A negação da liberdade: direito e escravização ilegal no Brasil oitocentista (1835-1874) | Gabriela Barreto de Sá

A relação entre os afrodescendentes e o direito na América Latina é bastante complexa: enraizado na violência da escravidão, o direito assumiu papel importante no desgaste do regime escravista; mesmo assim, ainda hoje ele contribui para perpetuar desigualdades sociais.1

O livro de Gabriela Barretto de Sá foi defendido inicialmente como dissertação de mestrado em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina. Trata-se de uma investigação cuidadosa, feita na seara da História Social do Direito, partindo da “análise das noções de justiça e princípios de direitos manejados pelas partes envolvidas nos conflitos” e refletindo “principalmente acerca do tema do exercício de poder ilícito sobre a propriedade de pessoas e a produção de ‘papéis de liberdade’ juridicamente válidos para comprovação da liberdade ou documentos para comprovação da propriedade escrava” (pp. 32 e 34). Conforme escreve Evandro Piza Duarte no prefácio ao livro, trata-se de perceber a “racialização do direito por meio da ‘gestão das ilegalidades’” (p. 25).

A investigação trabalha com fontes judiciais custodiadas pelo Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS) e faz menção ao primoroso trabalho ali realizado por esta instituição que neste ano de 2020 completou dez anos. Trata-se dos Catálogos do APERS, que inventariam os documentos de seu acervo, trazendo uma sistematização de cartas de alforria, inventários, testamentos, processos criminais, documentos de compra e venda, entre outros. Manejando o Catálogo do APERS relativo aos processos criminais, Gabriela Barretto de Sá localizou 67 documentos, selecionando para a análise pormenorizada seis deles relativos a Porto Alegre.

No primeiro capítulo a autora dialoga com o historiador Sidney Chalhoub, principalmente com a análise esmerada que ele realiza da obra do romancista negro Machado de Assis, além de seu livro A força da escravidão (2012), em que especula sobre a “precariedade da liberdade” no Brasil oitocentista. A autora enfatiza a naturalização da suspeita da condição de cativo que gravita em torno dos indivíduos negros no Brasil desse período, dando destaque para os anúncios de fuga publicados nos jornais, nos quais, além da descrição dos indivíduos, se diz que o fujão mudava o nome e dizia-se forro: “Aqui se verifica como, nas relações cotidianas daquela sociedade, a declaração de proprietário deveria bastar para o reconhecimento imediato de propriedade sobre indivíduos, independentemente da existência do justo título legal” (p. 52).

O capítulo 2 apresenta um exercício esmerado de microanálise feito através de um documento judiciário que versava sobre o crime de escravização ilegal praticado contra a parda Porfíria e seus dois filhos. Um dos elementos interessantes no exercício analítico da autora é que ela conduz os leitores e leitoras pelos meandros da própria montagem do documento judiciário, sem adiantar o que nos espera a cada passo do andamento do processo. Somos levados a acompanhar a busca de uma família negra por liberdade, no caso, Porfíria e seus filhos Lino e Leopoldino, na qual investiram suas posses e energias o pai dela e o pai de um de seus filhos.

Trata-se de um caso exemplar, que começou com a denúncia de um promotor público imbuído das atribuições que lhe cabiam segundo o Código de Processo Criminal de 1832. Foram muitas idas e vindas, com a confecção de três cartas de liberdade, promessas de alforrias condicional e paga. O protagonismo dessa família, mas especialmente de Porfíria, ajuda a entender o tensionamento do campo judiciário feito por escravizadas que almejavam defender os frutos de seu ventre e o livre exercício de sua maternidade. Como escreveu a historiadora Camillia Cowling:

os historiadores têm nos revelado muito sobre como a relação das populações escravizadas com as leis foi um fator determinante para a aceleração do processo de emancipação e definidora daquilo que a liberdade viria a significar. As mulheres aparecem diversas vezes nas páginas desses estudos, no entanto sabemos muito pouco sobre suas contribuições específicas para esses processos.2

A tenacidade dos escravizados dialogava com direitos senhoriais costumeiros reconhecidos pelos indivíduos que circulavam pelas esferas do judiciário. Cabia aos escravizados provar que viviam como libertos, já que a escravização de não brancos era quase naturalizada socialmente, fragilizando sobremaneira o exercício da liberdade.

A segunda carta de alforria que beneficiaria Porfíria foi, surpreendentemente, destruída pela própria escravizada beneficiada. Isso serve para a autora traçar interpretações sobre a relação entre Porfíria e a escrita (os papéis de liberdade e de escravidão), o judiciário e as políticas senhoriais de dominação. Segundo ela, Porfíria, naquele ato, foi impulsionada pela “certeza da impossibilidade de produção de efeitos do documento” (p. 98). Colada a isso, havia a consciência de Porfíria de que o senhor que redigira aquele documento de liberdade não gozava da confiança dela e de sua família, sendo na verdade cúmplice da sua escravização ilegal e de seus filhos. Tratava se, assim, de um ato – a destruição da carta – que demarcava uma opinião desabonadora contra um sujeito que a enganou e que ela, na leitura que fazia dos seus potenciais aliados, o descartara de suas redes sociais e políticas. A historiadora aventa uma descrença mais generalizada ainda de Porfíria a respeito dos tais “papéis de liberdade”, uma “descrença no poder dos papéis escritos para garantir a saída do cativeiro. Como os documentos não se produziam sozinhos, talvez a vida no cativeiro a tivesse ensinado a não confiar naqueles que os escreviam” (p. 107).

O capítulo 3 investiga quatro processos, sendo um deles sobre o último desembarque clandestino conhecido de escravizados no litoral norte gaúcho, ocorrido em abril de 1852. Novamente a autora aciona a lei antitráfico de 7 de novembro de 1831, mostrando como ela, mesmo que não tenha restringido drasticamente a entrada no Brasil de africanos escravizados, estava distante de ser apenas uma “lei para inglês ver”. O desembarque do patacho Palmeira, de nacionalidade desconhecida, ocorreu na região de Capão da Canoa, na época chamada de Capão da Negrada.

O outro caso exemplar manejado pela autora ocorreu já na década de 1870, quando dois escravizados, Pedro e Moysés, foram enviados para a Corte do Rio de Janeiro para serem vendidos, sendo lá apreendidos pela polícia e obrigados a retornar para o sul, isso em 15 de outubro de 1874. Eles eram dois dos doze filhos tidos em cativeiro ilegal pela preta Izabel, desembarcada ilegalmente nas praias do Rio Grande do Sul e que desde 1858 demandava na justiça a sua liberdade. Assim como Porfíria, Izabel tinha muitos motivos para duvidar da justiça dos brancos e, mesmo sendo colocada em depósito, tratou de fugir, sendo capturada e colocada em “cativeiro público”, ou seja, recolhida à cadeia, instância habitual aos escravizados e escravizadas que reivindicavam seus direitos à liberdade (p. 140).

A desesperança de Izabel com a justiça foi plenamente justificada, quando no ano seguinte, 1859, ela foi devolvida ao seu senhor, o qual, percebendo que ela não desistiria de seus direitos e que isso comprometeria a sua segurança e a plena execução do que esperava daquela mulher negra injustamente mantida em cativeiro, vendeu-a para o Rio de Janeiro, afastando-a assim de seus filhos.

Em 1874, o falso senhor de Izabel, de sobrenome Quaresma, usou da mesma alternativa ao vender dois filhos de Izabel para o mesmo destino. Novamente o motivo foi a resistência escrava, que causou insegurança no já sexagenário algoz da família de Izabel. Um ex-escravizado da família Quaresma, Frutuoso, assassinou um membro da família senhorial e esse crime provocou a insubmissão de Moyses e seu irmão Pedro, os quais se tornaram “altaneiros”, sendo Pedro encontrado com um revólver. O retorno dos dois irmãos injustamente escravizados para a província de São Pedro do Rio Grande do Sul apavorou aquela família senhorial, que alertava a justiça para a possibilidade de sofrer uma violência. Mesmo que os irmãos tivessem sido criados por sua mãe com a memória da escravização ilegal, “por ter sido achada na praia”, os autos conduziram a uma absolvição do escravizador por falta de provas.

O último caso de escravização ilegal nos leva à fronteira mais meridional do Império brasileiro. A constituição das “porosas” fronteiras sulinas, cheia de idas e vindas, fez com que elas fossem “manejadas” pelos indivíduos que as devassavam, de forma diferenciada.3 Muitos proprietários sul-rio-grandenses possuíam terras na Banda Oriental do Uruguai, nas quais rebanhos eram cuidados por trabalhadores de diferentes status, incluindo muitos escravizados. A guerra civil que assolou o Uruguai de 1831 a 1851 gerou o fim da escravidão por dois dispositivos legais, um em 1842 e outro em 1846. Assim, constituiu-se um território vizinho onde a escravidão não mais existia e onde fazendeiros escravistas gaúchos tinham terras.4

Este foi o agravante da escravização ilegal do menino Carlos, nascido no Uruguai e trazido criança para o Brasil meridional, onde o seu nascimento livre foi esquecido e ele ilegalmente escravizado. O sumiço de seu escravizador e a localização do documento eclesiástico de seu batismo como livre garantiu, ao mesmo tempo, a liberdade de Carlos e a absolvição do criminoso que o escravizara ilegalmente.

Trata-se, portanto, de um livro que versa sobre experiências de resistência de escravizados e escravizadas no campo judiciário no Oitocentos. Se a maioria dessas histórias não tiveram desfecho positivo para os ilegalmente escravizados, certamente tensionaram a jurisprudência imperial. O livro ora resenhado aborda várias fronteiras, sejam elas político-geográficas ou aquelas que se estabeleceram como resultado do protagonismo das e percepções (costumeiras e legais) sobre escravidão e liberdade. Através do diálogo entre juristas e historiadores, a autora ajuda a debater e descredenciar a “memória branca” da região sul.


Notas

1 Brodwyn Fischer, Keila Grinberg e Hebe Mattos, “Direito, silêncio e racialização das desigualdades na história afrobrasileira” in George Reid-Andrews e Alejandro de la Fuente (orgs.), Estudos afro-latino-americanos, uma introdução (Buenos Aires: CLACSO, 2018), pp. 163-215.

2 Camillia Cowling, Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e a abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro, Campinas: Editora Unicamp, 2018, p. 24.

3 Mariana F. C. Thompson Flores, “Crimes de Fronteira: a criminalidade na fronteira meridional do Brasil (1845-1889)”, Tese (Doutorado em História), Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012; Flores e Luiz Augusto Farinatti, “A fronteira manejada: apontamentos para uma história social da fronteira meridional do Brasil (século XIX)” in Flavio Heinz (org.), Experiências nacionais, temas transversais. Subsídios para uma história comparada da América Latina (São Leopoldo: Oikos, 2009), pp. 145-177.

4 Ver, por exemplo, Alex Borucki, Karla Chagas e Natália Stalla, Esclavitud y trabajo: un estudio sobre los afrodescendientes en la frontera uruguaya (1835-1855), Montevideo: Pulmón Ediciones, 2004


Resenhista

Paulo Roberto Staudt Moreira – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. https://orcid.org/0000-0003-1286-2874


Referências desta Resenha

SÁ, Gabriela Barreto de. A negação da liberdade: direito e escravização ilegal no Brasil oitocentista (1835-1874). Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2019. Resenha de: MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Liberdade negada. Afro-Ásia, n. 63, p. 580-585, 2021. Acessar publicação original [DR/JF]

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