los males de una ciudad con vicios mineros descontrolados. Sin embargo, como sabemos, el caso se quedó sin culpables.

Pero Lilith Kraushaar no nos pinta un cuadro simple o sencillo de este “ambiente”, ni del enredo de conexiones en las cuales Irene Iturra se mueve, a veces secretamente de su celosa pareja, a veces con esperanza para su futuro en la prostitución. La autora nos recrea no solo el lenguaje del contexto bohemio de Chillán y Calama, trazando los pasos de Irene por una multitud de espacios y las discusiones públicas más amplias que siguieron, sino que es minuciosa hasta con el más pequeño detalle socio-histórico y documental, tejiendo una historia compleja, rica, cuyas partes sin embargo encajan de una forma disonante, en ángulos rectos, como la historia siempre es, vista de perspectivas diferentes. No hay una narrativa; hay muchas, paralelas, simultáneas, que hacen a la vez total sentido en el trabajo aquí expuesto.

Este no es solamente un libro sobre el comercio sexual en centros mineros; es también un tratado antropológico y crítico sobre la propia organización económica, sexual, y social en comunidades mineras en Chile, una organización que tiene fuertes raíces en las compañías norteamericanas que promovían modelos de familia y género que producían (y producen) tensiones irreconciliables. El hecho es que Irene Iturra desafió la tenue barrera construida entre esposas de trabajadores, protegidas por su marido y fieles a él, y las demás: solteras, mujeres nocturnas, prostitutas, sujetas a la violencia indiscriminada de sádicos. Al hacerlo, Irene puso en relieve estas mismas categorías, confundiendo los dos roles.

Pero tal como Irene utilizaba diferentes nombres, encarnando personajes diferentes según el contexto y las relaciones sociales que cultivaba en él, su cuerpo y la figura que sobresale eventualmente de su muerte tendrá repercusiones, algunas inesperadas. De hecho, hay que decir que Lilith hace más que caracterizar un espacio histórico: también ha escrito una especie de antropología del amor y de los sentimientos calameños, por medio de la magia dejada al pie del altar de Botitas Negras: cartas, velas, flores, placas, cigarros, cerveza, dulces y otros regalos que se enmarcan dentro del homenaje y de los pedidos que jóvenes y viejos pero especialmente mujeres, le vienen hacer a ella. De Irene Iturra a Botitas Negras hay una transformación: la prostituta se vuelve maestra en temas del ambiente, de clientes y prostíbulos; como ente sexual, se convierte en especialista del amor y atracción; como esposa, en temas de matrimonio y vida doméstica; la mujer asesinada y violada se vuelve la protectora de otras mujeres, experta en técnicas de venganza; se vuelve milagrera y destructora a la vez. Sus múltiples resignificaciones no son extrañas a otros difuntos especiales, no solo en Chile. La cultura material hace el milagro posible; materializa la esperanza. Por alguna razón nosotros antropólogos de fenómenos religiosos le prestamos especial atención. La figura de Irene es, por lo tanto, reclamada y rehecha en Botitas, disputada por distintos grupos con diferentes creencias relativas a la muerte y a sus prácticas funerarias.

En la segunda parte del libro, por lo tanto, Lilith nos lleva por los variadísimos motivos que impulsan el culto a Botitas, la santa prostituta. Al final, vemos que se anuda perfectamente un lado del libro con el otro: aparte de otras solicitudes, las mujeres que vienen a la tumba, desamparadas, saben que Botitas “entiende”, como dice Lilith, y cito,

lo que implica el ser mujer en esta ciudad minera, con todos los impedimentos y los papeles que se le atribuyen: conservar la familia, arreglársela con varios tipos de trabajo para obtener un sueldo, complacer sexualmente, vivir con el sueldo de otro, competir entre mujeres, admitir el privilegio masculino de escoger entre varias mujeres, el entretenimiento homosocial, situaciones todas que anuncian la expresión diaria y la eventualidad de la violencia en las relaciones de género, amparadas por las instituciones y el mercado capitalista (p. 296).

Pero, para finalizar, podemos decir que si por un lado, a través del culto a Botitas se articulan las condiciones del capitalismo industrial y los valores subjetivos mantenidos por la gente en una ciudad minera en tiempos actuales, en tanto “muerta” Irene Iturra trasciende estas mismas condiciones. Ella no es solo testigo de la historia verídica, de hechos socio- económicos refractados a través de su biografía, pero también en cierto modo hace y rehace historia.

Dice Stephan Palmié (2002: 4-5), un antropólogo y historiógrafo de religiones afro-cubanas, que en un sentido muy concreto, cada forma de conocimiento histórico involucra proposiciones sobre el papel de los muertos en el mundo de los vivos, conformado como es por la existencia y agencia pasada de humanos.

Estos conocimientos hacen reclamos al pasado; un pasado que viene a instanciar, mantener o contestar un mundo presente. Pero estos reclamos no deberán ser vistos como concepciones objetivistas de representaciones históricas, como si el pasado fuera sujeto de fácil rescate o recuperación. La historia, nos cuenta Palmié, es, invariablemente, constituida por imaginación histórica, por historias personales y familiares inacabadas, discursos y imágenes que compiten, donde no hay una linealidad entre realidades pasadas, a ciertas distancias temporales, y el presente.

Tomar en serio a los muertos afro-cubanos es, según él, indagar sobre las relaciones entre el pasado y el presente que subyacen a un orden contemporáneo pero quedan no-reconocidos, en silencio, no obstante que su existencia en el mundo haya tenido consecuencias que todavía resuenan entre los vivos.

A mi modo de ver, y en consonancia con lo que señala Palmié, lo que logra el culto a Botitas es también eso: traer a la consciencia que el pasado no terminó, y nunca va a terminar. Hay personajes, como los afroamericanos, pero también Irene Iturra, cuyas historias no son la propiedad especial de sus descendientes, sino parte del patrimonio ético e intelectual del Occidente como tal. Mientras que los muertos de que habla Palmié hacen parte de la formación de la modernidad Atlántica, como espíritu, podemos igualmente proclamar que Botitas pertenece a una conformación mucho más grande que los contornos de su propia vida.

Referências

Palmié, S. 2002. Wizards and Scientists: Explorations in Afro- Cuban Modernity and Tradition. Duke University Press, Durham

Diana Espirito-Santo – Profesora Asistente de Antropología, Pontificia Universidad Católica de Chile. E-mail: [email protected].

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Encontros com Moçambique / Regiane A. Mattos, Matheus S. Pereira e Carolina G. Morais

“Encontros com Moçambique” é um livro fruto de apresentações e debates realizados durante a II Semana da África: Encontros com Moçambique, na PUC do Rio de Janeiro, entre os dias 21 e 23 de março de 2016. Se há uma década os colóquios e seminários reuniam pouco mais de uma dezena de pesquisadores interessados na grande área de História da África, abrangendo assim um amplo recorte temático e temporal de estudos, este livro é o retrato de como, hoje, encontramo-nos em um novo momento. Regiane Augusto de Mattos, Carolina Maíra Gomes Morais e Matheus Serva Pereira apostaram que seria possível organizar uma obra que reunisse pesquisas cujo tema principal fosse Moçambique. A investida não apenas se concretizou como é prova, como afirma Valdemir Zamparoni em seu prefácio à obra, de “um amadurecimento ímpar da área de estudos africanos”2 no Brasil.

Com a maioria dos trabalhos delimitados pelo período colonial ou que perpassam o período em sua análise, o livro conta com 10 artigos divididos em 3 unidades: Deslocamentos, conexões históricas e conflitos; Narrativas; e Agendas de um Moçambique contemporâneo. Na primeira parte, um ponto de união entre os textos são os fatores condicionantes e as consequências de deslocamentos, forçados ou não, em diferentes períodos históricos, além do uso de fontes oficiais, trabalho etnográfico ou registros de imprensa para as análises, com acurado rigor metodológico no uso da documentação.

O artigo de Regiane Mattos, “Aspectos translocais das relações políticas em Angoche no século XIX”, contempla as relações entre sociedades litorâneas e interioranas do norte de Moçambique, destacando os contatos não hierárquicos entre o sultanato de Angoche e as elites muçulmanas de outras localidades, em especial no Zanzibar. Mattos parte de um evento principal para orientar sua pesquisa e desafiar a interpretação tradicional da historiografia: a viagem do comandante militar de Angoche, Mussa Quanto, e seu parente sharif, em 1849. A autora, a partir desse deslocamento, avalia a formação de uma rede comercial e cultural no oceano Índico em consonância com o aumento da presença da religião muçulmana nesses territórios. Mais do que realizar a análise histórica de uma questão localmente específica, interessa a Mattos averiguar as conexões a partir da perspectiva da translocalidade, conceito desenvolvido pela historiadora Ulrike Freitag e central na abordagem proposta no artigo. Muito bem explicado no texto, o conceito ampara a pesquisa em seu objetivo de destacar as interconexões entre lugares e atores, abrindo espaços para ressignificações de aspectos globais em âmbito local.3

No artigo seguinte, “Algazarras ensurdecedoras: conflitos em torno da construção de um espaço urbano colonial (Lourenço Marques – 1900-1920)”, Matheus Serva Pereira aborda, a partir de notícias na imprensa local, a difícil relação entre o projeto urbano colonial português para Lourenço Marques, cuja área central de Maxaquene foi delimitada para a ocupação de famílias brancas europeias, e a insistência – e resistência – dos “batuques” da população local. O argumento de Serva Pereira é que, a despeito do projeto colonial urbano, do uso da violência física e simbólica no deslocamento forçado das comunidades para a periferia, as notícias veiculadas na imprensa da época põem em xeque o sucesso de tal empreitada. Pereira atesta que os batuques, como práticas culturais, revelam uma atuação “longe de passiva em relação as instituições criadas para regular e fiscalizar o perímetro urbano de Lourenço Marques”4, estabelecendo assim um diálogo estreito com as premissas teóricas de Frederick Cooper sobre a noção de resistência em espaços coloniais5. Do mesmo modo, o autor esforça-se em defender uma organização social não totalmente polarizada na cidade, ao recompor o espectro social dos batuques nas cantinas de Lourenço Marques, onde não era incomum a convivência, num mesmo espaço de diversão, de figuras oficialmente opostas na lógica colonial e urbana.6

Ainda sob a premissa dos deslocamentos e seus conflitos, o capítulo que encerra o primeiro conjunto de textos, “Saúde além das fronteiras: doenças, assistências e trabalho migratório ao sul de Moçambique (1930-1975)”, de Carolina Maíra Gomes Morais, analisa de que maneira a imigração de trabalhadores para a África do Sul, no período colonial, além de atender a uma demanda econômica, trouxe consequências sensíveis no âmbito da saúde e das relações pessoais em Moçambique. Para acessar as condições desse movimento migratório, Morais faz uso, sobretudo, de fontes oficiais de relatórios de inspetores administrativos e se questiona de que maneira se davam as relações entre medicina “oficial” e “tradicional”. Pela disponibilidade das fontes, há uma comprovação mais substancial em relação à atuação dos Serviços de Saúde do que ao recurso à medicina tradicional. Interessante é notar a fluidez de fronteiras entre Moçambique e África do Sul sugerida pela autora para os saberes e medicinas tradicionais, proporcionada pelo trabalho migratório, além da ampla modificação nas relações pessoais em Moçambique, quando do retorno dos trabalhadores.

Na segunda unidade do livro, composta por trabalhos de pesquisadores provindos de diferentes áreas do conhecimento, os artigos têm em comum o estudo de uma obra ou do conjunto da obra de moçambicanos. Nesta unidade, que traz fontes interessantes e pouco convencionais nas pesquisas sobre Moçambique, como a fotografia e o cinema, cumpre enfatizar como nota comum o superdimensionamento do contexto histórico nas abordagens. Nos trabalhos, o contexto é instrumentalizado de modo a legitimar as narrativas ficcional ou visual presentes na documentação, utilizada muitas vezes como mero exemplo comprobatório da realidade colonial. Não resta dúvida quanto ao esforço teórico de todos os textos da unidade, mas, de um modo geral, a metodologia utilizada para a análise da relação entre ficção e História, literatura e História e visualidade e História nesses trabalhos limitou o uso mais abrangente das fontes, negligenciando, em certa medida, as narrativas criativas das próprias obras como propositivas e autoras de discursos formadores do social.

Em “O cinema em Moçambique – história, memória e ideologia: análise dos filmes Chaimite, a queda do Império Vátua (1953) e Catembe: sete dias em Lourenço Marques (1965)”, Alex Santana França realiza uma interpretação sócio-histórica e comparativa entre os filmes Chamite… e Catembe…, ancorando-se na perspectiva teórica de Francis Vanoye. Com a análise sobre Chaimite, o autor demarca as principais características do cinema de propaganda portuguesa, que se dispunha a responder, na época, à crítica internacional sobre o colonialismo luso. Catembe…, ao mesmo tempo em que demonstra o empenho português em conformar uma imagem oficial das colônias, comprovado pelos diversos cortes impostos ao filme, é considerado pelo autor como um exemplo de crítica à colonização.

Em “Não Vamos Esquecer! A propósito da fotografia ‘Marca de gado em jovem pastor’ de Ricardo Rangel”, Isa Márcia Bandeira de Brito busca analisar uma imagem feita pelo fotógrafo moçambicano em 1973, na qual um menino havia sido ferido a ferro na testa por seu patrão, por ter deixado fugir um animal. O prisma da autora na interpretação da imagem, no entanto, não favorece uma análise aprofundada e complexa do objeto, já que toma a imagem como exemplo das relações de violência colonial de maneira generalizada e dicotomiza as relações colonizador/colonizado, enfoque do qual vem se distanciando a historiografia mais recente, amparada nos estudos pós-coloniais, como são exemplos trabalhos consagrados, como os de Frederick Cooper, Homi Bhabha e Mary Louise Pratt7. A autora, vale frisar, mobiliza uma bibliografia interessante para a teorização do objeto no campo das visualidades e o trabalho dimensiona possíveis significados simbólicos da fotografia.

Em “A poesia contestatória de Noémia de Sousa e a situação colonial em Moçambique (1948-1951)”, Gabriele de Novaes Santos se propõe a compreender como a imprensa se ofereceu como veículo para a poesia de contestação colonial da escritora moçambicana Noémia de Sousa. O trabalho de Gabriele Santos é ainda inicial e, portanto, muito promissor, uma vez que a autora abre, no próprio texto, possibilidades de pesquisa interessantes sobre a obra da moçambicana. Por fim, o texto que encerra Narrativas é de autoria de Fatime Samb, com o título “A mulher moçambicana e as práticas culturais”. Ainda no primeiro parágrafo, a autora atesta sua proposta de fazer uma análise sobre o livro Niketche: uma história de poligamia e sobre o papel da mulher na obra de Paulina Chiziane. Samb faz uma importante recapitulação sobre as relações de gênero em Moçambique e a posição social da mulher na “sociedade tradicional” moçambicana, além dos impactos da independência nas relações de gênero e atuação política feminina a partir do comando da Frelimo, um tema ainda pouco conhecido e abordado em pesquisas sobre Moçambique.

A terceira e última unidade do livro, Agendas de um Moçambique contemporâneo, é formada por três artigos, sendo que dois estão em profundo diálogo a respeito da inserção internacional moçambicana, e provêm de duas áreas de formação distintas: Administração e Antropologia. Elga Lessa de Almeida e Elsa Sousa Krayachete, em “Moçambique e a cooperação internacional para o desenvolvimento”, fazem um retrospecto sobre as relações bilaterais estabelecidas por Moçambique com seus parceiros internacionais, demarcando a diferença entre cooperações verticais e horizontais, estas firmadas por países em desenvolvimento, como África do Sul, China e Brasil. O estudo de Elsa de Almeida e Elga Krayachete e o de Fernanda Gallo, “(Des)encontros do Brasil com Moçambique: o caso da Vale em Moatize” complementam-se diante do leitor atento às investidas e consequências da presença brasileira no país. Com um interessantíssimo trabalho antropológico, Gallo busca a vivência da população diante das transformações provocadas pela chegada das empresas multinacionais, em especial a mineradora Vale, e pergunta-se se há alguma relação entre esses megaprojetos para o país e a retomada crescente dos conflitos com a Renamo e ataques a trens. A antropóloga, munindo-se das comprovações de seu trabalho de campo, torna evidente ao leitor o desrespeito das empresas sobre as relações das pessoas com seus locais de origem, ao decidirem, unilateralmente, os locais para reassentamento, por exemplo, e deixa às claras o descompasso entre o discurso oficial da solidariedade e a prática de maximização dos lucros das empresas estrangeiras no país.

O livro se encerra com o capítulo desafiador de Vera Fátima Gasparetto, no qual a autora se dispõe a discutir as possibilidades de uma pesquisa interdisciplinar feminista a partir de uma análise sobre a questão da veiculação da imagem feminina na mídia, comparando a atuação feminina sobre essa questão no Brasil e em Moçambique. A autora traz um panorama sobre a composição e atuação das mulheres em seus espaços de organização nos dois países, como o Fórum Mulher e a Rede Mulher e Mídia. De um ponto de vista feminista e das novas epistemologias no Sul, em diálogo com Boaventura de Sousa Santos, por exemplo, Gasparetto faz ainda uma crítica interna a algumas teorias feministas que essencializam africanas, fazendo do trabalho acadêmico também um trabalho militante na investida de produzir “[…] uma investigação interessada em conhecer a partir das mulheres, conceituadas como sujeitas conhecedoras e conhecíveis.”8

O livro sem dúvida é uma referência importante e necessária para quem deseja se aprofundar em alguns temas moçambicanos e os trabalhos são, em conjunto, uma contribuição valiosa que demonstra um país repleto de possibilidades de pesquisa e com múltiplas fontes possíveis para análise. Mostra-se especialmente interessante nessa obra organizada o diálogo bibliográfico entre os trabalhos e, sobretudo, os diferentes exercícios teóricos e metodológicos que ultrapassam as barreiras temáticas e configuram-se como inspiração aos pesquisadores leitores. Assuntos e referências atravessam alguns capítulos do livro, como o conceito de colonialidade de Aníbal Quijano9, mais profundamente abordado no artigo de Vera Gasparetto, a discussão de gênero, de trabalho e a noção de resistências, no plural, ao longo da história moçambicana. Esse é um livro que, sem dúvida, deve ser consultado para se conhecer mais e melhor sobre Moçambique.

Taciana Almeida Garrido de Resende – Doutoranda em História Social – USP. São Paulo, SP-Brasil. E-mail: [email protected].


MATTOS, Regiane A. de; PEREIRA, Matheus Serva; MORAIS, Carolina Gomes (Org.). Encontros com Moçambique. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2016. 286p. Resenha de: RESENTE, Taciana Almeida Garrido. Desafios metodológicos, interdisciplinaridade, História: Encontros com Moçambique. Outros Tempos, São Luís, v.13, n.22, p.238-243, 2016. Acessar publicação original. [IF].

Antigas Leituras: Visões da China Antiga – BUENO/ M NETO (RMA)

BUENO, André; NETO, José M. (org.) Antigas Leituras: Visões da China Antiga. União da Vitória: UNESPAR, 2014. Resenha de: BUENO, André. Revista Mundo Antigo, v.4, n.7, jun., 2015.

Ainda que a China seja um dos temas historiográficos mais importantes da atualidade, é precário e desolador o panorama dos estudos sinológicos no Brasil. Reinam as iniciativas isoladas, calcadas nas bibliotecas particulares (adquiridas a muito custo), cuja divulgação é quase sempre bastante restrita. É possível dizer, sem receio, que estudar o vasto e amplo campo do “Oriente” não é algo devidamente estimulado no ambiente acadêmico nacional. Dentre os múltiplos objetivos da Ciência Histórica, estudar os fundamentos das civilizações humanas, bem como compreender os mecanismos da alteridade, deveriam ser temas relevantes mesmo para um historiador iniciante; e a ausência marcante dos estudos de Antiguidade Oriental em muitos currículos evidencia, mais do que nunca, esse problema gravíssimo de formação. Um estudante, obviamente, não precisa ser sempre um especialista em Antiguidade e/ou “Oriente”; mas sabemos que, ao dominar os instrumentos básicos da pesquisa nesse campo, ele amplia e fortalece sua formação, construindo para si um conhecimento mais sólido e interdisciplinar. Marcel Granet (1884-1940), um dos mais importantes sinólogos que a França já conheceu, afirmava que “A civilização chinesa merece mais do que a simples curiosidade. Ela pode parecer singular, mas (é um fato) nela se encontra registrada uma grande soma de experiência humana. Nenhuma outra serviu de vínculo a tantos homens, durante um período tão grande. Quem pretende ter o título de Humanista, não deve ignorar uma tradição de cultura tão atraente e tão rica em valores duráveis”. Posto de outra maneira: é possível, ou mesmo viável, afirmar-se um “Humanista” ou um “Especialista em Ciências Humanas” quando seu conhecimento teórico e metodológico – que se pretende universal – ignora quase dois terços do mundo (isto é, Ásia e África)? Dito isso, não é preciso muito esforço para compreender a necessidade fundamental dos estudos sobre o “Oriente”. Claro, cuidados devem ser tomados: facilmente, buscar entender UM “Oriente” descambaria no “Orientalismo”, tão bem denunciado por Edward Said (1998), que se constitui na miragem cultural do exotismo e do estranhamento produzida pelos europeus do século 19, em relação “aos outros” – ou, os “orientais”. O “Oriente”, pois, deve ser abordado em blocos separados, e em épocas distintas, buscando-se compreender seus modelos civilizacionais, seus alcances e contribuições. Leia Mais

Moça educada, mulher civilizada, esposa feliz: Relações de Gênero e História em José de Alencar | Ana Caroline Eiras Coelho Soares

Publicada originalmente no Brasil em 2012, a obra expõe, em seus 4 capítulos, as representações femininas presentes nas obras literárias do século XIX, mais especificamente, da autoria de José de Alencar, lançadas no Rio de Janeiro. Os romances Lucíola, Diva e Senhora demonstram os elementos que Soares pretende analisar, dos quais se ressalta o papel do amor e da felicidade conjugal como atribuições da mulher necessárias para a solidez do casamento. A autora analisa também o papel que a mulher desempenhava na sociedade no período em que a obra foi escrita e o caráter pedagógico dessas obras. Cumprindo esses objetivos, a autora relaciona a literatura com o “espírito da época” e a transformação do conceito “civilização” desde aquele momento histórico.

O momento histórico Brasil Império, especificamente a partir de 1860, data da primeira publicação de José Alencar analisada nesse trabalho, é marcado por homens da “elite dominante” que absorveram, refletindo no país, hábitos e costumes europeus. Deste modo, a elite imperial acabou por criar uma série de pontos de semelhança que ficarão marcados na literatura: educação, vida profissional, indumentária, regras de etiqueta e bens. Essa homogeneização será relacionada com a construção e modificação do conceito de “civilização”, e será cobrada da mulher que pretender ser civilizada como pré-requisito para tornar-se uma mulher feliz através do casamento. Leia Mais

Trabalho doméstico: coisa de mulher? Debates feministas no Cone Sul (1970 – 1989) / Soraia C. Mello

Resta saber (…) se as mulheres são desvalorizadas socialmente porque encarregadas do trabalho doméstico ou se o trabalho doméstico é desprezível porque feito por mulheres.[2]

A citação acima, retirada da obra aqui resenhada, revela com maestria a discussão realizada por Soraia Carolina de Mello em seu livro Trabalho doméstico: coisa de mulher? Debates feministas no Cone Sul (1970 – 1989). A autora é graduada em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e mestre em História Cultural pela mesma instituição. Atualmente é doutoranda do Programa de Pós-Graduação de História também da UFSC e continua realizando discussões sobre o trabalho doméstico através de uma metodologia comparativa entre os países Brasil e Argentina, no período de 1970 a 1980. Suas fontes são periódicos feministas e a imprensa feminina e, dentro da área da História, tem como temas centrais as relações de gênero, feminismo e história das mulheres.

A obra aqui destacada é fruto de sua dissertação de mestrado, defendida com méritos no ano de 2010, e tem como título Feminismos de Segunda Onda no Cone Sul problematizando o trabalho doméstico (1970-1989). O livro está dividido em duas partes: a primeira tem como foco a problematização do trabalho doméstico gratuito pelo movimento feminista de Segunda Onda; já a segunda parte do livro apresenta as discussões sobre o emprego doméstico. Vale destacar que esse trabalho insere-se em um conjunto de pesquisas realizadas por um grupo de pesquisadores e pesquisadoras que ultimamente tem como tema central de suas pesquisas a categoria gênero e os movimentos feministas e, por meio de um método comparativo, vem contribuindo para esse campo de estudos. [3]

O livro trazà tona uma discussão que parece ter sido esquecida pela historiografia ou que talvez não tenha mostrado importância suficiente para se tornar o foco de uma pesquisa. Igualmente, a chamada historiografia feminista parece ter deixado esse debate de lado, o que demonstra o pioneirismo exercido pela autora. Soraia Carolina Mello demonstra muito bem em seu trabalho o ofício do historiador, ou seja, a busca constante de vestígios humanos do passado para (re)construí-lo através de suas questões do presente.

A autora, no decorrer da apresentação do livro, faz um significativo estado da arte em torno do tema abordado e realiza uma discussão metodológica sobre as categorias que utiliza na pesquisa. Além disso, a autora compreende a existência de uma diferenciação do trabalho doméstico, realizado pela dona de casa, em relação ao trabalho efetuado pela empregada doméstica. Da mesma maneira, percebe a existência de um conservadorismo por parte das pessoas mais jovens quando se trata desse tipo de trabalho.

Inicialmente, a partir da análise de suas fontes, Mello apresenta como um discurso conservador presente na sociedade colocava a mulher como sendo a única pessoa que tinha obrigação para com os serviços do lar. Da mesma forma, a autora coloca em destaque que a maternidade dificultava ainda mais o trabalho doméstico visto que, em muitas vezes, o aumento da família incidia diretamente no aumento do trabalho no lar.

Outros pontos trabalhados nessa primeira parte referem-seà invisibilidade que o trabalho doméstico tinha no período, a falta de divisão do mesmo, os afazeres domésticos como algo interminável e que muitas das mulheres tinham que exercer uma dupla jornada trabalhando tanto dentro de casa quanto fora dela. Muitas dessas mulheres que tinham dupla jornada sofriam, também, com a falta de locais para deixar seus filhos enquanto trabalhavam, o que pode demonstrar um esquecimento das forças políticas para com as mães trabalhadoras. Ressalta-se ainda a discussão travada em torno do motivo para que o trabalho doméstico não fosse colocado na mesma categoria que outros trabalhos. Aqueles que defendiam essa exclusão não viam no trabalho doméstico uma atividade geradora de capital e, por isso, não aceitavam a comparação com o trabalho industrial ou o feito fora do lar. Como contraponto a esse ideal, a autora discorre acerca dos debates feministas que defendiam o trabalho doméstico como um gerador de capital para o país, mesmo que de forma indireta.

A segunda parte do livro tem como abordagem central o emprego doméstico. A autora discorre sobre como as leis trabalhistas praticamente não eram existentes no período estudado e apresenta a persistência de uma desvalorização do emprego doméstico pela sociedade. Para ela, um dos motivos para a não valorização do emprego doméstico é a forte ligação que se construiu entre essa forma de trabalho e as mulheres, através do qual estas foram historicamente relegadas a um espaço considerado de pouco valor: o espaço doméstico. As condições de trabalho também são problematizadas em seu texto, ou seja, a elevada carga horária de serviço; a questão de muitas empregadas serem de outras localidades e por isso não conhecerem ninguém na cidade em que trabalhavam; o fato de dormirem na casa de seus patrões que, entre outros, acaba por dificultar/reduzir o contato social com o mundo externo. Com isso, a autora levanta a hipótese de que, por não terem um convívio social fora do lar onde exercem a função, essas trabalhadoras não reconhecem a precariedade presente em seu emprego. Soraia Carolina de Mello continua sua análise apresentando as formas como se davam as relações de distanciamento entre patroas e empregas e as formas como funcionavam os jogos de identificação das mesmas.

Outro ponto que merece destaque é o olhar dado pela autora para as relações entre as feministas e suas empregadas domésticas e como elas justificam essa prática, uma vez que consideram o trabalho doméstico como uma opressão. Mello vai perceber a falta de uma problematização dessa relação até os dias atuais, citando o exemplo da participação em eventos no qual costuma ouvir que não se pode deixar essas mulheres desempregadas. Além disso, a autora vai entender esse posicionamento como uma contradição dentro dos feminismos, apresentando trabalhos que defendiam que o trabalho doméstico é um dos causadores da estabilidade na pobreza e que ele impossibilita uma evolução nos rendimentos das trabalhadoras.

A autora finaliza a segunda parte do livro discutindo sobre o motivo de, muitas vezes, o emprego doméstico não ser considerado uma “reprodução da força de trabalho para o capitalismo” [4], pois ele pode ser remunerado por outras formas que não o dinheiro. Igualmente, aborda sobre a hierarquização existente entre emprego e trabalho doméstico assinalando que, na verdade, esses dois afazeres se tratam da mesma atividade. Por fim, a autora argumenta que “a questão chave do problema de desvalorização do emprego doméstico [é] sua relação com o trabalho doméstico” [5], isto é, Mello vai apontar que por ser realizado dentro do espaço doméstico, este considerado menos valorizado, o exercício da função de empregada doméstica foi e continua sendo visto como um trabalho sem valor para o desenvolvimento do país, pois ele poderia ser feito pela dona de casa.

Em suas considerações finais, Mello, discorre brevemente acerca da discussão sobre o emprego e o trabalho doméstico no século XXI. A partir dessa análise, a autora demonstra que persiste ainda em nossa sociedade um problema na distribuição do serviço doméstico entre os sexos, isto é, as mulheres na maioria das vezes são as que fazem o serviço de casa, o que se configura como uma questão de hierarquização de gênero. Assim como o emprego doméstico é visto como algo prescindível.

O livro carrega grandes contribuições e principalmente inovações no que diz respeito aos estudos sobre o tema abordado, pois o trabalho doméstico esteve marginalizado nos estudos historiográficos. A forma como a pesquisadora dialogou com suas fontes, assim como suas análises, trazem à luz vozes de sujeitos que são colocados à margem da história oficial, mas que são primordiais para uma (re)construção de um passado determinado. Seu trabalho serve, também, para mostrar que se atualmente o trabalho doméstico ainda é um serviço para as mulheres e isso se deve a uma construção histórica e social, cabendo àqueles que pesquisam questões relativas às áreas de humanas desnaturalizarem essa ideia. Com isso, pode-se concluir que esta obra colabora não apenas para os estudos de gênero, mas também para aqueles que estudam as questões trabalhistas e, principalmente, para todo cidadão e cidadã que ainda acredita que o trabalho doméstico é sim: coisa de mulher.

Notas

2. FARIAS apudMELLO, Soraia Carolina. Trabalho doméstico: coisa de mulher? Debates feministas no Cone Sul (1970 – 1989). Rio de Janeiro: Ed. Multifoco, 2011. p.155.

3. Para saber mais sobre essas pesquisas e suas discussões ver PEDRO, Joana Maria; VEIGA, Ana Maria; WOLFF, Cristina Scheibe. (Org.). Resistências, gênero e feminismos contra as ditaduras no Cone Sul. Florianópolis: Editora Mulheres, 2011.

4. MELLO, op.cit.,p. 151.
5. Ibid., p. 155.

 

Thiago do Vale Pereira Livramento – Mestrando em História da UFSC. Florianópolis –SC – Brasil. E-mail: [email protected].


MELLO, Soraia Carolina. Trabalho doméstico: coisa de mulher? Debates feministas no Cone Sul (1970 – 1989). Rio de Janeiro: Ed. Multifoco, 2011. 197 p. Resenha de: LIVRAMENTO, Thiago do Vale Pereira. O trabalho doméstico em debate. Outros Tempos, São Luís, v.11, n.17, p.286-289, 2014. Acessar publicação original. [IF].

Women in Ancient Egypt – ROBBINS (RMA)

ROBBINS, Gay. Women in Ancient Egypt. Cambridge: Harvard University Press, 1993. 205p. ROBBINS, Gay. Reflections of Women in the New Kingdom: Ancient Egyptian Art from the British Museum. San Antonio: Van Siclen Books, 1995. 142p. Resenha de: SANTOS, Moacir Elias. A Mulher no Antigo Egito nas obras de Gay Robbins. Revista Mundo Antigo, v.2, n.4, dez., 2013.

Para a presente resenha acreditamos que não deveríamos apresentar apenas uma obra, mas duas. Tal escolha refere-se ao fato destas terem sido produzidas pela mesma autora, a egiptóloga norte-americana Gay Robbins, e também pelo conjunto que ambas formam, sendo a segunda complementar à primeira, embora não pertençam a nenhuma série ou algo semelhante. Robbins é atualmente Associate Professor de História da Arte e Curadora de arte egípcia no Museu Michael C. Carlos, na Universidade Emory. O primeiro livro, Women in Ancient Egypt, foi concebido a partir de um projeto da autora, encorajado e auxiliado por inúmeros estudiosos do Antigo Egito, dentre os quais destacam-se Vivian Davies, John Baines, Richard Parkinson e Stephen Quirke. Já o segundo, Reflections of Women in the _ew Kingdom: Ancient Egyptian Art from the British Museum, originou-se de uma exposição organizada por diversos especialistas, americanos e ingleses, dentre os quais figura a Dra. Robbins. Realizada no período de 4 de fevereiro a 14 de maio de 1995, no Museu Michael C. Carlos, a mostra revelou inúmeros artefatos, que representavam mulheres ou estavam a elas relacionados. A temática explorou diversos aspectos significativos que, desde o planejamento da exposição seriam ampliados e reunidos em um catálogo especializado. Entretanto este não se frutificou, devido à falta de recursos, todavia, pouco antes do encerramento da mostra, Clarles C. Van Siclen III ofereceu-se como patrocinador do catálogo. Embora seja “menos ambicioso que o catálogo original”, conforme as palavras de Gay Robbins, o presente conserva os mesmos textos didáticos. Leia Mais

Direitas em movimento: a Campanha da Mulher pela Democracia e a ditadura no Brasil / Janaína M. Cordeiro

No processo de permanente reconstrução da memória social sobre a ditadura civil-militar brasileira, prevaleceu, ao longo das últimas décadas, o mito de uma sociedade sempre resistente aos militares. Como considera Daniel Aarão Reis (2004), de sua parte, a academia tendeu também a privilegiar como objeto de estudos os grupos que resistiram à ditadura, “relegando ao silêncio as manifestações de apoio e consentimento de expressivas parcelas da sociedade”. Apenas recentemente a historiografia tem abordado, com o devido cuidado, os movimentos, instituições e manifestações que, respaldaram o regime, desconstruindo, na opinião de Denise Rollemberg (2010), “uma memória de resistência, não raramente mitificada”. Revisitar, assim, os processos que teriam nos levado a um “consenso democrático”, produtor de conciliação e esquecimento, é uma tarefa que se apresentaria como o principal desafio para um conjunto de historiadores e cientistas sociais empenhados em “tentar compreender o regime instaurado em 1964 como um processo de construção social”, do qual participam ativamente diversos atores sociais.

O livro Direitas em Movimento: a Campanha da Mulher pela Democracia e a ditadura no Brasil, defendido originalmente por Janaina Martins Cordeiro como dissertação de mestrado e agraciado com o Prêmio Pronex/ UFF em 2009, compõe de forma exemplar esse amplo leque de estudos, voltados para uma releitura das relações entre o regime militar e a sociedade civil. Em sua análise, a autora aponta claramente para a função legitimadora que alguns setores da sociedade brasileira tiveram não apenas no momento do golpe, mas durante as mais de duas décadas que marcaram a implementação de um projeto de “modernização conservadora” que permitiu que os militares se mantivessem no poder. Embasado nas reflexões do alemão Andreas Huyssen e dos franceses Pierre Laborie e Henry Rousso, o estudo nos permite, de muitas formas, ampliar a compreensão acerca do complexo “universo simbólico, cultural e também material dos grupos que apoiaram o golpe” e a ditadura civil-militar. Leia Mais

Mobilidade humana e a diversidade sócio-cultural – MAZZA; SIMSON (ES)

MAZZA, Débora; Von SIMSON, Olga. Mobilidade humana e a diversidade sócio-cultural. Jundiaí: Paco Editorial, 2011. Resenha de: SIMAI, Szilvia; BAENINGER, Rosana. Educação & Sociedade, Campinas, v.33 n.121  out./dez. 2012.

A ideia principal do livro está assentada na importância das migrações, tanto em nível local quanto em nível global, para a (trans)formação de culturas. O livro deixa claro que a própria cultura, por sua vez, está “migrante”. Avança ainda no estudo da multiplicidade de contextos culturais sobre a migração. Foi produzido por vários estudiosos que abordam questões relativas à cultura e suas interrelações com a mobilidade humana. Para tanto, utilizam uma variedade de situações, disciplinas e metodologias, contemplando aspectos relevantes da presente conjuntura da migração e cultura: questões da trajetória do deslocamento; fronteiras; identidades; contatos transnacionais; memória cultural; transmissão da identidade através das gerações; as questões de diferença cultural e hibridismo; histórias orais da migração; o papel das novas tecnologias de ligação entre culturas e a promoção cultural da polinização cruzada.

A coletânea tem duas partes principais. A primeira parte mostra muito bem como o estudo da migração envolve inúmeras possíbilidades de rotas disciplinares e de metodologias de pesquisa. A forma mais comum de encontrar estudos migratórios é no âmbito das ciências sociais. Na verdade, no Brasil, a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) e a Associação Brasileira de Estudos Populacionais (Abep) têm grupos de trabalho que tratam da migração internacional; outras áreas humanísticas e das artes, contudo, não parecem reconhecer o seu interesse distinto no campo. Essa fronteira é destruída no livro por estudiosos, unificando as ciências sociais e as artes. E assim, nessa perspectiva, na primeira parte do livro, os autores apresentam uma rica coleção interdisciplinar sobre a mobilidade humana. Alguns artigos do livro usam uma abordagem mais moderna das ciências sociais para trazer elementos de estudos de mídia, de sociologia e de psicologia social. O lado mais forte da obra é a inclusão de campos muito pouco discutidos, como a análise literária de Albert Camus em uma conceituação filosófica da estranheza e alteridade através de análise semiótica e pós-colonial. Destaque-se também a voz que é dada às crianças como protagonistas de suas vidas, isso mostra a capacidade do livro em trazer elementos inovadores e sofisticados para análise de estudos migratórios. A obra traz ainda o uso do cinema como uma forma de retratar experiências migratórias, bem como as novas formas de internacionalizações e suas migrações, envolvendo trajetórias migratórias acadêmicas, o que enriquece nossa compreensão acerca das mobilidades humanas contemporâneas como experiências vividas.

A segunda parte do livro focaliza e reconstrói movimentos migratórios internacionais para o Brasil, destacando a importância da mulher nesses contextos migratórios. Italianas, portuguesas, alemãs, japonesas e latino-americanas compõem o universo social das migrações no Brasil. Nesse aspecto, o livro é oportuno e inovador, ao dar visibilidade às mulheres imigrantes e sua importância nas constituições dos fenômenos migratórios históricos e contemporâneas.

A presença da mulher imigrante é retratada de maneira exemplar no livro, desde as vivências familiares nas ex-colonias portuguesas até as mulheres latinas hoje na cidade de São Paulo. A leitura da coletânea permite um percurso pela presença da mulher imigrante a partir de diferentes olhares: na música, na família imigrante, nas gerações de imigrantes, nas relações de gênero, na educação, na formação de identidades das mulheres imigrantes; aspectos que refletem e dinamização do processo cultural.

O livro faz-nos compreender que a mobilidade humana traz desafios intermináveis e dificuldades vividas por todos os migrantes e, de uma forma ou de outra, características comumente compartilhadas. Contudo, no fim, estes desafios se tornam parte de processos identitários e da construção social das migrações e dos indivíduos neles envolvidos. Como Hemingway afirma: “O mundo quebra todo mundo e, posteriormente, alguns ficam mais fortes nos locais quebrados”.

Szilvia Simai – Doutora em Psicologia Social e pesquisadora do Núcleo de Estudos de População da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: [email protected]
Rosana Baeninger – Doutora em Ciências Sociais e professora do Departamento de Demografia e Núcleo de Estudos de População da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: [email protected]

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O negro e a mulher em Úrsula de Maria Firmina dos Reis / Juliano C. Nascimento

O livro de Juliano Nascimento traz, para os estudiosos de literatura feita por mulheres no Brasil, uma grande contribuição, na medida em que o autor faz uma belíssima investida sobre a obra Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, escritora maranhense do século XIX.

Nascida em 1825 na província do Maranhão, mulata e pobre, Maria Firmina dos Reis conseguiu uma façanha extraordinária para as mulheres do oitocentos: escrever e publicar um romance em 1859, Úrsula. Não só o ineditismo da escrita feminina, fato que eram poucas, bem poucas mesmo as mulheres de letras do século XIX, como também a forma inusitada de falar da e contra a escravidão presente em seu romance.

Firmina inaugura, dessa forma, uma literatura abolicionista inédita para o período, pois em seu romance os negros cativos têm voz e vez e falam da escravidão e contra ela, de forma direta, muito antes mesmo do famoso poema Navio Negreiro, de Castro Alves, de 1868.

O processo de diáspora e o aviltamento nos tumbeiros que transportavam os negros africanos para o Brasil são descritos de forma minuciosa pela personagem preta Suzana criada por Firmina, assim como dois outros personagens cativos ganham voz na pena firminiana, que são o escravo Túlio e o velho escravo Antero. Túlio, em um ponto alto do romance, fala que “a mente, essa ninguém pode escravizar” (Reis, p.38), questionando a situação a que estava submetido e o desejo de liberdade que não calava em sua consciência.

Ora, como bem coloca Nascimento, muito já foi dito sobre a obra Úrsula, de Maria Firmina dos Reis. Talvez isso hoje se coloque com mais força porque agora a autora esteja relativamente em alta graças à visibilidade de um discurso sobre a afro-descendência, do “Brasil de e para todos”.

A autora foi por muito tempo esquecida, tanto no âmbito do cânone literário como da historiografia literária. Afinal, é apenas em 1962, ou seja, quase cem anos depois da primeira edição de Úrsula, que Horácio de Almeida, ao encontrá-la em um sebo do Rio de Janeiro, a obra chama a sua atenção por vir assinada com o pseudônimo de “uma maranhense”.

Em 1975, o mesmo Horácio de Almeida traz a lume a segunda edição de Úrsula, em edição fac-similar, hoje também uma raridade encontrada apenas em sebos. (MUZART,2000) Em 1975, também, Nascimento de Morais Filho, desenvolvendo pesquisa sobre autores maranhenses, traz à tona o livro Maria Firmina dos Reis: fragmentos de uma vida, no qual o autor reúne tudo o que encontrou nos jornais do Maranhão da segunda metade do século XIX – jornais que foram espaço onde Maria Firmina publicou bastante: Jornal do Comércio, A Moderação, A Verdadeira Marmota, Jardim dos Maranhenses, A Imprensa, Eco da Juventude, Publicador Maranhense, Porto Livre, O Domingo, O País, A revista Maranhense, Diário do Maranhão, A Pacotilha, Federalista.

Morais Filho reúne também em seu livro poesias, dois contos de Firmina (Gupeva de 1861 e A Escrava, de 1887) e entrevistas com ex-alunos, já que Maria Firmina dos Reis foi professora por quase toda a vida, em Guimarães, interior da província do Maranhão.

No livro de Morais Filho encontramos uma defesa acirrada de que a autora havia sido a primeira romancista brasileira, fato que inaugurou uma famosa disputa pelas origens entre os críticos literários, da primogenia ou não de Maria Firmina em relação à publicação de um romance feito por mulher no Brasil.

Depois desse “resgate”, o livro Úrsula será retomado mais uma vez com uma terceira edição em 1988, centenário da abolição no Brasil. Prefaciado por Charles Martin, o autor coloca Firmina no patamar de primeira escritora abolicionista, e compara o seu romance com outros como A escrava Isaur, de Bernardo Guimarães, de 1875. Para Martin, a autora consegue colocar-se muito melhor, inaugurando, nas letras abolicionistas do XIX, “uma rara visão de liberdade”.

É nesse cadinho que a obra de Maria Firmina dos Reis vai se tornando relativamente conhecida fora do Estado do Maranhão: escritora, mulher, mulata, abolicionista. Daí surgem, ao longo dos tempos artigos, pequenas biografias e, por fim, dois trabalhos de maior fôlego: Algemira Macêdo Mendes e Adriana Barbosa de Oliveira – respectivamente, uma tese de doutorado e uma dissertação de mestrado.

Algemira Macêdo, em sua tese, na qual trabalha com Maria Firmina e Amélia Beviláquia, tem como questão central “rastrear o processo de inclusão e de exclusão das escritoras Maria Firmina dos Reis e Amélia Beviláquia na historiografia literária brasileira do século XIX e XX”. (MENDES, 2006, p.28) Já Adriana Oliveira busca “fazer uma leitura do romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, que evidencia a denúncia da condição de desigualdade a que as mulheres e que os africanos e seus descendentes estavam submetidos, no Brasil, do século XIX, devido à atuação do regime patriarcal”. (Oliveira,2007 p. 24) Juliano Nascimento, no entanto, acerta em cheio ao afirmar que “o fato consiste no tempo perdido sem que se examinasse seriamente se há um discurso poético ou não na obra, se há qualidade literária aliada a crítica cultural no romance Úrsula, ou se o romance se mostra apenas como um dramalhão onde mulheres e negros aparecem de forma exótica, ou no melhor dos casos, peculiar.”( Nascimento,2009, p. 24).

Dessa forma, Juliano Nascimento, pela primeira vez e de forma séria, tenta ver o romance Úrsula para além daquilo que o autor entende como motivos “extra-literários”. Ou seja, o valor do romance estaria em seu pioneirismo de ser ou não a primeira publicação de uma mulher brasileira, ou por falar da e contra a escravidão de forma diferenciada, ou por abordar a questão da mulher, entendida hoje como questão de gênero.

Para o autor, que defendeu seu trabalho em forma de dissertação na área de teoria literária na UFRJ e depois o transformou em livro, o importante e fundamental ainda não teria sido feito, que é aprofundar a crítica ao romance, ler e reler a obra como aconselhou Alfredo Bosi, ao falar da falta de leitura de uma determinada nova crítica literária, empenhada em fazer uma super análise, onde o texto não mais apareceria e sim as motivações do crítico literário ou aquilo que ele gostaria de ler na obra. (BOSI, 2009) Nascimento não faz isso, não exerce a super análise, e sim se deixa levar pela narrativa de Maria Firmina dos Reis, fazendo um trabalho minucioso dividido em quatro capítulos: a receptividade da obra, as possibilidades estéticas e ideológicas do romance, a forma do relacionamento entre gêneros no romance e a forma estética e ideológica do negro em Úrsula.

O trabalho é primoroso e chega em boa hora, visto que, como o próprio autor aponta, estava passando do tempo de um debruçamento crítico literário sobre o que Maria Firmina escreveu, para além das razões extratextuais. Fato é que a dissertação de Juliano Nascimento intitula-se: O romance Úrsula de Maria Firmina dos Reis: estética e ideologia no romantismo brasileiro. O título do livro O negro e a mulher em Úrsula de Maria Firmina dos Reis é obviamente uma escolha mercadológica da editora para vender o livro. No entanto, o título não faz jus à abrangência e ao mérito da obra, mas essa já é outra história…

Régia Agostinho da Silva. Professora da Universidade Federal do Maranhão – UFMA. Doutoranda FFLCH-USP. São Luís, MA- Brasil. E-mail: [email protected].


NASCIMENTO, Juliano C. do. O negro e a mulher em Úrsula de Maria Firmina dos Reis. Rio de Janeiro: Caetés, 2009.130p. Resenha de: SILVA, Régia Agostinho da Silva. Outros Tempos, São Luís, v.9, n.13, p.255-257, jul. 2012.  Acessar publicação original. [IF].

 

Mulher e Literatura: história, gênero e sexualidade | Cecil J. A. Zinani

O imbricado narrativo literário é tão revelador de um mundo imaginário de modelos de gênero quer seja em relação às estratégias dominantes quanto de corpos não conformados que resistem à imposição de normas. Neste sentido, encaminho nestas linhas algumas discussões presentes na obra auferida em torno das aproximações entre a literatura e a história, as relações de gênero e modelos de feminilidade. Também se apresenta exemplos da autoria feminina latino-americana em relação a diferentes vivências de personagens mulheres.

Nesta obra, o conjunto de textos apresenta mulheres escritoras, suas protagonistas e demais personagens em diferentes obras literárias latino-americanas contemporâneas. O livro foi organizado em três seções: história, gênero e sexualidade. Estas três seções e as diversas autorias contemplam a necessidade de outros olhares sobre as narrativas cujas tramas tecem imaginários diferenciados. Assim, percebe-se a tentativa de aproximação entre várias áreas do conhecimento humano como a psicologia, antropologia e a história para dar conta das relações entre mulheres, homens e de sexualidades não conformadas. Destarte, a literatura e seu contexto são reveladores de histórias minúsculas, mas tão ricas e significativas como as demais histórias. Leia Mais

Tereza Batista cansada de guerra | Jorge Amado

Esta resenha objetiva descrever e analisar algumas passagens do romance acima citado no intuito de perceber as relações elencadas por Jorge Amado, que possibilitam um conhecimento da época, do espaço e das relações sociais, que todas as obras literárias carregam nas entrelinhas de sua trama. No caso de Jorge Amado, escritor baiano que começa a escrever na década de 1930, estas relações são postas intencionalmente para mostrar a sociedade na qual o autor está inserido e é observador atento do cotidiano do povo. Aqui identificaremos estas relações enfocando a mulher como sujeito social no cenário proposto pelo autor.

Posto que Jorge Amado trabalha com uma temporalidade que descreve os meandros por que perpassam a memória, fazendo uma alusão ao caráter popular que ele dá as suas obras, traçaremos aqui uma linha cronológica que nos permita caminhar por uma ordem que não segue necessariamente a do livro.

Tereza ficou órfã muito cedo e passou sua curta infância com uma tia. Foi uma criança livre, gostava de correr e subir em árvores. Com os meninos, seus colegas, aprendeu que um bom guerreiro não chora. Aos doze anos ela foi vendida ao Coronel Justiniano, por uma quantia irrisória e um bracelete barato. Seu tio foi contra a venda, não por um gesto altruísta, mas por desejar ser ele a tirar o “cabaço” da menina. Sabendo que sua esposa conhecia suas intenções, não se atreveu a falar nada.

Já neste momento o autor sinaliza a falta de alternativa de Tereza. Era condição de ela perder a infância, pois se o Coronel não a desvirginasse violentamente o tio faria, fazendo-a perder, portanto a chance de ser uma “mulher direita”, posto que para isso era necessário ser virgem. Ela é coisificada e pela dimensão da violência deste processo ela é obrigada a aceitar esta condição.

Na casa do Coronel “Justo”, Tereza viveu um verdadeiro inferno a começar na sua chegada, na condição de “coisa sexual”, depois de resistir bravamente à primeira “cavalgada” (termo usado pelo próprio Coronel para referir-se aos estupros que comete) continua a ser estuprada. A descrição detalhada que o autor faz destas violências sexuais carrega nos detalhes a angústia, a raiva, a impotência do leitor, sensação esta que nos faz refletir sobre a nossa condição como participantes desta sociedade que carrega embaixo de um fino pano as injustiças contra a mulher.

Tereza foi escrava sexual por cerca de três anos, até ser seduzida por Daniel, jovem boêmio, sem caráter, muito semelhante fisicamente ao anjo pendurado na parede do quarto do Coronel, que presenciava toda a violência cometida contra a menina. Por Daniel, Tereza foi capaz de matar o Coronel quando ele descobrir a relação dos dois e humilhou o rapaz.

Neste momento o autor nos desvela que o Coronel não conseguiu anular a coragem da menina, agora mulher, com as surras e os estupros. A coragem lhe era inerente, só ficou adormecida por um tempo, despertando na primeira oportunidade.

Quem libertou Tereza da prisão, já que ela matou o Coronel na presença de Daniel que a denunciou acusando-a covardemente (e nós leitores sabemos que ela o fez para salvá-lo), foi o Coronel Emiliano, este já havia se encantado pela menina quando lhe fez uma visita ao, agora, falecido Justo, e tentou, na ocasião, “comprá-la”, mas não teve sucesso. A menina viveu durante seis anos na condição de “amásia” do Coronel Emiliano, ele a colocou numa casa, lhe deu vestidos, contou-lhe uma porção de coisas e ensinou-lhe a ser uma “senhora”. Porém nunca tornar-se-ia uma “senhora”, posto que as “mulheres de família” suportavam as “protegidas” dos Coronéis por medo e respeito aos mesmos, sua condição de “mulher da vida” iria acompanhá-la para sempre, como uma sombra.

Apesar desta condição de “amásia”, Tereza foi feliz durante aqueles anos, e quando finalmente o Coronel revelou seu amor por ela (dizendo-lhe inclusive que pensava em lhe dedicar parte da herança), confessando sua infelicidade no seio familiar, ele morreu, durante o ato sexual, dentro de Tereza. Novamente sem ninguém e sem nada a menina-mulher “cai na vida”.

O Coronel Emiliano reproduziu com Teresa a mesma lógica de todos os Coronéis, inclusive a do Coronel Justino, o vilão do primeiro capítulo. Mas pela primeira vez a menina, que perdeu a infância, foi tratada com carinho, ele fez o papel de pai e amante e este fato em contraste com os momentos vividos com o outro primeiro Coronel acabou aliviando a culpa deste.

O contraste também se faz presente na estrutura do texto, que nos transporta para dois momentos respectivamente: ora são descritos os momentos de felicidade de Tereza ao lado do coronel Justino, ora o desfecho da morte deste e o sofrimento da perda por Tereza, aliado a chegada da família, que o Coronel dizia nunca tê-lo amado. Neste momento as lembranças da menina são nossos guias, pois o autor nos faz enxergar o Coronel pelos olhos da personagem.

As relações dos dois espaços da mulher nestas cidades são descritas neste capítulo quando Amado narra a função de Tereza como “amásia”: a mulher sustentada e protegida por um Coronel próspero. Estas mulheres normalmente são tiradas de prostíbulos e colocadas na casa de descanso destes Coronéis, a maioria tem que estar consciente de seu papel; elas esperam os Coronéis terem vontade de estar com elas, fazendo, quando isso acontece, todas as vontades deles. Esta relação de submissão fica clara quando Tereza aborta, ao saber, pela boca do Coronel Emiliano, que ela não era mulher para ter filhos dele.

O Coronel então morreu durante o ato sexual e quando a família legitima dele chegou, Tereza se viu obrigada a ir embora sem nada. O autor deixou explicito o orgulho da personagem e o amor sem interesses materiais que ela mantinha pelo falecido, indo embora sem reivindicar nada. Ao partir, deixou todos os bens materiais que recebeu do Coronel para a família que se mostrava avarenta, pois mostravam-se mais preocupados com a herança do que com a morte do ente. Este é um cenário sempre presente na obra de Amado, tendo em vista sua busca por retratar as famílias patriarcais, tradicionais baianas, onde as diferenças sociais sempre são a tônica central.

Tereza instalou-se numa cidadezinha e lá trabalhou como “rapariga” (termo usado para designar as profissionais do sexo). Logo conheceu um médico e mudou-se com ele para uma cidadezinha do interior quando ele foi promovido. Mas em meio à tranqüilidade da saúde na cidade, houve um surto de Bexiga Negra, o médico que permaneceu por pouco tempo no local, recebeu a ajuda de Tereza que neste curto período aprendeu um pouco sobre a doença e o tratamento. Quando o médico fugiu, num ato covarde, com medo de contrair a doença, assim como fizeram as autoridades da cidade (sobraram apenas os mais pobres, que não tinham como fugir), Tereza ficou para tentar amenizar o problema. O autor a descreve como uma guerreira, que mesmo diante de tão heróicos feitos é condenada pelas más línguas da cidade devido ao seu passado e sua condição. O autor nos mostra a dificuldade de aceitação de uma mulher que foge das regras da sociedade, seja esta uma condição ou uma escolha.

Antes de encontrar a paz, Tereza ainda passaria por mais uma batalha. Este último capítulo é iniciado por uma Mãe de Santo que fala do destino de Tereza. Ela era querida no lugar onde agora vivia e trabalhava novamente como “mulher da vida” de coronéis muito poderosos, devido a sua exuberante beleza. Em sua narrativa, o autor nos apresenta uma distinção sócio-econômica entre os prostíbulos: existiam os mais simples, onde era aceito qualquer cliente, e os mais sofisticados, onde os clientes eram ricos e em sua maioria coronéis, estes tinham mulheres fixas, como Tereza que também se apresentava em shows de dança.

O governo decidiu deslocar os prostíbulos mais pobres para uma região de condições precárias. O autor descreve detalhes destas relações puramente políticas, sem preocupação social, mostrando como a vida do povo estava subjugada aos desígnios das autoridades locais. Por mais que Tereza não estivesse envolvida, tomou aqueles acontecimentos como se fossem dela, pois quando as mulheres se recusaram a sair, a polícia as reprimiu violentamente. A idéia veio de Tereza, as “profissionais do sexo” não trabalhariam enquanto o problema não fosse resolvido. Concomitantemente estava por chegar um navio com muitos marinheiros americanos que iriam movimentar a cidade com seus dólares, porém sem a atuação das “mulheres da vida” este movimento se reduziria significativamente.

A polícia ao saber da greve tentou violentamente reprimi-la, mas com a ajuda dos Deuses africanos, os Orixás, Tereza incentivou todas a não voltarem às atividades naquela noite. “A greve do balaio fechado”, um dos possíveis títulos para este capítulo sugerido pelo autor, deu certo, mas Tereza foi presa e apanhou muito na cadeia.

As torturas não foram suficientes para acabar com sua beleza e ela foi pedida em casamento por um antigo pretendente. Tereza por ter perdido seu grande amor, um marinheiro que ela conheceu quando ele a salvou da polícia no inicio do livro, e por ela estar acreditando que ele havia morrido no mar, sem nenhuma esperança de amar novamente aceitou o casamento. Porém, momentos antes de se casar, seu grande amor apareceu reivindicando seu lugar no coração de Tereza.

Finalmente ela encontrou a paz nos braços de quem amava, no convés de um barco, e foi no mar que ela descarregou as três mortes que pesava em suas costas: o Coronel Justo que ela matou com uma facada, o Coronel Emiliano que morreu durante o ato de amor e seu filho que ela matou ainda no ventre dela.

Através dos olhos de um narrador que se diz presente na história contada e que sempre coloca sua opinião apaixonadamente influenciando desta forma a opinião do leitor, Jorge Amado denunciou uma realidade dolorosa, cruel e ainda atuante. Tereza Batista é a personagem que carregou em suas costas as experiências de meninas que se tornam mulheres condicionadas a um futuro de escolhas limitadas. Tereza parece ser o grito desesperado de denuncia que Jorge Amado vem trazendo em todas as suas obras, estereotipada na mulher baiana que é muito sensualizada e que só encontra saída na sujeição do próprio corpo.

A estratégia estrutural do texto nos induz aos caminhos da memória, onde podemos ouvir a voz e as impressões do narrador presente, que tudo indica ser um taxista que conta a história para um passageiro, relembrando o que viu unido ao que ouviu da boca do povo que até transformou a história em cordel. Para dar veracidade à história ele usa o argumento desta ser conhecida nas ruas da Bahia, valorizando a oralidade e a tradição oral como forma de perpetuação da História de um Povo (deste povo marginalizado e oprimido que nunca é privilegiado pela história oficial). Esta tradição oral que veio nos navios negreiros e esta tão presente nas religiões e costumes de origem africana, com as quais o autor sempre trabalha.

Conhecemos Tereza Batista por meio da “Memória”, a mulher forte e inteligente é fruto de uma vida de violências físicas e psicológicas de uma sociedade machista, limitadora, patriarcal, injusta, desigual e muito violenta. Tereza pagou o preço por nascer mulher, negra, bonita e pobre, mas ela não desistiu, não se rendeu e venceu a guerra, cujas as batalhas por serem tão violentas fazem com que, nós leitores, duvidemos que seria possível vencê-la. Tereza perdeu o medo de apanhar, de sentir fome, de ser sozinha e talvez tenha sido isso que a fez querer enfrentar este monstro que é a sociedade, apresentando-se a ela na figura de um coronel, de uma doença (Bexiga Negra), da prisão, da lei, a mulher sem infância a enfrentou e mesmo diante de tanto sofrimento e desilusão, não perdeu a capacidade de amar.

Luciana Santos Barbosa – Mestra em História Social pela PUC-SP.


AMADO, Jorge. Tereza Batista cansada de guerra. São Paulo: Martins, 1972. Resenha de: BARBOSA, Luciana Santos. O grito de denúncia de Tereza: história, corpo e literatura. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.7, p. 403-411, jul./dez. 2011. Acessar publicação original [DR]

 

Sueños en el umbral: memorias de una niña del harén – MERNISSI (CP)

MERNISSI, Fátima. Sueños en el umbral: memorias de una niña del harén. Barcelona, El Aleph, 2008, e El harén en Occidente. Madrid, Espasa-Calpe, 2006. Resenha de: MOHOMED, Carimo. Islam y Mujer: a propósito de dos obras de Fátima Mernissi. Cadernos Pagu, Campinas, n. 36, Jan./Jun. 2011.

Introducción

Uno de los tópicos que se suele asociar al Islam es el de la condición de la mujer, y, de acuerdo con él, la mujer en el Islam estaría en una situación de inferioridad y bajo las peores condiciones, siendo el velo, u otra prenda semejante, el símbolo mayor de esa condición, simbolizando todo un mundo de humillaciones y crueldad, y siempre que alguien pretende liberar a la mujer musulmana empieza por pedir que se quite el velo.

Sin embargo, estos y otros prejuicios son muy reductores y simplificadores, pues como dijo Zoreh Sefaty, una ayatolá iraní mujer, en una entrevista al periódico El País, el Occidente desconoce que el Islam no hace diferencias entre mujeres y hombres.1 Por supuesto que hay que considerar esta declaración con alguna cautela, pero es un buen punto de partida para abordar el tema que tenemos ahora en manos, pues como ella también ha dicho, en Europa y en el mundo entero también las mujeres tienen problemas, porque una mujer es una mujer y un hombre es un hombre o como ha dicho John Lennon en una de sus canciones, ‘la mujer es el negro del mundo’. Como ejemplo refiramos las noticias que casi diariamente salen a la luz y que hablan de la violencia de género, sea en España, en la India o en otras partes del mundo.

Según datos disponibles, entre el 40 y el 50% de las mujeres de los países de la Unión Europea experimentan insinuaciones sexuales, contactos físicos no deseados u otras formas de acoso sexual en el lugar de trabajo. De acuerdo con las estadísticas, entre el 12 y el 15% de las mujeres en Europa sufren violencia doméstica y algunas de ellas mueren en manos de sus compañeros, o ex compañeros afectivos.2 La egipcia Leila Ahmed3 ha denunciado la práctica del Occidente de utilizar la imagen de opresión de la mujer en el Islam para justificar sus objetivos políticos: como el Islam oprime a la mujer, y esto no va a cambiar, el abandono del Islam es el único camino para lograr la liberación de la mujer musulmana.

Lo que el feminismo islámico defiende es la posibilidad de que las mujeres musulmanas logren la plenitud de sus derechos en el marco del Islam, oponiéndose tanto al Islam patriarcal como al feminismo laicista que es contra el hecho religioso. Como ejemplo de esta última tendencia, tenemos otra egipcia, Nawal El Saadawi4 que califica de oprimidas a las mujeres musulmanas que se ponen ellas mismas el velo. Además, esta posición feminista de inspiración occidental, en lugar de ayudar a las mujeres musulmanas, les complica la vida, como ha referido Asifa Quraishi hace algunos años en un encuentro en EE.UU.5

Curiosamente en el mundo llamado occidental hay ahora un debate sobre qué es el feminismo y qué es ser feminista. Si las primeras sufragistas lucharon para que la mujer saliera de su rol tradicional y que entrara en el mundo del trabajo, hoy en día una nueva escuela de pensamiento insiste que abrazar el papel de ser una madre que se queda en casa también es feminismo, siempre que eso sea lo que escoja.

El mundo al que se suele llamar de islámico es una entidad con una extensión geográfica planetaria, con sociedades tan diversas y dispares a nivel cultural, étnico, histórico, de tradiciones y costumbres etc. Así, hablar de mujer en el Islam es una abstracción que no explica nada: ¿de qué mujer(es) hablamos? ¿De qué Islam? ¿Dónde? ¿Cuándo? ¿Por qué? Por otro lado, muchos son aquellos y muchas son aquellas que consideran al Islam como base para la liberación de la mujer y que utilizan al Corán como instrumento a favor de esa liberación.

Ya en el siglo XIX dos hombres, Sayyid Mumtaz Ali (1860-1935)6 en la India y Qasim Amin (1865-1908)7 en Egipto, defendían en sus corrientes reformistas islámicas el elevar la condición de la mujer, denunciando el monopolio tradicional de los hombres, en particular de los ulemas, respecto a la lectura e interpretación patriarcal y machista del Corán. Esas corrientes se han desarrollado en los últimos años y defienden el derecho de las mujeres a acceder directamente a los textos y a interpretarlos desde una perspectiva de género.

En estas dos obras de Fátima Mernissi que ahora analizamos, Sueños en el umbral: memorias de una niña del harén (2008) y El harén en Occidente (2006), se aborda la problemática del Islam y del feminismo. Fátima Mernissi, socióloga de renombre, investigadora de la Universidad Mohammed V, en Rabat (Marruecos), y una de las voces más fuertes del feminismo en el mundo musulmán, nos habla de sus recuerdos a través de los sueños y de las fantasías de las mujeres que con ella compartieron su infancia, y de la perplejidad que fue la constatación, mientras viajaba por Europa y EE.UU. para promover su libro Sueños en el umbral, de que para la mayoría de los hombres occidentales la simple mención de la palabra ‘harén’ provocaba las más voluptuosas fantasías sexuales en las cuales el hombre conseguía dominar mujeres vulnerables cuyo único objetivo era satisfacer sus deseos.

Soñando

En Sueños en el umbral, Fátima Mernissi habla de su infancia en la casa de Fez, donde vivían su abuelo paterno, las esposas de éste, tíos, primos y otros familiares además de su padre y madre, y en la granja de su abuelo materno, donde vivían su abuela materna Yasmina además de otras co-esposas.

Además, habla de cómo su madre la educó e influyó para que no fuese una mujer sumisa. Al revés, la incitaba a que fuera fuerte. Como inspiración había los personajes de las Mil y una Noches como Scheherazade, que con su inteligencia y dominio de la palabra supo dominar al rey, su marido y hombre, o la princesa Budur que, disfrazándose inteligentemente de hombre, pudo sobrevivir y afirmarse delante los demás. Hace también referencia a la situación histórica que Marruecos vivía en esa época, con la presencia de españoles y franceses y la división del país, así como la situación histórica de la Segunda Gran Guerra.

Las hudud, o fronteras, eran muy importantes pues para ser feliz había que respetarlas. Podían ser las fronteras físicas que empezaban en la puerta de casa o podían ser las sociales que ponían los hombres en un sitio y las mujeres en otro. Sin embargo, desde joven Fátima Mernissi tenía anhelo en romper con las fronteras, ciertamente inspirada por su madre, su tía Habiba y por la abuela Yasmina, que hacía referencia al Profeta Mahoma y al hecho de que él nunca había hecho diferenciación entre hombres y mujeres o entre ricos y pobres.

Por otro lado, la autora se refiere a la ilusión que había en los años 40 y 50, del siglo XX, sobre el movimiento nacionalista marroquí que defendía una nueva época con nuevas leyes en las que las mujeres serían iguales a los hombres ante la ley, similar a lo que había ocurrido en Egipto y Turquía, y donde la modernidad, simbolizada, por ejemplo, por el idioma francés, podría coexistir con la tradición, simbolizada por todo lo que era árabe. Pero, casi cincuenta años después, la situación seguía igual, o incluso peor, en lo que a la poligamia y divorcio se refería.

Respecto al harén, que etimológicamente deriva del árabe haram, o sea, prohibido, sagrado o tabú, la autora describe las distintas situaciones: la vida en la ciudad era diferente de la del campo, pues aquí, donde vivía Yasmina y otras co-esposas como Tamu y Yaya, había mayor libertad y mayor contacto con la naturaleza, además de no haber todas las reglas que había en la casa y el harén de Fez.

Por otro lado, las mujeres tenían opiniones diferentes y opuestas en lo que se refería a la separación de hombres y mujeres y al papel del harén: había las que los defendían y había las que estaban en contra, como la madre de Fátima, que intentaba crear un futuro diferente del suyo para sus hijas a través, por ejemplo, de la prohibición de usar el pañuelo, o velo, y fomentando la utilización de prendas occidentales, consideradas como signo de modernidad.

Esta división entre las mujeres era motivo para que se hablase de la solidaridad femenina, asunto sensible para algunas que consideraban que la falta de tal vínculo hacía con que las mujeres estuviesen en la situación en que estaban y, por lo tanto, las mujeres eran las peores enemigas de ellas mismas.

Yasmina, que consideraba que las mujeres eran blanco de leyes crueles porque éstas eran hechas por los hombres y que solo cambiarían cuando ellas las hicieran, también tenía una opinión negativa sobre la forma como las mujeres eran tratadas pero creía en un futuro mejor para sus nietas. También tenemos una descripción de cómo las mujeres, sea en la ciudad sea en el campo, ocupaban su tiempo: en la ciudad trabajaban en el hogar e intentaban divertirse con historias, idas al cine, que no solían ser muchas y que cuando ocurrían eran motivo para que las mujeres se arreglasen de la mejor manera posible; escuchaban la radio. Sobresalía la cantante libanesa Asmahan, que era motivo para que se hiciesen representaciones teatrales de su vida, considerada como modelo de lo que debería ser la moderna mujer árabe; además, hacían representaciones de la vida de mujeres famosas, particularmente las pioneras del feminismo árabe, como Aisha Taymur y Huda Sha’raui, egipcias, o Zaynab Fawwaz, libanesa, que defendían que la liberación de la mujer conduciría a la revitalización del Islam; en el campo había un gran contacto con la naturaleza.

Sin embargo, el harén no es el único asunto en el libro pues Mernissi igualmente aborda otros temas como las relaciones entre los diferentes ‘cristianos’, la guerra entre los alemanes y los franceses, la separación racial entre blancos y negros americanos o la felicidad que fue cambiar de una escuela coránica para una moderna al estilo francés. Pero el tema central es el ansia de libertad, simbolizada por las alas y por el vuelo.

El otro mira a la otra

En El harén en Occidente, Fátima Mernissi habla de la sorpresa que fue para ella la constatación, mientras viajaba por Europa y EE.UU. para promover su libro anterior, de que para la mayoría de los hombres occidentales la simple mención de la palabra ‘harén’ provocaba las más voluptuosas fantasías sexuales, en las cuales el hombre conseguía dominar mujeres vulnerables cuyo único objetivo era satisfacerle sus deseos.

Este tópico ya había sido tratado, por lo menos, desde el siglo XVIII, cuando algunos ilustrados tenían semejante actitud para con el Islam. Como ejemplo hagamos referencia a Montesquieu que, a pesar de nunca haber estado en Persia/Irán, hizo en sus Cartas Persas referencias al harén, a la poligamia, al erotismo, a la promiscuidad sexual, o sea, aspectos que tanto deleite causaron y siguen causando en la imaginación europea y occidental, como Fátima Mernissi pudo constatar.

Por otro lado, en esas mismas Cartas Persas, las mujeres son retratadas como frívolas, tienen que obedecer al marido, su jefe y amo, y llevan una vida enclaustrada, prisionera, infeliz, son brutalizadas, vistas como objeto, permanentemente vigiladas por los eunucos pues se considera que ellas solo piensan en buscar el placer sexual y que son perversas, con pensamientos sucios. O sea, todo lo contrario de la actitud que Fátima Mernissi creía, y sigue creyendo, que los hombres musulmanes tienen a respecto de las mujeres: estas son inteligentes y, por lo tanto, peligrosas.

Por supuesto que las referencias al velo también existen en las Cartas Persas,, lo que hacía que ningún hombre pudiera colocar la mirada en ellas, pues quien lo hiciese se arriesgaba a perder la vida. Para finalizar, las mujeres, de acuerdo a la óptica de Montesquieu, para los musulmanes, eran inferiores y no tenían lugar en el Paraíso. Sin embargo, Fátima Mernissi en El harén en Occidente dirige su mirada y atención hacia la cultura femenina del Occidente, en un reto al tópico de que las mujeres aquí tienen sus derechos más asegurados que en cualquier otra parte del mundo.

Conclusión

La condición de la mujer en el Islam no es simple ni se puede reducir a unas pocas palabras, pues es una problemática muy rica y multifacética. Si es verdad que en algunas situaciones geográficas y culturales la mujer está en una situación de inferioridad y bajo las peores condiciones, la verdad es que muchas son aquellas y muchos son aquellos que intentan elevar su condición, respectando sus tradiciones, cultura y religión, o sea, aquello a que se suele llamar feminismo islámico, que defiende la posibilidad de que las mujeres musulmanas logren la plenitud de sus derechos en el marco del Islam, oponiéndose tanto al Islam patriarcal como al feminismo laicista.

La verdad es que hay muchas formas de ser feminista, de defender la elevación de la condición de la mujer, sea en Occidente, en Oriente, en el Norte o en el Sur, pero ¿cuál es la mejor forma o la verdadera? Para muchas, usar el velo u otra prenda semejante, no es símbolo de inferioridad, al contrario,, es una forma de afirmar sus creencias, cultura e identidad, al mismo tiempo que defienden la liberación de la mujer de las prácticas machistas.

Curiosamente, en los últimos tiempos, la industria de la moda respecto al hiyab está creciendo además que el velo no tiene porque significar opresión. Por otro lado, se puede constatar que el tópico de que el harén es un almacén de mujeres para que los hombres se satisfagan sigue en vigencia en Occidente, cuando en la realidad el harén es el lugar dónde están las mujeres de una casa, siendo esta como las antiguas oikos griegas o domus romanas. También hemos podido ver que muchas son las mujeres que defienden el status quo, no porque tienen recelo de los hombres sino porque así han sido educadas, provocando conflictos con las mujeres que piensan de otra manera.

Para finalizar hay que subrayar que Fátima Mernissi se deparó en Occidente con actitudes y prácticas que, si en la forma son diferentes, en la esencia son iguales a lo que muchos acusan al Islam: la dominación de las mujeres por los hombres. La realidad de las culturas islámicas es diametralmente opuesta y la investigación de Mernissi denuncia una sucesión de equívocos y malentendidos. La misoginia, sea occidental sea oriental, limita y dificulta la comunicación entre culturas.

Referências

Ahmed, Leila. Women and Gender in Islam: The Historical Roots of a Modern Debate. New Haven, Yale University Press, 1992.         [ Links ]

Mumtaz Ali, Sayyid. Huquq un-Niswan. Lahore, Dar ul-Isha’iat-e-Punjab, 1898.         [ Links ]

Notas
1  Entrevista disponible en http://www.elpais.com/articulo/internacional/islam/ hace/diferencias/mujeres/hombres/elpepuint/20060612elpepuint_1/Tes
2  Más informaciones en http://www.saynotoviolence.org/es/el-tema/datos-y-cifras
3  De entre las obras de esta profesora de Estudios de Mujer en Religión, en la Harvard Divinity School, destacamos su Women and Gender in Islam: The Historical Roots of a Modern Debate (1992).
4  Para más informaciones sobre esta feminista egipcia nacida en 1931 – además de escritora, también es psiquiatra y ha sido activista política a lo largo de los últimos 60 años –  véase su página web http://www.nawalsaadawi.net/.
5  Más informaciones en http://www.stanforddaily.com/2006/05/26/ feminism-cant-solve-all-muslim-speaker-advises/
6  Después de la Rebelión de 1857-58, que puso fin al poder político del Islam en la India e introdujo el gobierno británico directo, muchos fueron los musulmanes que intentaron reformar al Islam en la India como un todo. Las propuestas fueron variadas y una de ellas fue la de Sayyid Mumtaz Ali que se interesó por los derechos de las mujeres y que en su obra Huquq un-Niswan [Derechos de las Mujeres] (1898) abogaba por una mejora de sus condiciones.
7  Jurista, uno de los fundadores de la Universidad del Cairo y activista político en el movimiento nacional egipcio, Qasim Amin dedicó gran parte de su labor a la defensa de las mujeres, abogando por sus derechos, sobre todo con las obras Tahrir al mara’a [La liberación de las mujeres] y Al-Mara’a al-Jadida [La Nueva Mujer ], publicadas en 1899 y 1900 respectivamente.

Carimo Mohamed – Doutorando em Ciência Política na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL), Membro do NECI – Núcleo de Estudos em Contextos Islâmicos, do Centro em Rede de Investigação em Antropologia, e investigador do Instituto de História Contemporânea, na mesma faculdade, E-mail: [email protected].

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[MLPDB]

Nzinga Mbandi: mulher, guerra e escravidão | Selma Pantoja

Escrito pela historiadora Selma Pantoja, o livro Nzinga Mbandi: mulher, guerra e escravidão, aborda alguns elementos da história de Angola durante o século XVII. Com o prefácio de Alberto Costa e Silva, a obra mostra o mito da rainha Nzinga que ascendeu ao poder rompendo as normas estabelecidas pelas linhagens tradicionais, que não admitiam uma mulher no poder. Além de também, dentre outras questões, Selma Pantoja traz as especificidades da escravidão dentro do continente africano.

As peculiaridades da história da África Negra trouxeram desafios para a historiografia. Sobre as fontes escritas percebe-se uma visão estereotipada dos africanos e suas sociedades, são relatos feitos por viajantes europeus carregados de superioridade. Com uma população ágrafa temos a tradição dos testemunhos orais que necessitam de uma técnica especial.

A obra traz um extenso relato sobre as características do povo Mbundu, bem como as especificidades da escravidão africana que tanto difere da praticada nas Américas. Deixa claro que ela é muito mais antiga do que se pensa, que era imanente naquele continente, mas de nenhuma forma benévola. E permeando toda a obra está a presença de Nzinha Mbandi que bravamente lutou contra o domínio português no Ndongo.

Sobre a escravidão africana vale ressaltar algumas características relativas à ela como o sistema de parentesco, os direitos pessoais, o escravo como propriedade, e este como sendo um dos tipos de dependência.

A autora também destaca a importância da mulher na sociedade africana, onde ela é o principal trabalhador agrícola e está diretamente ligada a produção e reprodução.

Selma Pantoja diz não ser adequado identificar a escravidão a partir do atributo propriedade, pois justifica que seus direitos são negociáveis, que tanto pessoas livres como escravos poderiam se negociados como propriedade.

Nota-se como característica marcante dos escravos africanos a ausência de parentesco, a não-integração com a linhagem ou etnia local. Para tanto era necessário que este indivíduo fosse retirado de local de origem, enfatizando sua procedência estrangeira. A guerra, o seqüestro, as razias eram as formas mais comuns de escravização e ao contrário que se imagina, aqui, o escravo não trabalhava somente em atividades produtivas, poderia este desempenhar cargos políticos e sociais.

E como o escravo está presente na estrutura econômica de uma sociedade africana? A autora mostra que, quando esta mesma sociedade depende do escravo, temos uma sociedade escravista. Porém a simples presença da escravidão e do escravo não necessariamente a define desta maneira.

Selma Pantoja dedica um capítulo de seu livro mostrando a organização e características da sociedade na África Central Ocidental. Primeiramente os povos de língua bantu onde há apenas uma breve amostra de características dessa sociedade, tais como prática da agricultura e da metalurgia, que possuíam um regime de descendência matrilinear, patrilinear e até de descendência dupla.

Após a autora enfatiza os povos coletores, existentes na África Central Ocidental, chamado de bosquímanos. Estes foram grupos nômades e tiveram sua população absorvida pelos povos de língua bantu, que resultou em um violento impacto no modo de vida dos povos caçadores.

Importante ressaltar que com a relevância da introdução do ferro na agricultura, facilitando na abertura de clareiras, que foi ideal para o cultivo de banana, tão importante na dieta bantu, fez com que o ferreiro tivesse muito prestigio dentro da sociedade, tornando-se o mais importante artesão da aldeia. Uma unidade política organizada em confederação de linhagem é mostrada como exemplo dentro da complexidade do sistema político da região, os Mbundu.

Uma característica marcante desta população eram os laços de parentesco além de muitos dependentes. Como no caso da mulher, que vivendo em uma sociedade polígama, tinha seu trabalho apropriado pelo homem.

A região do litoral da África Central criou estados que se apoiavam na autonomia de linhagem. Eles baseavam-se em uma relação social ou de parentesco consanguíneo, neste ultimo podendo ser matrilinear ou patrilinear. No caso dos Mbundu são predominantemente matrilineares, porém patriarcal, ou seja, segue-se a linhagem materna, mas sempre representado pelo homem.

Há um trecho onde podemos tornar a imagem de Angola mais real, com os aspectos geográficos da região. No que diz respeito às demarcações do domínio dos povos, estas eram feitas pelos rios e mares. O mar litorâneo era de domínio dos reis africanos, já o alto mar pertence aos europeus. O clima angolano é descrito como sendo intertropical, com o índice pluviométrico aumentando quando se afasta do litoral, já ao sul o clima é árido devido ao deserto.

Agora a autora adentra na história do Congo e do estado do Ndongo, onde viviam os Mbundu.

O Congo era divido entre cidades e a população das aldeias, sendo os títulos pertencentes aos habitantes das cidades. Quanto à religião houve um processo de cristianização que se operou somente à elite congolesa.

O governo central era mantido pela cobrança de impostos, estes eram pagos com tecidos, marfim ou cativos.

Uma expedição vinda de Portugal vinda de Portugal, em 1482, estabeleceu contato com o Congo, com interesses comerciais, os lusos introduziram na costa africana o comércio de manufaturas. No início esta relação luso-bakongo era amistosa, até a cristianização ter sido posta de lado pelo interesse no comércio de escravos.

O escravo era utilizado como pagamento no estudo dos africanos em Portugal. Sua venda rendia também impostos para o Manikongo, chefe do Congo. Em 1512 este comércio tornou-se monopólio real.

Durante o século XVII o Congo foi invadido pelo grupo dos yagas, que foi na verdade um golpe para os chefes locais, os Manikongos e comerciantes portugueses, estes guerreiros lutaram ao lado dos Mbundu. Foi então que resultou na hegemonia do Ndongo na região.

Os Mbundu era inicialmente organizado em forma de aldeia constituído por grupos de filiação. Os membros destes grupos tinham o controle das terras para o seu cultivo.

Sobre o soberano, era chamado de Ngola, este passava por um ritual relacionado à posse de objetos considerados sagrados.

Toda a população, aparentemente, estava submetido ao Ngola, mas havia diferença na forma de submissão, dentre as mais comuns formas de dependência estavam os prisioneiros de guerra, escravos por dívidas ou por punição de algum crime, estes não estavam inseridos em nenhum sistema de parentesco. Eram os cativos e as mulheres que se dedicavam à produção agrícola.

E é neste contexto que surge a figura de Nzinga Mbandi, e foi durante seu governo que o Ndongo sofreu sua fase mais tensa, a luta contra os lusos no comércio de escravos e o ataque dos Mbangalas. Nzinga destaca-se por conseguir equilibrar-se neste período de crise no governo.

Nota-se que o mito da rainha Nzinga também serve para autora enfatizar por várias vezes a importância da mulher na sociedade africana, tanto no poder como o principal produtor agrícola.

Voltando ao assunto do contato Portugal-África, foi em 1540 que os lusos tiveram contato com os soberanos Mbundu, e foram estes que buscaram contato com os europeus. O Ngola pediu aos portugueses que enviassem ao Ndongo padres e comerciantes. Mas quando o capitão Novais, enviado pelo reino português, chegou a região e o novo Ngola não quis recebê-lo e após alguns meses de espera o capitão avançou para o interior. O Ngola não apenas se recusou a ser convertido ao cristianismo, como prendeu Novais juntamente com o padre Gouveia.

Para incrementar o comércio de escravos os portugueses combateram contra os Mbundu ao longo do século XVII, e esta tarefa foi difícil pois os portugueses encontraram a resistência de Nzinga Mbandi.

Os portugueses usavam diversos pretextos para iniciar uma campanha militar com intuito de capturar mais escravos. Mas sem o apoio dos africanos os portugueses não poderiam ter acesso às rotas de comércio. A resistência de Nzinga vai dificultar todo comércio de escravos por todo século XVII.

Com a morte de Ngola Mbandi em 1617, houve uma disputa pelo poder entre Kia Mbandi e Nzinga. Ela fugiu para Matamba, onde não poderia mais reivindicar o título, já que para as linhagens tradicionais não aceitavam uma mulher no poder.

Seu irmão teve um governo marcado por inúmeras guerras, devastando o Ndongo. O governador empreendeu uma campanha militar contra o Ndongo e acabou que com sua capital destruída.

Para que a paz fosse restabelecida precisou de alguém com habilidade de negociação, Nzinga, uma mulher com capacidades não só diplomáticas como de guerra como demonstrou dentro de seus quilombos.

O Ngola Mbandi entra em contato com sua irmã Nzinga, que desempenha as negociações entre Ndongo e Portugal na negociação de paz entre os dois estados. Durante a década de 20 os portugueses conseguiram estabelecer aliança no Ndongo. O Ngola Mbandi falece e Nzinga detentora das insígnias reais apodera-se do poder.

Os dois últimos capítulos são onde Nzinga Mbandi está mais presente na obra de Selma Pantoja.

Nzinga adotou os costumes dos Mbangalas, e não aceitou a proposta dos portugueses para que o Ndongo tornassem seus tributários. Ela pediu em carta à Portugal, que enviassem padres ao Ndongo e em troca devolveria os escravos que haviam fugido dos portugueses e refugiaram-se no quilombo.

Porém os portugueses expulsaram Nzinga e colocaram um chefe submisso aos interesses lusos, Aire Kiluanji, que abriu as rotas comerciais do Ndongo. Os chefes Mbundu não reconheciam o Ngola, por ele não pertencer à linhagem. O que permeava esta resistência era o sentimento anti-português da região.

Após um assalto à ilha de Kwanza empreendido pelo governador, Nzinga foge para Matamba e ela passa a adotar os costumes e as formas militares dos Mbangalas.

O confronto militar do Ndongo com os portugueses resultou na demolição das bases do estado, além da propagação da varíola que despovoou aldeias inteiras.

É sempre recorrente falar em escravos que eram acolhidos pela Nzinga e este fato servia de argumentação para justificar a guerra contra a rainha Mbundu. Nzinga era soberana no Matamba, rompeu com as regras estabelecidas, sendo uma mulher no poder usando de força militar para consegui-lo.

Em 1641, Nzinga apóia a ocupação de Luanda pelos holandeses, o qual deseja seu apoio político. Nzinga usou a presença dos holandeses para expulsar de vez os portugueses e reaver o Ndongo. Os portugueses foram reduzidos à posição de intermediários ao comércio de escravos. Em 1648 os holandeses unidos a Nzinga avançaram contra os portugueses.

Os maiores rivais dos portugueses passaram a ser Matamba e o Congo. Foi durante o governo de Vidal de Negreiros que ocorreu o golpe fatal ao Congo deixando-o enfraquecido, mas este continuaria existindo até o século XIX.

Sobre Matamba, foi assinado um acordo de paz com os portugueses, para tal os lusos teriam  que libertar a irmã de Nzinga e ela comprometia-se em entregar alguns escravos. A rainha Nzinga se e converteu ao cristianismo e aceitou a presença dos missionários na região. Neste momento era impossível lutar mais contra os portugueses, pois não havia possibilidade de reorganizar um exercito no Ndongo, já despovoado.

Foi durante o século XIX que a África tornou-se mais vulnerável as invasões européias, pois antes a malária era uma espécie de barreira natural, e neste século foi descoberto o quinino, que ajudou os portugueses a driblar esta barreira.

Nzinga faleceu em 1663, ela foi temida por não só ter sobrevivido a varíola como por ter adotado os ritos Mbangalas.

As conseqüências da disputa pelo comércio de escravos foram grandes, como a redução da população local, o aumento do numero de cativos, a redução da população local e a escravização de pessoas livres.

O Ndongo foi o principal fornecedor de escravos para Luanda, em um momento em que tive uma relação estreita com o comercio atlântica durante o século XVII.

Segundo Cavazzi, na região do Ndongo existiam três tipos de escravos: os quísicos, que eram filhos de outros escravos; os prisioneiros de guerra, que poderiam ser usados em sacrifício; e os escravos de fogo, que viviam em perpetuo serviço até a morte de seu proprietário.

Aos escravos eram negados direitos e privilégios, diferenciados dos demais membros da sociedade devido à ausência de parentesco. Tanto os escravos como as mulheres estavam subordinados aos mais velhos da linhagem.

Foi por meio do apoio destes escravos que Nzinga Mbandi conseguiu subir ao poder no Ndongo e tornar-se um mito não só no continente africano, mas para todos os afrodescendentes.

Nota

Resenha apresentada à Disciplina de História da África, ministrada pela Professora Dra. Fabiane Popinigis na Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC.

Mariana Ouriques – Graduanda do curso de História – UFSC.


PANTOJA, Selma. Nzinga Mbandi: mulher, guerra e escravidão. Brasília: Editora Thesaurus, 2000. Resenha de: OURIQUES, Mariana. O universo negro-africano e suas peculiaridades: a escravidão, o tráfico e o mito da Rainha Nzinga. Cadernos de Clio. Curitiba, v.1, p.116-120, 2010. Acessar publicação original [DR]

Geschlechterperspektiven in der Fachdidaktik – HOPPE et al (JESSE)

HOPPE, Heidrun; KAMPSHOFF, Marita; NYSSEN, Elke, Hg. Geschlechterperspektiven in der Fachdidaktik. Weinheim, Basel: Beltz Wissenschaft Deutscher Studienbuch Verlag (Einführung in die pädagogische Frauenforschung; Bd. 5), 2001. 240 S. Resenha de: LIEBSCH, Katharina. Journal of Social Science Education, v.2, 2003.

Die Frauen- und Geschlechterforschung bemüht sich seit Jahren um die Verbreitung der Einsicht, dass “Geschlecht” sowohl eine grundlegende sozialstrukturelle Kategorie als auch eine zentrale Dimension im Prozess der sozialen Konstruktion von Gemeinschaften und Gesellschaft ist. Folgt man dieser Einschätzung, dann ist es geradezu zwangsläufig, dass auch die Reflexion von Lehren und Lernen sowie deren Planung und Steuerung ein Verständnis von “Geschlecht” braucht. Dazu gehört auch, so lautet die Ausgangsannahme des von Heidrun Hoppe, Elke Nyssen und Marita Kampshoff (alle Universität Essen) herausgegebenen Aufsatz-Bandes, eine Erweiterung der kritischen Betrachtung von Koedukation um Fragen der Allgemeinen Didaktik sowie der Fach-Didaktiken der sozialwissenschaftlichen und sprachlichen Unterrichtsfächer.

Unter dem Titel “Geschlechterperspektiven in der Fachdidaktik” veranschaulichen vierzehn Autorinnen, dass Gegenstände, Methoden und Gestaltungsformen schulischen Unterrichts in Abhängigkeit von gesellschaftlichen Entwicklungen, der Veränderung von Lebenswelten und dem sich wandelnden Verständnis von Bildung in der Gesellschaft eingesetzt und bewertet werden. Eine theoretisch-systematische Reflexion von Fragen der Technikentwicklung, der Globalisierungsfolgen genauso wie der Veränderungen des gesellschaftlichen Geschlechterverhältnisses gehört deshalb zu den Ausgangspunkten jeder didaktischen Überlegung. Darüber hinaus, so das Credo der Herausgeberinnen, sollte es – sowohl auf der Ebene der curricularen Inhalte als auch hinsichtlich der jeweils spezifischen Lernbedingungen von Schülerinnen und Schülern – ein zentrales Anliegen von Didaktik sein, “die Beziehung zwischen Inhalten und Subjekten wissenschaftlich differenziert zu untersuchen und in praxiswirksame Modelle zu integrieren” (S. 236). Diese doppelte Perspektive von Inhalten einerseits und Bedingungen und Möglichkeit der Inhaltsvermittlung andererseits suchen die Herausgeberinnen aus einer geschlechts- und subjektorientierten Perspektive systematisch zu stärken. Erst, so lautet ihre These, wenn Fachdidaktiken sich konsequent an den Subjekten von Schule und Unterricht, nämlich an den Schülerinnen und Schülern und die Lehrerinnen und Lehrern, orientiert, kann die didaktische Frage beantwortet werden, wie Fachunterricht arrangiert sein muss, damit seine Inhalte mit den Vorerfahrungen und Kompetenzen der Beteiligten zusammen gebracht werden kann. Dazu braucht es einerseits ein Curriculum, das das kulturelle und soziale System der Zweigeschlechtlichkeit reflektiert und die Reflexion und Überwindung ungleicher Machtkonstellationen zum (Lern-)Ziel macht. Andererseits müssen geschlechtsdifferente Interessen, Erfahrungen und Sozialisation in fachdidaktische Überlegungen miteinbezogen werden.

Dementsprechend reflektieren die zehn in dem Band versammelten Beiträge ihre jeweilige Fachdidaktik unter drei Fragestellungen: Zum einen wird unter Bezugnahme auf die spezifische Fachwissenschaft die Kritik der fachspezifischen Frauen- und Geschlechterforschung dargestellt.

Forschungsergebnisse beispielsweise der feministischen Theologie und Literaturwissenschaft werden herangezogen, um zu veranschaulichen, dass die jeweilige Fachwissenschaft selbst einem Geschlechter-bias dergestalt unterliegt, dass das Männliche in der Regel als die Norm und das Weibliche als die Abweichung von der Norm begriffen wird. Zum zweiten werden Befunde präsentiert, die auf der Ebene der Unterrichtsinhalte eine Geschlechterdifferenz wahrnehmen und sie zum Gegenstand des Nachdenkens machen. Dabei besteht sowohl die Möglichkeit, Geschlechterstereotypen neu zu produzieren und festzuschreiben als auch die Chance, sie aufzulösen und ihnen entgegen zu wirken. Drittens schließlich thematisieren alle Beiträge die Bedeutung von Sozialisation und fragen nach möglicherweise vorhandenen geschlechtsdifferenten Interessen, Erfahrungen und Lebenswelten und deren Auswirkungen auf den Schul-Unterricht und dessen Erfolge.

Konzentriert auf sozialwissenschaftlich und sprachlich ausgerichtete Disziplinen wird hier erstmalig ein Überblick präsentiert, der einen aktuellen Einblick in den Stand des Geschlechterthemas in ausgewählten Fachdidaktiken gewährt. Dies ist zum einen verdienstvoll, weil in dem vorliegenden Band eine in der Debatte lange Zeit dominierende Tendenz überwunden wird, fachdidaktische Überlegungen zum Thema “Geschlecht” am Beispiel naturwissenschaftlicher und technischer Unterrichtsfächer anzustellen und so erneut, ein geringeres Interesse von Mädchen an diesen Fächern zu einer Abweichung und Besonderung zu machen. Vielmehr kann durch eine Fokussierung auf Fächer, die Sprache und Soziales zum Gegenstand haben, die Frage neu gestellt werden, ob und inwieweit sich im Unterricht geschlechtliche Codierungen, Zuschreibungen oder auch Erfahrungen ausmachen lassen. Es kann deshalb als ein überraschendes Ergebnis dieses Sammelbands gelten, dass alle in dem Band versammelten Beiträge sichtbar machen, dass eine in der Fachwissenschaft etablierte Frauen- und Geschlechterforschung kein Garant dafür ist, dass auch die entsprechende Fachdidaktik sich mit Fragen der Geschlechterdifferenz auseinander setzt.

So theoretisch anspruchsvoll, innovativ und bedeutsam die feministischen Ansätze in z.B. der Germanistik, Anglistik, Geschichtswissenschaft, Soziologie und Politikwissenschaft auch gewesen sein mögen, die schulische Ausgestaltung dieser Disziplinen als Unterrichtsfächer haben sie nur am Rand beeinflussen können.

Dies ist ein weiteres Argument für ein Verständnis von Didaktik, welches die Orientierung an der Fachwissenschaft zwar als grundlegend aber keinesfalls als hinreichend begreift. Da die Geschlechterperspektive quer zu allen Fragen des schulischen Lehren und Lernens liegt und sich in Inhalten, Sozial-Beziehungen wie auch in Normierungen und Bewertungen aufzeigen lässt, kann sie nur dann Berücksichtigung in der Fachdidaktik erfahren, wenn die Fähigkeit zur Analyse der Bedingungen und der Situationsspezifik von Unterrichts wie auch der biografischen Besonderheiten der Beteiligten als eine zentrale pädagogische Qualifikation begriffen werden. Dazu ist Wissen über die Mechanismen einer allumfassenden “sozialen Konstruktion von Zweigeschlechtlichkeit” (Hagemann-White) genauso nötig wie der politische Wille, Mädchen und Jungen als gleichberechtigt zu begreifen wie auch die Fähigkeit, über die eigene persönliche Verstrickung mit der Thematik zu reflektieren. “Geschlechterperspektiven in der Fachdidaktik” umfassen demzufolge die Thematisierung der gesamten Palette der Wechselwirkungen zwischen Person und Rolle, Lehren und Lernen, Inhalt und Beziehung, Situation und Norm.

In dieser Hinsicht und mit diesem Anspruch beschreiben Rita Burrichter (Religion), Susanne Thurn (Geschichte), Gudrun Spitta (Deutsch), Heidrun Hoppe/Astrid Kaiser (Sachunterricht/Sozial- bzw.

Gemeinschaftskunde), Renate Haas (Englisch), Cornelia Niederdrenk-Felgner (Mathematik), Gertrud Pfister (Sport), Doris Lemmermöhle (Arbeitslehre/Berufsorientierung), Renate Luca (Medienpädagogik) und Petra Millhofer/Renate-Berenike Schmidt (Sexualpädagogik) den Stand der Reflexionen in der jeweiligen Fachdidaktik.

Dabei wird sichtbar, dass diejenigen Themen, die quer zu der herkömmlichen Einteilung in Schulfächern liegen, wie z.B. Medien, Sexualität, Berufsorientierung, sich für die Thematisierung der Geschlechterfrage leichter öffnen lassen. Da der Alltags- und Erfahrungsbezug bei diesen Themen unmittelbar gegeben ist, braucht es für die Plausibilisierung der Geschlechterfrage im berufsorientierenden, sexualpädagogischen oder medienpädagogischen Unterricht weniger argumentativen Aufwand als beispielsweise in den Fachdidaktiken für Englisch oder Politik.

Während sich, wie die Beiträge zeigen, in den Fächern die Macht der Tradition hartnäckig hält – beispielsweise als geschlechtsspezifische Stereotypen hinsichtlich Unterrichtsinteresse und hinsichtlich Arbeitsformen auftaucht und sich daran ablesen lässt, dass sogenannte Frauenthemen häufig als Ergänzung und als partikulares Wissen behandelt werden – haben Themen mit einem deutlichen lebensweltlichen Bezug den Vorteil, dass hier Bedeutung, Funktion und Wandelbarkeit der Kategorie Geschlecht unmittelbar als Thema aufgegriffen und werden kann. Beispielsweise kann im berufskundlichen Unterricht nicht unproblematisiert bleiben, dass die meisten weiblichen Auszubildenden unter den Friseurinnen und die meisten männlichen Auszubildenden unter den Kfz-Mechaniker zu finden sind, während dieser Sachverhalt im Gemeinschafts-. Politik- oder Sozialkundeunterricht im Rahmen einer Arbeitseinheit zum Thema “Arbeit und Beruf heute” durchaus unberücksichtigt bleiben könnte.

Die Fachdidaktiken stehen daher – und das macht dieser Band schlagend deutlich – vor einem doppelten Dilemma: Die fachspezifische Gegenstandsorientierung soll zum einen Bezüge zu den Lebenswelten und Erfahrungen der Lernenden herstellen. Zum zweiten soll sie sich an der Fachwissenschaft orientieren, die es im Singular, als einheitlichen Orientierungsrahmen schon längst nicht mehr gibt. Dieser Schwierigkeit begegnen die Fachdidaktiken, indem sie Prinzipien postulieren, z.B. das Prinzip der Wissenschaftsorientierung oder das der Handlungsorientierung.

Der vorliegende Band plädiert für Geschlechtergerechtigkeit als ein weiteres didaktisches Prinzip.

Darüber hinaus aber drängt sich nach der Lektüre dieses anregenden und gehaltvollen Buches die Frage auf, ob sich diese Prinzipien nicht viel besser jenseits der Fächer realisieren ließen, ob die Fachdidaktiken nicht einer curricularen Festlegung fächerübergreifender Themengebiete wie auch einer systematischen Reflexion situativer Lehr-/Lernbezüge weichen sollten.

“Geschlechterperspektiven” könnten darin als ein didaktisches Element enthalten sein. Dies würde den mühseligen fachinternem Kampf um Anerkennung des Geschlechterthemas zwar nicht überflüssig machen, könnte aber eine didaktische Sensibilität hinsichtlich sozialer Unterschiede und sozialen Unterscheidungen schaffen. Denn diese sind, das zeigen alle Aufsätze des Sammelbandes, stets geschlechtlich codiert.

Katharina Liebsch

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The Life and Letters of Annie Leake Tuttle – WHITELEY (CSS)

WHITELEY, Marilyn Fardig (ed). The Life and Letters of Annie Leake Tuttle. Waterloo: Wilfred Laurier University Press, 1999. 147p. Resenha de: SENGER, Elizabeth. Canadian Social Studies, v.35, n.2, 2001.

Oral history is a very special genre of research and writing, and The Life and Letters of Annie Leake Tuttle is a wonderful example of a Canadian oral history rich in tradition and cultural images. Fardig Whiteley has collected and selectively edited the firsthand musings of a Nova Scotia woman of the late 19th century. Annie Leake Tuttle comes alive in these pages and we come to know her through her personal struggles. This work is additionally important because it focuses on women’s experiences. This segment of society has been sadly neglected in the traditional recording of history.

Fardig Whiteley has skillfully selected and edited a variety of pieces from the collection of writing left by this extraordinary, ordinary woman. The story of Annie Leake Tuttle is the story of countless women who lived, dreamed and died in Canada during the late nineteenth century. She was, by contemporary standards, an average, unexceptional woman who lived and sought meaning in her life in relatively unremarkable ways, yet her story is all the more powerful because of its conventionality.

Reading through these pages one can clearly identify with a woman who understood her own failings and sought to discover her strengths. She overcame a number of obstacles in pursuing her desire to teach and in her search for spiritual meaning. She never stopped learning about herself and the world in which she lived; in her life is a lesson for all people who believe they do unremarkable things. The fact that she left such a detailed account of her life and times is a major accomplishment in itself and a great legacy to those of us who come after her. Whether we be teachers, or not, women, or not, she has a powerful message to deliver to us all.

The book is relatively short and flows easily from Tuttle’s early musings to the last letters she wrote late in life. It offers an insightful and important glimpse into the life of ordinary people – she talks at length about friends and family and their adventures, as well as her own. Annie wrote these accounts in order to leave a record for her nieces and nephews. Her intimate, conversational, self effacing style comes across as sincere and informative. As I read through her letters and journal entries, I felt a very personal connection to this woman. This is a characteristic that is sadly lacking in many academic works of history and, because of this, The Life and Letters of Annie Leake Tuttle would be an excellent resource in any Canadian history classroom. It could be used as a required reading piece to help students at the high school or secondary level to understand the deeper, more personal aspects of historical study, especially oral histories.

This book is laid out as Annie intended. She identified chapters of her life, labeled them with intriguing titles, and noted the years covered by each chapter. The flow of the book is logical and easy to follow and Fardig Whiteley inserts commentary which serves to enhance and clarify the text. A map at the beginning of the book orients the reader to the area in Nova Scotia where most of the action took place. A number of family portraits and photographs which illustrate the countryside and the home in which Tuttle spent the last years of her life are also included. These pictures are thoughtfully selected and help the readers orient themselves in time, just as the map facilitates a geographical orientation. A small family tree and basic chronology of Annie Leake Tuttle’s life – again, meaningful personal touches which make Annie’s story more real – are included at the end of the book.

Finally, Fardig Whiteley includes a brief commentary on the primary sources used to compile the book and an extensive bibliography for those who wish to pursue the fascinating topic of oral histories in general, and Annie’s story in particular. This book is one of the Books in the Life Writing Series and the list of other available titles is thoughtfully included at the end. The Life and Letters of Annie Leake Tuttle would be a wonderful addition to any historian’s collection; it is a piece which brings ordinary history alive and helps us to make a personal connection to our past.

Elizabeth Senger – Henry Wise Wood High School, Calgary.

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Our Lives: Canada After 1945 – FINKEL (CSS)

FINKEL, Alvin. Our Lives: Canada After 1945. Toronto: James Lorimer Company Ltd., 1997. 422p. Resenha de: MacFARLANE, John. Canadian Social Studies, v.35, n.4, 2001.

Our Lives will greatly interest general readers as well as the academic community. The latter will appreciate footnoted references to many recent works of social and economic history. Students will benefit from the well-written presentation, thorough index and footnotes, extensive photographs (about four in each of the fifteen chapters) and the occasional statistical chart. Chapters are well organized and supported by introductory and concluding summaries. There is, however, no bibliography. The book is divided into three chronological sections. The first, covering the years from 1945 to 1963, is titled In the Shadow of the Giant and introduces the theme of American influence on Canada which dominates the book. The second section discusses the search for identities from 1963 to 1980, and the final section brings the reader to 1996, focusing on neo-conservative times. Throughout, the author details the evolution of the Canadian economy and its impact on society, paying particular attention to labor, women, Native Canadians and immigrant groups. Political events, the provinces and foreign affairs are also addressed in each section.

Finkel questions the image of Canada that emerges in the standard post-war text book, Canada Since 1945: Power, Politics and Provincialism … where almost uniform prosperity is brought into being by a dynamic capitalism and a wise federal bureaucracy presided over by a progressive Liberal party with intelligent leaders (p. 5). Finkel convincingly demonstrates that prosperity and opportunities to prosper were unequally shared. The tax system consistently favored the ‘well-off citizens’ (p. 143) and corporate welfare bums; the social reforms of the immediate post-war period were limited, and more due to NDP pressure (provided by provincial premiers, public support as indicated in polling results or conditional support to Liberal minority governments) than to the Liberal party (which has consistently shed its progressive campaign rhetoric when elected with comfortable majorities). The author is also convincing when discussing the strong influence of the United States on the Canadian economy (an increasingly negative influence as the consequences of the Free Trade Agreement and NAFTA are felt).

Finkel’s arguments that Canada has not played an important role in the world since 1945, however, are not as well supported. He dismisses Canadian military and foreign policy as an echo of the Americans, failing to provide the reader with an adequate sense of the objectives Ottawa has pursued on the international stage. Canada’s role in United Nations peacekeeping missions is written off as an attempt to provide only the image… of [an] independent and peace-minded nation (p. 121). Canadian participation in the Korean War (covered in two pages while the Vietnam conflict receives nine pages) is presented not as support for the United Nations but rather for the interests of the United States. The same interpretation is repeated concerning the Gulf War. Finkel ignores international cooperation, including collective security and development assistance (which is referred to briefly in a few sentences condemning tied aid) which has been an important objective of Canadians since 1945.

Despite the weak foreign policy sections, Finkel provides a very good summary of political events. His balanced account of the complex evolution of francophone Quebec nationalism, often mistreated by anglophone historians, is particularly well done. Alvin Finkel’s excellent work should certainly be considered by all teachers of post-war Canada as a class text – although some classes will appreciate it more than others.

John MacFarlane – Champlain College. Lennoxville, Quebec.

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Politische Bildung und Geschlechterverhältnis – OECHSLE; WETTERAU (JESSE)

OECHSLE, Mechtild; WETTERAU, Karin (Hrsg.). Politische Bildung und Geschlechterverhältnis. Opladen: (Verlag Leske + Budrich), 2000. Resenha de: OTTO, Karl A. Wie geschlechtsneutral kann politische Bildung sein? Journal of Social Science Education, n.1, 2000.

Das Buch ist eine “feministische Antwort” auf das – als Provokation empfundene – normativ gemeinte Diktum: “Politische Bildung ist geschlechtsneutral”. Dabei spricht ja doch einiges für dieses Postulat. Eine Orientierung der politischen Bildung an “wesenseigenen” Bedürfnissen und Interessen eines Geschlechts würde eine “naturhafte” (ontologische) Vorstellung von “Geschlechterdifferenz” voraussetzen, die inzwischen niemand mehr vertritt – schon gar nicht die VerfasserInnen dieses Bandes. Eine an fachwissenschaftlichen Kategorien wie Macht, Herrschaft, Interesse, Solidarität, Demokratie, Freiheit und Gleichheit ansetzende politische Bildung muß nicht per se “geschlechtsblind” sein, wenn sie nur hinreichend – d.h. im Hinblick auf reale Diskriminierung samt ihren Bedingungszusammenhängen – problembewußt ist. Der durchaus noch vorhandene “Geschlechterbias” (Auswahl der Inhalte entspricht eher dem Politikverständnis von Jungen, dem Politikverständnis von Mädchen und ihren Interaktionsformen wird nicht die gleiche Aufmerksamkeit geschenkt) läßt sich auf der Grundlage einer universalistisch konzipierten politischen Bildung sowohl konzeptionell wie unterrichtspraktisch überwinden: Warum auch sollten Mädchen nicht lernen, was Jungen können (sollen)? Eine geschlechterbezogene Normierung könnte sogar eine sozial konstruierte Geschlechterdifferenz verfestigen, die gerade Gegenstand der Kritik ist.

Dennoch ist Anlaß zu kritischem Nachfragen gegeben. Die Zuweisung von ungleichen Chancen auf soziale und politische Teilhabe erfolgt immer noch in gesellschaftlichen Verhältnissen, die in erheblichem Maße durch Geschlechtszugehörigkeit strukturiert werden – und das hat, wie gezeigt wird, immer noch zu wenig bedachte Konsequenzen: Geschlechtsneutral konzipierte Bildungsangebote werden von Jungen und Mädchen nicht in gleicher Weise, sondern geschlechtsspezifisch unterschiedlich wahrgenommen und verarbeitet. Die qua “Geschlecht” vermittelte Selbstwahrnehmung und Identitätsbildung schafft subjektiv und objektiv unterschiedliche Betroffenheit. Eine geschlechtsneutral entfaltete Handlungskompetenz ist nicht unbedingt “verwendungsneutral” in geschlechtlich konnotierten und strukturierten politischen Handlungsfeldern. Analog zum “interkulturellen Verstehen” ist es offenbar notwendig, auch “geschlechtergerechtes Verstehen” zu lernen.

Diese mit zahlreichen Fakten belegten Befunde haben die Herausgeberinnen zu diesem Sammelband inspiriert, der aus einer Ringvorlesung an der Universität Bielefeld und dem dortigen Zentrum für Lehrerbildung hervorgegangen ist. Ihr Anliegen, die bislang vorliegenden geschlechtskritischen Ansätze in der politischen Bildung zu bündeln, weiterzuentwickeln und in den fachdidaktischen Diskurs zu integrieren, wurde auf drei Ebenen realisiert: In einer Zwischenbilanz zur Rezeption der Geschlechterforschung in der Fachdidaktik wird untersucht, welche Relevanz die Kategorien “Geschlecht” und “Geschlechterverhältnis” für die Theorie und Praxis der politischen Bildung haben (Wetterau/Oechsle). Viele Fragen, die sich aus der Defizitanalyse ergeben, werden in einem zweiten Teil aus soziologischer und politikwissenschaftlicher Sicht thematisiert. Umbrüche in den Geschlechterbeziehungen (Angelika Dietzinger), tieferliegende Ursachen der gegen Aufklärungsversuche oft resistenten Vorbehalte gegen die Thematisierung diskriminierender Geschlechterdifferenzen (Michael Meuser), die marginale Rolle von Frauen in der Politik (Beate Hoecker), didaktische Konsequenzen von Paradigmenwechseln in der Geschlechterforschung (Birgit Sauer) und das Geschlechterverhältnis im Spannungsfeld von politischer Regulierung und privater Lebensführung (Sabine Berghahn) werden ebenso untersucht wie – in einem dritten Teil – die daraus ableitbaren didaktischen und z.T. curricularen Konsequenzen (D. Richter, P. Henkenborg, H. Hoppe, B. v. Borries, M. Hempel und S. Arndt). Alles in allem ein Buch, das didaktisch aufschlußreich und weiterführend ist.

Karl A. Otto

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Politische Bildung und Geschlechterverhältnis – OECHSLE; WETTERAU (JSSE)

OECHSLE, Mechtild; WETTERAU, Karin (Hrsg.). Politische Bildung und Geschlechterverhältnis. Opladen: (Verlag Leske + Budrich), 2000. Resenha de: OTTO, Karl A. Wie geschlechtsneutral kann politische Bildung sein? Journal of Social Science Education, n.1, 2000.

Das Buch ist eine “feministische Antwort” auf das – als Provokation empfundene – normativ gemeinte Diktum: “Politische Bildung ist geschlechtsneutral”. Dabei spricht ja doch einiges für dieses Postulat. Eine Orientierung der politischen Bildung an “wesenseigenen” Bedürfnissen und Interessen eines Geschlechts würde eine “naturhafte” (ontologische) Vorstellung von “Geschlechterdifferenz” voraussetzen, die inzwischen niemand mehr vertritt – schon gar nicht die VerfasserInnen dieses Bandes. Eine an fachwissenschaftlichen Kategorien wie Macht, Herrschaft, Interesse, Solidarität, Demokratie, Freiheit und Gleichheit ansetzende politische Bildung muß nicht per se “geschlechtsblind” sein, wenn sie nur hinreichend – d.h. im Hinblick auf reale Diskriminierung samt ihren Bedingungszusammenhängen – problembewußt ist. Der durchaus noch vorhandene “Geschlechterbias” (Auswahl der Inhalte entspricht eher dem Politikverständnis von Jungen, dem Politikverständnis von Mädchen und ihren Interaktionsformen wird nicht die gleiche Aufmerksamkeit geschenkt) läßt sich auf der Grundlage einer universalistisch konzipierten politischen Bildung sowohl konzeptionell wie unterrichtspraktisch überwinden: Warum auch sollten Mädchen nicht lernen, was Jungen können (sollen)? Eine geschlechterbezogene Normierung könnte sogar eine sozial konstruierte Geschlechterdifferenz verfestigen, die gerade Gegenstand der Kritik ist.

Dennoch ist Anlaß zu kritischem Nachfragen gegeben. Die Zuweisung von ungleichen Chancen auf soziale und politische Teilhabe erfolgt immer noch in gesellschaftlichen Verhältnissen, die in erheblichem Maße durch Geschlechtszugehörigkeit strukturiert werden – und das hat, wie gezeigt wird, immer noch zu wenig bedachte Konsequenzen: Geschlechtsneutral konzipierte Bildungsangebote werden von Jungen und Mädchen nicht in gleicher Weise, sondern geschlechtsspezifisch unterschiedlich wahrgenommen und verarbeitet. Die qua “Geschlecht” vermittelte Selbstwahrnehmung und Identitätsbildung schafft subjektiv und objektiv unterschiedliche Betroffenheit. Eine geschlechtsneutral entfaltete Handlungskompetenz ist nicht unbedingt “verwendungsneutral” in geschlechtlich konnotierten und strukturierten politischen Handlungsfeldern. Analog zum “interkulturellen Verstehen” ist es offenbar notwendig, auch “geschlechtergerechtes Verstehen” zu lernen.

Diese mit zahlreichen Fakten belegten Befunde haben die Herausgeberinnen zu diesem Sammelband inspiriert, der aus einer Ringvorlesung an der Universität Bielefeld und dem dortigen Zentrum für Lehrerbildung hervorgegangen ist. Ihr Anliegen, die bislang vorliegenden geschlechtskritischen Ansätze in der politischen Bildung zu bündeln, weiterzuentwickeln und in den fachdidaktischen Diskurs zu integrieren, wurde auf drei Ebenen realisiert: In einer Zwischenbilanz zur Rezeption der Geschlechterforschung in der Fachdidaktik wird untersucht, welche Relevanz die Kategorien “Geschlecht” und “Geschlechterverhältnis” für die Theorie und Praxis der politischen Bildung haben (Wetterau/Oechsle). Viele Fragen, die sich aus der Defizitanalyse ergeben, werden in einem zweiten Teil aus soziologischer und politikwissenschaftlicher Sicht thematisiert. Umbrüche in den Geschlechterbeziehungen (Angelika Dietzinger), tieferliegende Ursachen der gegen Aufklärungsversuche oft resistenten Vorbehalte gegen die Thematisierung diskriminierender Geschlechterdifferenzen (Michael Meuser), die marginale Rolle von Frauen in der Politik (Beate Hoecker), didaktische Konsequenzen von Paradigmenwechseln in der Geschlechterforschung (Birgit Sauer) und das Geschlechterverhältnis im Spannungsfeld von politischer Regulierung und privater Lebensführung (Sabine Berghahn) werden ebenso untersucht wie – in einem dritten Teil – die daraus ableitbaren didaktischen und z.T. curricularen Konsequenzen (D. Richter, P. Henkenborg, H. Hoppe, B. v. Borries, M. Hempel und S. Arndt). Alles in allem ein Buch, das didaktisch aufschlußreich und weiterführend ist.

Karl A. Otto

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Supermadre: la mujer dentro de la política em América Latina | Elsa M. Chaney

CHANEY, Elsa M. Supermadre: la mujer dentro de la política em América Latina. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1983. Resenha de: NADER, Maria Beatriz. Dimensões. Vitória, n.8, p.133-137, 1999. Acesso apenas pelo link original [DR]

Ao Sul do Corpo. Condição feminina, maternidades e mentalidade no Brasil Colônia / Mary Del Priori

A obra Ao Sul do Corpo. Condição feminina, matemidades e mentalidades no Brasil Colônia, de autoria da historiadora Mary DEL PRIORI, publicada por J o s é Olympio e EdUnB, em 1993, cobre uma enorme lacuna existente para o estudo da condição feminina na Colônia, povoada sobretudo por “mestiças” e marcada pelo entrecruzamento de etnias diversas, caracterizadas pela alteridade: brancas, negras e índias. Além de demonstrar grande trânsito com a bibliografia internacional, a autora realizou excelente pesquisa de documentos, muitos deles certamente inéditos: fontes manuscritas e impressas (Arquivo Nacional e do Estado de São Paulo e da Cúria Metropolitana de S ã o Paulo; Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e de Lisboa; Arquivo Nacional da Torre do Tombo).

DEL PRIORI referencia sua reflexão no processo civilizatório europeu de normatização da mulher que atinge toda a cristandade ocidental, sobretudo a partir do Concilio de Trento (1545-1563), e que é elemento central do movimento de reorganização das funções do corpo, dos gestos e dos hábitos, traduzidos em condutas individuais, as quais deveriam refletir a pressão organizadora moderna dos jovens Estados burocráticos sobre toda a sociedade. Ou seja, tratava-se da privatização do eu e, simultaneamente, da apropriação privada dos meios de produção. Esta nascente ética sexual assentada no adestramento, sobretudo da mulher, fez-se, nos trópicos, a serviço do processo de colonização.

Tratava-se de organizar as gentes e o povoamento da Colônia marcada nos três primeiros séculos pelos fluxos e refluxos humanos, isto é, por uma convulsiva mobilidade, especialmente dos homens. Em lugar de condutas individuais (noção de privacidade do eu), identifica-se, no p e r í o d o , uma enorme disponibilidade sexual contaminada pela exploração sexual do escravismo, por um amolengamento moral e, como diria Caio Prado Jr. em Formação do Brasil Contemporâneo, por “falta de nexo moral” e “irregularidade de costumes”. Predomínio de ligações consensuais, chamadas de “tratos ilícitos”, de filhos gerados em amasiamento de brancos com í n d i a s e em concubinato (trazido pelos portugueses e amplamente divulgado nas classes subalternas) e de famílias matrifocais: a mãe integradora de seu fogo doméstico, ou seja, mantenedora, gestora e guardiã dos seus e de outros filhos ilegítimos.

A reflexão sobre o processo de normatização e adestramento da mulher na Colônia é feita, sobretudo, a partir da análise dos discursos e práticas da Igreja e dos médicos. A ação moralizante da Igreja após o século XVI, que teve como alvo o combate às sexualidades alternativas, o concubinato, as religiosidades desviantes e a valorização do casamento e da austeridade familiar, vai se erigir na Colônia por razões do Estado: necessidade de povoamento das capitanias, de segurança e de controle social. As mães, em sua função social e psicoafetiva, transformam-se no período em estudo, num projeto do Estado e principalmente a Igreja encarregarse- á de disciplinar as mulheres da Colônia, fazendo-as partícipes da cristianização das índias. Os filhos nascidos fora do casamento comprometiam a ordem do Estado Metropolitano, pois implicavam no incremento de “bastardos” e “mestiços”, colocados pelo p r ó p r i o sistema nas fímbrias da marginalidade social As mães, chefes da maioria das casas e das famílias – mantenedoras de seus fogos domésticos -, foram eleitas como responsáveis pela interiorização dos valores tridentinos. O casamento insolúvel, a estabilidade conjugai, a valorização da família legítima – espécie de fermento da cristandade -, apresentadas como recompensa e reconforto frente à generalizada situação de abandono por parte dos homens-maridos-companheiros- pais.

O modelo europeu é trasladado à Colônia, pois aqui, no “trópico dos pecados”, morava por excelência, o Diabo. Daí a maior necessidade de ordenação e de normatização. O alvo preferido foram as mães solteiras pois estas não conheciam as benesses do casamento.

A maternidade passa a ser a remissão das mulheres e o preço da segurança do casamento o “portar-se como casada”. A identidade da mulher que se constituía de uma gama de múltiplas funções (mãe de filhos ilegítimos, companheira de um bígamo, manceba de um padre, etc.), deveria passar a introjetarse apenas nas relações conjugais.

A Igreja contou, para a implantação de tal projeto, com a fabricação generalizada da culpa (Pastoral de culpabilização dos fiéis), do medo (Pedagogia do medo), da vitimidade e da intensificação da polaridade mãe-santinha X puta. Esta última tornou-se o bode e x p i a t ó r i o do projeto de normatização, enquadrável enquanto tal toda a mulher que não se “portasse como casada” e como “mãe-santinha”: ambigüidade dos papéis de lascívia e pobreza que confundiam a vida sexual irregular com prostitutas, identificadas ainda no século XIX pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro com “cancro”, “chaga”, “úlcera” e “gangrena”.

As não casadas e o aborto associados à luxúria, ao de mônio, ao inferno. O parto sem dor como parto sem pecado: maior devoção, melhor parto. O filho imperfeito, resultado da prática do sexo em dias proibidos ou com animais, ou então resultado da “imaginação feminina”. Os filhos gerados fora do casamento, comparados à “imperfeição da cristandade” e “aleijados da natureza”.

Destacam-se a eloqüência dos sermões difundindo a idéia de mulher como naturalmente sereia, diaba e perigosa e impondo a devoção a Nossa Senhora com vistas a comportamentos ascéticos, castos, pudibundos e severos, a l ém do culto à virgindade e o confessionário como instrumento potente de controle de intenções.

Por sua vez, o discurso normativo médico sobre o funcionamento do corpo feminino apoiava o discurso da Igreja na medida em que indicava como função natural da mulher, a procriação. Fora desta, restava-lhe o lugar da exclusão: a melancolia ou a luxúria. Ao estatuto biológico da mulher, o discurso médico procurava associar outro, moral e metafísico: esta tem um temperamento comumente melancólico, é um ser débil, frágil, de natureza imbecil e enfermiça.

O critério do útero como regulador da saúde física e mental da mulher irradiava-se da Europa do Antigo Regime, difundindo a mentalidade de que a mulher era física e mentalmente inferior ao homem. A concepção e a gravidez como rem é d i o para todos os “achaques femininos”. A medicina comprazia-se, ainda no século XVIII, em enxergar nos males físicos, sinais de transgressão sexual. Assim, histeria guardou o nome grego de ú t e r o (hyster) e um corpo h i s t é r i c o era denotativo de desordem moral.

A menstruação era associada à magia, transformações e veneno, atualizando as proposições de Santa Hildegarda de que aquela era um castigo decorrente do pecado original. Este sangue envenenado tinha o poder de estragar o leite, vinho, colheitas e metais: pelo excesso de secreções e odores a mulher devia se isolar em seu cotidiano.

Se menstruada a mulher era ameaçadora e grávida vulnerável, conclui-se pela urgência de novas matemidades. A autora localiza, inclusive, anotações médicas indicando o mal-estar dos homens diante das feiticeiras, capazes de adoecê-los, mas também de curá-los com seu sangue poderoso.

Só a partir de 1750 os médicos vão substituir o temor pelo cuidado. Apenas no final do século XVIII identificam-se modestos avanços da medicina no sentido de identificar outras razões para enfermidades femininas que não o clima ou a vida pecaminosa – os terríveis males da “madre”.

A importância da lactação passa a ser percebida tanto por doutores, quanto pela Igreja como um dever moral, desde o século XVI. A partir daí instaura-se o combate às amas-deleite: cada vez mais o aleitamento torna-se um dever e parte fundamental do processo de sacralização do papel da mãe.

Assim, no século XVIII localiza-se uma nova representação da Nossa Senhora do Bom Parto: uma mulher feliz com filhos nos braços e não mais grávida.

Por sua vez, se a puta era o bode expiatório do projeto de normatização, a partir do século XIX será o bode expiatório também do processo de higienização da sociedade. Tratava-se de higienizar a noção de sexualidade: exaltação da sexualidade conjugai, na medida em que o prazer em excesso e a ausência de finalidade reprodutora passam a ser condenados pela medicina como doença física e moral.

Fundamental no processo, localizar o papel do marido: cabeça da mulher, que cuida para que ela cumpra os encargos da profissão cristã. Para evitar as tentações ela devia ser obrigada a obedecê-lo por preceito divino, nem cabelo cortar sem sua autorização. As mulheres deveriam ser fiéis, submissas, recolhidas e sobretudo fecundas. O marido passava a ser o único elo de ligação com o mundo. Assim, aquele torna-se uma espécie de porta-voz das demandas de adestramento propostas pela Igreja, a l ém de ser motivo para um sutil processo de culpabilização, pois em torno dele se mostraria uma estratégia de gratidão escravizante. Os maridos deveriam ser dominadores, voluntariosos, insensíveis e egoístas no exercício da vontade patriarcal.

Assim, pode-se pensar que o processo de adestramento, ao colocar os maridos, os filhos e os pais ocupando determinadas posições em relação às mulheres, disciplina o próprio gênero masculino, construindo, conseqüentemente, uma nova identidade masculina. Por sua vez, ainda que a autora destaque o projeto matrimônio-maternidade enquanto concebido como espaço normatizador, n ã o aponta a sua contra face que é a ligação com a paternidade, matrimônio-paternidade. O silêncio das fontes sobre a paternidade é denunciador da própria incerteza e da dificuldade de naturalização da mesma. Isto se deve, em boa medida, pela sinonimização que é feita da categoria de g ê n e r o ora por sexo, ora por mulher. Neste sentido, o conceito é desvirtualizado, pois não se remete à dimensão relacionai, fundante do mesmo.

Outro aspecto a considerar é a questão da misoginia. Na verdade a autora atribui às mentalidades populares a missão “…de guardiã da misoginia” (pg.334). No entanto, no conjunto mesmo do texto, percebe-se que a misoginia é transversal a todos os segmentos sociais. Todos os saberes que as bruxas tinham sobre o corpo feminino causavam pânico, e foram responsáveis pela instauração da Caça às Bruxas. Obviamente a condenação das mesmas deveu-se à Igreja e à nobreza e n ão às classes populares. Ao contrário, estas recorriam, nas suas necessidades fundamentais, às feiticeiras, simultaneamente chamadas de fadas, quando seus conhecimentos e práticas davam resultados.

Assim, a misoginia n ã o pode ser atribuída fundamentalmente às mentalidades populares, conforme exprime a autora. Ao contrário, apesar de se referir inúmeras vezes ao Diabo, parece n ã o considerar que a T o l i t i z a ç ã o do Diabo” deu-se na Europa, simultaneamente, como mecanismo de resistência dos oprimidos e como mecanismo de dominação por parte da Igreja e das elites, processo de lutas que eclodirá na Caça às Bruxas, sobretudo nos séculos XVI e XVII. Assim, a proximidade da q u e s t ã o referida à misoginia, bem como do p r ó p r i o processo de normatização da mulher, com a questão das feitiçarias, do Diabo e da Caça às Bruxas é evidente. Porém disto a autora n ã o se ocupou.

Enquanto historiadora, poderia ter realizado uma excelente análise, ainda que para melhor referenciar-se, do próprio movimento desencadeado na Europa no p e r í o d o estudado: o Racionalismo, colocando todos os homens e mulheres como iguais e que seguirá convivendo com a misogina ancestral.

A mulher continuará pecadora, lasciva, demoníaca, etc, embora igual ao homem perante Deus e perante a Lei. O projeto de normatização e adestramento, objeto de estudo da pesquisadora, é o exemplo mais bem acabado desta ambigüidade.

Esta lacuna é de certa forma compreensível, quando a autora não se permite falar pela maioria: n ã o explicita os segmentos sociais a que se remete. Isso faz supor que fale por todos, mas é a partir do lugar das elites que sua fala é construída.

Pode-se exemplificar através da atribuição que Del Priori indi ca (p.37) às mães no que tocava à responsabilidade pelo ensino das primeiras letras aos filhos. N ã o se pode esquecer que a maioria da população, no p e r í o do considerado pelo estudo, era analfabeta.

Neste sentido, observa-se ainda que a autora, embora expresse conhecimento exaustivo da literatura francesa, e uma lógica narrativa enunciativa foucaultiana, não cita este autor (Foucault), em sua bibliografia, e ao mesmo tempo, n ã o consegue realizar, à semelhança do mesmo, o estudo processual da construção e da expansão nos diferentes segmentos sociais do projeto que trata de se tornar hegemônico.

A virtude mais frutífera da obra para a historiografia da mulher é a comprovação de “… que existiam, sim, fontes para a história da mulher no p e r í o do colonial…” (p.15). Essa comprovação implicou num volumoso trabalho de busca e organização de novas fontes, bem como uma originalidade expressiva no tratamento das fontes j á conhecidas.

Também descreve com agudez a rede de solidariedades e de micro poderes e saberes que as mulheres desenvolvem e se envolvem durante o p e r í o do colonial, mas não consegue perceber as tensões geradoras de resistências neste processo.

Desta forma, Del Priori reforça o pensamento tradicional, ainda dominante, do feminino e das mulheres incorporadas historicamente como objetos e não como sujeitos.

É lamentável, portanto, que o olhar que localiza e investiga as mulheres continue a ser o olhar que vê e fala pelas mulheres dando luz às suas passividades, n ã o visibilizando nem buscando (pg.335) suas opções, práticas, gritos e projetos.

Nesta direção, exemplificando, podemos lembrar que a pesquisadora não assume a promiscuidade e as relações não legítimas como projetos possíveis de resistência por parte de uma grande maioria de mulheres. Simultaneamente, não consegue explicitar como estas assumem o matrimonio-maternidade como projeto próprio, sendo que, segundo ainda a própria autora, o destino das mulheres-mães casadas era quase trágico (pg. 63).

A “irregularidade de costumes”, o fluxo contínuo, sobretudo de homens, as mulheres mantenedoras de seus fagos domésticos, mães de filhos de muitos pais, nunca deixou de ser uma constante, principalmente entre os pobres aqui e em outras colônias. Na atualidade, na América Latina, h á 25 milhões de lares chefiados por mulheres.

O fato do projeto normatizador ter se tornado hegemônico para as elites e as classes médias brasileiras com linhagens e/ou patrimônios a salvaguardarem não nos permite pensar que estes milhões de mulheres chefes de família foram “deixadas para trás” e a elas atribuir unilateralmente a solidão, a humilhação, o abandono e a violência (noções que transversalizam todo o texto).

E o olhar católico que parece não permitir o olhar e a análise críticos do dado destacado pela investigadora (pg. 51 e repetido na pg. 175), de que em Minas Gerais no século XIX ainda havia um predomínio de famílias matrifocais – cerca de 45% do total, sendo que 83% destas nunca haviam se casado.

A promiscuidade e o casamento não sacramentado podem ter sido e continuar a ser um projeto para muitas mulheres. Por que não? Por que olhá-las apenas a partir da vitimidade? Neste sentido, o olhar da autora coincide com o olhar do projeto normatizador da Igreja-Estado, apoiados pela j u r i s p r u d ê n c i a e pelo discurso médico. E que é, por excelência, o olhar masculino racional-universalizante. E um dos inú meros avanços possibilitados pela perspectiva de g ê n e r o é a construção de outros olhares e de outros lugares de fala, que rompam com aquele, ainda hegemônico no pensamento ocidental moderno.

Deis Siqueira – Doutora em Sociologia e professora na UnB, Lourdes Bandeira – Doutora em Sociologia e professora na UnB e Silvia Yannoulas – Mestre em Sociologia.


DEL PRIORI, Mary. Ao Sul do Corpo. Condição feminina, maternidades e mentalidade* no Brasil Colônia. Brasília, Rio de Janeiro: Editora da UnB, José Olímpio, 1993. Resenha de: SIQUEIRA, Deis; BANDEIRA, Lourdes; YANNOULAS, Silvia. Textos de História, Brasília, v.2, n.3, p.148-157, 1994. Acessar publicação original. [IF]

Women and the public sphere in the age of the French Revolution – LANDES (RBH)

LANDES, Joan. Women and the public sphere in the age of the French Revolution. Ithaca: Cornell University Press, 1988. Resenha de: AGRANTI, Leila Mezan. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.9, n.18, n.15, p.259-263, ago.1988/set.1989.

Acesso apenas pelo link original

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Do cabaré ao lar – A utopia da cidade disciplinar- Brasil: 1890-1930 – RAGO (VH)

RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar – A utopia da cidade disciplinar- Brasil: 1890-1930. Editora Paz e Terra, 1985. Resenha de: FARIA Maria Auxiliadora. Varia História, Belo Horizonte, v.2, n.2, p.147-148, jun., 1986.

A convite, do prefaciador Edgar de Decca e da própria Autora. participei da viagem. E o fiz com gosto por estar, como outros, preocupada em resgatar na tecitura histórica da República Velha práticas cotidianas do operariado brasileiro.

No Brasil, esta tentativa é nova. E como tudo que é novo, inquietante. Ao se tentar por exemplo, reconstituir os processos de morar dos trabalhadores. suas formas de lazer e de educação, sua sexualidade e mesmo as sutilezas de suas resistências frente às diversas instâncias do Poder, revela-se o até então irrevelado. Redimensiona-se o papel histórico da classe operária, recuperando-a não em suas generalizações mas em suas particularidades, ou no seu cotidiano.

Para penetrar nesse mundo novo necessário se faz, tal como propõe a Autora, empreender uma viagem. Todavia, não se pode levar na bagagem preconceitos há muito arraigados: que a classe operária brasileira da Primeira República era social e politicamente atrasada; que os anarquistas não propuzeram nenhuma forma organizada de resistência; e além de outras ”verdades consagradas” a de que as classes dirigentes, ocupadas na manutenção do Estado Oligárquico cujo sustentáculo econômico era o setor agrário-exportador, não construiram, a nível do espaço urbano em geral e da fábrica em particular, dispositivos especiais de domesticação do operariado.

O cenário é quase sempre a cidade de São Paulo, apesar de o subtítulo referir a: Brasil 1890·1930. O objeto de estudo: o cotidiano do operariado e, em especial dos adeptos da doutrina anarquista. E assim que Margareteh Rago tenta, e com êxito, desvendar as inúmeras formas utilizadas no processo de adestramento dos operários para torná-los mais produtivos, mais dóceis e mais disciplinados. Aptos a desfrutar, portanto, de um espaço – a cidade- que longe de ser o local mesmo do conflito deveria tornar-se o da harmonia.

No sumário do lívro, mais que um índice, um apelo da Autora, um chamamento à leitura: “Fábrica satânica/fábrica higiênica- A colonização da mulher -A preservação da infância- A desodorização do espaço urbano”. Introduz em cada um desses capítulos não apenas emocionantes relatos fundados em dados empíricos, mas também e principalmente, ricas interpretações subsidiadas por pensadores como E.P. Thompson e Michel Foucault. Utiliza-se também de O. Montgornery e Mário Tronti. quando se preocupa em analisar práticas explícitas ou veladas de resistência operária. Assim, a Autora contribui decisivamente à construção de uma nova historiografia sobre a classe operária e o movimento anarquista na Primeira República.

Mas se a contribuição é decisiva, não se pode negar que o arrojo de M. Rago ao penetrar “no interior das fábricas, dos bairros e vilas operárias do inicio da industrialização do país” para atingir os objetivos propostos, resultou num certo comprometimento da análise no tocante a temas polêmicos. como sejam: o mito do amor materno, o aleitamento infantil, o problema do menor abandonado ou mesmo a questão da segregação social do espaço urbano, que ela preferiu chamar de “desodorização do espaço”. A ideologizaçâo que atribui ao saber médico, leva o leitor menos atento a repudiar a evolução da medicina e a introdução de técnicas sanitárias e higiências no espaço urbano. Assim também, a atribuir à medicina preventiva, e ao incentivo à amamentação um lugar de peças decisivas num plano diabólicamente tramado no sentido exclusivo de domesticar a mulher operária e preparar cidadãos saudáveis e aptos a se integrarem ao mercado de trabalho. Ainda sobre a mulher conclui, à pág. 206, que o projeto de domesticação da classe operária redefiniu papéis e que a ela (mulher) “foi designado o triste destino de vigilante do lar e de mãe de família. Todos os comportamentos que se produziram fora destes parâmetros recobriram-se do estigma da culpabilidade e da imoralidade. Entre as figuras da Santa Maria e da Eva, nenhum espaço foi permitido à mulher. a despeito de todas as solicitações que o mundo industrial lançava sobre ela”.

Da idéia de “triste destino” talvez lhe tenha ocorrido outra, que deu título ao livro: “Do cabaré ao lar”, ou aí estaria o duplo de que tanto fala o prefaciador? Como ele mesmo afirma. que a liberdade do literato não é a mesma do hitoriador, ocorreu-me o que se contava no meu tempo de estudante: Um aluno, não sei bem se de História ou de Sociologia, teria ido à biblioteca em busca do livro “Raizes do Brasil” do saudoso Sérgio Buarque de Holanda. Não o encontrando na prateleira apropriada, pediu auxilio a uma funcionária que lhe passou a seguinte advertência:- “Você está equivocado. Esse livro deve ser procurado na seção destinada às obras de botânica”.

Quem empreender com a Autora a viagem proposta certamente colocará o livro na prateleira adequada, e o destacará como obra inconfundível. A densídade com que desvenda a trama do cotidiano operário apesar de pequenos desvios de percurso, acaba por desmistificar algumas verdades. Entre outras, a de que, apesar de todas as tentativas de silenciamento, operários em geral e anarquistas em particular, foram capazes de apresentar formas: de resistência ao conjunto de normas disciplinares que lhes foram impostas nos primeiros anos de industrialização brasileira.

Maria Auxiliadora Faria – Professora Adjunta do Departamento de História da FAACH/UFMG.

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Condição Feminina – Condição Operária, um estudo de caso sobre operárias têxteis – NEVES (VH)

NEVES, Magda Maria Bello. Condição Feminina – Condição Operária, um estudo de caso sobre operárias têxteis. Tese de Mestrado. DCP/UFMG. Resenha de: DELGADO, Lucília de Almeida Neves. Varia História, Belo Horizonte, v.2, n.2, p. 139-143, jun., 1986.

A mulher, as condições de trabalho da mulher, a dupla jornada de trabalho, a mulher dona de casa, a mulher mãe, a mulher profissional, a mulher operária, as condições especiais nas quais a mulher é contratada, são vários dos muitos aspectos através dos quais a questão feminina tem sido tratada. A literatura que trata do tema expande-se a um ritmo cada vez mais crescente. São depoimentos individuais de vida, são romances, são teses acadêmicas, são poesias, são artigos de revistas e jornais. especializados ou não. E um fenômeno mundial. A mulher adquiriu um estatuto novo e um’ reconhecimento diferenciado que cada dia se torna mais evidente. O trato â questão feminina S · e amplia e ultrapassa o mundo dos impressos. Os meios de comunicação audio-visual passam a apresentar programações inteiras e diárias que tratam com exclusividade da questão feminina. Tanto nos meios de comunicação impressos ·como nos audio-visuais o tratamento do tema adquire uma característica inovada. Questões sexuais, relacionamento afetivo, relação com os filhos, maternidade. controle de natalidade, profissão, tarefas domésticas, moda … são temas tratados permanentemente pela imprensa falada. televisada e escrita. Outro tipo de publicação que proliferou nos últimos tempos é a imprensa feminista. De alcance e público mais restrito este tipo de publicação tem tido importância vital, como elemento de vanguarda no novo tratamento que a questão feminina exige.

Nesta leva tão ampla de publicações sobre o tema “mulher”, dentre os vários livros acadêmicas publicados e as várias teses defendidas nas universidades surgem alguns trabalhos que contribuem sem dúvida para’ ampliação e aprofundamento da literatura especializada. Este é o caso da tese de Mestrado em Ciência Política defendida por Magda Maria Belfo Neves na UFMG em 1983. Sob o título “condição Feminina -Condição Operária, um estudo de caso sobre operárias texteis”, a autora aborda de forma simples, mas com densidade as questões mais pungentes que compõem o cotodiano das operárias tecelãs. O texto é de uma leveza não comum às pesadas teses acadêmicas normalmente escritas nas universidades. Mesclado de depoimentos das operárias, de citações bibliográficas e de ligeiras análises teóricas a leitura se faz solta sem dificuldades. O caráter descritivo do trabalho facilita seu acesso a um público não universitário, sendo inclusive possível a sua leitura pelas próprias protagonistas da pesquisa, as operárias tecelãs.

Devido a essa facilidade de compreensão do texto, cremos que um objetivo fundamental da Universidade vem a ser atendido pelo trabalho de Magda, ou seja. a produção não só para o público vinculado ao mundo acadêmico, mas também e especificamente para a comunidade na qual a Universidade está inserida.

A ESTRUTURA DO TRABALHO

O texto da tese se divide em uma introdução, quatro capítulos e uma conclusão. No que se refere à reflexões teóricas, a introdução é a parte mais rica desta tese. Aliás, o forte do trabalho não é a parte teórica, sua riqueza e importância maior estão na exaustiva pesquisa empírica levada a cabo pela autora. Ela própria assim define seu trabalho:

” … este trabalho é um estudo monográfico, um estudo de caso, que não têm pretensões de generalizações teóricas, mas sim, de descrever e analisar as condições materiais e cotidianas de um grupo de mulheres, trabalhando numa fábrica de fiação e tecelagem. Enfim, de como se dá a subordinação da mulher operária trabalhando no processo de produção capitalista, o que existe de específico neste processo em relação a mulher”.

As questões teóricas da introdução sustentam-se basicamente em textos de Karl Marx, Taylor, Robert Linhart e Claude Durand(1). Com base na análise e discussão dos conceitos teóricos destes autores Magda redige o pano de fundo sobre o qual se assenta o objeto maior de sua pesquisa, ou seja, analisar a inserção da mulher no processo de trabalho na indústria de fiação e tecelagem. Realizando uma discussão detalhada da conceituação do processo de trabalho, a autora acaba por concluir que além da rotina normal do trabalho operário que oprime indiscriminadamente a homens e mulheres, as condições de trabalho da mulher, são especialmente mais dolorosas, já que, uma série de outros fatores contribuem ainda mais para caracterizar, para elas, uma situação de submissão duplicada. São fatores de ordem política e cultural, que preponderam na sociedade e que são habilmente usados, de forma particular pela fábrica, para seleção, controle e rendimento da força de trabalho feminina ali empregada. Tendo como referência estas reflexões preliminares a autora define o objetivo de seu trabalho da seguinte maneira:

“o objetivo deste trabalho é analisar como se dá nas indústrias de fiação e tecelagem a inserção da mulher no processo de trabalho e. quais os fatores políticos e culturais articulados pela fábrica para subordinar a mulher à divisão sexual do trabalho. Além disto, nos interessa compreender como as mulheres enfrentam essa imposição e esse controle no cotidiano da fábrica”.

Além disso. ultrapassando o mundo do trabalho enquanto puro mecanismo de produção, a autora se propõe, segundo a citação acima, a compreender a reação da mulher frente às condições de trabalho e de vida que lhe são impostas. Se a reação é de passividade e aceitação, se de revolta, ou são impostas. Se a reação é de passividade e aceitação, se de revolta, ou de crítica. Procura também identificar as maneiras através das quais estas reações se expressam.

Para melhor atender aos objetivos propostos por seu trabalho, Magda percorreu uma longa trajetória de pesquisa empírica dentro e fora da fábrica. Uma trajetória na coleta de dados que ultrapassou os limites da academia e penetrou nas emoções das protagonistas de tão importante estudo de caso. Partindo de contatos extra fábrica e usando a fundo a sua sensibilidade e identificação feminina com as operárias entrevistadas, Magda conseguiu conquistar não só a sua confiança, mas também penetrar no cotidiano de suas vidas e melhor compreender, a partir daí, suas dificuldades, anseios, aspirações, alegrias e tristezas O maior mérito do trabalho é exatamente este, sem perder seu caratér sociológico e político, transforma-se por este mesmo caratér adicionado à emoção presente em cada depoimento das operárias num testemunho cheio de vida da dura realidade ,que é o cotidiano da mulher operária tecelã de uma indústria de fiação e tecelagem de Belo Horizonte.

Desenvolvendo um eficaz trabalho de rompimento da dissimulação característica de postura operária em relação ao mundo intelectual, Magda conseguiu que as mulheres falassem livremente de sua experiência de vida e do seu cotidiano. Para tal freqüentou suas casas, e participou de seu cotidiano extra-fábrica. Só depois de vencida esta fase é que a pesquisadora entrou na fábrica, e aí já tendo conquistado na etapa anterior das operárias tecelãs passou a fazer entrevistas no próprio local de trabalho. Tomando como modelo a Enquete Operária de Marx de 1880 a autora entrevistou vinte operárias e dez técnicas administrativas.

No contato extra-fábrica a autora teve a oportunidade de penetrar no uni· verso operário mais amplo, podendo observar e conviver com aspectos como: condições de moradia, de transportes, hábitos de lazer, trabalho doméstico .. , durante três meses utilizou o mesmo transporte coletivo usado pelas tecelãs, percorreu o percurso por elas percorrido na ida e volta para o trabalho, conversou com elas e com seus familiares visitando suas casas inúmeras vezes. Este contato, segundo a própria autora, revestiu-se de um caratér especial marcado inicialmente por um choque ~entre a concepção acadêmica da maior parte da intelectualidade de que o científico se busca em verdades exatas, e as contradições inerentes à vida das tecelãs, contradições estas que ultrapassam em sentimentos e emoções os conceitos dos textos teóricos e manuais acadêmicos.

Neutralizado o choque inicial de dois mundos tão diversos superou-se a primeira etapa da pesquisa e o trabalho no interior da fábrica pôde ser desenvolvido com maior facilidade. A conquista da confiança das operárias já havia sido conseguida, só restava à pesquisadora adaptar-se às condições imperantes no local de trabalho e assim dar início a uma segunda série de entrevistas. A própria autora afirma que as dificuldades de adaptação à fábrica foram inúmeras e o incômodo provocado pelo calor, poeira e barulho, foi seu companheiro permanente durante todo o tempo em que permaneceu no interior da empresa aplicando questionários.

Aplicados os questionários deu por concluída a fase de pesquisa empírica e iniciou então a etapa da redação do texto. Uma: etapa na qual com especial sensibilidade conseguiu compor com rara perfeição um retrato real e completo da vida das operárias tecelãs.

Cinco capítulos alem da Introdução e da Conclusão, compõem o caminho percorrido para a formação de um interessante painel sobre o trabalho e vida das tecelãs da indústria de Fiação e Tecelagem ., A” de Belo Horizonte: São eles : Desenvolvimento Tecnológico e Presença Feminina na Indústria Textil; Divisão Social e Sexual do Trabalho na Fábrica; Processo de Trabalho e Produção; Condição de Trabalho e Saúde do Trabalhador; Politica Salarial e Dupla Jornada de trabalho.

Percorrendo uma vasta bibliografia sobre a presença feminina nas indústrias de fiação e tecelagem{2), Magda utilizou ao máximo os avanços teóricos e conceituais alcançados por estes textos, mas além disso deu um salto de qualidade e desvendou a fundo a condição feminina no trabalho e na vida das operárias tecelãs da indústria ”A”.

Relacionando processo de trabalho com trabalho feminino, e também analisando o grau de desenvolvimento tecnológico alcançado pela empresa nos ·últimos 20 anos, Magda chega a três conclusões: A fábrica não passou por modificações tecnológicas de peso nos últimos 20 anos; a maior parte da força de trabalho ali empregada é composta por pessoas do sexo feminino (de 1300 operários 670 são mulheres); a mão-de-obra feminina é empregada nos trabalhos menos qualificados e de menor remuneração. A justificativa para o emprego desse elevado número de mulheres na fábrica e também para a sua baixa remuneração é bem expressa petas seguintes palavras de um supervisor reproduzidas no texto da Magda: ” … a mulher aceita receber salários baixo, seu salário é de complementação, é uma “ajuda” em casa e, por outro lado, ela está ali esperando para casar, é um emprego provisório, por isso ela aceita mais e reivindica menos;’. É portanto fundamental numa empresa deste tipo o controle dos salários em um nível mais baixo e a certeza de que as reivindicações serão quase inexistentes.

A política desenvolvida pela empresa de se prevenir ao máximo movimentos reivindicatórios dentro da fábrica começa, de acordo com a análise desenvolvida pela autora, a ser colocada em prática já na seleção e contratação de pessoal. Os critérios para a contratação passam por uma rede de amizade e de família. Qualquer pessoa só pode ser contratada se for indicada por outra pessoa que já trabalhou na fábrica, e mais, a preferência de contratação recai sobre familiares dos operários da empresa. Esta estratégia de controle revela-se como sendo de uma eficácia extrema, os compromissos tornam-se pessoais e os contratados têm medo de romper a rede em algum ponto. Ninguém quer comprometer ninguém, perder o emprego ou indicar pessoas que possam comprometê-las negativamente na empresa.

No que diz respeito especificamente à contratação da mulher, a autora aponta mais uma questão que revela o quanto são fortes as artimanhas usadas para se levar as operárias a uma submissão cada vez maior. A estrutura do trabalho na empresa reproduz integralmente a estrutura do patriarcalismo que predomina na sociedade em geral. O Chefe, superior na hierarquia da fábrica, não abre mão de pressionar, com o uso do seu poder de chefia, as moças que ali trabalham. São pressões, na maioria das vezes, revestidas de características sexuais. A operária vê-se pressionada a submeter-se “à autoridade masculina” sob pena de perder o emprego.

Outra questão ressaltada com prioridade pela autora é a posição da mulher na estrutura hierarquica da fábrica. Baseado em argumentos de que mulher é dócil, meiga e paciente a elas são dados trabalhos especiais, normalmente localizados hierarquicamente abaixo daqueles destinados aos homens. Tal situação~ muito bem expressa no depoimento de uma tecelã citado no trabalho:

“… As mulheres na fábrica, apesar de trabalharem muitos anos, estão sempre assim em posição inferior. Mesmo aos homens mais novos, por exemplo, tem ocupado lugares de chefes, encarregados, etc. E a mulher está sempre permanecendo mais baixo. Eles não dão assim muito valor e oportunidade para a mulher”.

Outros aspectos do trabalho da mulher tecelã também são abordados com muita propriedade pela autora. Ela descreve em detalhes o treinamento das operárias, sua jornada de trabalho, suas funções, sua relação com a máquina, seu lazer, sua concepção de vida, suas esperanças. Além disso retrata exaustivamente todo o processo de produção desde a preparação dos fios, até o acabamento final do tecido. Um retrato inteiro da realidade sofrida das operárias, marcado pelo testemunho de fiandeiras, tecelãs e bobinistas.

Para compor melhor o quadro a autora dedica um capítulo inteiro de seu trabalho a analisar as condições de saúde e trabalho das tecelãs. Condições de trabalho cuja composição básica é o barulho, a poeira e o calor. Uma mescla de elementos que provoca nervosismo, alergia, constantes irritações e inflamações de garganta, tuberculose, sinusite, dor de cabeça, doenças na pele, palpitação, inchaço de perna e envelhecimento precoce. Os depoimentos das tecelãs colhidos pela pesquisadora, são pungentes e revelam senão uma situação de impotência das trabalhadoras diante das condições de trabalho que lhes são impostas pelo menos um misto de perplexidade e de revolta.

Além dessas condições aviltantes que as tecelãs enfrentam no seu dia a dia da empresa, condições. que as levam a um esgotamento crônico, outros fatores também contribuem para o seu envelhecimento precoce. Os salários· são baixos, e portanto insatisfatórios e insuficientes. O trabalho é duplo, quando finda a jornada de trabalho na fábrica a operária se vê obrigada a se envolver no trabalho doméstico. Inicia-se então, a jornada da lavação de roupa, preparo de ali· mentes, cuidado com os filhos. E a tecelã que tem filhos é a que mais se sacrifica. Optando pelo trabalho noturno, ela tem o dia (“livre”) para os afazeres domésticos. A luta dessa trabalhadora é incessante e continua. Seu fazer é praticamente inexistente e só lhe resta sonhar, sonhar aliás, por sua condição de mulher operária jamais alcançará.

A conclusão do trabalho é curta, e esta aliás tem sido, infelizmente a norma dos trabalhos acadêmicos. No entanto, apesar das poucas páginas a ela dedicada, a autora consegue sintetizar com bastante eficácia o que é a vida e o trabalho da tecelã da Indústria “A” de Minas Gerais. Uma vida e um trabalho onde o patriarcalismo se une ao capitalismo, para através da subordinação da mulher operária, alcançar lucros maiores para a empresa.

Notas

1 MARX, Karl – O Capital. Rio, Civilização Brasileira, s. d. (Livro 1).

2 A bibliografia usada compõe-se basicamente dos seguintes textos, dentre outros:

Referências

TAYLOR, F. W.- Princípios de Administração Científica. São Paulo. Atlas, 7ª ed., 1970.

CORIAT, Benjamin – d’ Atelier et Ie Chronométre. Paris, Christian Boujours editeur.

DURANO, Claude- Le Travaíl Enchaine. Paris. Seuil, 1978.

UNHART, Robert- I’Organization du Travail lndustriel. Rio, mimeo., 1980.

CORIAT, Benjamin- Ciência, Técnica e Capital. Madrid, Blume, 1976.

RODRIGUES, Jessita Martins – A Mulher Operária – Um estudo sobre tecelãs. São Paulo. Hucitec, 1979.

ACECO, LIliana – La Muyer en el Processo de trabajo- una fábrica têxtil– ANPOCS. 1980.

PEREIRA. O coração da fábrica- Um estudo de casos entre operárias têxteis. Rio, Paz e Terra, 1981.

PENA, Maria Valéria Junho –Mulheres e trabalhadoras- Presença Feminina na Constituição do Sistema Fabril. Rio, Paz e Terra. 1981.

Lucília de Almeida Neves Delgado – Professora Adjunto do Departamento de História da FAACH/UFMG.

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