A revolta da vacina: mentes insanas em corpos rebeldes | Nicolau Sevcenko

O ano de 2020 foi marcado pelo início da pandemia do coronavírus. A disseminação do vírus ao redor do globo culminou em milhões de mortes e uma quantidade enorme de enfermos devido à rápida disseminação do vírus numa sociedade complexa e globalizada. Além do quadro sanitário extremamente grave, a pandemia impactou de maneira extremamente brusca a economia mundial causando uma série de mudanças econômicas, renovando os hábitos de consumo e alguns setores econômicos adotando o home-office, quando possível. Escolas e universidades foram fechadas em diversas localidades no mundo para tentar frear a curva de contaminação do vírus.

Com este grave cenário social e econômico, a expectativa por uma vacina foi extremamente alta, visando minimizar ao máximo os impactos da pandemia. Como outrora, doenças como a varíola, poliomielite e o tétano, conseguiram ser controladas graças a processos de vacinação em massa.

Dado esse cenário, episódios históricos passaram a ser rememorados pela comunidade histórica durante a pandemia da COVID-19, como a gripe espanhola de 1918 e a gripe asiática na década de 1950 foram lembradas como momentos de adversidades pandêmicas que a humanidade já enfrentou ao longo de sua história. Um livro para entender um momento histórico de grave quadro sanitário no Brasil, é A Revolta da Vacina: Mentes insanas em corpos rebeldes do historiador, professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e colunista do jornal paulista Folha de São Paulo, Nicolau Sevcenko. O autor tem como escopo o evento da Revolta da Vacina, uma rebelião ocorrida na então capital federal Rio de Janeiro, em meio a um surto de varíola ocorrida no ano de 1904 sob a presidência do paulista Rodrigues Alves. Nicolau foca-se nos choques e embates travados pelos principais atores políticos da revolta. Para retratar o momento, Nicolau adotou como fonte diversos jornais da época e a produção literária que remetia ao cotidiano carioca na virada do XIX para o XX.

No livro, Sevcenko rememora alguns dos fatos que culminaram na turbulenta semana que causou uma séria instabilidade no governo de Rodrigues Alves e que continha ares de ruptura institucional. A obra conta com cento e trinta e seis páginas composta por quatro capítulos, além de uma conclusão do acontecimento histórico elaborada pelo autor. Inicia-se o livro rememorando o forte contexto de oposição presente no governo de Rodrigues Alves, que já se inicia desgastado por ser herdeiro político do ex-presidente, também paulista, Campos Salles, que redirecionava boa parte da máquina pública brasileira aos interesses dos cafeeiros paulistas em detrimento de outros setores econômicos, como o industrial e o de serviços. Essa predileção por governar com a máquina estatal para este segmento do empresariado – da qual Campos Salles compunha – terminou com um governo inadimplente com os empréstimos públicos feitos por Salles e impopular sendo encerrado por um forte coro de vaias em sua saída do Rio de Janeiro.

Com um início de gestão já desgastado, Rodrigues Alves no seu segundo ano de governo, teve de enfrentar o difícil momento que o país atravessava graças a um surto de varíola. Como o Rio de Janeiro, era a cidade mais moderna do país e a capital federal no contexto, além de responsável por boa parte do escoamento dos produtos brasileiros para o exterior – e também de recebimento de importações – a cidade foi fortemente atingida pela disseminação da doença viral. Visando diminuir os impactos da doença na cidade, o governo ancorou-se no uso da vacina como a saída segura para o controle da doença no município, assegurada na figura do respeitado médico sanitarista Oswaldo Cruz.

Porém, como indicado por Sevcenko, no momento havia uma forte oposição ao governo de Rodrigues Alves. A oposição, embora acreditasse no benefício da vacina, era contrária a maneira ‘autoritária’ que o governo defendia a aplicação da vacina. Porém, Sevcenko, demonstra que nomes de notórios ilustrados como o de Rui Barbosa, que temiam algum efeito colateral que a vacina pudesse exercer. Tentando obstruir a obrigatoriedade da vacinação, a oposição passou a criar emendas sobre a lei e atrasando sessões para que o projeto governista fosse descartado. Pela vontade de fazer a lei funcionar, Rodrigues Alves toma uma medida drástica de impor a lei de maneira unilateral. Sobre o acontecimento, Sevcenko, adiciona:

O regulamento era extremamente rígido, abrangendo desde recém nascidos até idosos, impondo vacinações, exames e reexames, ameaçando com multas pesadas e demissões sumárias, limitando os espaços para recursos, defesas e omissões. O objetivo era uma campanha massiva, rápida, sem quaisquer embaraços e fulminante: o mais amplo sucesso, no mais curto prazo. Não havia qualquer preocupação com a preparação psicológica da população, de quem só se exigia a submissão incondicional. Essa insensibilidade política e tecnocrática foi fatal para a lei da vacina obrigatória. Infelizmente, não só para ela. (Sevcenko, 2018, p.10)

Essa falta de sensibilidade política abriu caminho para que a oposição radicalizasse contra as medidas tomadas por Rodrigues Alves e seu corpo técnico, na figura de Oswaldo Cruz. A população carioca, foi à rua protestar contra essa medida do governo presidencial, organizando uma série de protestos com piquetes e obstrução de vias públicas, destruindo patrimônio público como bondes, luminárias, delegacias e repartições públicas. Aproveitando-se do momento de insurreição por parte da população, um grupo de militares tentou depor o presidente Rodrigues Alves por meio de um levante golpista. Porém, o movimento foi sufocado pelo governo garantindo a permanência de Alves na presidência e a punição dos desertores.

Com o movimento tendo sido sufocado dentro do próprio corpo estatal, o governo passa a se concentrar em reprimir os manifestantes, que faziam uma resistência muito aguerrida contra o governo e de difícil dispersão. Para tentar um ultimato contra os revoltosos, o governo usa outras forças do poder estatal de força, como o Exército e a Marinha para conseguirem reprimir os revoltosos. Esse forte processo de repressão aos manifestantes condicionou para uma quantidade considerável de mortos pelo Estado, além de centenas de prisões. Apesar de reprimido, o movimento conseguiu que a opinião pública fosse empática aos manifestantes e as perdas humanas e de patrimônio da cidade, fazendo com que houvesse certa comoção em relação ao movimento. Dado esse novo desgaste na opinião pública, o governo retira a lei de obrigatoriedade pela vacina tornando-a facultativa.

Um dos pontos mais interessantes na leitura de Sevcenko está na fuga dos estereótipos em torno do movimento, que em muitas vezes é associada com a uma “ignorância média” da população carioca nesse período, que não aceitava os “avanços da civilidade”, conclusão marcada até mesmo pelo nome em que o movimento se torna conhecido.

Para além dessa desconstrução do estereótipo, Sevcenko explora o outro lado da aparente “boa vontade” entre o governo federal e o prefeito Francisco Pereira Passos, que usavam a retórica do combate da varíola para aproveitar e promover o higienismo no município. As condições sanitárias da cidade do Rio de Janeiro eram extremamente atrasada em diversos segmentos da vida urbana, como é o caso do saneamento básico.  Essa falta de infraestrutura e higiene é um cenário extremamente propício para o surto de uma série de doenças. A cidade precisava passar por uma série de mudanças na área de infraestrutura pública para prevenir novas doenças. Com essa narrativa de preocupação com o sanitarismo da cidade e a saúde da população, o governo de Rodrigues Alves aproveita-se dessa retórica para um processo de modernização da cidade – porém que excluiria uma parcela considerável da sociedade carioca.

Com o intuito de demonstrar os problemas de modernização da sociedade, Sevcenko usa a questão do porto do Rio de Janeiro para elucidar a situação da infraestrutura brasileira nesse contexto:

Na realidade, não bastava que a nação estivesse pacificada sob o poder civil, como conseguiu Prudente de Morais, ou que estivesse com as finanças recuperadas, conforme o esforço de Campos Sales, para que os capitais e recursos estrangeiros afluíssem abundantemente ao Brasil. Havia ainda outros obstáculos, e de igual monta, que entravavam o livre acesso dos estrangeiros ao nosso meio, e o dos nossos investidores aos seus recursos. O primeiro deles era sem dúvida o porto do Rio de Janeiro. Apesar de ser o porto mais importante do país, e o terceiro em movimento de todo o continente americano, ele apresentava ainda uma estrutura antiquada e restrita, absolutamente incompatível com a sua situação de pólo energético e catalisador de toda atividade econômica nacional. Os limites do cais e a pouca profundidade impediam a atracação dos grandes transatlânticos internacionais, que ficavam ancorados ao largo, obrigando a um complicado, demorado e custoso sistema de transbordo das mercadorias e passageiros para embarcações menores. (Sevcenko, 2018, p.31)

Melhorar a infraestrutura do porto em si, resolveria apenas um dos gargalos da logística da cidade. Esta melhoria só faria sentido se dialogasse com o restante do município, com melhorias nas ruas e avenidas. Como anteriormente citado, a retórica de melhorias no âmbito sanitário é utilizada para fazer grandes reformas estruturais na cidade. Sevcenko demonstra que as avenidas centrais do município foram alargadas, pensadas como alamedas dialogando arquitetonicamente com cidades europeias como Paris. Esse alargamento das avenidas tornaria muito mais difícil o uso de piquetes, trincheiras urbanas e obstruções por inviabilizando essa tática dos manifestantes.

Para que essa mudança urbanística na cidade do Rio de Janeiro ocorresse, uma série de demolições e desapropriações foram necessárias, especialmente das populações tradicionais menos abastadas da região central que se concentravam em cortiços e pensões voltadas para população de menor poder aquisitivo. Esse novo projeto culminou com o processo de periferização de uma parte considerável da população tradicional do centro carioca, trazendo um processo de higienismo marcado por interesses da especulação imobiliária. Esse olhar de Sevcenko sobre o higienismo da cidade do Rio de Janeiro dialoga até hoje com os problemas e desigualdades encontrados no município, como a submoradia, déficit habitacional e a própria especulação imobiliária.

Neste breve trabalho de Nicolau Sevcenko, publicado originalmente no ano de 1984, o livro trata de vários assuntos pertinentes como citados ao longo do artigo. Sevcenko consegue perseguir ao longo de seu texto os impactos de uma breve semana de 1904 e seus efeitos ao longo das últimas décadas na formação da história brasileira sem galgar-se de estereótipos e generalismos, utilizando como fontes documentais jornais e literatos como Lima Barreto, Machado de Assis e Monteiro Lobato. Um trabalho importante para não só interpretar o movimento histórico, mas também compreender a repressão do Estado de um movimento social durante a República Velha e entender uma das origens da atual configuração da cidade do Rio de Janeiro. Com isso, a obra consegue contribuir com um novo olhar dentro da historiografia sobre o evento da Revolta da Vacina e o governo de Rodrigues Alves, além de permitir uma leitura sobre a organização urbanística carioca, permitindo além de olhar o fato principal da revolta popular, outras perspectivas da vida urbana que possuem impacto até os dias contemporâneos.

Referências

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SEVCENKO, N. A revolta da vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. SciELOEditora UNESP, 2018.


Resenhista

Danilo Mendonça – Estudante de graduação na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

SEVCENKO, Nicolau. A revolta da vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Editora UNESP, 2018. Resenha de: MENDONÇA, Danilo. O fenômeno da revolta da vacina na visão de Nicolau Sevcenko. Mandurarisawa. Manaus, v.5, n.2, p.445-450, 2021. Acessar publicação original [DR]

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