A natureza dos rios: história, memória e territórios | Gilmar Arruda

O livro organizado por Gilmar Arruda figura entre os mais recentes estudos sobre as relações entre história, espaço e natureza ao examinar as interações entre as sociedades e o meio ambiente. O livro procura mostrar que os rios também fazem parte da natureza e, portanto, devem ser objeto para os pesquisadores que colocam em pauta as questões ambientais, entre outras. Desse modo, A natureza dos rios: história, memória e territórios, reúne textos de historiadores, sociólogos e antropólogos que exploram algumas possibilidades de estudos sobre os rios.

A coletânea é composta por uma apresentação feita pelo organizador e por mais oito textos que discutem como as concepções e as ações humanas sobre as águas dos rios conseguiram transformar o território, a memória e a história. Os conflitos e as disputas pelo domínio do espaço natural, os impactos da modernização tecnológica, o contato com as populações ribeirinhas, as formas de utilização e alteração das águas são alguns dos temas presentes no livro e que nos ajudam a desvendar a “natureza dos rios” e seus significados ao longo desses processos. Ao abordar tais temas, os autores utilizaram relatórios de expedições, correspondências de engenheiros e autoridades políticas, mapas e obras publicadas no final do séc. XIX e início do séc. XX. Tais fontes são importantíssimas ao revelar como é possível entender melhor a relação entre história e natureza, sociedades e meio ambiente, tendo os rios como foco central.

Abrindo a coletânea de textos, Donald Worster descreve como a política e os fatores econômicos influenciam diretamente a maneira como utilizamos as águas dos rios e os impactos ambientais gerados por nossas ações. Ademais, o autor propõe que precisamos buscar maneiras de nos relacionarmos positivamente com os rios ao tentarmos suprir nossas necessidades. Na sequência, Dora Corrêa estuda os rios dentro de debates historiográficos. A autora analisa o imaginário e as construções históricas, disseminadas pela historiografia paulista do final do séc. XIX e início do séc. XX, que utilizaram os rios para justificar origens, superioridades e hegemonias de uma região sobre outras. Assim, podemos perceber que, além da apropriação dos recursos hídricos trabalhada por Worster, os rios também são analisados historicamente como lugares de memória e mitos. Esta abordagem é feita ainda por Raimundo Arraias que demonstra como rios podem ser carregados de força simbólica e expectativas do futuro. Serviram como fonte de evocação do passado glorioso dos recifenses, por meio de descrições minuciosas de uma paisagem e de águas anteriores ao impacto da modernização, quando se tornaram uma imagem despoetizada no cenário urbano.

Gilmar Arruda, Lúcio Tadeu Mota e Thomas Bonnici trabalham a utilização do curso dos rios da região do Paraná. As descrições da paisagem e das populações que viviam nas bacias hidrográficas foram encontradas em detalhes das fontes utilizadas, como, por exemplo, os relatórios das expedições de exploração e colonização do interior daquela região. Os autores expõem, ademais, como os cursos dos rios foram projetados pelas autoridades políticas para servirem como vias de acesso e administração do território. Nestes textos, discute-se o processo que desencadeou uma verdadeira “guerra de conquista” do interior do país. Entre os relatórios utilizados está o do engenheiro inglês Thomas P. Bigg-Wither, evidenciando a grande participação e importância dos estrangeiros na exploração e reconhecimento do território nacional.

Nessas riquíssimas fontes que descrevem a natureza e o contato dos desbravadores com populações nativas é possível pesquisar também a interação dos indígenas com as águas dos rios. Este tema foi explorado por Kimiye Tommasino que, em seu texto, analisa as formas de apropriação e usos da natureza por essas comunidades. A análise antropológica do universo simbólico desses grupos e suas relações cosmológicas com os rios trazem ao leitor não só a explicação da forma como os índios usavam as águas correntes, mas principalmente o seu respeito pelo meio ambiente. O rio Amazonas e o imenso território banhado por suas águas podem igualmente gerar uma extensa pesquisa sobre as populações ribeirinhas e sua relação com o rio. Entretanto, José Miguel Arias Neto, autor do último texto, procurou fazer uma análise mais focalizada nos acontecimentos políticos que envolveram essa região. A exposição feita de conflitos gerados pela disputa sobre a navegação do Amazonas mostra a possibilidade de discussão sobre as políticas externas e o imaginário intencionalmente construído sobre os rios amazonenses e seu entorno, outra forma de abordagem temática que demonstra a importância dos rios para as pesquisas.

Segundo o organizador do livro, por muitos anos os rios foram relegados ao segundo plano ou mesmo esquecidos pela maioria dos historiadores. Na atualidade, em que o campo de estudos da história ambiental vem crescendo consideravelmente, a coletânea organizada por Gilmar Arruda elucida como é edificante ter o rio como tema de pesquisas. As fontes utilizadas são riquíssimas em detalhes sobre o vale dos rios das regiões abordadas e os autores conseguiram expor com clareza os objetivos propostos para a organização da coletânea.

A maior parte dos textos apresentados se deteve às investigações sobre o período imperial brasileiro e dos rios paranaenses. Contudo, a escolha por determinada região ou época não vem com a pretensão de determinar que tal corte seja mais importante para pesquisas do que outros. Na maioria das vezes, os estudos historiográficos na atualidade são feitos por meio de recortes geográficos e temporais específicos, estudando as especificidades em cada abordagem com respaldo teórico e metodológico.

Uma leitura pouco atenta do livro, sem perceber os objetivos de cada autor, poderia levar muitos leitores a entender que a história ambiental apenas quer demonstrar como as intenções e as ações humanas reorganizaram a natureza e a sociedade ao longo do tempo de uma forma negativa, processos esses evidenciados pelos problemas ambientais que hoje enfrentamos. A visão de uma humanidade que só devasta e destrói e que coloca as relações entre o homem e a natureza de forma dualista acaba não percebendo que estas relações também se apresentam de forma construtiva e que o homem é igualmente parte integrante da natureza. Nessa perspectiva, os textos vão além das discussões sobre a ação antrópica nas águas e revelam que, apesar dos esforços para se construir uma idéia de natureza que atenda aos nossos interesses, ela não pode ser controlada. É preciso refletir sobre nossa postura e nossas ações sobre os rios, pois é na elaboração de um novo imaginário que “as sociedades definem suas identidades e objetivos” e “organizam seu passado, presente e futuro” (CARVALHO, 1998: p. 10). Seguindo o pensamento de Worster, precisamos repensar nossas relações com a água, elaborar outras formas de percepção, quadros mentais e uma nova ética com relação ao pensamento ecológico e histórico. Os rios podem ser mal-utilizados, imaginados, desviados, barrados, sujos e até escondidos pela urbanização, mas eles continuam buscando seguir seu curso e perpetuar o ciclo das águas e da vida. É um equívoco exigir que eles nasçam, corram e deságuem de acordo com nossos projetos. Eles não podem “pensar” como o homem. Como propõe Worster, nós é que precisamos “pensar como os rios” e aprender a respeitá-los em sua natureza.


Referência

CARVALHO, Jose Murilo de. A formação das almas: o imaginário da república no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.


Resenhista

Rute Guimarães Torres – Departamento de História, FAFICH Universidade Federal de Minas Gerais Bolsa Iniciação Científica CNPq. Agradeço ao CNPq e aos colegas do grupo de pesquisa em história e natureza da UFMG, coordenado pela Profa. Dra. Regina Horta Duarte. E-mail: [email protected]

Referências desta Resenha

ARRUDA, Gilmar (org.). A natureza dos rios: história, memória e territórios. Curitiba: Editora UFPR, 2008. Resenha de: TORRES, Rute Guimarães. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 5, n. 9, jan./jun. 2011. Acessar publicação original [DR]

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.