A revolta da vacina: mentes insanas em corpos rebeldes | Nicolau Sevcenko

O ano de 2020 foi marcado pelo início da pandemia do coronavírus. A disseminação do vírus ao redor do globo culminou em milhões de mortes e uma quantidade enorme de enfermos devido à rápida disseminação do vírus numa sociedade complexa e globalizada. Além do quadro sanitário extremamente grave, a pandemia impactou de maneira extremamente brusca a economia mundial causando uma série de mudanças econômicas, renovando os hábitos de consumo e alguns setores econômicos adotando o home-office, quando possível. Escolas e universidades foram fechadas em diversas localidades no mundo para tentar frear a curva de contaminação do vírus.

Com este grave cenário social e econômico, a expectativa por uma vacina foi extremamente alta, visando minimizar ao máximo os impactos da pandemia. Como outrora, doenças como a varíola, poliomielite e o tétano, conseguiram ser controladas graças a processos de vacinação em massa. Leia Mais

A escola dos Annales (1929-1989): a revolução francesa da historiografia | Peter Burke

O escritor Peter Burke é um historiador inglês, que trabalha com história cultural na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, é doutor pela Universidade de Oxford. Exerceu o cargo de docente na área de História das ideias na School of European Studies, na Universidade de Essex, lecionou ainda nas universidades Sussex (1962), Princeton (1967) e realizou trabalho como professor visitante no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA – USP) (1994- 1995). É autor de diversas obras, por exemplo, O que é história cultural? A escrita da história: novas perspectivas; Testemunha ocular: o uso de imagens como evidência histórica, entre outras produções. Leia Mais

Estudos sobre a personalidade autoritária | Theodor W. Adorno

Theodor W. Adorno Imagem DW
Theodor W. Adorno | Imagem: DW

A ascensão de movimentos de extrema-direita antidemocráticos pelo mundo trouxe consigo a edição e reedição de diversos livros sobre autoritarismo. Entre esses, o clássico de Theodor W. Adorno em conjunto com outros pesquisadores, Estudos sobre a personalidade autoritária, traduzido competentemente pela primeira vez para o português em edição da Editora UNESP. Apesar de seus mais de 50 anos, a edição em português veio em boa hora: o livro é peça essencial para se compreender fenômenos que não morreram em 1945, como o fascismo e o antissemitismo. Não sem motivo foi tema de mais de “2 mil estudos sobre autoritarismo entre os anos de 1950 e 1990”1.

Estudos sobre a personalidade autoritariaUm projeto que teve início ainda durante a Guerra, com um grupo em grande parte composto por exilados, Personalidade autoritária se baseia em duas premissas básicas: o fascismo não é exclusivo da Alemanha e existem aspectos sociais e psicológicos que favorecem sua ascensão. Para realizar isso, mescla vários campos do saber. Da mesma forma que o próprio Adorno o era, este livro trafega na interdisciplinaridade, de uma forma que seu conteúdo é útil e recomendável a qualquer pesquisador interessado no pensamento da direita/extrema-direita, seja um psicanalista, um cientista político, um sociólogo, entre outros. Leia Mais

Uma latente filosofia do tempo | Reinhart Koselleck, Hans Ulrich Gumbrecht e Thamara de Oliveira Rodrigues

Com exceção ao clássico Crítica e crise e do menos conhecido Preußen zwischen reform und revolution [Prússia entre Reforma e Revolução], frutos de teses defendidas em 1954 e 1965, a obra do historiador Reinhart Koselleck é marcada por um caráter fragmentário, com artigos inicialmente publicados em revistas científicas e depois reunidos em coletâneas como Futuro Passado (1979), Estratos do Tempo (2000), História de Conceitos (2006) e Vom sinn und unsinn der geschichte, antologia póstuma organizada por Carsten Dutt em 2010. Há ainda os verbetes escritos para o Geschichtliche Grundbegriffe, o famoso dicionário de conceitos históricos do qual Koselleck foi também editor, entre 1972 e 1997. No Brasil, certa indiferença inicial pela sua obra foi seguida de um grande interesse. A Editora Contraponto publicou traduções completas de Crítica e crise (1999), Futuro passado (2006), Estratos do tempo (2014), e, mais recentemente, História de conceitos (2020). Em 2019, a Autêntica também publicou O conceito de História, retirado do segundo volume do dicionário (1975). Leia Mais

Perdas e ganhos: exilados e expatriados na história do conhecimento na Europa e nas Américas, 1500-2000 | Peter Burke

Em Perdas e ganhos: exilados e expatriados na história do conhecimento na Europa e nas Américas, 1500-2000, o historiador inglês Peter Burke retoma temáticas já aventadas em seus estudos anteriores, buscando discutir as contribuições de sujeitos exilados e expatriados para a história do conhecimento. Publicada em 2017 pela editora Unesp, a obra procura compreender os impactos sociais e culturais da migração em diferentes contextos, espaços e motivações. O autor – professor emérito da Universidade de Cambridge e autor de obras como Cultura popular na Idade Moderna: Europa, 1500-1800, A fabricação do rei: a construção da imagem pública de Luís XIV e Testemunha ocular – é reconhecido por suas pesquisas na área de História Moderna, História da Mídia e História Cultural. Em sua mais recente publicação no Brasil, o historiador parte de conceitos como trânsitos culturais, mediações, transculturação e hibridismo para compreender o local social desses sujeitos.

Apesar de reunir reflexões e conferências apresentadas pelo autor em diferentes momentos de sua carreira, o livro não é apenas uma obra motivada pela pesquisa acadêmica. Na apresentação da obra, o historiador destaca que muitas das questões levantadas e o foco nas noções de “exilados” e “expatriados” vieram de sua trajetória pessoal e de contatos durante a formação e atuação profissional com sujeitos que se identificavam com uma ou ambas as categorias. Apesar do recorte temporal e espacial bastante extenso – quase 500 anos de trajetórias de indivíduos migrantes –, a obra elenca temas centrais e algumas trajetórias em específico, focando nos sujeitos e em suas contribuições e/ou enfrentamentos muito mais do que na visão totalizante da história. Leia Mais

Instrução pública e projeto civilizador: o século XVIII como intérprete da ciência, da infância e da escola | Carlota Boto

Com análise acurada e aprofundada pesquisa, Carlota Boto ofereceu ao público leitor um estudo atento acerca de temas fundamentais para a História da Educação, como as concepções de ciência, infância e escola. O livro Instrução pública e projeto civilizador é resultado da tese de livre-docência da autora, defendida em 2011, na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, e publicada em 2017, pela Editora Unesp.

A pesquisadora é reconhecida pelas discussões e trabalhos que desenvolve no campo da História da Educação no Brasil. Pedagoga e historiadora, mestre em Educação e doutora em História Social, Carlota Boto é atualmente Professora Titular da Faculdade de Educação da USP (FEUSP). Entre seus diversos livros, capítulos e artigos publicados em periódicos, merece destaque A escola do homem novo: entre o Iluminismo e a Revolução Francesa, publicado pela Editora Unesp, em 1996.

Em Instrução pública e projeto civilizador, a autora desenvolveu uma análise sobre alguns dos pensadores do século XVIII que se preocupavam com questões muito proeminentes à sua época, relativas, sobretudo, às ideias de aprimoramento da vida em sociedade e de construção de um novo modelo sociopolítico. O objetivo principal do estudo foi identificar esses sujeitos como intelectuais e homens de saber que atuaram na esfera pública propondo ideias e discutindo questões complexas, no interesse último de lançar as bases para a nova sociedade que se forjava naquele período (BOTO, 2017). Uma das discussões que atraíram a atenção desses intelectuais com mais vigor, como demonstrado no livro, dizia respeito à instrução pública e seu papel civilizador na sociedade moderna.

Do objetivo traçado na pesquisa que deu origem ao livro emergiu uma categoria conceitual que teve importância fundamental no desenvolvimento de toda a análise: a noção de intelectual. Em vista da relevância do conceito, Carlota Boto dedicou um preâmbulo especialmente para discuti-lo. A partir de um esforço teórico, a autora buscou arregimentar diversas conceituações acerca da figura do intelectual na história, mobilizando autores que se ocuparam desse tema, desde o século XVIII até os dias atuais. Assim, as concepções construídas a partir das reflexões de Julian Benda, Max Weber, Norberto Bobbio, Antonio Gramsci, Jean-Paul Sartre e Edward Said, com seus encontros e desencontros, foram articuladas visando definir o que a historiadora chamou de “modo de ser iluminista” (BOTO, 2017, p. 23). Este modo de ser, no que se diz respeito aos homens de letras cujas obras foram analisadas no livro, se caracterizava por uma atitude ativa perante a esfera pública. Os escritores no Iluminismo se constituíam, para a autora, como intérpretes e analistas de seu próprio tempo (BOTO, 2017).

A partir dessa base teórica, a pesquisadora transcorreu pelos vários textos e autores ilustrados que formaram a matéria prima do seu estudo. Todos os letrados analisados foram compreendidos como representantes do “modo de ser iluminista”, empenhados na construção de alternativas para os problemas políticos e sociais.

Instrução pública e projeto civilizador é composto por três grandes capítulos, subdivididos em vários tópicos, nos quais a autora, com escrita fluída e narrativa coesa, analisou a produção de pensadores iluministas, articulando-a ao contexto político e cultural do século XVIII. De forma sutil e indireta, cada um dos capítulos revela, num nível mais profundo, um estudo sobre as três categorias que formam o subtítulo do livro: ciência, infância e escola.

Na primeira parte, intitulada Iluminismo em territórios pombalinos: a formação de funcionários como alicerce da nação, Carlota Boto tomou como objeto de pesquisa a produção de três autores portugueses que, segundo ela, construíram suas reflexões tendo como base as experiências filosóficas iluministas: D. Luís da Cunha (1662-1749), António Nunes Ribeiro Sanches (1699-1782) e Luís António Verney (1713-1792). O objetivo principal da autora foi apontar para a intrínseca relação entre as ideias pedagógicas e científicas desses intelectuais e o projeto de reforma do Estado português, empreendido por Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, Secretário de Estado dos Negócios do Reino de Portugal, a partir de 1759.

O argumento central do capítulo é a afirmação de que ação estatal dirigida pelo Marquês de Pombal, especialmente no que tange à educação e à ciência, foi referenciada nas reflexões teóricas dos autores iluministas em foco no estudo. Assim, para a autora, analisar a obra desse grupo de letrados corresponde a investigar parte das diretrizes e orientações centrais da pedagogia encampada e difundida pelo Estado português sob a direção de Pombal.

Para a realização da análise, foram mobilizados dois grupos de fontes. O primeiro é composto por livros e tratados dos três homens de letras estudados pela pesquisadora. Já o segundo conjunto abarca documentos relativos às reformas pombalinas na Universidade de Coimbra, como o Compêndio histórico do estado da Universidade de Coimbra (1771) e os Estatutos da Universidade de Coimbra (1772). O último, conforme a autora, pode ser considerado “o principal arcabouço da modernidade portuguesa do século XVIII em matéria de educação” (BOTO, 2017, p. 150).

A primeira parte do estudo apresenta, assim, uma discussão ampla a respeito de temas variados. A análise se deteve sobre o pensamento de cada um dos autores em foco, de maneira atenta e específica. Além disso, a historiadora se debruçou sobre a organização da escola pública traçada pelo Marquês de Pombal, bem como sobre a reformulação dos cursos e da estrutura da Universidade de Coimbra. Contudo, merece destaque o fato de que toda a narrativa esteve marcada por uma assertiva comum e sempre presente. Tratase da afirmação de que o pensamento dos iluministas portugueses e as reformas pombalinas favoreceram a elevação do alicerce central que conduziu o movimento de modernização em Portugal durante o século XVIII, qual seja, a ciência moderna pautada pela secularização, pela racionalização e pela ampliação do papel do Estado nos campos acadêmicos.

Na segunda parte do livro, a pesquisadora dedicou-se ao estudo da obra de outro importante personagem do Iluminismo, Jean-Jacques Rousseau. Intitulado Política e pedagogia na arquitetura ilustrada de Rousseau, o segundo capítulo teve por objetivo analisar os escritos do filósofo buscando identificar a correlação entre seu pensamento político e suas ideias pedagógicas. Segundo o argumento central, Rousseau representa a síntese da sensibilidade social que marcou o período da Ilustração na Europa. Para a autora, sua doutrina política e pedagógica passou a representar um marco fundamental na organização do mundo político e social engendrado pelo Iluminismo, tendo grande influência nas práticas educativas. Nesse sentido, o intelectual francês seria um “autor primordial para se compreender a moderna acepção de criança” (BOTO, 2017, p. 182).

Para a efetivação dessa análise, Carlota Boto se propôs a realizar uma revisão bibliográfica dos escritos do teórico, dando ênfase a sua literatura pedagógica. Paralelamente, a pesquisadora buscou refletir sobre aspectos biográficos do autor do Emílio, apontando para um entrelaçamento entre sua vida e obra. Assim, foram colocados em foco, diversos textos publicados por Rousseau, em diferentes momentos de sua vida, dentre os quais o Discurso sobre as ciências e as artes (1749), o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1755), as Considerações sobre o governo da Polônia e sua projetada reforma (1772) e – a principal delas – o Emílio (1762).

Na investigação, foram retomados alguns dos temas principais do pensamento rousseauniano, já amplamente discutidos pela historiografia, como o do “estado de natureza” e o da crítica ao processo civilizador. Entretanto, a análise empreendida foi além das discussões consideradas clássicas e se baseou em um mote principal: a ideia de infância. O grande acerto do argumento que orienta a narrativa reside na identificação da ligação estreita entre a compreensão política e as ideias pedagógicas de Rousseau. A partir dessa perspectiva, a autora alcançou uma discussão mais profunda sobre a importância da educação para o modelo de sociedade proposto na literatura iluminista.

Uma das assertivas principais, nesse sentido, aponta para a existência de uma crítica ao modelo pedagógico vigente no século XVIII, isto é, o modelo jesuítico. Segundo a autora, no julgamento que Rousseau empreende a respeito do processo civilizador, a afetação dos costumes é compreendida como a responsável pelo afastamento do ser humano da perfectibilidade do estado de natureza. A crítica se dirige, conforme esse argumento, também à educação praticada nos colégios da época, marcados pelo ensino da polidez. O modelo pedagógico dos colégios era apontado pelo intelectual francês como voltado para o cultivo de falsos valores e, assim, responsável pela corrupção do ser humano e da sociedade civil (BOTO, 2017).

Ao analisar a escrita do Emílio, Carlota Boto defendeu que, mais do que um tratado de pedagogia, o livro é voltado para a compreensão da infância como uma das fases principais da vida humana. Segundo a historiadora, naquela obra, a reflexão sobre a idade pueril estava relacionada à possibilidade de entendimento do homem no estado de natureza, uma vez que a criança guardaria os resquícios do que foi o homem natural. Em seu tratado, Rousseau construiu uma análise que põe em destaque a infância como um estágio específico da vida, cuja marca principal é a possibilidade do aprendizado. Esse período da existência humana foi assim alçado à categoria de objeto de investigação para a compreensão da sociedade. A partir dessa operação, o autor do Emílio alcançou novidades importantes para o seu tempo e que seriam definidoras das práticas educativas posteriores, entre as quais se sublinha a definição mais precisa das diferentes fases da vida. Nas palavras da autora, “Rousseau, esticou a infância; ao nomeá-la, ele a prolongou” (BOTO, 2017, p. 261). E essa foi sua contribuição mais original.

O terceiro capítulo de Instrução pública e projeto civilizador, complementando os dois anteriores, é dedicado ao último item que compõe o subtítulo do livro: a escola. Para discutir o tema, a autora se ocupou em investigar a obra de um protagonista da Revolução Francesa, o Marquês de Condorcet. Nessa parte, foi desenvolvida uma análise em conjunto das concepções pedagógicas e da filosofia da história concebida pelo personagem. Novamente, as fontes utilizadas foram as obras do próprio autor, sendo as principais o Esboço para um quadro histórico dos progressos do espírito humano (1795) e as Cinco memórias sobre instrução pública (1791).

De antemão, a historiadora empreendeu uma reflexão acerca das concepções de história e de modernidade presentes no pensamento de Condorcet. O interesse principal foi analisar a doutrina e evidenciar a filosofia da história construída no Esboço, destacando a característica etapista e teleológica do desenvolvimento histórico que marcam a obra. Como herdeiro direto do Iluminismo, o intelectual construiu uma narrativa sobre a caminhada dos homens na história em direção ao aperfeiçoamento e ao progresso. Baseando-se na noção de perfectibilidade humana, tradição do pensamento ilustrado, Condorcet apontou para a capacidade do ser humano de aperfeiçoar a si e ao seu meio através de etapas sucessivas (BOTO, 2017).

Posteriormente, a autora analisou também as ideias pedagógicas do teórico, buscando enfatizar suas reflexões acerca da instrução pública enquanto política de Estado. Segundo o argumento central, a instrução apareceu no pensamento do intelectual francês como materialização de sua filosofia da história. O modelo de escola formulado por Condorcet se organizava por etapas sucessivas, marcadas por um caráter progressivo, e se baseava na crença no aperfeiçoamento humano. Isto é, a escola concebida por Condorcet se orientava pela marcha da humanidade na direção do progresso e do auto aperfeiçoamento. A cada série superada na escolarização, tal qual concebia o autor, o aluno subiria um degrau a mais na escala de aperfeiçoamento pessoal em direção a razão. Desse modo, como aponta a historiadora, havia uma vinculação inseparável entre a filosofia da história do Marquês de Condorcet e seu projeto de fundação da escola moderna. Esta última deveria estar voltada principalmente para o processo de aperfeiçoamento humano que, por sua vez, levaria à construção de uma sociedade melhor pela difusão da razão.

Assim, perpassando temas fundamentais do período da ilustração, Carlota Boto construiu, em Instrução Pública e Projeto Civilizador, uma análise ampla sobre o pensamento pedagógico de letrados iluministas. Além disso, a autora conseguiu inscrever as reflexões destes sujeitos no contexto político e social de fins do século XVIII, no qual a formulação de um novo modelo de sociedade figurava como a principal demanda intelectual.

É necessário ressaltar que, ao longo de todo o estudo, é possível acompanhar o desenvolvimento de um argumento central que demonstra a importância que a educação passou a ter no movimento intelectual iluminista. Esta importância, pelo que se apreende do livro, é ressaltada sobretudo como recurso político. Se o Iluminismo, na Europa, forjou as bases para o rompimento de uma ordem política arcaica e impulsionou a criação de um novo modelo social, Carlota Boto conseguiu demonstrar que a educação representou uma categoria basilar na construção desse projeto.

Ciência, infância e escola, portanto, se articulam no argumento da historiadora como concepções fundamentais para a compreensão não só do pensamento pedagógico engendrado na filosofia iluminista, mas também do projeto político encampado pelos homens de letras naqueles tempos. Tratava-se de um projeto civilizador cuja ferramenta principal a ser utilizada seria a educação.

Referência

BOTO, Carlota. Instrução pública e projeto civilizador: o século XVIII como intérprete da ciência, da infância e da escola. 1. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2017.

Danilo Araújo Moreira – Mestrando em História – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Ouro Preto. Bolsista CAPES.

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Os antigos habitantes do Brasil | Pedro Paulo Abreu Funari

FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Os antigos habitantes do Brasil. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2019. Resenha de: SILVA, Filipe Noe da. Arqueologia para uma outra história do Brasil. Revista Nordestina de História do Brasil. Cachoeira, v. 2, n. 4, p. 243-247, jan./jun. 2020.

Mesmo se considerarmos o abismo provocado pela desigualdade social, ainda nos parece possível afirmar que o vastíssimo (e diverso) universo escolar brasileiro, nos dias atuais, funciona a partir de metodologias e ferramentas de ensino bastante variadas. Apesar da paulatina informatização do ensino, com o uso cada vez mais frequente de videoaulas, canais e redes sociais, as apostilas e livros didáticos de todas as disciplinas ainda constituem suportes informativos de ampla difusão no quotidiano das escolas brasileiras1. Em muitos casos, pode-se mesmo conjecturar que o material didático é o primeiro livro da vida de muitos de nossos estudantes, e permanece como “[…] o principal instrumento do qual se podem valer os professores” 2.

No ensino de História, em particular, os livros didáticos e paradidáticos coexistem com documentos que, a priori, não foram elaborados com finalidades pedagógicas, mas que são empregados na sala de aula para tal fim: filmes, músicas, imagens, fotografias, documentários, obras de arte, poemas e artefatos arqueológicos, com frequência, são convertidos em documentos de grande valia para o estudo da História3. Do mesmo modo, narrativas pessoais e memórias orais, igualmente convertidas em fontes históricas, têm revelado aos(às) jovens estudantes as percepções daqueles e daquelas que, em muitos casos, testemunharam as inúmeras transformações, invenções e rupturas que atingiram suas sociedades no último século4.

São muitas as investigações sobre os discursos históricos apresentados pelos livros didáticos do presente e do passado: além das tradicionais memórias nacionais, temas referentes às questões étnico-raciais, às relações de gênero e ao silenciamento das populações subalternas, em geral, têm colocado em evidência os propósitos políticos e identitários das publicações didáticas mundo afora5.

Como no caso do estudo da Antiguidade, cujos livros didáticos apresentam “[…] anacronismos, erros, simplificações, juízos de valor e, principalmente, falta de atualização dos assuntos tratados” 6, não é raro encontrarmos, em muitos materiais voltados ao ensino da História, narrativas eurocêntricas, elitistas e baseadas em uma perspectiva “civilizadora” dos colonizadores. Dentro dessa perspectiva histórica, como constatou Francisco Silva Noelli7, a experiência dos povos indígenas do Brasil, por vezes, figura de maneira apenas preambular nos livros escolares: “[…] se compararmos o status desses temas com os demais conteúdos do currículo básico de História do Brasil e das Histórias Regionais, facilmente constataremos que eles são irrisórios em termos quantitativos”8.

Apesar de não ser um livro didático stricto sensu9, a segunda edição d’Os antigos habitantes do Brasil, de Pedro Paulo Funari, docente da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), oferece uma alternativa valiosa para o atual ensino da História das populações indígenas do território brasileiro. Em consonância com as teorias sociais pós-colonialistas, sua narrativa constitui uma ferramenta pedagógica fundamental para a superação do senso comum e dos muitos estereótipos racistas e etnocêntricos associados a esses povos. Ao demonstrar, por exemplo, que a ocupação humana no Brasil extrapola os 10 mil anos, a referida publicação coloca em xeque a hipótese, ainda vigente em âmbito escolar, de que não existe História onde inexiste a escrita. Frente à escassez de documentos escritos, por sua vez, o autor recorre à Arqueologia, ao estudo da cultura material produzida de maneira espontânea e quotidiana pelos próprios indígenas.

Reconhecida no Brasil e em âmbito internacional, a trajetória acadêmica do professor Funari promove uma profícua (e original) amalgamação de estudos sobre História Antiga (com ênfase nas camadas populares sob uma perspectiva da História Cultural), Antropologia e Arqueologia: reflexo de uma formação híbrida e da abertura, por parte do autor, ao diálogo e à interdisciplinaridade. Ao converter tal erudição em uma linguagem acessível e agradável aos estudantes de nível Fundamental e Médio, Funari, em seu livro sobre Os antigos habitantes do Brasil, aproxima seus leitores e leitoras de temas particularmente complexos à História e à Arqueologia contemporâneas, tais como a origem das populações ameríndias e as transformações (territoriais, sociais e faunísticas) decorrentes das mudanças climáticas.

A relação entre os seres humanos e o meio-ambiente, fonte fundamental de sobrevivência às populações indígenas, não é apresentada de maneira determinista, como se as populações nativas fossem apenas submissas e passivas frente às imposições da natureza hostil. Ao contrário, com o intuito de evidenciar o protagonismo e a originalidade desses povos, o autor demonstra, de maneira sutil e didática, que atividades como a caça, a coleta e a pesca teriam coexistido com a agricultura no território brasileiro desde antes da chegada dos portugueses.

Devido às escolhas curriculares, é bastante usual nas escolas brasileiras que a agricultura seja apresentada enquanto um apanágio restrito às civilizações localizadas no Crescente Fértil mesopotâmico, e que dali teria se difundido a outros povos e lugares. Nas escolas do estado de São Paulo, por exemplo, o desenvolvimento da agricultura, outrora denominado por Vere Gordon Childe como “Revolução Neolítica”, ou simplesmente a “[…] progressiva utilização de técnicas para a produção de alimento (agricultura e criação de gado) em substituição das técnicas da simples exploração (caça e coleta) de tudo quanto já estava presente na natureza”10 tem integrado, ainda que de maneira subordinada ao tema do “Oriente Próximo”, o grupo de habilidades e competências previstas para o 4º e 6º anos do Ensino Fundamental e à 1ª série do Ensino Médio. Em nenhum dos currículos11 (2010 ou 2019), no entanto, há qualquer referência aos processos de desenvolvimento agrícola ocorridos de maneira independente no continente americano em períodos pré-coloniais, ou noutras localidades do planeta12.

Sobre a chegada dos primeiros seres humanos à América, em particular, o autor apresenta duas hipóteses principais: por um lado, os ameríndios seriam descendentes de asiáticos que teriam atravessado os noventa quilômetros do chamado Estreito de Bering em uma época em que o nível das águas teria sido mais baixo. Por outro lado, devido à presença de restos mortais de indivíduos oriundos da Oceania, outras possibilidades de povoamento, seus limites e incertezas, também são apresentadas de maneira didática e elucidativa. O uso de mapas e ilustrações na explicação das duas hipóteses também constitui uma boa opção pedagógica acerca do tema.

Por meio da cultura material produzida pelos indígenas, Funari demonstra toda a diversidade, autonomia e criatividade das etnias espalhadas pelo Brasil. Entre tupis e marajoaras, a cerâmica, as habitações, os sambaquis, os artefatos líticos e as pinturas, todos ilustrados pelos belíssimos traços de Isabel Voegeli Stever, aproximam alunos e alunas de civilizações complexas e cuja produção material, segundo o próprio autor, nada deixaria a desejar se comparada àquela dos gregos e egípcios da Antiguidade, por exemplo. Sem prescindir do rigor necessário às investigações sobre o passado, os inúmeros artefatos arqueológicos são apresentados em fotografias de alta resolução e suas descrições convidam os(as) estudantes a tecerem suas próprias interpretações sobre esses objetos.

Para além do eventual diálogo com as teorias pós-processualistas da Arqueologia13 e sua respectiva ênfase na subjetividade do conhecimento arqueológico, também julgamos pertinente uma aproximação às considerações do educador Paulo Freire sobre o respeito às formas de conhecimento trazidas pelos(as) discentes como forma de respeito e estímulo à autonomia intelectual:

Por isso mesmo pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à escola, o dever de não só respeitar os saberes com que os educandos, sobretudo os das classes populares, chegam a ela – saberes socialmente construídos na prática comunitária (…). Por que não estabelecer uma “intimidade” entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm dos indivíduos?14

Temas contemporâneos, como a divisão social do trabalho e o protagonismo das mulheres nas sociedades indígenas, ajudam a compor um livro que, embora verse preponderantemente sobre o passado, fá-lo a partir das demandas e reivindicações sociais do tempo presente. Conforme consta na recente Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a compreensão sobre “Os povos indígenas originários do atual território brasileiro e seus hábitos culturais e sociais”15 constitui um objeto de estudo a ser explorado nas aulas de História do 6º Ano do Ensino Fundamental. Se for este, de fato, o documento fundamental que norteará os rumos da educação básica no Brasil durante os próximos anos, o livro Os antigos habitantes do Brasil, uma vez inserido nos currículos estaduais e municipais, parece-nos profundamente necessário e atual, principalmente porque apresenta uma perspectiva democrática e inclusiva sobre a História dos indígenas a todos os estudantes brasileiros.

Notas

1. CHOPPIN, Alain. História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 30, n. 3, p. 549-566, set./dez. 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ep/v30n3/a12v30n3.pdf  Acesso em: 12 abr. 2020; BITTENCOURT, Circe M. F. Ensino de História. Fundamentos e Métodos. São Paulo: Editora Cortez, 2005.

2. SILVA, Glaydson José. Os avanços da História Antiga no Brasil. SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 26., 2011, São Paulo. Anais eletrônicos […]. São Paulo: ANPUH, 2011.

3. BITTENCOURT, op. cit.

4. Sobre este tema, em particular, vide: BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade. Lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz Editor, 1979.

5. CHOPPIN, op. cit., p. 554.

6. SILVA, Semíramis Corsi. Aspectos do Ensino de História Antiga no Brasil: algumas observações. Alétheia: Revista de estudos sobre Antiguidade e Medievo, São Paulo, v. 1, p. 145-155, jan./jul. 2010. Disponível em: https://periodicos.unipampa.edu.br/index.php/Aletheia/article/view/73/62. Acesso em: 12 abr. 2020.

7. NOELLI, Francisco Silva. Resenha: Os antigos habitantes do Brasil. Educ. Soc, Campinas, v. 24, n. 82, p. 341-342, abr. 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302003000100027.  Acesso em: 12 abr. 2020.

8. Ibidem, p. 341.

9. De acordo com Circe Bittencourt, os livros didáticos convencionais estariam sujeitos a interesses editoriais e de mercado: “[…] Como produto cultural fabricado por técnicos que determinam seus aspectos materiais, o livro didático caracteriza-se, nessa dimensão material, por ser uma mercadoria ligada ao mundo editorial e à lógica da indústria cultural do sistema capitalista”. Ver: BITTENCOURT, op. cit., p. 301.

10. LIVERANI, Mario. Antigo Oriente. História, Sociedade e Economia. São Paulo: EDUSP, 2016. p. 71.

11. No antigo currículo (2010), o tema do “Oriente Próximo” integrava os estudos de História do 6º Ano do Ensino Fundamental e 1ª Série do Ensino Médio. Conferir: SÃO PAULO. Currículo do Estado de São Paulo. Ciências Humanas e suas tecnologias. São Paulo: Secretaria da Educação, 2010. Já o novo Currículo Paulista aborda o tema da Agricultura de maneira genérica por meio do objeto de conhecimento: “A ação das pessoas, grupos sociais e comunidades no tempo e no espaço: nomadismo, agricultura, escrita, navegações, indústrias, entre outras”. Cf.: SÃO PAULO. Currículo Paulista. São Paulo, 2019. p. 466.

12. Para uma síntese desses processos, vide: MAZOYER, Marcel; ROUDART, Laurence. História das agriculturas no mundo. Do neolítico à crise contemporânea. Lisboa: Instituto Piaget, 2001. p. 66-67.

13. HODDER, Ian. Interpretación en Arqueología. Barcelona: Crítica, 1994. p. 195; TRIGGER, Bruce Graham. História do Pensamento Arqueológico. São Paulo: Editora Odysseus, 2004. p. 373.

14. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Editora Paz & Terra, 2011. p. 21-22.

15. BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Ensino Fundamental. Brasília: MEC, 2018.

Filipe Noe da Silva –  Doutorando em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Professor das Faculdades Integradas Maria Imaculada (FIMI) Mogi Guaçu, SP, Brasil. E-mail: [email protected]  Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5075-0131

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História da solidão e dos solitários | Georges Minois

A partir da segunda década do século XXI, o “problema” da solidão se manifestou como uma pauta política em diferentes países. A historiadora cultural Fay Bond Alberti (2019), no recente A Biography of Loneliness, afirmou que, para a Inglaterra ter estabelecido um Ministério da Solidão em 2018, é porque esse sentimento, de fato, está cada vez mais associado a malefícios sociais como depressão, abandono e suicídios, um mal “epidêmico”. No Reino Unido e Japão – esse último, lar dos hikikomoris e do kodokushi, respectivamente jovens adultos isolados e a morte solitária de idosos –, a maioria dos questionados em uma pesquisa da Kaiser Family Foundation (2018) consideraram-na mesmo um problema de saúde pública. O próprio trabalho de um historiador exige, voluntariamente, uma incursão reflexiva quando se debruça em livros e documentos, em seus momentos de leitura e escrita. É – pode-se concluir – um ofício cujos períodos de solidão são inerentes e essenciais, sem o qual nada se realiza.

Nos domínios da história cultural e das mentalidades, o historiador francês Georges Minois, ele próprio animado por uma “paixão pela vida solitária”, como relata na introdução, tornou esse sentimento e comportamento seu principal objeto de estudo na obra História da solidão e dos solitários, publicada originalmente em 2013 pela editora francesa Fayard e traduzida para o Brasil em 2019, pela Unesp. A primeira tradução brasileira de uma obra do autor ocorreu em 2003, com História do riso e do escárnio e, desde 2011, seus demais livros dedicados à história das mentalidades, muitos dos quais escritos no final dos anos 1990, estão sendo disponibilizados ao público brasileiro pela mesma editora, como História do ateísmo, traduzido em 2014, e História do suicídio, já em 2018. Leia Mais

Perdas e ganhos: exilados e expatriados na história do conhecimento na Europa e nas Américas, 1500-2000 – BURKE (S-RH)

BURKE, Peter. Perdas e ganhos: exilados e expatriados na história do conhecimento na Europa e nas Américas, 1500-2000. São Paulo: Editora Unesp, 2017. Resenha de: SANTOS, Jair. O conhecimento sem pátria. SÆCULUM – Revista de História, João Pessoa, v. 25, n. 42, p. 222-226, jan./jun. 2020.

Todos os que acompanham a atualidade política sabem que um tema em particular está quase sempre presente no debate público, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos: a imigração. A polêmica discussão é animada não somente pelos jornalistas e atores políticos, com posicionamentos nem sempre apaziguadores, mas também pelos intelectuais. São inúmeros os acadêmicos – filósofos, historiadores, sociólogos, cientistas políticos, juristas – que tentam, através de uma análise mais serena e por meio dos instrumentos fornecidos pela ciência que professam, analisar a imigração como um fenômeno social complexo, com diferentes causas e diversas consequências para a sociedade. O último livro de Peter Burke, fruto de conferências proferidas na Historical Society of Israel em 2015, é um belo exemplo de como um historiador, de quem se costuma esperar apenas um olhar crítico sobre o passado, também pode enriquecer a reflexão acerca de problemas atuais. A obra Perdas e ganhos: exilados e expatriados na história do conhecimento na Europa e nas Américas, publicada em 2017, estuda um tipo específico de imigração: a dos intelectuais que deixaram seu país natal, de modo espontâneo ou forçado, e prosseguiram a sua produção intelectual em outras terras. A partir desse grupo seleto de imigrantes, o autor examina os efeitos do encontro – ou eventualmente do choque – entre duas culturas na produção e difusão do conhecimento. Este é o pressuposto central do livro: a imigração é um fato social de efeitos recíprocos, isto é, tanto os indivíduos que imigram quanto a sociedade estrangeira que os acolhe são de algum modo afetados e transformados pelo intercâmbio que se opera. Está claro, portanto, que o livro refuta o argumento, às vezes invocado em âmbito político, segundo o qual a influência estrangeira é necessariamente nociva para a cultura nacional. Leia Mais

A impostura científica em dez lições | Michel de Pracontal

Tempos atrás, quando eu ainda era ouvido pela Editora Unesp, recomendei que se traduzisse e publicasse um livro instrutivo. Trata-se do volume escrito por Michel de Pracontal: A impostura científica em dez lições. A editora o publicou.

Muitos casos por ele recolhidos de charlatanismo continuam a ser praticados de modo impune. Um deles é saboroso: no debate sobre tema delicado de saúde pública a TV francesa reuniu vários cientistas e uma vidente ou algo assim. Terminado o programa, quem venceu no parecer dos telespectadores? A vidente, claro. Situações iguais são vividas tragicamente agora. Entre os médicos infectologistas e Olavo de Carvalho, quem é preferido pelo “governo”? O sabichão, claro. Leia Mais

As raízes clássicas da historiografia moderna – MOMGLIANO (RETHH)

MOMIGLIANO, Arnaldo. As raízes clássicas da historiografia moderna. São Paulo: editora UNESP, 2019. Resenha de: SÁ, Charles Nascimento de. Historiografia clássica e os caminhos para a história moderna. Revista Expedições: Teoria e Historiografia, Morrinhos, v. 11, jan./dez. 2020.

Conta-nos François Hartog em seu livro “Crer em História” que os anos sessenta e setenta do século XX viram a ascensão do estruturalismo e da virada linguística no campo das ciências Humanas. As ideias de que a fala e a linguagem davam sentido à existência e ao entendimento humano ganharam força nas academias e entre pesquisadores. A noção de relativismo cultural na produção do saber histórico ganhou impulso com o chamado pós-modernismo. No campo da história uma das obras mais impactantes nessa discussão foi o livro “Meta-História” do historiador norte-americano Haydem White. Tendo originado um forte debate sobre o sentido da compreensão histórica e dos limites da escrita e da ciência nessa área, ele gerou forte reação por parte da comunidade acadêmica de Clio.

A primeira grande resposta, e que se tornou base para a contestação das ideias de White, veio do historiador italiano Arnaldo Momigliano. Coube a um artigo por ele escrito servir de base para a defesa do método e da pesquisa em História. Momigliano indicou que a ele “pouco importava que os historiadores usem a metonímia ou a sinédoque, ou qualquer outro tropo, o que importa é que suas histórias devem ser verdadeiras” (HARTOG, 2017, p. 86). Seu artigo foi utilizado por Eric Hobsbawn e Carlo Ginzburg, dentre outros, em produções que estes escreveram em defesa do conhecimento histórico.

Inicia-se essa resenha com uma indicação de Haydem White para chamar atenção da importância do professor Arnaldo Momigliano no campo da historiografia. Tendo cultivado uma formação das mais relevantes e extensas na História ele desenvolveu ampla gama de estudos sobre o método histórico, questões sobre as sociedades da Antiguidade e do Renascimento, bem como análises sobre Edward Gibbon e seu método. Monmigliano foi o que se chamou scholars, isto é, indivíduos possuidores de rara e ampla erudição, com leituras vastas sobre o campo da história e suas áreas correlatas. Foi um dos grandes expoentes da escola italiana ao lado de Croce, Bobbio, Ginsburg.

Este texto reporta-se a análise do livro “As Raízes Clássicas da Historiografia Moderna” publicado no Brasil pela Editora UNESP, com um total de 252 páginas, esta obra contém seis palestras feitas por Momigliano na Universidade de Berkeley na Califórnia na Sather Classical Lectures na década de 1960, nos dizeres do próprio Momigliano a participação nesses encontros “constituem uma célebre ocasião para encontros mais amplos. Tão célebre que já foi dito que um homem faz sua reputação ao ser convidado a ministra-los, e que a perde ao fazê-lo” (MOMIGLIANO, 2019, p. 242). O livro foi anteriormente publicado no Brasil pela editora EDUSC no ano de 2004 e em bom momento vem novamente a público pela UNESP.

Para consecução do volume o autor levou quase vinte anos, entre anotações, reescritas e citações. Os assuntos aí pontuados e discutidos concentram-se em questões sobre a Antiguidade clássica e os estudos sobre o mundo e a civilização grega e romana, sua cultura, sociedade, e, de modo particular, a gênese que estes povos desenvolveram na constituição do saber histórico. Para tal abordagem ganham escopo no livro a análise de diversos historiadores do período, com destaque para Tácito, Tucídides, Heródoto, Plínio – o jovem, Plutarco, dentre outros. Encontra-se aí também a abordagem sobre a importância dos antiquários para a historiografia da época moderna, e seu posterior declínio a partir da sedimentação da história enquanto ciência no século XIX e XX. Finalizando têm-se um estudo sobre a historiografia eclesiástica.

O livro abarca comentários e observações que transitam pelo Império Romano, pelas cidades gregas, pelo mundo persa, turco, Império Bizantino e pelos castelos e mosteiros da Idade Média. Em todas as seis palestras fica evidente as correlações envolvendo a constituição do pensar e do fazer histórico entre gregos e depois romanos e sua conexão com a noção de História que se mantêm ainda hoje.

O primeiro capítulo intitula-se “a historiografia persa, a historiografia grega e a historiografia judaica”. Diferente do que se defendeu entre alguns estudiosos, para Momigliano os gregos reconheciam o caráter não linear na história e não a entendiam como cíclica. Além disso, outro ponto que também sempre foi gerador de polêmicas e atritos foi sobre a contribuição de Heródoto e Tucídides para a história. Em sua análise o autor aponta diferenças e semelhanças entre os dois escritores. Se Tucídides foi sempre visto como mais metódico em seu trabalho, mais realista em sua abordagem, as ideias e temas tratados por Heródoto, muitas das quais cheias de alegorias e fantasias, não significam que ele acreditava naquilo que escrevia, o viés crítico e reservado do “pai da história” na apresentação de muitos de seus relatos é sinal, para Momigliano, de sua apreciação com ressalvas sobre aquilo que escrevia. Outrossim, a influência e importância da historiografia judaica no mundo antigo é aí indicada e discutida.

O livro esclarece, discute, noções e ideias subjacentes aos povos antigos, bem como àqueles do Renascimento adentrando na historiografia moderna. Em todo processo de análise o autor realiza uma metodologia de longa duração no estudo de temas e conceitos subjacentes ao conhecimento histórico. Estes assuntos foram desenvolvidos na Antiguidade, com sua influência se mantendo em debates e questões levantadas a posteriori.

No capítulo intitulado “A tradição herodotiana e tucididiana” ele esclarece que “ao combinar a pesquisa com a crítica da documentação, Heródoto amplia os limites da investigação histórica” (MOMIGLIANO, 2019, p. 69). Para ele o pai da história possuía um humanismo profundo e sutileza em suas reações aos assuntos por ele abordados. Já Tucídides, mais preocupado com seu universo geográfico e sob impactos das questões políticas de seu tempo, entende o passado como chave para compreensão da situação política de sua época afinal “o presente era a base para a compreensão do passado” (MOMIGLIANO, 2019, p. 74).

Outro tema a perpassar as palestras que compõem o livro encontra-se na discussão entre a história e sua escrita. Discorre o autor sobre influências, autores e escolas na produção deste saber. No texto sobre “Fábio Pictor e a origem da história nacional” Momigliano se adensa em uma discussão sobre noções historiográficas partilhadas na Antiguidade pelos judeus, gregos e romanos. Cada grupo é aí inserido dentro de sua filosofia e ideia de história. No universo da palavra, os judeus, que tinham como base a escrita para aceitação de sua fé, representaram um dos grandes vetores na produção do saber histórico no mundo antigo, até que, devido ao entendimento de que tudo já havia sido dito, sua produção histórica definhou.

Coube a gregos e romanos a continuidade dessa discussão. Entre os romanos, diversos historiadores se consagraram ao entendimento da história de Roma e seus feitos. Entre estes estava Quinto Fábio Pictor, cujas obras evidenciaram a influência da cultura grega no mundo romano. Ele foi um dos responsáveis por trazer essa influência para aqueles que em Roma se dedicavam aos estudos de Clio. No entanto, isso não foi o mais significativo neste autor. O que realmente chamava atenção em seus textos era que ele os escrevia em língua grega. Aliado a isso sua parcimônia e objetividade na apresentação de seus estudos ocasionou um debate em que se discutia se ele não estaria fazendo propaganda e não história.

Encerrando seu livro encontra-se o texto “As origens da historiografia eclesiástica”. Nesse artigo ele discute sobre Eusébio e sua história da Igreja, ao mesmo tempo em que aponta a impossibilidade de uma história ecumênica do cristianismo a partir do século VI, na época de Justiniano, devido as diferenças entre o Ocidente e o Oriente e ao fato de a religião cristã ter se tornado cada vez mais vinculada ao Estado nessas duas partes do mundo antigo.

Momigliano começa esse capítulo contando a trajetória do monge beneditino Benedetto Bacchini e sua descoberta da obra Il Giornale dei Letterati escrita no século IX e que ele, vivendo entre o final do século XVII e início do XVIII resgatou em uma biblioteca. Essa obra era importante por trazer a discussão sobre o pallium, insígnia dada pelo papa para confirmar a autoridade de um arcebispo sobre sua sé. Antes, tal feito era exercido também pelos imperadores.

Esse assunto que abre o artigo já é apontado por Momigliano como um relato de um autor de um texto pouco conhecido. No entanto, ele ressalta que o escreveu justamente para indicar como na história eclesiástica “um acontecimento do século V, relatado por um historiador eclesiástico do século IX, ainda tinha implicações práticas no século XVIII” continua ele informando que “os precedentes têm, evidentemente, importância para qualquer tipo de história, e não há nada no passado que em determinadas circunstâncias não possa provocar paixões no presente” (MOMIGLIANO, 2019, p. 212-213).

Destaca-se na citação acima um traço perene nos estudos historiográficos e no entendimento da própria noção de historiografia. O pensar e o agir nessa área estão em sintonia com a ideia de que seu saber se faz no interior da pesquisa e escrita da história (AROSTEGUI, 2006, p. 37). Esta apreciação está em consonância com o saber e as indagações do tempo presente. No caso específico da história eclesiástica Momigliano destaca ainda em sua abordagem que “em nenhuma outra história os precedentes significam tanto como na história eclesiástica. A própria continuidade da história da Igreja através dos séculos torna inevitável que qualquer coisa que tenha acontecido no passado da Igreja seja relevante para o seu presente” (MOMIGLIANO, 2019, p. 213).

Ao caminhar assim em todas as palestras proferida na Universidade de Berkeley, e no livro que elas originaram e que só veio a ser publicado após a morte do autor, este judeu oriundo da península itálica transita com maestria por temas e ideias que são fundamentais para o entendimento da noção de história e de historiografia. Passeando por indivíduos, povos, nações, livros e ideias que surgem em um período, influenciam autores e saberes em outros, são contestados por alguns pensadores, endossados por alguns e seguem como baluartes para novas descobertas.

O pensar histórico atrela-se a períodos e tempos que se esboçam em continuidades e rupturas que a presente obra, em sua abordagem sobre temáticas da Antiguidade, Idade Média e Idade Moderna, leva-nos a contemplar o processo de gênese e revisões que consolidaram essa área do conhecimento humano. Neste livro é possível observar seu caminho das cidades gregas, dos escritos judaicos, da produção romana até os dias atuais.

Uma última indicação deve aqui ser feita. Na diagramação e revisão do texto a editora cometeu dois erros. Na página 208 colocou-se “crônica do século XIX” quando o correto seria século IX. Já na página 212 fala-se em “implicações práticas no século XIII” quando o correto seria século XVIII. Esses dois erros por certo comprometem a compreensão para quem estiver mais desatento, mas não desabonam o caráter e a importância do livro. Boa leitura.

Referências

ARÓSTEGUI, Julio. A pesquisa histórica: teoria e método. Bauru: EDUSC, 2006.

HARTOG, François. Crer em história. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

Charles Nascimento de Sá –Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/Assis). Mestre em Cultura e Turismo pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Professor de História da Bahia e Historiografia na Universidade do Estado da Bahia (UNEB/Campus XVIII/ Eunápolis).

DOMINGUES, Ivan. Filosofia no Brasil: legados e perspectivas – ensaios metafilosóficos – DOMINGUES (FU)

DOMINGUES, Ivan. Filosofia no Brasil: legados e perspectivas – ensaios metafilosóficos. São Paulo, Editora Unesp, 2017. Resenha de: CANDIOTTO, Cesar; OLIVEIRA, Jelson. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.20, n.3, p.290-292, set./dez., 2019.DOMINGUES, Ivan.

O livro de Ivan Domingues é uma contribuição ímpar para a discussão em torno da formação da “filosofia brasileira”, aquilo que, grosso modo, envolve a existência de autores, de obras e leitores de temas brasileiros ou ligados ao Brasil. Seu horizonte de leitura não é a “narrativa” daquilo que tem acontecido desde o Brasil Colônia até os últimos 50 anos. Antes, ele é apresentado como uma “metafilosofia”, na extensão da natureza reflexiva da filosofia, autorizando-a a tomar a si mesma como objeto e fazer uma reflexão filosófica sobre a filosofia, uma filosofia da filosofia. O background da obra, como já destacou o professor Oswaldo Giacoia Jr., em resenha recente da obra3, é a atuação acadêmica de Ivan na área de Filosofia, algo que não lhe dá apenas legitimidade para escrever o que escreve do jeito como escreve, mas, sobretudo, conhecimento e vigor argumentativo para recontar a história não na perspectiva do passado, mas com os interesses próprios de nosso tempo. Porque conhece de dentro, Ivan pode relatar o pensamento de forma viva e fecunda. Para contar a história, ele suja as mãos, por assim dizer: contamina-se da história, situa-se nela, sai do texto contagiado por ele, tanto quanto nós, seus leitores, empurrados para o pensamento a respeito das perspectivas e para as perguntas sobre o futuro disso que é a tarefa da filosofia em nosso país. Trata-se de uma empreitada que aproxima o epistemólogo do genealogista que se deixa azeitar pela riqueza argumentativa de sua própria trajetória filosófica, cuja pergunta inicial, como é praxe nesses casos, diz respeito à possibilidade e oportunidade de seu objeto: existiria, afinal, uma filosofia no Brasil? E, em caso positivo, qual a sua identidade?

Tal questão ganha renovada importância quando temos em conta a história de outras disciplinas das ciências humanas, como educação, antropologia, ciências sociais e políticas, cuja contribuição para a elaboração de um pensamento no Brasil (que é também, quase sempre, sobre o Brasil) conta com nomes como Paulo Freire, Florestan Fernandes e Sérgio Buarque de Holanda, entre tantos outros. Formular a interrogação, como faz Ivan, sobre a filosofia no Brasil, por isso, é colocar-se diante da história como quem olha para as raízes de uma árvore florescida, adivinhando seus frutos, para depois, como Ferreira Gullar, ver que “cresce no fruto/ A árvore nova”.

O objeto principal da obra é a filosofia brasileira, ou, especialmente, o problema filosófico da existência ou não de uma filosofia no Brasil que justifique a adjetivação brasileira. Trata-se de uma tentativa exitosa de imprimir às reflexões empreendidas a forma do ensaio filosófico. Fazer filosofia como ensaio e não como narrativa envolve fazer uso da argumentação cuidadosa, da provisoriedade dos resultados, do pensamento não objetual e do risco da tentativa, que inclui erros e acertos. Nesse sentido, o livro segue os rastros metodológicos de Montaigne reafirmados na época contemporânea por Michel Foucault, para o qual a filosofia consiste no exercício do pensamento sobre si mesmo, sendo o ensaio a expressão literária maior desse exercício. Fiel à balança do tempo no qual ele mesmo se pesa, Ivan expressa seu pensamento na forma ensaística como quem recusa a conclusividade fácil, embora também recuse o caminho do meio. O resultado é que seu pensamento age por metástase, contagiando o leitor com o espírito da curiosidade e do interesse que Ivan aciona e pratica na sua melhor forma.

Se a filosofia é um exercício do pensamento, então se trata de sair dela mesma, para tratar sua tentativa de totalização do real. Nesse sentido, Ivan descarta a hegemonia de uma única filosofia sem abrir mão de anunciar linhas e tendências argumentativas, cujos fios servem para costurar a história do pensamento em solo nacional. Essa postura, contudo, implica abrir-se a outras maneiras de pensar, a outros domínios, tais como os da história e da sociologia. Todavia, as considerações históricas, assim também como as sociológicas, fazem parte da argumentação não como objeto de pesquisa, mas como meio e fonte. São fundamentais para a argumentação as considerações sobre a natureza da sociedade brasileira, entre seu passado colonial e o Brasil moderno, entre a sociedade agrário-oligárquica e a urbano-industrial. Tais perspectivas e considerações, contudo, cimentam a estratégia e comparecem no contexto geral da obra como para dar corpo ao desenvolvimento de uma problemática de ordem metafilosófica, que reconhece as condicionalidades nacionais como parte integrante de um pensamento enraizado nas experiências geográficas e históricas da racionalidade filosófica que apareceu na pena de pensadores como Paulo Eduardo Arantes, Henrique Cláudio de Lima Vaz, Silvio Romero, Tobias Barreto e tantos outros.

Para cumprir sua tarefa, Ivan Domingues apoia-se na linguística estrutural a partir de dois procedimentos: os métodos in praesentia e in absentia, sendo que o primeiro perscruta “os elementos empíricos e reais (sociológicos, históricos, políticos e culturais) denominados como positividades; e o segundo, os elementos abstratos – especulativos, ideais e virtuais –, voltados para a ordem das ideias ou do pensamento”. Em poucas palavras, trata-se de estabelecer o contraste entre o método histórico da praesentia e o método lógico ou dialético descolado do real empírico, porém considerado mais operativo para desenvolver o argumento. Outro método associado provém da lógica modal, cuja premissa são os chamados “tipos ideais” de Max Weber, a saber, “constructos mentais ou modelos teóricos” que se revelaram essenciais para vencer a opacidade do real empírico e trabalhar os diferentes tipos ou figuras de intelectuais a que o exercício da filosofia se viu ligado em diferentes épocas de sua formação histórica.

Assim, o livro se desenvolve a partir desse eixo metafilosófico e, complementarmente, de uma tentativa de recontar a história intelectual brasileira a partir dos tipos ideais que o autor busca em Max Weber, para caracterizar os cinco intelectuais brasileiros no campo da filosofia, os quais servem muito bem para a compreensão das etapas históricas que orientaram a filosofia brasileira até nossos dias. Tal intuição, revestida de capacidade sintética e, ao mesmo tempo, quase metafórica, oxigena a obra com fecundo e instigante ineditismo interpretativo.

Dessa maneira, a estrutura do livro é delineada a partir de seis passos: [1] o argumento metafilosófico, que acabamos de sumarizar; [2] o passado colonial e seus legados: temos aí o tipo ideal do intelectual orgânico na igreja; [3] Independência, império e república velha: o intelectual estrangeirado; [4] os anos 1930-1960: a instauração do aparato institucional da filosofia: os fundadores (departamento de ultramar), a transplantação do scholar e o humanismo intelectual público; [5] os últimos 50 anos: o sistema de obras filosóficas, os scholars brasileiros e os filósofos intelectuais públicos ligados aos partidos e às questões nacionais; [6] conquistas e perspectivas: os novos mandarins e o intelectual cosmopolita globalizado.

A partir dessa estrutura, o autor situa a atividade filosófica na tensão entre dois aspectos que se complementam entre si: de um lado, essa atividade é uma techné, para não dizer um métier, composto pelo desenvolvimento de certas habilidades e competências, a frequentação e o trabalho dos textos. Pensada desta maneira, a atividade filosófica seria semelhante à do scholar, enfocado na exegese e na história da filosofia, e, nesse sentido, ela não seria diferente de outras áreas, como a da filologia e a da história. De outro lado, a atividade filosófica é um ethos, a saber, uma atividade reflexiva e questionadora da realidade, quando deixa de manter com o real e o empírico a mesma atitude reverencial da ciência. O ethos é o gosto pela discussão, pelo cultivo do espírito crítico, experimental e intuitivo, e, nesse sentido, podemos dizer que a alma desse livro, além de outros elementos importantes, é pensar a questão do ethos do filósofo ou do intelectual brasileiro.

Como se trata de uma tentativa de pensar os legados e perspectivas da filosofia brasileira, o ensaio aposta na estratégia do “paradigma de formação” para identificar o legado e da “pós-formação” para vaticinar as perspectivas. Nesse sentido, Filosofia no Brasil segue os passos dos chamados “pensadores do Brasil” (atente-se que não se trata dos “filósofos do Brasil”), como Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Antonio Cândido, Celso Furtado, Raymundo Faoro, Paulo Arantes (e est a lista poderia continuar), que evocam em seus títulos e subtítulos esse paradigma da formação.

Para quem conhece outros trabalhos de Ivan Domingues, est e livro é a continuidade de O continente e a Ilha, no qual ele elabora um contraste entre a filosofia continental europeia e a filosofia anglo-saxã, uma mais voltada para a história da filosofia, outra mais próxima da filosofia analítica. Essa dupla face europeia tem tido repercussões na filosofia no Brasil, entre, de um lado, os chamados analíticos e, de outro, aqueles mais dedicados à filosofia e sua história. Filosofia no Brasil indica a fragilidade dessas grandes distinções, mostrando que, mesmo na tradição franco-alemã, há dois caminhos: o de Hegel, que privilegia uma perspectiva histórico-sistemática (“fazer história da filosofia”, como já encontramos em Cassirer), e outra de Foucault, para o qual fazer filosofia é apostar no ensaio, no fragmento e em um canteiro de obras.

A tensão proposta e desenvolvida por Domingues, assim, dá bons frutos, porque na medida em que lê o livro, o leitor situa-se no campo das interdisciplinaridades sem tirar um pé das características filosóficas propriamente ditas, compreendendo a intelligentsia brasileira como um produto controverso e tensional, para o qual pouca gente se dirigiu com a coragem de Ivan, dados os desconfortos que mais intimidaram do que promoveram um debate tão necessário como o que, agora, esse livro evoca – destaque-se o “agora” que dá ao livro uma vocação inédita, mas, sobretudo, o situa no tempo que é o nosso, no qual a filosofia no Brasil se encontra com novos dilemas, ameaçada por antigas mordaças ressuscitadas por certa perseguição aos intelectuais e pelo culto à vulgaridade do pensar, corroído pela assimilação tendenciosa dos modernos meios de comunicação, pelas predisposições fanáticas, pela desinformação e pelas desverdades.

Um livro, assim, sobre a filosofia no Brasil não poderia chegar em hora mais apropriada, quando somos todos convidados a prestar nova atenção à realidade que nos cerca, seus recuos históricos, suas discursividades forjadas pela indústria da desinformação, sua hipérbole de emotivismo que forja e brame narrativas em busca de impacto (leia-se, “likes” e coisas do gênero), sua preguiça diante do pensamento crítico em benefício de um nefasto desejo de ordem, educação moral e cívica. Com seu livro, Ivan Domingues torna o problema novamente atual: de onde viemos e para onde vamos, como filósofos no Brasil? Uma pergunta que, assim, bem formulada, torna-se também deliberadamente perigosa, porque retoma o papel da filosofia como uma espécie de protesto contra a indiferença do pensar. É essa provocação visceral que o leitor dessa obra precisa aceitar, as novas gerações em especial.

Notas

1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Rua Imaculada Conceição, 1155, 80215-901. Curitiba, PR, Brasil. Email: [email protected].

2 Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Rua Imaculada Conceição, 1155, 80215-901. Curitiba, PR, Brasil. Email: jelson.oliveira2012@ gmail.com

3 Kriterion, Belo Horizonte, n.140, ago. 2018, p.631-636.

Cesar Candiotto – Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Curitiba, PR, Brasil. E-mail: [email protected]

Jelson Oliveira – Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia. Universidade Católica do Paraná. Curitiba, PR, Brasil. E-mail: [email protected]

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A história deve ser dividida em pedaços | Jacques Le Goff

Atualmente vivemos uma época que o papel da História tem sido questionado socialmente, principalmente como disciplina escolar. Ao ensinarmos o papel da História para a sociedade buscamos apresentar marcos cronológico para facilitar a aprendizagem didática de alunos e outros leigos, sendo um dos principais desafios para os historiadores à formulação desses cortes temporais. Partindo desses questionamentos e os efeitos da mundialização na sociedade, foi produzida a obra A história deve ser dividida em pedaços? escrita por Le Goff, publicada em 2014 pela Editora du Seuil e, no Brasil, em 2015 pela Editora UNESP.

Le Goff foi um dos principais representantes da terceira geração dos Annales e especialista no período Medieval. Seus escritos buscaram construir outra visão da Idade Média a partir da perspectiva de uma antropologia histórica do ocidente europeu. Em A história deve ser dividida em pedaços? o autor realizou sua última defesa sobre a importância da época Medieval e constrói uma argumentação em favor do conceito Longa Idade Média. Leia Mais

Direita e Esquerda: Razões e significados de uma distinção política | Norberto Bobbio

Não se passou muito tempo desde quando podíamos ouvir a pergunta: “Mas ainda existe a direita?”. Após a queda dos regimes comunistas, ouve-se aflorar com a mesma malícia a pergunta inversa: “Mas ainda existe a esquerda?” (p.63)

A discussão sobre o significado de direita e esquerda é algo muito presente em nossa contemporaneidade, sobretudo para brasileiros que vivem um momento de polarização política. Contudo, esta temática pode ser observada em tempos precedentes, a fim de identificar um alinhamento político e identificar os sujeitos com uns ou outros princípios. A epígrafe, a qual abre este trabalho expressa uma dúvida quanto a continuidade da existência da direita e da esquerda em diferentes períodos históricos, além de colocar a díade direita-esquerda sobre o escrutínio que visa identificar se os dois opostos realmente “não tem mais nenhuma razão para ser utilizada”2. É diante deste quadro que a obra de Norberto Bobbio se inscreve, ratificando o compromisso com a tentativa de estabelecer uma diferenciação entre direita e esquerda. Leia Mais

A Ilustração (1884-1892): Circulação de Textos e Imagens entre Paris, Lisboa e Rio De Janeiro | Tania Regina de Luca

A Nova História Cultural tem proposto abordagens com foco na mediação e nas trocas culturais e simbólicas, ocorridas desde o século XVI até os dias atuais, entre a Europa e o continente americano, sobretudo na região do cone sul. Neste sentido está a obra A Ilustração (1884-1892): circulação de textos e imagens, entre Paris, Lisboa e Rio de Janeiro que expõe a intensa relação estabelecida entre Paris, Lisboa e Rio de Janeiro a partir do entendimento da difusão cultural cujo polo irradiador era a França, país mundialmente conhecido por manter refinados modos, costumes e progressos técnicos. O objetivo do livro é analisar sistematicamente o periódico e demonstrar a lógica da circulação através do Atlântico, além dos projetos culturais e políticos que envolveram a revista e seu principal responsável, Mariano Pina (1860-1899).

O estudo da publicação esteve circunscrito num projeto maior de pesquisa, intitulado “Circulação Transatlântica dos Impressos – a globalização da cultura no século XIX”, coordenado por Jean-Yves Mollier (Université Saint-Quentin Yvelines) e por Márcia Abreu (UNICAMP), com objetivo em investigar impressos que circularam entre Inglaterra, França, Portugal e Brasil no período de 1789 a 1914, recorte inspirado no clássico livro de Eric Hobsbawm (1917-2012), A Era dos Impérios (Editora Paz e Terra, 2012). O livro de Tania Regina de Luca (Unesp – Câmpus de Assis) abordou o periódico a partir da perspectiva de fonte e objeto, ou seja, as análises são realizadas levando em conta o aspecto diacrônico, que assenta o periódico na ótica da história da imprensa, e sincrônico, extraindo evidências e diálogos entre os agentes dos impressos e as publicações contemporâneas. Ademais, a mobilização de A Ilustração contribuiu ricamente para demonstrar novo e instigante modo de manuseio das fontes periódicas: ambos os eixos puderam ser vistos sob o ponto de vista transnacional, de forma a demonstrar como a revista estabeleceu relações culturais e econômicas com outras publicações do Brasil e de países europeus, ponto, aliás, destacado por Márcia Abreu no prefácio. Leia Mais

A Fábula das Abelhas ou Vícios Privados, Benefícios Públicos – MANDEVILLE (EL)

MANDEVILLE, Bernard de. A Fábula das Abelhas ou Vícios Privados, Benefícios Públicos. São Paulo: Editora Unesp, 2017. Resenha de: MELO, Ricardo Pereira de. Eleuthería, Campo Grande, v. 3, n. 4, p. 113 – 117, jun./nov., 2018.

APRESENTAÇÃO E CONTEXTO HISTÓRICO

Finalmente, os leitores brasileiros e de língua portuguesa terão acesso à versão integral do livro do pensador Bernard de Mandeville conhecida como A Fábula das abelhas ou vícios privados, benefícios públicos. A brilhante e competente tradução foi realizada pelo professor Bruno Costa Simões e publicada pela Editora da Unesp. Sem dúvida que o público foi presenteado com uma belíssima edição pela longa espera da tradução completa em português1.

Bernard Mandeville nasceu em Roterdã em novembro de 1670. Apesar de nascer na Holanda, estudou e viveu por quase toda sua vida na Inglaterra, trabalhando em Londres como médico. O final do século XVII foi marcado por um período de transição importante na economia e na sociedade mundial, onde ele presenciou a transição da hegemonia holandesa para a inglesa2. De certa forma, esse momento histórico, é vivenciado pela mudança de habitat de Mandeville e transcrito nos textos do autor.

Mandeville utiliza-se da sátira e da analogia para mostrar as profundas transformações que se passam na sociedade inglesa na virada do século XVII, principalmente evidenciando o caráter de desenvolvimento e prosperidade da economia. A obra de Mandeville, com certeza, não é um tratado sobre economia, mas podemos dizer que Mandeville, trouxe ao centro do debate, questões que seriam mais tarde abordadas por outros teóricos da economia, principalmente ligados à defesa do laissez faire laissez passer. Em geral, segundo Louis Dumont, Mandeville seria favorável à um “comércio mais livre”, mas não ao “livre comércio puro e simples”3 e, em suas ideias, ainda cultivava muitos pressupostos da economia mercantilista.

Dumont advertiu em sua análise sobre o trabalho de Mandeville que os poemas e escritos, em sua totalidade, reflete a sociedade concreta e, com ela, as mudanças de ontem (sociedade pequena, isolada e estagnada) para o hoje (a evolução da economia capitalista). Para o autor da Fábula, assim como para Hume e Smith, é um momento de transição “que se trata de um eixo maior na transição da ideologia tradicional para a ideologia moderna”4.

O destaque dado por Mandeville sobre o papel do egoísmo na ação humana não passou desapercebido por Adam Smith ao tratar dos problemas econômicos. A Riqueza das nações de Adam Smith, conforme Dumont afirma, é uma resposta às indagações levantadas por Mandeville e que Smith teria tomado contato com a obra nos cursos do professor Hutcheson em Glasgow ainda na graduação5.

Para alguns autores, tais como Rogério Arthmar e Friedrich von Hayek, Mandeville foi o primeiro a colocar o problema das crises de superprodução e de insuficiência de demanda no centro do debate político no capitalismo inglês, cuja a visão econômica estava voltada, exclusivamente, para o consumo, e não na produção. Para Arthmar:

Porém, recuando no tempo, verifica-se que a polêmica sobre a possibilidade de uma escassez geral de demanda possuía antecedentes longínquos nos escritos econômicos do Reino Unido. Em 1705, Bernard Mandeville publicava seu poema The grumbling hive: or knaves turn’d honest, onde enaltecia os vícios e a luxúria como fontes da prosperidade de uma colméia, alegoria pitoresca da sociedade em que vivia. O material, apesar de sua criatividade, passaria totalmente despercebido nos meios literários6.

Na ética da Fábula existe um divórcio radical entre moralidade e religião. O tema central que versa o poema das abelhas na colméia é que a prosperidade econômica e a obtenção de riqueza não possuem relação direta com a moralidade cristã. Existe em sua obra uma preocupação de fundo, presente também nos grandes pensadores da história ocidental: um constante receio do retrocesso, ou melhor, à regressão aos anos de escuridão da civilização, baseado numa economia meramente agrícola e pouco desenvolvida. Nesse sentido, toda A Fábula pode ser lida como uma defesa da circulação de riquezas, da moeda e da atividade do comércio. Segundo Ari Ricardo:

Não se tratava de alguns ricos comerciantes, que traficavam bens de luxo para uns poucos habitantes, mas sim de uma gigantesca máquina de fazer e distribuir mercadorias acessíveis a muitas pessoas. Para Mandeville, essas mudanças representavam uma melhoria de vida, apesar das reclamações, que surgiam em grande número, de que o aumento do luxo enfraqueceria a fibra moral da nação. Foi justamente como resposta a elas que Mandeville escreveu. A favor das mudanças, com certeza. Mostrando que as tais fibras morais, pretensamente responsáveis pela grandeza e continuidade da nação, eram mal compreendidas, que as fontes da prosperidade eram outras, que o que se via como ameaça, o luxo, era positivo para a sociedade, muito embora fosse de fato um vício, como queriam alguns7.

Mandeville tinha como característica provocar as paixões mais inesperadas entre seus leitores. Dessa forma, expressava-se de maneira pouco amistosa ou agradável. Aos acostumados pela polidez, ou pela urbanidade ou, mesmo, pela sensatez acharão no pensamento de Mandeville uma profunda marca de provocação que dificilmente deixariam qualquer um apaziguado ou entorpecido.

A escrita irreverente aguçava o intelecto das pessoas e, dificilmente, alguém não se manifesta com amor ou repulsa aos seus textos. Ao espírito adormecido e ignorante oferecia doses sob medida aos preconceituosos e arrogantes. Para o início do século XVIII, defender a prostituição e atacar a educação popular, pode-se dizer, que Mandeville irritou muitos na sociedade em seu tempo.

ESTRUTURA DE A FÁBULA

A tradução aqui apresentada deve-se ao trabalho extraordinário de compilação das obras completas organizadas F.B. Kaye que trabalhou na preservação do legado mandevilleano. Como bem avalia Jacob Viner que “a partir da publicação, em 1924, da magnífica edição da Fable of th bees de F.B. Kaye, ninguém pode tratar seriamente do pensamento de Mandeville, sem apoiar-se firmemente nele”8. No mesmo sentido, Dumont afirma:

Devemos muito a F.B. Kaye pela sua edição crítica monumental da Fábula, e especialmente por sua laboriosa coleção das fontes certas ou possíveis de Mandeville, pelas passagens paralelas dos escritos anteriores de uma parte, e, de outra, por seu catálogo de referências a Mandeville na literatura subsequente: ele contribuiu com profusão para que pudéssemos captar com um golpe de vista o lugar de Mandeville na história das idéias9.

Aos 35 anos, no ano de 1705, Bernard de Mandeville iniciou o seu itinerário intelectual ao publicar um poema na forma de sátira contendo seis vinténs em versos intitulado Acolmeia ranzinza ou De canalhas a honestos (The Grumbling Hive or Knaves turn’d honest), cuja a publicação passou em silêncio diante à crítica e “o impacto inicial do poema foi quase nulo”10. Em 1714, ele republica o poema, agora contendo um novo capítulo de comentário chamado Uma investigação sobre a origem da virtude moral (An Inquiry into the Origin of Moral Virtues)e também acrescenta outro texto de Observações com extensas glosas explicativas sobre o significado de seus versos. Agora, o poema em versos torna-se um livro sob o título de A Fábula das abelhas ou Vícios privados, benefícios públicos (The fable of the bees, or private vices, publick benefits) que, mais uma vez, não lograria a atenção do público.Para alguns comentadores, como Ricardo Ari Brito, Mandeville acrescentava esses textos ao poema inicial, como se fosse necessário, para o bomesclarecimento“que o leitor tivesseuma visão mais ampla do terreno que está pisando, uma espécie de introdução às explicações”11.

A segunda edição do livro publicada em 1723, Mandevile adiciona mais um texto intitulado Ensaio sobre a caridade e as escolas de caridade (An Essay on Charity and Charity-Schools) e diferente da edição anterior, tanto o poema como os comentários causaram um grande tormento na sociedade inglesa da época. O Ensaio despertou muita indignação entre os críticos que, ironicamente, provocaria com isso outras cinco edições da obra em menos de uma década, um recorde para a época12. Com o Ensaio, Mandeville tornar-se muito famoso e, em pouco tempo, seus escritos começaram a abalar a tradição religiosa. No mesmo ano de 1723, ele recebe a denúncia das entidades religiosa, acusando-o como um anticristão e contra os costumes sociais e, com isso, sendo obrigado a comparecer diante do tribunal de justiça.

Ao final do livro, a tradução brasileira ainda vem acrescentada do texto Defesa do livro a partir das difamações contidas numa acusação do grande júri de Middlesex e numa carta insultante endereçada a lord C. que foi apresentada ao Tribunal do Rei (King’s Bench) no condado de Middlesex como defesa à acusação imposta como um anticristão. Infelizmente, apesar da importante tradução feita por Bruno Costa Simões, ainda faltam os diálogos de resposta de Mandeville às críticas do filósofo George Berkeley intituladas Letter to Dion. Em todo caso, já temos uma tradução completa e acadêmica para futuros estudos da obra do pensador holandês.

Notas

1 Já circulava no Brasil a tradução de Laura Teixeira Motta, mas composta apenas do poema inaugural A Colmeia murmurante ou os velhacos que se tornaram honesto. A tradução faz parte do Apêndice do livro A Pré-história da economia: de Maquiavel a Adam Smith da professora e pesquisadora da USP Ana Maria Bianchi de 1988. Houve uma tradução espanhola muito utilizada no Brasil publicada em 1982 pela editora Fondo de Cultura Economica do México contendo a tradução na íntegra do livro de Mandeville.

2 Cf. ARRIGHI, Giovanni. O Longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Unesp, 1996, pp. 1-58 e, especialmente, pp. 130-148.

3 DUMONT, Louis. Homo Aequalis: gênese e plenitude da ideologia econômica. Trad. José Leonardo Nascimento. Bauru, SP: EDUSC, 2000, p. 103.

4 DUMONT, Homo Aequalis, p. 112.

5 DUMONT, Homo Aequalis, p. 97.

6 ARTHMAN, Rogério. Mandeville e a lei dos mercados. Economia e Sociedade. Campinas, SP: UNICAMP, v. 12, n.1, 2003, p. 88.

7 BRITO, Ari Ricardo Tank. As Abelhas egoístas: vício e virtude na obra de Bernard Mandeville. São Paulo: USP, 2006, p. 27. (Tese de Doutorado em Filosofia).

8 VINER, Jacob. Ensaios selecionados de Jacob Viner. Trad. José Maria Gouvêa Vieira. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1972, p. 318.

9 DUMONT, Homo Aequalis, p. 107.

10 FONSECA, Eduardo Giannetti da. Vícios privados, benefícios públicos? a ética na Riqueza das Nações. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 134.

11 BRITO, As Abelhas egoístas, p. 21.

12 “No século XVIII, as edições seguintes de The fable of the bees apareceriam em 1724, 1725, 1728 e 1729. Nesse último ano, Mandeville lançava também a segunda parte do livro, contendo um prefácio e seis diálogos, a qual receberia duas edições isoladas em 1730 e 1733. Os dois volumes seriam publicados em conjunto nos anos de 1733, 1755, 1772 e 1795, além das traduções para o francês em 1740 e para o alemão em 1761” (KAYE citado por ARTHMAR, Mandeville e a lei dos mercados, p. 88).

Ricardo Pereira de Melo – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

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Italianidade no interior paulista: percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950) – TRUZZI (FH)

TRUZZI, Oswaldo. Italianidade no interior paulista: percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950). São Paulo: Editora Unesp, 2016, 137p. Resenha de: SUDATTI NETO, Reinaldo. Faces da História, Assis, v.5, n.1, p.349-355, jan./jun., 2018.

Oswaldo Maia Serra Truzzi nasceu em Campinas em 1958 e, atualmente, atua como historiador titular na Universidade Federal de São Carlos, nos Programas de Pós-Graduação em Sociologia e Engenharia de Produção. Possui trabalhos na área de Sociologia relacionados ao tema das imigrações, envolvendo a história social das imigrações, não somente a italiana, mas também a síria e libanesa. Além de obras de relevância como Roteiro de fontes sobre a imigração internacional em São Paulo (1850- 1950) e Repertório da legislação brasileira e paulista referente à imigração.

O livro Italianidade no interior paulista: percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950), lançado pela Editora Unesp em 2016, é apontado, no prefácio do historiador Ângelo Trento, como uma obra que procura levantar uma discussão inovadora no meio acadêmico, a saber: a formação de uma identidade étnica, envolvendo os imigrantes italianos no interior paulista, em um período precedente à construção identitária ocorrida na Itália.2 Em tempo, discute as circunstâncias que auxiliaram e prejudicaram essa construção, ocorrida entre os anos de 1880 e 1950.

O livro inicia-se tomando como referência os estudos de Philippe Poutignat (2008) e Jocelyne Streiff-Fenart que abordaram as concepções teóricas acerca do processo de construção das identidades culturais dos povos, quando confrontados com uma nova sociedade. Deve-se, aqui fazer uma ressalva a respeito do conceito de etnia, o qual não deve ser tomado como superioridade racial e, sim, como um conceito que permite refletir sobre o tema da identidade de si mesmo e sua constituição, a partir do contato entre grupos culturais.

Partindo dessa análise, o autor dirige-se ao mote da composição identitária. Para tanto, embasa-se no estudo de Benedict Anderson (2008) sobre as origens das noções de pertencimento no interior de comunidades construídas de forma heterogênea.

Acrescenta-se, ainda, as reflexões de Maurice Halbwalchs (2006) a respeito da ativação das memórias individuais e coletivas e, dos fatores que se cruzam, entre essas lembranças, criando uma noção de identidade cultural. Com isso, o autor busca reforçar sua tese de que houve um sentimento agregador de italianidade e de pertencimento, nascido primeiro no Brasil, e depois na Itália.

Como recurso teórico para analisar a formação da identidade italiana no Brasil, Oswaldo Truzzi se apoia nos estudos de Pierre Bourdieu (1996) e de Paula Beiguelman (2005), que enfatizam a relação de alteridade construída entre grupos culturais distintos.

Essa relação de alteridade teria fomentado o início da formação da identidade entre os imigrantes italianos que passaram a habitar o interior paulista, entre os anos finais do século XIX e o começo do XX.

Com o objetivo de ratificar a sua tese de uma identidade italiana surgida primeiro no Brasil, o historiador faz uso das tabelas contidas nas obras dos pesquisadores Zuleika Alvim (1986), Angelo Trento (1989) e na análise do demógrafo italiano Giorgio Mortara (1950), cujos dados indicam os números de entrada e saída dos imigrantes, grupos envolvidos nessas correntes migratórias e destinos dessas pessoas na nova terra.

Em seguida, Oswaldo Truzzi passa a descrever o contexto da Itália e do Brasil, em fins do século XIX, evidenciando os motivos que levaram à saída dos imigrantes italianos em direção ao Brasil; a partir de suas constatações e com base nos estudos de Nugent (1995), o autor concluiu que haveria uma dificuldade em afirmar uma italianidade trazida pelos imigrantes da sua terra natal, por outro lado, seria possível analisar uma italianidade construída aqui, no Brasil.

Com base nos estudos sobre a construção da identidade italiana, o autor segue para a diferenciação que se estabelecia entre os ambientes rurais e urbanos. Sobre os primeiros, destacou o modo de trabalho vigente nas fazendas, nas quais os imigrantes foram submetidos à mentalidade escravocrata e a impossibilidade de locomoção, bem como aos maus tratos que levavam às revoltas e resistências. Entretanto o autor avaliou as causas do pouco número de resistências e, valendo-se das análises do historiador Cliford Welch (1999), e de autores como Stuart Hall (2008) e Zuleika Alvim, concluiu que o isolamento dos colonos aliado a um baixo nível de educação formal dos imigrantes e de seus filhos foi fundamental para a pouca ocorrência de conflitos. O que não impediu o registro de formas de resistências como a mudança frequente de fazendas ou, até mesmo, a fuga delas, em alguns casos, para centros urbanos.

Outro ponto analisado foram os matrimônios entre pessoas de regiões semelhantes; para tanto, Truzzi se baseou em seus estudos anteriores sobre os casamentos na Cidade de São Carlos, entre 1860-1930, aliando-os aos trabalhos das historiadoras Maria Stella Levi e Julia Scarano (1999) e do pesquisador Angelo Trento.

O autor chega à conclusão que a união entre pessoas de mesma origem, até a Primeira Guerra Mundial, seria algo que facilitaria o retorno à terra natal, pois a estadia no Brasil era vista como temporária. Daí, a questão de tantos casamentos entre pessoas da mesma origem, havendo declínio desse costume após os anos 1930 e 1940, por conta dos desarranjos nas políticas de imigração assim como, o distanciamento dos laços de origem.

Já no meio urbano, o pesquisador faz um contraponto entre os trabalhos do historiador Warren Dean (1977), que apontava uma relação entre a bagagem profissional trazida do país de origem com novas possibilidades de crescimento do imigrante, os estudos da antropóloga Eunice Durham (2004) a respeito da cidade de Descalvado e os estudos da historiadora Flávia Oliveira (2008), na cidade de Jaú, nos quais as autoras ressaltam que a ascensão urbana se dava apenas com algumas famílias, sendo difícil precisar uma única causa.

O movimento associativo é destacado como via de ascensão social, afinal agregava parte da elite de imigrantes. Essas agremiações se constituíram em lugar de comemorações e festas nacionais que lembravam o local de origem, atraindo cada vez mais público. As elites italianas, por sua vez lançavam-se ao trabalho de construir uma unidade cultural e linguística entre os membros da colônia. A discussão sobre os movimentos associativos se amplia com os estudos de Fábio Bertonha (2005), e da socióloga Eunice Durham na cidade de Descalvado, que fazem referência a uma consciência de italianidade que se manifestava na promoção de solidariedade na colônia, na comemoração de datas patrióticas e na organização de atividades assistenciais e recreativas.

Associação de grande importância, a Sociedade Italiana de Beneficência de São Paulo Vitório Emanuel II, fundada na capital paulista, em 1879, é destacada por Truzzi por se constituir no modelo de sociedade para todas as outras que surgiram no Estado (BIONDI, 2011).

Ainda no que tange às associações de imigrantes, são reforçadas as causas que levavam à formação das mesmas (carência e ausência de políticas de amparo aos imigrantes), assim como as questões dos regionalismos trazidos da Itália que ocasionavam certas dificuldades à manutenção dessas agremiações. Tal processo pode ser observado pela visão negativa que os imigrantes do norte e sul da Itália tinham entre si, como exemplo, a tensão entre os vindos da região do Vêneto e da Calábria, ressaltando-se, ainda, o preconceito contra esses últimos por parte do restante dos imigrantes.

Além das rivalidades e diferenças étnicas, que representavam problemas para as associações, Truzzi amparado pelos estudos de Luigi Biondi e Angelo Trento cita outros problemas que levaram as associações a se desestabilizarem. Dentre os motivos estavam os conflitos de agenda dos diretores das associações que precisavam manter os vínculos de identidade dentro da colônia, buscando o reconhecimento da comunidadeMesquita Filho”, UNESP, câmpus de Assis.

de imigrantes da qual faziam parte e, simultaneamente, procuravam vias de integração às elites locais. Essa situação vivenciada pelos dirigentes evidenciava uma ambiguidade entre a cultura interna trazida pelos imigrantes e seus descendentes e a cultura do país de acolhimento, colocando-se como limites a serem extrapolados, segundo os estudos de Robert Foerster (1919).

A questão do fascismo é retratada pelo autor como um meio de ligar novamente a Itália à comunidade de imigrantes. Com base nos estudos de Bertonha sobre a ação fascista junto à comunidade italiana analisa-se a forma como o regime totalitário foi caracterizado no Brasil e como as classes sociais interagiram com ele.

O autor levanta o ponto de vista das elites brasileiras, que viam os recémchegados como pessoas que conheciam seu lugar na sociedade distanciando-se por isso da política e não ameaçando o domínio das elites locais. Visão que se modificou com a Revolução de 1930, e consequente abertura de oportunidades de projeção social e política por meio das associações comerciais, formadas por uma maioria de origem italiana. Por outro lado, o autor observou-se na geração dos filhos de imigrantes um menor pendor a propagandearem a sua filiação étnica, implicando na diminuição da italianidade como critério de legitimação política e social.

Sabemos que o tema sobre o processo imigratório Itália – Brasil é algo muito estudado, parecendo à primeira vista que nada de inovador possa emergir dele. No entanto, lermos o livro citado, podemos verificar como “[…] essa abordagem do tema torna-se a linha mestra de Truzzi”, que pesquisa a formação e construção do sentimento de identidade italiana, no Brasil, antes de ser construído na Itália.

O livro Italianidade no interior paulista: percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950) traz, portanto, algo muito inovador e instigante. Essa pesquisa aumenta e revitaliza o entendimento sobre a importância da imigração italiana e identidade cultural, no Brasil, a despeito das diversidades regionais trazidas da Itália, além de permitir a compreensão de como esse processo repercutiu entre seus descendentes, assim como na sociedade de acolhimento, evidenciando a importância das trocas culturais tanto para imigrantes quanto para os brasileiros.

Notas

2 Mesmo após a unificação em 1870, os habitantes da Itália possuíam uma relação de identidade ligada mais ao local de origem do que à nação como um todo, não havendo uma identificação comum, antes e durante a fase que da grande imigração, entre as décadas de 1870 e 1920, período no qual a nação enfrentou instabilidades políticas e sociais, que prejudicaram a construção de uma identidade nacional.

Referências Bibliográficas

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Reinaldo Sudatti Neto – Mestrando em história pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Campus de Assis.

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A História deve ser dividida em pedaços? | Jacques Le Goff

Em um dos seus últimos trabalhos, Jacques Le Goff discute a propriedade ou não de se dividir a História em períodos ou, como consta do título, em pedaços. O livro encontrase distribuído em doze itens: Preâmbulo (pp.7-9); Prelúdio (pp.11-14); Antigas Periodizações (pp.15-23); Aparecimento Tardio da Idade Média (pp.25-32); História, ensino, períodos (pp.33-43); Nascimento do Renascimento (pp.45-58); O Renascimento atualmente (pp.59-73); A Idade Média se torna “os tempos obscuros” (pp.75-95); Uma Longa Idade Média (pp.97-129); Periodização e Mundialização (pp.131-134); Agradecimentos (pp.135-136) e Referências Bibliográficas (pp.137-149).

Nesse trabalho, Le Goff postula claramente a favor da ideia de uma Longa Idade Média e/ou, se desejarmos, uma Idade Média Tardia, que seria encerrada com as chamadas “revoluções” Industrial e Francesa no século XVIII. Em contrapartida, contesta a ideia de um Renascimento que teria rompido com o período medieval nos séculos XV e XVI. Leia Mais

A invenção da brasilidade: identidade nacional, etnicidade e políticas de imigração

A expressão acima, que dá título a esta resenha do livro de Jeffery Lesser, A invenção da brasilidade: identidade nacional, etnicidade e políticas de imigração (tradução brasileira da edição que a Cambridge University Press lançou em 2013), poderia sintetizar a história da imigração em vários países da América – nomeadamente, Estados Unidos, Canadá, Argentina e Brasil. Como brasilianista, comparar seu objeto de estudo com os Estados Unidos seria inevitável, mas esse procedimento encontra justificativa mais profunda nas pesquisas de Lesser. À análise comparativa para compreender a “invenção da brasilidade” soma-se a metodologia de estudo da imigração como uma história única desde o período colonial, e não em capítulos separados em que cada grupo imigratório apresenta história própria e específica. Como resultado, uma obra de historiador que, apoiada na etnografia antropológica, se propõe discutir a complexidade das questões de identidade no Brasil atual através da etnicidade e sua relação com a imigração – conceitos cuja fluidez torna indistinguíveis. Sua preocupação fundamental – de que forma a “brasilidade” foi e é construída? – lança luz sobre os seis capítulos e o epílogo que ocupam quase trezentas páginas de um livro proposto para alcançar público mais amplo, além das fronteiras da academia.

Por que o professor que ocupa atualmente a Cátedra de Estudos Brasileiros na Emory University (Atlanta) opta por esse caminho metodológico? A resposta pode ser encontrada no livro, mas também em sua trajetória pessoal de pesquisa. Em O Brasil e a questão judaica: imigração, diplomacia e preconceito, publicado no Brasil em 1995 pela Editora Imago, o enfoque recai sobre a política imigratória do Estado Novo para os judeus, discutindo os problemas da discriminação, da aculturação e da etnicidade no período. Em A negociação da identidade nacional: imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil (Editora Unesp, 2001), são analisadas estratégias que imigrantes não europeus – japoneses, sírios e libaneses – utilizaram para definir seu lugar dentro da identidade nacional brasileira, bem como reações a essas tentativas. Imigrantes que, juntamente com os grupos europeus, integram – e esta parece ser realmente a melhor palavra – as análises do novo livro.

Anos de experiência de pesquisa produziram inquietações sintetizadas no artigo “Laços finais: novas abordagens sobre etnicidade e diáspora na América Latina do século XX, os judeus como lentes” (publicado na revista Projeto História, n. 42, em 2011), escrito em parceria com Raanan Rein, professor da Tel Aviv University. O artigo expõe, através das investigações sobre os judeus latino-americanos, como caso exemplar, o que Lesser entende como indispensável inovação para os estudos étnicos na América Latina – em suas palavras, os “Novos Estudos Étnicos”. Uma tentativa de revigorar as pesquisas através da abordagem em duas vias. Por um lado, compreender a etnicidade como uma peça que compõe mosaico mais amplo da identidade. Por outro, atentar para o fato de que o estudo sobre etnicidade deve incluir pessoas não vinculadas a instituições da comunidade. Segundo o historiador, as atuais pesquisas sugerem que a maioria dos membros de grupos étnicos na América Latina não é afiliada às associações étnicas locais – ou seja, as noções de “comunidade étnica” serão sempre enganosas quando incluírem apenas os afiliados organizados.

Em sua ótica, nas duas últimas décadas, os estudos sobre os judeus latino-americanos têm avançado dentro da perspectiva de que essa minoria faz parte dos mosaicos étnicos e culturais que constituem as sociedades da América Latina com suas identidades híbridas e complexas, relacionando-se de forma dinâmica com outros grupos na vida econômica, social, cultural e política – no referido artigo, Lesser destaca os estudos publicados em revistas especializadas de Nelson Vieira, “The Jewish Diaspora of Latin America”, Shofar: An Interdisciplinary Journal of Jewish Studies (2001), e Raanan Rein “Gender, Ethnicity, and Politics: Latin American Jewry Revisited”, Jewish History (2004), além do livro de Edna Aizenberg, Book and Bombs in Buenos Aires: Borges, Gerchunoff, and Argentine-Jewish Writing (2002). E o mais importante, pesquisas passaram a questionar o que as experiências dos judeus podem revelar sobre outros imigrantes e grupos étnicos e sobre o caráter geral das sociedades latino-americanas.

Com base na argumentação aqui brevemente sintetizada, Lesser defende que o estudo sobre os judeus latino-americanos pode ajudar a articular novas abordagens para os “Estudos Étnicos”, cujas propostas e críticas desafiadoras demandam atenção dos estudiosos do tema. No campo das proposições, assinala a necessidade de estudar as tensões entre etnia e nação. No âmbito das críticas, refuta as ideias presumidas de que as minorias étnicas não desempenham um papel significativo na formação de uma identidade nacional, de que o centro da identidade étnica coletiva deve sempre estar fora do país de residência e, finalmente, de acreditar que as comunidades étnicas são homogêneas ignorando divisões intra-étnicas muitas vezes replicadas por sucessivas gerações. A respeito das interpretações dos discursos produzidos pelos contemporâneos, observa que a pesquisa sobre etnicidade latino-americana compreende corretamente que a maioria dominante dos discursos é frequentemente racista, mas não atenta para a grande distância entre retórica e atividade social. O enfoque apenas no discurso tende a achar vítimas, muitas vezes sugerindo que o racismo representa uma estrutura absolutamente hegemônica. Na prática, porém, expressões racistas não impediram muitos grupos étnicos de penetrar nos setores dominantes, sejam políticos, culturais, econômicos ou sociais. Dessa perspectiva, a formação da identidade étnica aparece baseada principalmente na luta contra a discriminação e a exclusão. Os estudos que examinam o status social, por outro lado, chegam a uma conclusão diferente ao sugerir que o sucesso entre asiáticos, judeus, sírios e libaneses os colocam na categoria de “brancos”. Assim, Lesser sustenta que analisar os discursos racistas, juntamente com a mobilidade individual e de grupo, possibilita mudanças na compreensão da natureza entre opressão e sucesso.

O livro em questão pode ser apontado como resultante das propostas acima resumidas. Lesser concebe os imigrantes como protagonistas, e não apenas como vítimas, de um processo histórico no qual as definições étnicas e nacionais estão sempre em formação, pensando a afirmação das identidades como uma negociação constante pela qual os imigrantes se tornaram brasileiros. Para tanto, sem negar a importância dos estudos regionalizados e de grupos específicos de imigrantes, prefere situar as diferentes experiências regionais brasileiras em um diálogo nacional e, mais que isso, pensar os fluxos migratórios para o Brasil no amplo contexto da América.

Quando afirma tratar mais das semelhanças do que das diferenças – seja em relação à legislação de imigração, aos discursos das elites sobre a construção de identidades nacionais brasileiras ou às respostas e estratégias étnicas dos próprios grupos imigrantes perante a sociedade, o Estado e outros imigrantes -, tem como objetivo aprofundar e integrar as contribuições de obras que tratam os diferentes grupos imigrantes como inteiramente singulares. Comparando imigrantes em diferentes regiões de uma mesma nação, no caso o Brasil, Lesser advoga a tese de que a formulação das identidades é também condicionada pelo novo Estado que recebe os imigrantes e não apenas pela antiga nação de origem. Em suma, imigrantes de lugares distintos relacionam-se com o Brasil de maneiras semelhantes a despeito de suas diferentes origens. Definida a proposta, o historiador apresenta uma das questões norteadoras do livro, tendo por base a premissa de que a identidade e a etnicidade são sempre construções históricas, e não heranças recebidas como parte de algum tipo de essência cultural ou biológica: “De que forma imigrantes e descendentes negociaram suas identidades públicas como brasileiros?” (p. 20).

Colocando em outras palavras, ao estabelecer um diálogo entre imigração, etnicidade e identidade nacional ao longo do tempo, do espaço e entre grupos, estrutura-se a indagação-chave de seu estudo: “De que forma a brasilidade é construída?” (p. 23). Ainda dentro do campo das premissas, considera a identidade nacional um conceito fluido, sujeito a intervenções dos dois lados e historicamente mutável – daí sua afirmação de que a “assimilação (em que a cultura pré-migratória de um indivíduo desaparece completamente) foi um fenômeno raro, ao passo que a aculturação (a modificação de uma cultura como resultado do contato com outra) foi constante” (p. 25). Elementos abordados com grande perspicácia ao longo dos capítulos, quando abre espaço para análise do discurso elitista sobre a identidade nacional que se acreditava europeizada, branca e homogênea, transformando certos grupos de imigrantes em “desejáveis” ou “assimiláveis” enquanto outros eram “indesejáveis” ou “inassimiláveis”, além de ressaltar o papel ativo dos imigrantes recém-chegados ao desenvolverem formas bem-sucedidas de se tornarem brasileiros, alterando, inclusive, a ideia de nação dos grupos dominantes.

A história narrada por Lesser, porém, inicia-se antes, no período colonial, mais especificamente em 1808, com a chegada da Corte portuguesa ao Rio de Janeiro. Difícil escapar desse recorte temporal quando o debate diz respeito à autonomia da colônia, nomeadamente em relação à escravidão e à construção de alternativas à sua inevitável superação em termos econômicos, sociais, políticos e, no caso específico da pesquisa tratada no livro, da formação da identidade nacional. O três capítulos iniciais abordam essa temática, destacando as primeiras tentativas de trazer imigrantes até a imigração em massa que ganhou contornos nas últimas décadas do Oitocentos. Espaço de tempo no qual, segundo o historiador, definiram-se, para as elites brasileiras, os caminhos a serem perseguidos em relação à vinda dos imigrantes. Ou seja, concordava-se que o país deveria alterar a composição racial de sua população maculada pela importação de escravos africanos, mas duas grandes questões se impunham: como definir branquidão e como a mão de obra imigrante seria integrada ao contexto da escravidão. Para Lesser, a ideia do Brasil como uma “nação de imigrantes” surgiu exatamente da tensão entre aqueles que achavam que o imigrante deveria substituir o escravo na grande lavoura, sem alterar as hierarquias de poder, e aqueles que defendiam os imigrantes como pequenos proprietários, ligando a branquidão ao capitalismo e ao progresso.

Dentro desse contexto, Lesser analisa como a ideia do branqueamento – tão cara ao pensamento imigratório brasileiro, mas com significado bastante maleável, influenciada inclusive pelo ideário científico da virada do século XIX para o XX, quando a eugenia se apresentava como instrumental científico de melhoria de uma “raça” ou de um “povo” – transformou os imigrantes europeus – sejam alemães, portugueses, espanhóis e italianos (capítulo 4) – nos supostos agentes civilizatórios e de embranquecimento através da miscigenação com o elemento nacional. Uma série de fatores, como a insubordinação política e social e a resistência ao trabalho sistemático nas fazendas antes executados pelos escravos, levaram à busca de alternativas fora da Europa. A ideia de branquidão, portanto, teve que ser modificada, pois era componente importante para a formação da “raça” brasileira. O significado de branco mudou radicalmente entre 1850 e 1950, como bem observado por Lesser nos capítulos 5 e 6 em que trata dos grupos de imigrantes do Oriente Médio, do Leste Europeu e da Ásia. Em suma, a transformação da branquidão em categoria cultural é uma das principais áreas de análise do livro, permeando todo o texto.

No Epílogo, Lesser aprofunda a análise, já iniciada nos capítulos 5 e 6, sobre a política imigratória durante a Era Vargas, e avança para o período do pós-Segunda Guerra Mundial, caracterizados, sobretudo, pelas cotas imigratórias, pelo forte nacionalismo e pela mudança no discurso sobre a imigração, definido pelo historiador como “abrasileiramento”. A imigração europeia ainda era vista como estratégica para a modernização, porém agora baseada no desenvolvimento industrial, não mais na agricultura. Dessa forma, instituiu-se uma “política preferencial” de portas abertas aos imigrantes que se enquadrassem na “composição étnica” do povo brasileiro, mas selecionando “mais convenientemente em suas origens europeias” e proibindo africanos e asiáticos. Enfim, apesar das transformações no significado de “branquidão” ao longo do tempo, a política de imigração da década de 1940 não se diferenciou tanto daquela do século anterior, quando o branqueamento já era componente fundamental. Certamente, a questão da imigração judaica para o Brasil no período de Vargas e sua suposta política imigratória antissemita vem à mente de quem lê o livro. A contribuição do autor para esse debate, porém, não ganha luz em suas páginas – o tema foi tratado em O Brasil e a questão judaica, já mencionado -, mas cabem aqui as observações feitas em uma entrevista ao site Café História (http://cafehistoria.ning.com/), em 12 de novembro de 2013.

Segundo Lesser, perguntas como “o governo Vargas é antissemita ou não” não funcionam. As questões fundamentais são: por que o Governo Vargas, ou melhor, os líderes do Governo Vargas, criaram uma ordem secreta proibindo a entrada de semitas no Brasil? Por que não usaram a palavra ‘judeus’ e por que, mesmo assim, nos anos seguintes, mais judeus acabaram entrando legalmente no país do que nos anteriores? Em sua concepção, todos os pesquisadores estão de acordo que o governo promulgou ou criou uma ordem secreta dizendo que no Brasil não poderiam entrar semitas. Há consenso também em relação ao número de pessoas que entraram. Diante disso, formula uma nova pergunta: por que isso aconteceu? Suas pesquisas mostraram, por exemplo, como instituições de refugiados mundiais estavam negociando abertamente com pessoas importantes do governo Vargas, tal como Osvaldo Aranha e o próprio Getúlio Vargas. Existiam claramente uma negociação, uma reposta e uma emissão de vistos. Evidências que levam o historiador estadunidense a afirmar que as pessoas acreditavam em certas ideias antissemitas, mas sem que essa crença configurasse um antissemitismo extremado a ponto de matar judeus. A discussão, pondera Lesser, é, de certa forma, sobre linguagem, porque seria impossível dizer que os líderes do Brasil daquela época não tiveram ideias preconceituosas, mas as ideias de Vargas, Francisco Campos, Oliveira Viana, eram mais ou menos comuns naquele período. O mais importante, no caso do Brasil, foi a quantidade de judeus que entraram, e não as ideias discursivas dos dirigentes, pois eram iguais em quase todos os países. A grande diferença é que no Brasil entraram muitos judeus – neste fato reside a discussão capital.

Para finalizar, seria interessante retomar a comparação entre duas das “nações de imigrantes” – Brasil e Estados Unidos – que, na verdade, está muito mais implícita no livro do que explicitada em seus argumentos. Para Jeffrey Lesser, a relação entre imigração e identidade nacional no Brasil é diferente daquela nos Estados Unidos. Estes, ao contrário dos brasileiros, são extremamente otimistas, e sua elite acha que o povo norte-americano é o melhor do mundo e que os imigrantes, ao chegarem, não têm alternativa senão tornarem-se grandes americanos. No Brasil, os imigrantes sempre foram considerados como agentes do aperfeiçoamento de uma nação imperfeita, conspurcada pela história do colonialismo português e pela escravidão africana. Vista pela ótica da longa duração, a imigração ajudou as elites brasileiras a imaginar um futuro melhor do que o presente e o passado. Absorção e miscigenação são, portanto, elementos-chave para o entendimento do processo. A brasilidade foi e continua sendo construída através da incorporação progressiva da multietnicidade, pois nas palavras do historiador, o Brasil, ao contrário do que muitos pensam, é muito mais que uma mescla de brancos, negros e índios.

Paulo Cesar Gonçalves – Departamento de História da Universidade Estadual de São Paulo – UNESP, Assis, SP, Brasil. E-mail: [email protected]

LESSER, Jeffrey. A invenção da brasilidade: identidade nacional, etnicidade e políticas de imigração. São Paulo: Editora Unesp, 2015. Resenha de: GONÇALVES, Paulo Cesar. Uma “Nação de Imigrantes”. Almanack, Guarulhos, n.13, p. 221-225, maio/ago., 2016.

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A História deve ser dividida em pedaços? – LE GOFF (FH)

LE GOFF, Jacques. A História deve ser dividida em pedaços? São Paulo: Editora UNESP, 2015. Resenha de: COPPES JÚNIOR, Gerson Ribeiro. Forjando o historiador: periodização e longa Idade Média. Faces da História, Assis, v.2, n.2, p.202-206, jun./dez., 2015.

O falecimento de Jacques Le Goff, em abril de 2014, foi tão impactante quanto a morte de Eric Hobsbawm dois anos antes. Com a partida de Le Goff, abria-se uma lacuna, um vazio nos estudos medievais daquele que foi um dos seus escudeiros mais fiéis na luta contra as sombras que insistiam em ser colocadas sobre esse período; assim como no campo metodológico, onde a perda não fora menor para os fundamentos da teorização da chamada História Nova.

O último livro de Le Goff – A História deve ser dividida em pedaços?2 – mostra, nas palavras do autor, um “livro-percurso” que atravessa sua trajetória como historiador. As indagações as quais Le Goff se propôs a investigar seriam como a emergência de uma mundialização, implicando nos questionamentos da noção de periodização ou da ação do homem sobre o tempo.

Se o recorte do tempo em períodos é importante para a História, deve-se levar em consideração que esses recortes não são neutros e, além disso, são objetos de disputa. Desta forma, para compreender as vicissitudes da periodização – sua necessidade ou não, remetendo à pergunta-título – Le Goff examinou as motivações que estiveram presentes na formação de dois períodos, a Idade Média e o Renascimento.

Apesar das diferentes tentativas de periodização que se seguiram até o século XV, a noção de Idade Média como período singular só surgiria entre os séculos XIV e XV, quando certos grupos de escritores e poetas, principalmente na Itália, pressupunham viver em um período distinto e novo e precisavam definir um nome para o período do qual apontavam estar saindo.

Mesmo que o primeiro autor a utilizar o termo “Idade Média” tenha sido Petrarca no século XIV, seu uso não seria corrente até o século XVII e, assim, iniciou-se também sua associação a um tempo sombrio, visto claramente como exemplo na tradução da expressão para o inglês britânico – Dark Ages.

Seria necessário percorrer até o século XIX para que tal conotação negativa fosse desvinculada e se tornasse possível vislumbrar um período brilhante. No século XX, Marc Bloch e os Annales perseguiram de forma semelhante uma época com seus brilhos e sombras. No entanto, o aspecto negativo resistiu a essas tentativas de rever esse período sob uma perspectiva diferente.

A construção de uma visão negativa da Idade Média, para Le Goff, expõe como a periodização da História não era e não é um processo neutro e passível de modificações conforme o decorrer do tempo. A própria noção de Renascimento seria um exemplo desses aspectos de construção/reconstrução, visto que o termo não existia antes do século XIX e demorou a ser imposto sobre a Idade Média.

Da mesma forma, a noção de Antiguidade que, na Idade Média, referia-se somente à Grécia e a Roma, se transforma, posteriormente, nesse processo que emerge no período medieval conveniando, atualmente, em chamar de Antiguidade Tardia o período datado do século III ao VII, marcando nessa transição para a Idade Média uma transformação longa e dinâmica.

A necessidade de fracionar a História surgia em função de sua própria evolução como saber particular e matéria de ensino. Se os monges e cronistas prefiguravam um saber histórico, os progressos da erudição na análise das fontes no século XVII indicavam uma “revolução” do método. O amor pela verdade passava pela análise da prova, pois a construção de periodizações baseava-se em estabelecer uma verdade histórica.

A História como matéria de ensino, no entanto, só surgiria como tal no século XVIII e XIX e ainda presa a exemplos morais ligados a noção de historia magistra vitae. A evolução do ensino de História durante o século XIX refletia duas preocupações: manter a religião e tomar consciência da nação. A transformação da História em matéria de ensino levou à sistematização em períodos que tornasse capaz captar seus pontos de alternância. E nesse aspecto, durante o século XIX, ressurge a oposição entre Idade Média Obscura e Renascimento das Luzes.

Nos capítulos Nascimento do Renascimento e O Renascimento Atualmente, Le Goff continua sua análise agora buscando a invenção dessa expressão para denotar um período singular, o Renascimento, e como o período foi abordado pelos seus teóricos durante o século XX.

Se a expressão Idade Média surge com Petrarca, no século XIV, também surge com ele a noção de um novo período em oposição a um anterior, para a qual seria designada uma expressão própria somente no século XIX.

Na História da França de 1833, Jules Michelet apresentava uma visão positiva de Idade Média como período de luz, criação. No entanto, no decorrer de sua trajetória a Idade Média, que atuava como um “espírito materno” se tornava longínqua, distante, uma inimiga. Se até aquele momento não havia o hábito de se dividir a História em períodos, com exceção da divisão entre “antigo” e “moderno”, e a adição do tempo mediano, “medieval”, criado por Petrarca, Michelet cunhou o Renascimento com maiúsculo como um movimento distinto na História oposto ao obscurantismo do período medieval.

No século XX, Le Goff aponta que o discurso enaltecedor do Renascimento, que atravessou o século XIX, continuou com nomes como Eugenio Garin, Erwin Panofsky e Jean Delumeau. Eugenio Garin apontava que a maioria dos historiadores do século XX havia reavaliado a Idade Média e rebaixado o Renascimento. Portanto, ele buscava em seus trabalhos destruir essas “catedrais de ideias” sobre o período medieval. Garin enunciava duas ideias centrais na análise da relação entre Idade Média e Renascimento: a Itália como centro e coração do Renascimento; e o novo homem que ela forma reunindo nesse território todos os conflitos dessa época. Erwin Panofsky apontava ainda para uma pluralidade de renascimentos precursores e Jean Delumeau apontava que dois aspectos que faziam do renascimento um período completo eram a descoberta da América e a circum-navegação mundial.

Nos capítulos A Idade Média se torna “os tempos obscuros” e A longa Idade Média, as visões sobre o Renascimento são confrontadas com a construção em torno de uma Idade Média como período de trevas. Le Goff busca a construção uma nova visão sobre esse período. Se a necessidade de acessar a Antiguidade levou ao desprezo dos humanistas de um dito Renascimento pela Idade Média, que teriam ignorado esse período, Le Goff se põe a apontar o inverso, como a Idade Média se apropriou e deu continuidade a certos aspectos da Antiguidade.

Entre o século XV e XVIII a ideia de uma Idade Média ligada às trevas era associada a um recuo da racionalidade dando lugar ao sobrenatural. Porém, a racionalidade se entremeou de certa forma na teologia chegando a transformá-la em ciência no século XIII. Apesar da periodização de Santo Agostinho – os seis períodos na História como metáfora para as seis idades do homem – ter prevalecido, existiam clérigos que discordavam da ideia de que o “mundo envelhece” e se reconheciam como “modernos”.

Le Goff frisava, contudo, a dificuldade do uso do termo moderno durante a Idade Média, pois poderia ter um sentido tanto laudatório quanto pejorativo por essa concordância/discordância com o envelhecimento do mundo. A noção de moderno era incompatível com a finitude das seis idades.

Para Le Goff, o renascimento intelectual do século XII, cujas mudanças levaram esses clérigos a flertarem com a concepção de moderno, foi conservado sob uma zona cinzenta. A escolástica continuou como objeto principal da crítica e rejeição dos letrados entre os séculos XVI e XVIII, como Voltaire, que apontava que a teologia escolástica era uma filha bastarda de Aristóteles.

Apesar da reabilitação da Idade Média no século XIX, Ernest Renan ainda apontava a escolástica como barreira para o delicado; os homens e mulheres medievais ainda eram bárbaros. Desta forma, Le Goff delineava uma Idade Média multifacetada e também apontava, como contraposição, que certos aspectos atribuídos a esse período estavam localizados, temporalmente, no Renascimento, como os pogroms, a inquisição e os movimentos milenaristas.

No capítulo A Longa Idade Média, Le Goff retoma sua tese e intenta provar que não haveria mudança fundamental durante o século XVI e XVIII que justificasse a separação entre Idade Média e Renascimento, um período novo. O historiador visa a apontar as continuidades do período medieval no mundo “moderno” e, assim, apesar da descoberta da América, em 1492, ser apontada por Delumeau como ponto característico da singularidade do Renascimento, Le Goff expõe que a América só se tornaria interlocutor da Europa após as Independências entre o fim do século XVIII e XIX. Não existia um mundo unificado, mas territórios do mundo.

As carestias na área agrícola foram frequentes desde o século X até o século XVIII e a alimentação europeia foi primordialmente vegetal até o século XVIII. O século XVI foi um período marcado pelas guerras de religião e o cristianismo é majoritário até o século XVIII. Apesar do assassinato de Carlos I, em 1649, na Inglaterra, a monarquia francesa conservou-se até o século XVIII.

Se Cristóvão Colombo descobre a América em 1492, ele ainda era um homem da Idade Média, pois sua preocupação consistia em trazer aos pagãos/indígenas todos os preceitos e fundamentos condizentes à doutrina e à fé cristã. Nisso, Le Goff indaga se no prolongamento do período medieval o que é mais importante: as continuidades ou as rupturas? Desta forma, para Le Goff, a Idade Média só se encerraria com o advento da indústria moderna e das enciclopédias. O Renascimento do século XV e XVI é, portanto, encarado como o último renascimento dessa longa Idade Média prenunciando os tempos modernos.

No último ensaio, Periodização e Mundialização, Le Goff tenta voltar à ideia inicial do texto, de entender como a mundialização implicava no questionamento da noção de periodização. Para o autor, a periodização se torna indispensável para o historiador compreender o tempo tendo em vista que a própria periodização seria a necessidade do homem de agir sobre o mesmo. A mundialização causaria essas questões em torno do tempo, das continuidades, rupturas, dos modos de pensar a História. A periodização seria deste modo, o meio encontrado por Le Goff de problematizar essas questões, esclarecendo como a humanidade se organiza e evolui no tempo. Desta forma, a História deveria sim ser dividida em partes.

Le Goff, em A História deve ser dividida em pedaços?, retoma problemas que já haviam sido expostos no livro Uma Longa Idade Média (2008) evidenciando como o conceito de longa Idade Média se desenvolveu nos trabalhos do autor a partir da década de 1980. Os problemas levantados por Le Goff durante sua pesquisa em torno da extensão temporal da Idade Média encontraram certa continuidade em alguns historiadores.

Jerome Baschet, no livro A civilização feudal (2006), prefaciada por Le Goff, ampliava o conceito de longa Idade Média, utilizando-a para analisar uma “herança medieval” no México durante a colonização. No tópico intitulado “Periodização e longa Idade Média”, Baschet defende que a Idade Média seria um antimundo, um mundo de tradição oposto ao moderno, e essa imagem oposta só seria possível pela ruptura representada pela Revolução Industrial, e não pelo Renascimento. O estudo da Idade Média seria, então, um exercício de alteridade.

A obra A História deve ser dividida em pedaços? poderia ser vista, como questiona Virginie Tournay, como um testamento intelectual? (2014). O esforço de Le Goff para situar suas obras na historiografia já estava presente desde os anos 2000, como em Uma Longa Idade Média. Este livro poderia ser visto como a última peça dessa construção de sua trajetória, durante a qual, Le Goff, de próprio punho, visava à agregação de todas essas discussões que manteve, reforçando os caminhos tomados durante sua carreira e um esforço próprio do autor de se autoperiodizar.

Notas

2 Livro originalmente lançado em fevereiro de 2014, na França, sob o título Fault-il vraiment découper l’historie em tranches?, publicado no Brasil pela Editora UNESP, em 2015.

Referências

BASCHET, Jerome. A Civilização Feudal: do Ano Mil à Colonização da América. São Paulo: Editora Globo, 2006.

LE GOFF, Jacques. A História deve ser dividida em pedaços? São Paulo: Editora UNESP, 2015.

________. Uma longa Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

TOURNAY, Virginie. Faut-il vraiment découper l’histoire en tranches?Lectures [online], Lescomptesrendus, 2014. Disponível em: <http://lectures.revues.org/15220>acesso em: 09 de novembro 2015.

Gerson Ribeiro Coppes Júnior – Mestrando em História – Programa de Pós-graduação em História – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Univ. Estadual Paulista, Campus de Assis – Av. Dom Antonio, 2100, CEP: 19806-900, Assis, São Paulo – Brasil. Bolsista CNPq. Este trabalho é resultado de pesquisa desenvolvida no âmbito do Projeto Temático “Escritos sobre os Novos Mundos”, financiado pela FAPESP. E-mail: gersoncoppes@ hotmail.com.

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Alegrias engarrafadas: os álcoois e a embriaguez na cidade de São Paulo no final do século XIX e começo do século XX – CAMARGO (FH)

CAMARGO, Daisy de. Alegrias engarrafadas: os álcoois e a embriaguez na cidade de São Paulo no final do século XIX e começo do século XX. São Paulo: Editora Unesp, 2012. 220p. Resenha de: BOTARO, Luis Gustavo Martins. Faces da História, Assis, v.1, n.2, p.223-228, jul./dez., 2014.

Nos últimos anos têm crescido o número de pesquisas e trabalhos acadêmicos que envolvem a cidade e o espaço urbano enquanto objeto de reflexão1. Sob diversos aspectos, as cidades são discutidas enquanto pano de fundo de disputas políticas, relações sociais e culturais em distintos momentos históricos. Entre essas diferentes perspectivas de análise, há de se destacar o enfoque sob uma abordagem cultural, por meio das representações criadas sobre o urbano, despertando a atenção dos pesquisadores. Sendo assim, a pesquisa de doutorado da historiadora Daisy de Camargo, publicada, em livro, em 2012, aborda os espaços, materiais e práticas da embriaguez da cidade de São Paulo na virada do século XIX para o século XX. A pesquisa perpassa as transformações e reformas urbanas da cidade naquele período que atingem, também, o cotidiano, modos e costumes da população.

Seu objetivo geral é compreender o consumo de bebidas alcoólicas na cidade de São Paulo, os espaços onde as mesmas eram consumidas, as relações sociais nesses locais, os gestos e práticas da embriaguez. As analogias desses espaços e práticas com as propostas e reformas urbanas para a cidade de São Paulo: a emergência de uma nova dinâmica urbana que ganha vida com as transformações urbanas desejadas de um lado e, por outro, as interferências e controle dos espaços onde se comercializava e consumia as bebidas alcoólicas, no cotidiano e nas práticas daqueles que frequentavam esses locais da embriaguez.

Daisy de Camargo, atualmente, dedicou-se à história material e das sensibilidades. Produziu seu texto a partir do gênero narrativo, mas sem abandonar os conceitos e a linguagem acadêmica. Tratou sobre as reformas urbanas da cidade de São Paulo na virada do século, tema muito explorado pelos pesquisadores. Contudo, o diferencial de sua obra são os personagens e as fontes com os quais ela dialogou.

Leitora de Walter Benjamin e de Baudelaire, a autora destaca que o trabalho do historiador é selecionar os cacos do passado e, nesse processo, exercer uma ressignificação do mesmo. Esse processo se dá a partir do cruzamento de distintos registros históricos, ou seja, a partir da seleção de símbolos elaborados por homens num determinado tempo histórico. Para representar suas experiências, o historiador estabelece um diálogo dele com os “trapos” do passado e, nesse processo, reelabora-o e ressignifica-o. A autora também utiliza, como aporte metodológico, a micro-história, proposta por Carlo Ginzburg, visto que, ao tratar sobre os “retalhos” do passado, os dados marginais são considerados reveladores e permitem levar a um quadro histórico mais profundo (CAMARGO, 2012, p.16).

Para composição desses vestígios do passado, a autora utilizou uma gama heterogênea de fontes históricas. Vale ressaltar os documentos produzidos por instituições do Estado como: relatórios dos chefes da polícia, inquéritos policiais, inventários de bens post-mortem, plantas das cidades e dos espaços em que se comercializava e se consumia bebidas alcoólicas. Camargo também utilizou, em seu trabalho, os romances de memorialistas, jornais da época, imagens como pinturas, fotografias e caricaturas.

Com as fontes e a metodologia definida, Daisy de Camargo dividiu o seu trabalho em duas partes: num primeiro momento, a autora elencou os espaços de venda e consumo das bebidas alcoólicas, como os armazéns de secos e molhados, as tabernas e quiosques. Mapeando todos os locais onde se encontravam tais estabelecimentos, como, por exemplo, a Rua Esperança, um dos principais pontos de embriaguez, posteriormente “engolido” pelas reformas urbanas da cidade de São Paulo. Numa segunda etapa, a autora retratou os agentes sociais da ebriedade, a perseguição aos seus costumes e a restrição à embriaguez, bem como algumas imagens que possibilitam uma leitura crítica sobre suas práticas.

Um dos objetivos de Daisy de Camargo foi escrever uma história material da embriaguez, na cidade de São Paulo, na virada do século XIX para o XX. Sendo assim, a partir de inventários post-mortem, a autora conseguiu reconstruir os espaços das tavernas: a variedade de tipos de bebidas para diferentes ocasiões, os distintos objetos para o consumo de álcool, copos de tamanhos variado sendo cada qual para um tipo específico de bebida. Ainda sobre os materiais que compõe um espaço da ebriedade e sociabilidade, Camargo destacou os móveis (como o balcão, mesas, cadeiras e bancos) que podem ser, constantemente, rearranjados segundo os interesses de cada grupo e a ocasião. Além de espaços para a venda e consumo de álcool, Daisy de Camargo ressalta que, em alguns casos, tavernas eram, também, locais de produção de bebidas, fazendo alusão a alguns materiais e produtos descritos nos inventários, como pequenos alambiques e rótulos de bebidas.

Baseada nos registros de memorialistas, nos códigos de postura e na imprensa paulista, a autora identificou que, em meados de 1850, já havia uma preocupação das autoridades públicas na fiscalização das tavernas e tascas da cidade de São Paulo. Segundo a autora estes locais eram representados como ambientes sem as condições mínimas de higiene, espaços de baixa moralidade, de vícios e da embriaguez, frequentado por gente de toda sorte, entendidos enquanto desqualificados (CAMARGO, 2012, p. 58-65).

Uma das consequências da fiscalização sobre as tavernas e tascas da cidade de São Paulo, por exemplo, foi o “desaparecimento” nos almanaques de tais estabelecimentos comerciais, ou seja, a categoria de “tavernas” ou “fábricas e destilação”2. Entretanto, não significava um desaparecimento efetivo, devido à perseguição, mas a mudança da designação que o caracterizava, passando a ser denominado por “armazéns de secos e molhados”. A fiscalização e atenção do poder público, nos anos subsequentes, ganhou ainda mais força, concomitante com os ideais de higiene, moralidade, racionalidade, modernidade e progresso desejados pela elite para toda a sociedade paulistana.

Entre os últimos anos do século XIX e início do século XX, a perseguição às tavernas e tascas na cidade de São Paulo desencadeou a construção de outros espaços para a venda e consumo de álcool. Dentre eles, os quiosques, de propriedade, em sua maioria, de imigrantes ou descendentes de portugueses3. Construído de estruturas pré-fabricadas e importado da Europa, esses estabelecimentos, inicialmente, eram símbolos da modernidade, por sua padronização e identificação com os quiosques da cidade de Paris (CAMARGO, 2012, p. 74-75). Entendido, pela autora, como espaço de lazer, os quiosques eram frequentados por negros forros e brancos pobres e seus hábitos não eram compatíveis com as condutas discutidas e que passariam a ser incorporadas no espaço urbano.

Devido ao número de reclamações nos jornais, frente a tais locais do prazer e sociabilidade, bem como a fiscalização movida pelos ideais modernizadores dos espaços e costumes, os quiosques desapareceram com as reformas urbanas dirigidas pelos prefeitos Antônio Prado e Barão de Duprat. Nesse processo, no lugar desses espaços da embriaguez, ergueram-se cafés luxuosos, restaurantes, lojas e vitrines com suas novidades, num movimento de cosmopolitismo da cidade. Assim sendo, foi possível apontar o desaparecimento desses espaços de baixa moralidade no centro da cidade, assim como aqueles que os frequentavam. A autora considerou que os quiosques no Brasil foram um exemplo da ressignificação da modernização urbana: enquanto na Paris de Haussmann os quiosques foram símbolos da modernidade, no Brasil, devido a anterior perseguição às tavernas, tornaram-se locais de venda, consumo de álcool e da sociabilidade daqueles marginalizados na sociedade.

Daisy Camargo apontou outro espaço de sociabilidade, venda e consumo de álcoois no início do século XX: os cabarés. A autora analisou esses espaços por meio do romance Madame Pommery, de Hilário Tácito, escrito nas primeiras décadas do século XX. Diferente da rusticidade das tascas e tavernas, os cabarés eram locais luxuosos, ornamentados, um misto de restaurante, hotel e bar. Gerenciados, em sua maioria, por mulheres, esses locais eram frequentados por coronéis vindos do interior, que encontravam diversão nos jogos de azar, o prazer no consumo de bebidas alcoólicas e nas prostitutas que ali frequentavam (CAMARGO, 2012, p. 86). Consumia-se, além das bebidas comuns das tavernas, o haxixe, a cocaína e a champanhe, esta, por sua vez, entendida como uma bebida do ser urbano que se pretendia civilizado e interligado à cultura francesa.

De acordo com a autora, os cabarés que emergiam no centro da cidade, enquanto manifestação de outras formas de embriaguez e prazer eram “traduções do luxo das tavernas” (CAMARGO, 2012, p. 87), mas que não deixaram de ser perseguidos devido à conduta daqueles que os frequentavam, sendo visto como um espaço do vício e da imoralidade. Esses locais também sofreram as consequências das reformas colocadas em prática nas primeiras décadas do século XX, desaparecendo para que em seu lugar se constituísse o alargamento das ruas e a construção de prédios públicos, teatros, praças, cafés, restaurantes luxuosos, ou seja, espaços condizentes com os anseios da elite. Para a autora, além do desaparecimento dos cabarés, tascas e tavernas do centro da cidade, esse fenômeno era acompanhado da exclusão daqueles que frequentavam tais espaços, um controle do Poder Público em relação ao prazer, aos costumes e práticas de determinados segmentos ainda mais marginalizados da sociedade, que buscavam, a sua maneira, resistir e buscar seus espaços num ambiente em constante transformação.

Por meio de processos criminais, a autora conseguiu identificar as apreensões que tinham como justificativa a embriaguez. Na maioria dos casos, os “infratores” eram brancos pobres, estudantes, imigrantes pobres e negros, que além de serem acusados de embriaguez, logo, eram associados a “vadiagem” (CAMARGO, 2012, p. 96-102; 132-133). Para os homens das leis, com formação em Direito, a embriaguez era associada à vadiagem, sendo que o ébrio era classificado como um perigo social, com propensão a cometer delitos, a tumultuar a ordem pública e a falta de interesse ao trabalho, na contramão do que era desejado.

Todavia, nos testemunhos daqueles que eram aprendidos, em sua maioria, afirmavam exercer algum tipo de atividade, como lavadeiras e carregadores de bagagem nas estações de trem, por exemplo. Segundo Daisy de Camargo, havia um desprezo do poder público e da sociedade sobre aqueles que exerciam trabalhos informais, sem normas e regras pré-estabelecidas, considerados, assim, vadios aqueles que não se sujeitavam ao expediente convencional.

O conhecimento racional, baseado nos preceitos da ciência, que dominavam as instituições públicas do Brasil e da cidade de São Paulo, na virada do século XIX para o XX, transformou o ébrio num personagem da anticonduta. Os pensamentos sobre a saúde e a moral, discutidos por sanitaristas e pelos homens das leis, defendiam a necessidade de conscientização e disciplinarização das camadas mais pobres da sociedade, para criar bons hábitos e educação sanitária, nesse sentido, passaram a associar o uso do álcool com a degeneração física e moral. Segundo a autora, observa-se uma transformação na figura do ébrio, antes representado por aquele, que sob os efeitos do álcool, tinha atitudes engraçadas, com as vestimentas desarrumadas, postura inclinada, com tom de voz elevado e altas gargalhadas, passando a ser entendido enquanto indivíduo que pode vir a cometer delitos, que se tornou uma desgraça à família e ameaça aos padrões que a sociedade buscava consolidar. Cria-se, portanto, uma nova doença: o alcoolismo, difundido pela medicina e que relacionava a bebida à imoralidade, à degeneração física e moral.

O movimento de proibição do uso de álcool, por ações de conscientização da população, por meio de panfletos, educação sanitária e prisões foi entendido, pela autora, como um controle e cuidado do indivíduo, buscando o cuidado com a toda a sociedade. A regulação do uso do álcool está associada a um controle anímico do corpo, numa ânsia de orientação dos sentidos sobre o argumento da defesa do coletivo.

Em suma, Daisy de Camargo faz uma relação entre as reformas urbanas da cidade de São Paulo, que iniciaram ainda no período imperial, mas que ganharam ímpeto com o governo republicano e os espaços de venda e consumo de álcool. Por meio de uma variedade de fontes históricas, a autora alcançou as experiências, as práticas de consumo, a organização interior e a sociabilidade nas tavernas, cabarés e quiosques da cidade. Cada qual com uma temporalidade e experiência de seu tempo, enfrentavam e resistiam aos ideais que acompanhavam a virada do século, sob os preceitos da Medicina, Engenharia e do Direito.

Portanto, a autora, além de conseguir perpassar pela história social e material da ingestão de álcoois, conseguiu reconstruir as práticas do consumo, a perseguição e controle do indivíduo e suas formas de prazer e diversão que, por sua vez, não estavam em consonância com os valores e princípios desejados para a cidade que se modernizava.

Com uma narrativa fluida e envolvente, Daisy de Camargo propõe uma análise consistente sobre um tema bastante discutido na historiografia: a modernização da cidade de São Paulo. Dentro da perspectiva da história cultural e social, a autora abordou o assunto a partir da questão da embriaguez e do prazer, por meio de uma variedade de fontes que possibilitou dar voz a personagens marginalizados, o que tornou o trabalho ainda mais sólido e ímpar. Um livro importante e necessário àqueles que buscam novas questões e fontes para lidar com a história das cidades e dos modos de vida urbano.

Notas

1 Podemos destacar aqui alguns trabalhos, como: Nicolau Sevenko (1992), Sidney Chalhoub (1996), Sandra Pesavento (2002), Fransérgio Follis (2004), Heloísa Barbuy (2006), Marshall Berman (2007).

2 Designação encontrada pela autora sobre aqueles estabelecimentos que produziam/comercializavam bebidas alcoólicas nos almanaques sobre os estabelecimentos comerciais e industriais da cidade de São Paulo entre as últimas décadas do século XIX e início do século XX (CAMARGO, 2012, p. 44- 55; 64-65).

3 A autora analisa duas tavernas em específico, nos capítulos 1 e 2, que por sua vez, são de propriedade de portugueses.

Referências  BARBUY, Heloísa. A cidade-exposição: comércio e cosmopolitismo em São Paulo, 1860-1914. São Paulo: Edusp, 2006.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Tradução Carlos Felipe Moisés, Ana Maria Ioratti. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte Imperia. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

FOLLIS, Fransérgio. Modernização urbana na Belle Époque paulista. São Paulo: UNESP, 2004.

PESAVENTO, Sandra. O imaginário da cidade: visões literárias do urbano – Paris, Rio de Janeiro, Porto Alegre. 2ª Edição. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2002.

SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frenéticos anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

Luis Gustavo Martins  Acessar publicação original

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Hobbes e a liberdade republicana – SKINNER (HP)

SKINNER, Quentin. Hobbes e a liberdade republicana. São Paulo: Editora Unesp, 2010 (Tradução de Modesto Florenzano), 214 p. Resenha de: CARVALHO JÚNIOR, Eduardo Teixeira. A metodologia de Quentin Skinner e o conceito de liberdade em Hobes. História & Perspectivas, Uberlândia, v. 26, n. 49, 8 mar. 2014.

Acesso apenas pelo link original

Vozes do Bolsa Família: Autonomia, dinheiro e cidadania – REGO; PINZANI (C-FA)

REGO, Walquiria Leão; PINZANI, Alessandro. Vozes do Bolsa Família: Autonomia, dinheiro e cidadania, São Paulo: Editora Unesp, 2013. Resenha de MELO, Rúrion. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v.19, n.1 Jan./Jun., 2014.

Todos aqueles preocupados com o crescimento econômico, melhora nas condições de vida e diminuição das desigualdades no Brasil deveriam reconhecer os impactos decisivos de certos programas redistributivos sobre a sociedade brasileira, em particular os programas de transferência direta de renda iniciados como estratégia de combate à desigualdade nos anos do governo FHC, mas sensivelmente intensificados durante o governo Lula.1 O Programa Bolsa Família (BF), caracterizado como um programa de transferência direta de renda que procura beneficiar famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza em todo país, certamente se destaca neste rol de políticas compensatórias.2 Porém, muita dúvida tem sido lançada quanto à eficácia e à justificação normativa deste programa. De que maneira podemos compreender o sentido de tal programa no âmbito de um projeto moderno de sociedade? E como medir suas consequências econômicas e sociais na vida de seus concernidos? Gostaria de refletir um pouco sobre tais questões tomando por base a interessante pesquisa publicada por Walquiria Leão Rego e Alessandro Pinzani em seu recente livro Vozes do Bolsa Família: Autonomia, dinheiro e cidadania.

Assumo de início junto com os respectivos autores a ideia de que o BF precisa ser compreendido de um ponto de vista crítico amplo que diz respeito às pretensões próprias de desenvolvimento, modernização e democratização do país. O programa tem um alvo principal que é o combate à pobreza, mas seus efeitos e condicionalidades são imensos, revelando assim um potencial importante para uma série de transformações sem as quais a promessa de um país moderno e democrático não poderia ser cumprida nas condições atuais: seus impactos atingem não apenas a camada pobre e menos favorecida da população em geral, mas mais precisamente as relações de gênero e suas consequências, tais como a estrutura familiar, o escasso horizonte educacional dos filhos, os déficits nutricionais das crianças e a inclusão cívico-política dos beneficiários. Efeitos consideráveis, sem dúvida, em um país dito desenvolvido, moderno e democrático, mas que convive com extrema desigualdade econômica e social, exclusão política, preconceito regional, racial e de gênero, e violação sistemática de direitos humanos, ou seja, a realidade de milhões de brasileiros que ainda estão “completamente fora das heranças mais básicas da civilização” (p. 15).

Nesse sentido, Vozes do Bolsa Família parte de uma cobrança inerente à nossa própria história política. Não deveríamos avaliar os efeitos dos programas redistributivos com a ótica da experiência europeia e americana, por exemplo. Sabe-se que desde pelos menos 1970 foram levados a cabo diversos diagnósticos sobre as crises dos modelos keynesianos e de bem-estar social.3 No caso brasileiro, mais precisamente a partir de 1988 (isto é, após o período do “nacional-desenvolvimentismo”), vislumbramos, pelo contrário, a possibilidade de concretizar a esperança de um Estado social democrático, um projeto de desenvolvimento econômico que não fosse desprovido de um “projeto democrático substantivo” (p. 159).4 Na qualidade de marco determinante de nossa história política recente, a Constituição de 1988 “enuncia um projeto de país e de sociedade” (p. 162), sublinhando a gênese democrática representada pelas demandas das lutas sociais incorporadas à Constituição, sobretudo no que concerne ao tema da “justiça distributiva” assumida então como um “elemento vinculante de todo o sistema normativo” (p. 165).

Mas não é só isso. Walquiria Leão Rego e Alessandro Pinzani dão um passo além na medida em que escolhem explicitar um ponto de referência normativo interno aos próprios processos que pretendem investigar e avaliar. Nosso desenvolvimento político permite ser questionado, ademais, do ponto de vista do “projeto da modernidade” por excelência. Tal projeto consiste na “promessa de autonomia (individual e coletiva)” (p. 55-56), uma promessa que a própria modernidade faz e não cumpre por razões que lhes são imanentes. Esse é um déficit específico, portanto, da sociedade capitalista contemporânea, a saber, “prometer autonomia para todos e não lhes oferecer as condições reais (e não meramente formais) para desenvolvê-la” (p. 56).

Um dos aspectos peculiares da abordagem teórica proposta no livro está voltado, assim, à investigação dos efeitos morais e políticos sobre os beneficiários do programa tendo em vista mais precisamente uma concepção de autonomia individual baseada, segundo os autores, no capability approach desenvolvido por Amartya Sen e Martha Nussbaum.5 Trata-se de entender antes de tudo de que maneira uma reflexão normativa sobre a autonomia individual dependeria crucialmente das oportunidades reais que a pessoas possuem para usufruir com liberdade de suas próprias vidas. E o BF, ao atender às dificuldades das pessoas em pior situação de pobreza, toca justamente nas capacidades e oportunidades reais de seus beneficiários.

Sendo assim, o BF poderia ajudar na realização do projeto moderno brasileiro concernente à promessa de autonomia? A resposta dos autores é sim, se entendermos o conceito de autonomia de determinada maneira: “Atribuímos autonomia a um sujeito quando ele é capaz de agir conforme um projeto pessoal de vida boa […] e de considerar a si e a outros sujeitos como capazes de estabelecer relações de direitos e deveres” (p. 57). Em outros termos, o BF pode “oferecer condições reais (e não meramente formais)” para que a modernidade cumpra sua promessa. “Somos da opinião”, afirmam os autores, “de que um programa como o BF se insere justamente nesse contexto e que seu efeito primário, além de garantir a subsistência imediata, é o de fornecer uma base material necessária para que os indivíduos possam desenvolver-se em direção a uma maior autonomia” (p. 69).

O interessante é que, ao falarmos da “autonomia” como categoria normativa, não estamos assumindo a centralidade desta categoria de fora dos contextos éticos, sociais e políticos correspondentes. Os efeitos colaterais provocados pela pobreza no Brasil não são avaliados apenas em termos objetivos e, principalmente, institucionais. Ao assumir um ponto de vista ético a partir do qual é possível ancorar uma teoria crítica da sociedade (p. 24-27), salta à vista o sofrimento, humilhação e desrespeito frequentes experimentados pelas pessoas em situação de injustiça.6 As condições objetivas da pobreza criam patologias diagnosticadas no quadro dos sentimentos pessoais, resultantes, entre outras coisas, da falta de acesso à renda regular, das dificuldades para a manutenção de uma vida minimamente saudável e da exclusão da cidadania. Assim, quando ouvimos as vozes dos excluídos e dos “invisíveis” (propósito da pesquisa, aliás), salta à vista a injustiça moral vivida pelas pessoas que carecem de um grau mínimo de autonomia.

Deste modo, identificada essa forma de patologia individual causada pela realidade objetiva do mundo econômico e social, é possível então avaliar as consequências positivas e/ou negativas do programa do BF sobre a constituição de elementos básicos da autonomia moral individual, ou seja, investigar até que ponto políticas redistributivas desse tipo são capazes de fornecer as bases materiais para a formação de um projeto independente de vida boa e de relações morais concernentes a direitos e deveres, com o propósito de possibilitar a dignidade e o autorrespeito dos membros da sociedade que se encontram vivendo sob condições de pobreza e miséria.

Para tanto, é preciso ainda mostrar que o BF pressupõe uma correlação fundamental entre “renda em dinheiro” e “autonomia individual”. Aliás, eu arriscaria dizer que essa é a tese central do livro, segundo a qual “a presença de uma renda monetária regular”, ainda que reconhecidamente insuficiente, “permite o desencadeamento de processos de autonomização individual em múltiplos níveis” (p. 38).

“Múltiplos níveis”, já que o recebimento da renda em dinheiro produz importantes efeitos na autorrealização e autodeterminação de seus beneficiários, criando as condições sociais reais básicas para os dois aspectos normativos da autonomia trabalhados pelos autores: a autonomia moral individual e a autonomia cidadã (o desenvolvimento de uma percepção de si como membro de uma comunidade política mais ampla). Em outros termos, a pesquisa mostra que o recebimento da renda monetária regular traz consigo transformações éticas, sociais e políticas imprescindíveis. Muito mais do que garantia mínima à manutenção da vida, o dinheiro, dessa perspectiva, tem antes um efeito desreificante, que, entre outras coisas, desnaturaliza as relações patriarcais dominantes e dá início a processos de libertação das mulheres diante do controle masculino familiar. “O recebimento da renda monetária”, afirmam os autores, “trouxe para muitas mulheres um elemento decisivo: a dignificação das suas pessoas como sentimento pessoal” (p. 200). O desencadeamento de processos múltiplos observado em termos de autonomia implica, na verdade, desde a capacidade individual do sujeito de fazer escolhas, passando pelo sentimento moral de governar sua própria vida, se responsabilizar pelas próprias ações e ser capaz de cuidar de si e da família, até a autopercepção de ser considerado pelo próprio Estado como membro de uma comunidade política, seu reconhecimento como cidadão.

Sem dúvida, não é uma tarefa fácil fundamentar tal tese, isto é, mostrar os múltiplos níveis da relação entre dinheiro e autonomia. Por essa razão, é digno de atenção o esforço empreendido por Walquiria Leão Rego e Alessandro Pinzani para mobilizar tantos elementos, construindo de maneira criativa, por assim dizer, os referenciais metodológicos e normativos da pesquisa: o propósito interdisciplinar de realizar uma pesquisa social com pontos de vista crítico-normativos (fazendo dialogar filosofia e sociologia), mesclar dados empíricos com entrevistas (dando primazia às análises qualitativas), realizar um balanço bibliográfico extenso e atual. Embora reconheçam que a pesquisa não foi exaustiva, pode-se ver nela os indícios empíricos do papel libertador da renda em dinheiro, ancorados na interpretação complexa, delicada e, antes de tudo, experimental dos efeitos do programa sobre as subjetividades das mulheres.

O programa BF apresenta assim muitos ganhos. Não podemos menosprezar seu impacto real na vida das famílias. Mas de modo algum podemos negligenciar seus efeitos colaterais, pois é também certo que existem dificuldades. Algumas críticas internas ressaltam, com mais ou menos razão, a ambivalência presente ao longo de sua implementação. Para alguns, enquanto programa de transferência direta de renda, o BF poderia ser radicalizado.7 Deveríamos também atentar para o impacto local muito diferenciado.8 Pesquisas sobre evasão escolar, por exemplo, mesmo apontando sucesso, explicitam ainda uma grande desigualdade regional.9 Além disso, certas críticas mais contundentes ao programa são feitas por parte do próprio discurso feminista: embora o BF possua um recorte explícito de gênero, o programa estaria paradoxalmente cristalizando o papel da mulher no sistema reprodutivo e produziria efeitos adversos relacionados à participação no mercado de trabalho (já que o programa estimularia a mulher a continuar em casa cuidando dos filhos)10

Podemos aliar a tais aspectos internos o problema segundo o qual, em termos de diagnóstico mais geral, o reformismo, absolutamente necessário no Brasil, é ambíguo. Avançamos lentamente. Pois nosso “reformismo fraco”, para usar um termo empregado por André Singer, caracteriza-se basicamente pelo fato de que a redução das desigualdades no Brasil (impulsionada, vale dizer, não somente pela política redistributiva, mas pelo aumento do emprego e da renda durante o governo Lula), ocorre em doses homeopáticas.11 O horizonte verdadeiramente democrático de expectativas, potencialmente presente no BF, deveria antes ser ampliado: o “reformismo fraco” tem de ser empurrado até o ponto em que permita vincular de fato autonomia individual e política, pois o que queremos é ver realizada a ideia normativa de um enraizamento do Estado de direito na vontade dos cidadãos. Mas sem ampla redistribuição, sem medidas extremas de combate à pobreza, à desigualdade e à injustiça, só aumentamos os obstáculos que se impõem no caminho de consolidação de uma sociedade digna de ser considerada democrática.

Os autores de Vozes do Bolsa Família estão conscientes que a tese do “relativo empoderamento” das mulheres realizado pelo dispositivo de transferência direta de renda guarda dimensões ambíguas e paradoxais. Ainda assim, afastando nosso olhar de aspectos predominantemente econômicos (para não falar de preconceitos e estereótipos comuns assumidos por boa parte da opinião pública quando se trata de falar do BF ou de políticas redistributivas em geral), os autores nos deixam ver um entrelaçamento que não pode passar despercebido entre a pobreza e o sentimento pessoal ligado ao autorrespeito, às capabilitties e à autonomização. Daí a importância de uma pesquisa que nos debruce no cotidiano, subjetividades, hábitos e expectativas das mães de famílias beneficiadas, de modo a darmos ouvido às suas vozes.

A humilhação, o sofrimento e o desrespeito são vulnerabilidades objetivamente produzidas que precisam ser politicamente sanadas. Por isso, a promoção da justiça social exige a expansão das capacidades humanas, isto é, garantias reais urgentes para o exercício da liberdade e da autonomia.

Notas

1 Cf. MEDEIROS, M.; BRITTO, T.; SOARES, F. Transferência de renda no Brasil. Novos Estudos — CEBRAP, n. 79, 2007, pp. 5-21; MEDEIROS, M.; SOARES, F. V.; SOARES, S.; OSÓRIO, R. G. Programas de transferência de renda no Brasil: Impactos sobre a desigualdade. Brasília: IPEA, 2006.

2 Para uma visão abrangente em relação ao Programa Bolsa Família, cf. SILVA, M. O. S.; LIMA, V. F. S. A. (Orgs.).Avaliando o Bolsa Família: unificação, focalização e impactos. São Paulo: Cortez, 2011; CASTRO, J. A.; MODESTO, L.(Orgs.).Bolsa Família 2003-2010: Avanços e desafios.Brasília: IPEA, 2010.

3 Cf. O’CONNOR, J. The Fiscal Crisis of the State. New Brunswick/London: Transaction Publishers, 2002; HABERMAS, J.Legitimationskrise im Spätkapitalismus.Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1973; CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: Uma crônica do salário. Trad. de Iraci Poleti. Petrópolis: Vozes, 2009.

4 Marcos Nobre sugeriu recentemente o termo “social-desenvolvimentismo” para sublinhar um novo modelo de sociedade consolidado (mas não plenamente realizado) a partir do período de redemocratização do Brasil. “Segundo o novo modelo, só é desenvolvimento autêntico aquele que é politicamente disputado segundo o padrão e o metro do social, quer dizer, aquele em que a questão distributiva, em que as desigualdades — de renda, de poder, de recursos ambientais, de reconhecimento social — passam para o centro da arena política como o ponto de disputa fundamental” (NOBRE, M. Imobilismo em movimento: Da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 24).

5 Cf. NUSSBAUM, M. Women and Human Development: The Capabilities Approach.Cambridge, ma: Cambridge University Press, 2000; NUSSBAUM, M, Creating Capabilities. The Human Development Approach. Cambridge, ma: Belknap, 2011; SEN,A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000; SEN, A A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

6 Cf. a abordagem sobre as bases sociais e morais da experiência de “injustiça” em MOORE Jr., B. Injustiça: As bases sociais da obediência e da revolta. Trad. de João Roberto M. Filho. São Paulo: Brasiliense, 1987. De maneira semelhante, ver MILLER, D. Principles of Social Justice. Cambridge, ma: Harvard University Press, 2001. Cf. também HONNETH, A. Philosophie als Sozialforschung.Zur Gerechtigkeitstheorie von David Miller. In: ______.Das Ich im Wir. Berlin: Suhrkamp, 2010, e ANDERSON, J.; HONNETH, A., A. Autonomia, Vulnerabilidade, Reconhecimento e Justiça. Tradução de Nathalie Bressiani.Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo: Crítica e Modernidade, n. 17, 2011, pp. 81-112.

7 Cf. SUPLICY, E. M. O direito de participar da riqueza da nação: do Programa Bolsa Família à Renda Básica de Cidadania. Ciência & Saúde Coletiva, v. 12, n. 6, 2007, p. 1623-1628. Cf. ainda a nova edição de SUPLICY, E. M., Renda de cidadania : A saída é pela porta. São Paulo: Cortez, 2013.

8 Cf. ROCHA, S. O Programa Bolsa Família. Evolução e efeitos sobre a pobreza. Economia e sociedade, v. 20, n. 1, 2011, pp. 113-139.

9 Cf. AMARAL, E. F. L.; MONTEIRO, V. P. Avaliação de impacto das condicionalidades de educação do Programa Bolsa Família (2005-2009).Dados, v. 56, n. 3, 2013, pp. 531-570; CACCIAMALI, M. C.; TATEI, F.; BATISTA, N. F. Impactos do Programa Bolsa Família federal sobre o trabalho infantil e a frequência escolar. Revista de economia contemporânea, v. 14, n. 2, 2010, pp.269-301.

10 Cf. MARIANO, S. A.; CARLOTO, C. M. Gênero e Combate à Pobreza: Programa Bolsa Família. Revista Estudos Feministas, v. 17, n. 3, 2009, p. 901-8; GOMES, S. S. R. Notas preliminares de uma crítica feminista aos programas de transferência direta de renda: o caso do Bolsa Família no Brasil. Contextos. Porto Alegre, v. 10, n. 1, 2011, p. 69-81; TAVARES, P. A. Efeito do Programa Bolsa Família sobre a oferta de trabalho das mães. Economia e sociedade, v. 19, n. 3, 2010, p. 613-35.

11 “O que estamos vendo, portanto, é um ciclo reformista de redução da pobreza e da desigualdade, porém um ciclo lento, levando-se em consideração que a pobreza e a desigualdade eram e continuam sendo imensas no Brasil” (SINGER, A.Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 195).

Referências

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Rúrion Melo – Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

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Festa de negro em devoção de branco: do carnaval na procissão ao teatro no círio | José Ramos Tinhorão

A festa como temática em pesquisas é um assunto recente entre os historiadores, pois estes se interessaram pelo assunto apenas nas últimas décadas. No entanto, já é abordada há algum tempo por outros estudiosos, como os folcloristas, jornalistas e sociólogos brasileiros. O jornalista José Ramos Tinhorão, nascido em 1928 em Santos-SP, é crítico e pesquisador na área da história da música e história literária brasileira, autor de uma extensa e diversificada obra sobre temas relacionados à música e festas populares no Brasil e Portugal, com base na pesquisa histórica1.

Os textos publicados por Tinhorão tendem ao materialismo histórico. Em sua obra, é possível notar frequente denúncia sobre a alienação das classes dominantes e uma valorização das classes populares como detentoras da verdadeira cultura nacional. O autor, atravessado pelos novos paradigmas da historiografia, propõe um diálogo com outras disciplinas e utiliza uma diversidade de fontes em sua investigação que abrange desde fontes oficiais, como leis, regimentos e posturas até fontes que outrora não eram consideradas seguras pelos historiadores, como os testemunhos de contemporâneos, o teatro, a literatura de cordel e impressos (folhetos, farsas, entradas e loas). Leia Mais

Um metódico à brasileira: a história da historiografia de Afonso de Taunay (1911-1939) | Karina Anhezini

Apesar da importância da obra de Afonso de Taunay, durante muito tempo sua obra permaneceu pouco pesquisada. Nos últimos anos esse quadro foi alterado, como nos informa o sugestivo estudo de Ana Claudia Fonseca Brefe, O museu paulista: Affonso de Taunay e a memória nacional (2005), no qual se dedica a analisar parte da obra deste autor, especialmente, conjecturando sua contribuição na remodelação do Museu Paulista, quando foi seu diretor.

O trabalho de Karina Anhezini (2011) – fruto de sua tese de doutorado, defendida em 2006, e agora publicada – avança ainda mais nessas questões, ao propor analisar a história da historiografia de Afonso de Taunay, tendo em vista os locais que passou, e em que medida contribuíram com sua produção histórica. Assim, contrariando, de certa forma, aos cânones instituídos pela história do pensamento social e político brasileiro, o seu estudo procurou justamente inquirir a história da historiografia construída na obra de Afonso de Taunay, entre 1911 e 1939, e nos oferece uma bela contribuição para o estudo da temática. Leia Mais

Política Externa Brasileira: a busca da autonomia/de Sarney a Lula | Tullo Vigevani e Gabriel Cepaluni

As potências médias têm política externa? O que significa ter autonomia nas relações internacionais? Quais os melhores caminhos para alcançá-la? Como as noções de autonomia se relacionam com a crescente interdependência econômica global? E como é processada diante dos movimentos de integração regional? Guiados por tais problemas, Tullo Vigevani e Gabriel Cepaluni – professores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) – pensam a experiência internacional contemporânea do Brasil. Por um lado, as reflexões teóricas sobre os significados de autonomia delimitam o foco do estudo sobre a política externa brasileira após o fim do regime militar. De outro, a investigação empírica confere substância à construção conceitual sobre as formas peculiares de como a busca por autonomia se manifestou em cada contexto. Sob uma abordagem dialógica entre geral/particular e abstrato/concreto, os autores explicitam a co-constituição e a simbiose entre o pensamento teórico e o empírico.

No primeiro capítulo, Vigevani e Cepaluni debatem as diferentes noções de autonomia nas Relações Internacionais e apresentam suas próprias formulações. De acordo com os autores, a literatura latino-americana compreende autonomia como uma noção que se refere a uma política externa livre dos constrangimentos impostos pelos mais poderosos. Nesse sentido, autonomia é o espaço do não-impedimento e da autodeterminação. É a capacidade de resistir ou neutralizar as forças externas que restringem a liberdade de um Estado de traçar seus próprios rumos. Essa visão se contrapõe às noções presentes nas teorias mainstream, que reduzem seu significado à igualdade jurídica da soberania dos Estados. Leia Mais

O caminho desde a Estrutura: ensaios filosóficos 1970-1993 – KUHN (P)

KUHN, Thomas S. O caminho desde a Estrutura: ensaios filosóficos 1970-1993 (Com uma entrevista autobiográfica).  Editado por James Conant e John Haugeland. Traduzido por Cezar Mortari. São Paulo: Editora UNESP, 2006. Resenha de: DAL MAGRO, Tamires. Principia, Florianópolis, v. 16, n. 2, p.345–352, 2012.

Originalmente publicado em 2000, nos Estados Unidos, temos desde 2006 disponível em português O caminho desde a Estrutura, de Thomas Kuhn, em tradução de Cezar Mortari (UFSC), que registra o pensamento desse autor entre 1970 e 1993.

Os editores, James Conant e John Haugeland (ambos da Universidade de Chicago), dividiram o livro em três partes, com 11 capítulos ao total, além de uma entrevista e uma listagem das publicações de Kuhn ao final. A primeira parte, “Reconcebendo as revoluções científicas”, trata de revoluções, incomensurabilidade e a filosofia histórica da ciência. A segunda, “Comentários e réplicas”, contém algumas respostas de Kuhn a seus críticos, em particular no que diz respeito à mudança de teorias, racionalidade e objetividade na ciência e à distinção entre ciências naturais e humanas.

Por fim, a terceira parte, “Um debate com Thomas Kuhn”, contém uma entrevista autobiográfica. Essa coletânea é sem dúvida o registro mais importante disponível atualmente dos textos tardios de Kuhn, sendo especialmente esclarecedor acerca de questões que foram polêmicas no período imediatamente posterior à publicação de A estrutura das revoluções científicas (doravante: Estrutura). Houve mudanças importantes no pensamento e nas formulações de Kuhn durante esse período, mas que são pouco conhecidas do hoje vasto público leitor da Estrutura.

Publicado inicialmente em 1962, a Estrutura pode ser considerado o livro mais influente da filosofia da ciência do século vinte. Além de romper com alguns padrões que predominaram na filosofia da ciência da primeira metade do século passado, que tendiam a privilegiar discussões e abordagens abstratas e metodológicas, o livro mostrou, talvez definitivamente, que qualquer análise adequada da ciência tem de levar em conta também a sua história. A recepção inicial da obra na década de 1960 foi controvertida, e um registro disso pode ser encontrado em A crítica e o desenvolvimento do conhecimento, organizada por Lakatos e Musgrave (1a¯ ed. 1970). Autores como Popper, Lakatos e Laudan acusaram a abordagem kuhniana de ser relativista, psicologista, dogmática e irracionalista, criticando especialmente alguns dos conceitos introduzidos por Kuhn, como os de ‘revolução científica’ e ‘incomensurabilidade’, e também o papel dado pelo autor a elementos não-observacionais — ideologia, comportamento social dos cientistas, capacidade de persuasão, inclinações metafísicas etc. — na escolha entre teorias nos períodos de revolução. Kuhn recusou essas críticas e dedicou boa parte do seu trabalho posterior a responder e reformular seu pensamento à luz dessa recepção inicial.

Nesta resenha destacaremos apenas os textos de O caminho desde A estrutura (doravante: O caminho) que tratam diretamente desses três tópicos (revoluções científicas, incomensurabilidade e os critérios de escolha entre teorias rivais), comparandoos com o pensamento de Kuhn na Estrutura e no artigo “Objetividade, juízo de valor e escolha de teoria”, que faz parte da coletânea A tensão essencial (1a¯ ed. 1977), do mesmo autor.

Revoluções científicas

Na Estrutura, Kuhn notoriamente empregou o conceito de revolução científica de modo a salientar os aspectos não cumulativos do desenvolvimento da ciência. A história da ciência, ele diz, contém rupturas. Essas rupturas marcam a emergência de novos paradigmas: “os cientistas adotam novos instrumentos e orientam seu olhar em novas direções” e passam a ver “coisas novas e diferentes quando, empregando instrumentos familiares, olham para os mesmos pontos já examinados anteriormente” (Estrutura, p.147). Contudo, “na medida em que seu único acesso a esse mundo dá-se através do que veem e fazem, poderemos ser tentados a dizer que, após uma revolução, os cientistas reagem a um mundo diferente” (Estrutura, p.148).

Essas passagens da Estrutura levaram alguns autores a perceber Kuhn como um relativista em ciência1. Em “O que são revoluções científicas?” (O caminho, pp.23–45), Kuhn rejeita esse tipo de leitura, e explica suas próprias concepções dizendo que as hipóteses elaboradas após uma revolução nem sempre podem ser adequadamente descritas na linguagem do paradigma anterior. As alterações que ocorrem em uma revolução não se limitam ao que é previsto pelas teorias em questão, mas afetam também a ontologia da ciência e o modo como se pensa e se descreve os objetos, bem como a prática científica (métodos, instrumentos, comportamentos dos cientistas etc.). Nesse mesmo artigo, Kuhn destaca três características do que ele entende por mudança revolucionária na ciência: i) Mudanças revolucionárias são mudanças holísticas, no sentido de que afetam a rede conceitual inteira da ciência, bem como o modo como os cientistas percebem seus objetos e os instrumentos que usam. Nessas mudanças o que ocorre não é somente uma revisão ou acréscimo em alguma hipótese ou lei anterior enquanto o resto da teoria permanece inalterado. Esse tipo de mudança mais localizada pode e de fato ocorre em períodos não-revolucionários, ou de ‘ciência normal’, como Kuhn diz. Na mudança revolucionária, são vários enunciados gerais (hipóteses, leis etc.) inter-relacionados que precisam ser revisados, e isso acaba gerando alterações globais na teoria e prática da ciência.

O modo como os termos científicos ligam-se com seus referentes muda — na Estrutura, Kuhn falava de mudança de ‘significado’. Essa mudança altera não somente os critérios pelos quais os termos ligam-se à natureza, mas os objetos mesmos: “o conjunto de objetos ou situações a que esses termos se ligam” (O caminho, p.42).

Alteram-se as categorias taxonômicas usadas para as descrições e generalizações científicas.

Isso implica em uma redistribuição dos objetos em novas categorias, que são interdefinidas. Essa mudança, portanto, está arraigada “na natureza da linguagem, pois os critérios relevantes para a categorização são, ipso facto, os critérios que ligam os nomes dessas categorias ao mundo” (O caminho, p.43).

iii) Muda o “modelo, metáfora ou analogia” usado pelos cientistas. Em outras palavras, alteram-se os padrões de similaridade e diferença entre tipos de fenômenos.

Na física de Aristóteles, “a pedra que cai era como o carvalho que cresce ou como a pessoa convalescente de uma doença” (O caminho, p.43). Padrões de similaridade como este colocam fenômenos diferentes na mesma categoria taxonômica. Esses padrões são ensinados aos estudantes das respectivas disciplinas científicas por meio de exemplos concretos exibidos por pessoas que já os reconhecem. Em períodos de revolução, esses padrões de similaridade e as metáforas que os acompanham são substituídos. Sem esses padrões e metáforas, a linguagem científica não tem como ser adquirida adequadamente, pois é por meio deles que se aprende a conectar os termos científicos aos fenômenos naturais percebidos. Em boa parte do aprendizado da linguagem, o conhecimento das palavras e o conhecimento da natureza são adquiridos conjuntamente. Na verdade, esta é uma das principais características reveladas pelas revoluções científicas: o conhecimento da natureza mostra-se inseparável da própria linguagem que expressa esse conhecimento. Assim, “a violação ou distorção de uma linguagem científica anteriormente não problemática é a pedra de toque para a mudança revolucionária” (O caminho, p.45).

Essas três características compõem a concepção tardia de Kuhn sobre revoluções científicas. Na Estrutura, Kuhn falava ainda de revoluções como mudança de paradigmas. A palavra ‘paradigma’, no entanto, mostrou-se bastante ambígua,2 e foi substituída por Kuhn já no Posfácio da Estrutura (publicado em 1970) pelas noções de ‘matriz disciplinar’ e ‘exemplar’. Em textos posteriores, como no artigo de O caminho mencionado acima, Kuhn fala de alterações taxonômicas, ou ainda em alterações nas estruturas lexicais (ver abaixo). Além disso, na Estrutura Kuhn sugere que revoluções científicas acarretam em uma mudança de mundo (ver as passagens da Estrutura, pp.147 e 148, citadas acima), algo que foi interpretado como um enunciado excessivamente relativista. Em textos posteriores, ele evita esse tipo de formulação, tratando as mudanças revolucionárias como mudanças nos léxicos que descrevem o mundo e não como mudanças no mundo mesmo.

Incomensurabilidade

Os textos reunidos em O caminho registram também mudanças nas formulações de Kuhn a respeito da noção de incomensurabilidade. Na Estrutura, ele afirmava que um paradigma que orienta a pesquisa científica depois de uma revolução é incomensurável com os paradigmas anteriores. Haveria, então, com a revolução, uma redefinição dos métodos, problemas relevantes e padrões de solução e de evidência aceitos numa disciplina. Mas, além disso, algumas passagens da Estrutura parecem sugerir que teorias de paradigmas diferentes seriam incomparáveis, pois expressariam visões de mundo diferentes ou apresentariam mundos diferentes. Por isso, não haveria como escolher racionalmente entre elas — novamente, algo que foi lido como um elemento relativista do pensamento de Kuhn. As formulações tardias da noção de incomensurabilidade são notoriamente mais fracas. Dois artigos de O caminho, em particular, tratam desse ponto: “Comensurabilidade, comparabilidade, comunicabilidade” (pp.47–76) e “O caminho desde a Estrutura” (pp.115–32). No primeiro, Kuhn apresenta o que chama de incomensurabilidade local, que é caracterizada em termos da intraduzibilidade de algumas noções centrais e interdefinidas de um léxico para o vocabulário de outro léxico. Não haveria, nesses casos, uma linguagem comum para a qual duas teorias de léxicos diferentes possam ser traduzidas sem deixar resíduos ou perdas. Isso, no entanto, não implicaria incomparabilidade, pois seriam apenas alguns termos centrais de uma teoria que não poderiam ser traduzidos para o vocabulário de outra.3 A maioria dos termos, em particular boa parte dos termos diretamente ligados a fenômenos observáveis, seriam intertraduzíveis e funcionariam de maneira semelhante nas teorias em questão. Dessa maneira, poder-se-ia comparar duas teorias por meio das previsões de observações que cada uma faz. Essa é uma versão mais modesta da noção de incomensurabilidade do que supuseram boa parte dos críticos iniciais de Kuhn. Sobre esse ponto, há uma divergência na literatura secundária. Howard Sankey (1993) sustenta que Kuhn alterou seu pensamento a esse respeito e identifica três formulações distintas da tese da incomensurabilidade; Hoyningen-Huene (1993), por outro lado, afirma que não houve mudança substancial no pensamento de Kuhn, mas apenas no modo de expressá-lo.4 O próprio Kuhn reconhece, no entanto, ao menos isto: que o uso da noção de incomensurabilidade na Estrutura era mais abrangente que seu uso tardio.

Em particular, envolvia não apenas intraduzibilidade de certos termos centrais interdefinidos de um léxico, mas também diferenças nos métodos, campo de problemas e padrões de solução (O caminho, p.48, nota 2).

Contudo, mesmo essa nova formulação da incomensurabilidade sofreu críticas: se não há como traduzir completamente teorias antigas para a linguagem moderna, então como é possível que um historiador da ciência, como o próprio Kuhn, reconstrua teorias antigas e as reapresente na linguagem contemporânea? Isso não seria, justamente, um caso de tradução?5 Kuhn responde a essa crítica dizendo que para compreender um vocabulário novo ou desconhecido podemos ou traduzi-lo para nossa língua materna ou aprender a falar a língua estrangeira. O que historiadores como ele próprio e outros fazem ao descrever teorias do passado é ensinar como aquela língua do passado era falada. Disso não se segue, no entanto, que os termos descritos sejam traduzíveis para o vocabulário da ciência contemporânea, nem que a teoria descrita pelo historiador seja por ele aceita ou adotada. Por exemplo, termos como ‘flogístico’, ‘elemento’ e ‘princípio’ não têm como ser traduzidos para o vocabulário da química contemporânea. Mas isso não nos impede de aprender a usar essas palavras da maneira como elas eram usadas pelos adeptos da teoria do flogisto.

Além disso, a intraduzibilidade parcial não impede a comunicação entre comunidades com taxonomias diferentes. É possível aprender a linguagem de uma taxonomia diferente, e isso torna o indivíduo que aprende bilíngue, mas não necessariamente tradutor.6 No artigo que dá o título ao livro, “O caminho desde A estrutura”, a incomensurabilidade é apresentada como uma relação entre taxonomias lexicais, ou simplesmente léxicos. Cada léxico pode produzir um leque de enunciados e teorias diferentes, mas há também enunciados que ele não pode expressar, embora possam sê-los em outro. Um exemplo é o enunciado copernicano “os planetas giram em torno do sol” em contraste com o enunciado ptolemaico “os planetas giram em torno da Terra”. Esse exemplo ilustra a diferença entre duas taxonomias, pois esses enunciados não são distintos simplesmente em relação aos fatos, mas em relação ao termo “planeta”: a Terra não é um planeta no sistema ptolemaico.

Critérios de escolha entre teorias rivais

A primeira descrição dos períodos de ‘crise-revolução’ na Estrutura, em que Kuhn trata do modo como ocorre a escolha científica entre teorias rivais, gerou reações críticas fervorosas por parte de alguns filósofos da ciência, tais como Lakatos 1979, Popper 1979, e Laudan 2001. A abordagem de Kuhn na Estrutura retrata a escolha científica como guiada não somente por critérios lógicos e observacionais, mas influenciada por fatores sociológicos, psicológicos, metafísicos e técnicas de persuasão.

Reagindo a isso, Lakatos chegou a dizer que as escolhas científicas, tal como descritas por Kuhn, não passam de “psicologia das multidões” (p.221). Rejeitando críticas desse tipo, em “Objetividade, juízo de valor e escolha de teoria” (2011c), Kuhn destaca cinco características de uma boa teoria científica: precisão preditiva, coerência interna e externa, abrangência, simplicidade e fecundidade. Esses critérios são bastante usuais e difundidos. No entanto, sua aplicação é difícil. Na escolha entre teorias rivais, cientistas comprometidos com os mesmos critérios podem chegar a resultados diferentes. Isto porque esses critérios, quando aplicados em conjunto, podem entrar em conflito. Por exemplo, uma teoria pode ser mais simples enquanto outra é mais abrangente. Nesse caso, a escolha dependerá do peso dado a cada critério, ou da interpretação que se dá a cada um. Não há um algoritmo que uniformize os procedimentos de decisão nesses casos, como pretenderam, por exemplo, Lakatos e Laudan.

Kuhn propõe que aqueles cinco critérios sejam tratados não como regras que determinariam univocamente a escolha, mas como valores que influenciam as decisões.

Isso permite que cientistas comprometidos com os mesmos valores façam escolhas diferentes em algumas situações, como de fato ocorre. Os valores não funcionam, portanto, como um algoritmo, mas mesmo assim não deixam de guiar objetivamente as escolhas. Essa, em resumo, é a resposta de Kuhn para as críticas de irracionalismo que sofreu nesse ponto. Há critérios objetivos para a escolha de teorias rivais em períodos de revolução, embora esses critérios não determinem univocamente as escolhas.

Isso, no entanto, é uma vantagem na opinião de Kuhn, pois explica aspectos do comportamento científico que haviam sido tomados pela tradição como anômalos (escolhas teóricas divergentes mesmo na presença de indícios observacionais e teóricos compartilhados). Outra vantagem é que a discordância no interior da comunidade científica é fundamental para que novas teorias possam surgir, o que não ocorreria se não houvesse divergências. Do mesmo modo, justamente por discordarem, alguns cientistas permanecem trabalhando na teoria mais antiga permitindo que ela possa responder com “atrativos equivalentes” à sua rival. Assim, parece indispensável que os critérios funcionem como valores, pois isso distribui “o risco que sempre está envolvido na introdução de uma novidade, ou em sua manutenção” (2011c, p.352). Isso, em outras palavras, é parte da “tensão essencial” que é constitutiva da ciência. O tema é retomado em “Racionalidade e escolha de teorias”, outro artigo que faz parte de O caminho.

De um modo geral, os textos tardios de Kuhn reunidos em O caminho contêm ao menos duas características salientes em relação às obras anteriores: em primeiro lugar, tendem a enfatizar o aspecto realista de seu pensamento, que caracteriza a atividade científica como guiada por critérios de escolha e valores objetivos compartilhados pela comunidade científica, opondo-se dessa maneira à reação inicial que a Estrutura provocou em seus leitores, especialmente nas décadas de 1960 e 1970.

Em segundo lugar, as teses defendidas tendem a ser formuladas de maneira mais linguística. A noção de paradigma cede lugar à de léxico, a tese da incomensurabilidade é apresentada em termos de intraduzibilidade parcial e as revoluções científicas são descritas como mudanças nas categorias taxonômicas ou lexicais. Com relação ao primeiro ponto, de fato parece ter havido uma leitura apressada ou pouco caridosa da Estrutura por parte de sua primeira geração de leitores. Contudo, ao menos em parte, o próprio Kuhn pode ter sido responsável por isso, uma vez que algumas passagens prestam-se a leituras relativistas ou psicologistas. Com relação ao segundo ponto, a formulação das teses de Kuhn em termos mais linguísticos parece ter produzido mais precisão conceitual, mas é possível que tenha havido nesse caso também algumas perdas. A noção de ‘paradigma’ da Estrutura, por exemplo, engloba não apenas compromissos teóricos explicitamente formuláveis em termos linguísticos, mas também práticas, comportamentos e modos de perceber a realidade que não se deixam claramente descrever em termos linguísticos. Esses aspectos da antiga noção de paradigma são mais difíceis de apresentar com a nova terminologia. Seja como for, a obra tardia de Kuhn é uma referência indispensável e altamente frutífera para todos aqueles interessados nos temas centrais da filosofia da ciência contemporânea. Sua leitura é altamente recomendável.

Referências

Chalmers, A. F. 1983. O que é ciência afinal? Trad. Raul Fiker. São Paulo: Brasiliense.

Davidson, D. 1974. The very idea of a conceptual scheme. Proceedings and Addresses of the American Philosophical Association 47: 5–20.

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Hacking, I. 2002. Historical ontology. Cambridge: Harvard University Press.

Hoyningen-Huene, P. 1993. Reconstructing scientific revolutions. London: The University of Chicago Press.

Hoyningen-Huene, P. & Oberheim, E. 2012. A incomensurabilidade das teorias científicas. Trad. por Laura Machado Nascimento. Investigação Filosófica, E2. Disponível em: http://investigacao-filosofica.blogspot.com.br/p/verbetes-da-enciclopedia-investigacao_ 8.html. Acesso em: 10/10/2012.

Kitcher, T. 1993. The advancement of science. Oxford: Oxford university Press.

Kuhn, T. S. 2006. O caminho desde A estrutura. Trad. Cezar Mortari. São Paulo: UNESP.

———. 2011a. A estrutura das revoluções científicas. Trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva [1a¯ ed. americana 1962].

———. 2011b. A tensão essencial. Trad. Marcelo Amaral Penna-Forte, São Paulo: UNESP. [1a¯ ed. americana 1977] ———. 2011c. Objetividade, juízo de valor e escolha de teoria. In Kuhn 2011b, pp.339–59.

Lakatos, I. Falseamento e a metodologia dos programas de pesquisa científica. In: Lakatos and Musgrave 1979, pp.109–243.

Lakatos, I. & Musgrave, A. (eds.) 1979. A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. Trad. O. M. Cajado, São Paulo: Cultrix.

Laudan, L. 2001. O progresso e seus problemas: rumo a uma teoria do crescimento científico. Trad. Roberto Leal Ferreira, São Paulo: UNESP.

Masterman, M. A natureza do paradigma. In: Lakatos and Musgrave 1979, pp.72–108.

Popper, K. R. A ciência normal e seus perigos. In: Lakatos and Musgrave 1979, pp.63–71.

Putnam, H. 1981. Reason, truth, and history. Cambridge: Cambridge University Press.

Sankey, H. 1990. In defence of untranslatability. Australasian Journal of Philosophy 68: 1–21.

———. 1993. Kuhn’s changing concept of incommensurability. The British Journal for the Philosophy of Science 44: 759–74.

Notes

1 Ver, por exemplo, Lakatos 1970, pp.111, 112, 220–24; Chalmers 1983, pp.145–49; e Laudan 1977, pp.6–8.

2 Sobre esse ponto, ver Masterman 1979.

3 Esse ponto é controvertido na literatura. Sankey (1993) defende a tese da intraduzibilidade de alguns termos centrais de paradigmas diferentes. Kitcher (1993), por outro lado, procura mostrar como até mesmo para esses termos centrais podem-se formular regras de tradução. Hacking (2002), por sua vez, prefere evitar tratar desses problemas como questões de tradução e prefere usar as noções de ‘estilo de raciocínio’ e ‘interpretação’.

4 Ver também Hoynengen-Huene & Oberheim 2012.

5 Ver, por exemplo, Davidson 1974 e Putnam 1981.

6 Sobre esse ponto, ver também Feyerabend 1987.

Tamires Dal Magro – Universidade Federal de Santa Maria Santa Maria, RS BRASIL [email protected]

Dicionário Crítico do feminismo – HIRATA (CP)

HIRATA, Helena; Laborie, Françoise et alDicionário Crítico do feminismo. São Paulo, Editora UNESP, 2009. Resenha de: ABREU, Maira. Dicionário crítico do feminismo. Cadernos Pagu, Campinas, n. 36, Jan./Jun. 2011.

Publicado originalmente em francês1 e traduzido no ano de 2009 para o português, o Dicionário crítico do feminismo vem preencher uma importante lacuna no Brasil. Primeira obra do gênero editada no país2 oferece um panorama – numa linguagem clara e acessível a não especialistas – dos grandes temas do movimento feminista (aborto e contracepção, violências, família, etc.), polêmicas e conceitos centrais desse movimento (igualdade x diferença, patriarcado), além de interpretações feministas de algumas categorias (dominação, desemprego, trabalho, cidadania, poder).

São 48 verbetes formulados, em sua grande maioria, por autoras/es francesas/es, entre as quais um grande número de sociólogas, baseados numa bibliografia predominantemente francófona, embora em diálogo com outras produções. A proposta não é “colocar em ordem alfabética um conjunto de conhecimentos adquiridos”, ou seja, o Dicionário não tem a pretensão de contemplar toda a pungente produção teórica sobre o tema já produzida– proposta pouco factível – mas, “transmitir uma nova grade de leitura”, tornando “metodologicamente visível a sexualização do social e seus efeitos”, e colocando no centro do debate “a problemática da dominação entre os sexos e suas consequências” (13).

No Brasil, a pretensão de “transmitir uma nova grade de leitura” ganha outra dimensão. Por motivos que caberiam ser investigados e que pertencem a múltiplos fatores históricos, culturais, intelectuais e institucionais da constituição do campo de “estudos de gênero” no país, aqui foram privilegiadas teorias desenvolvidas nos países anglo-saxões. Deve-se ter em mente que há sempre um conjunto complexo de mediações de natureza diversa na constituição dos aparatos teórico-conceituais, que são elaborados no bojo de disputas políticas e em simbiose com as tradições intelectuais, históricas e políticas de um determinado contexto. É por isso que a “diversidade de sotaques” nas ciências humanas é fundamental para o cosmopolitismo das ideias (Ortiz, 2002). Assim, um dos méritos da publicação do dicionário no Brasil é de permitir um maior contato, em português, do público brasileiro com alguns debates feministas franceses, abrindo meios para um diálogo entre essas produções teóricas. As escassas traduções da produção feminista francesa para o português, aliada à preponderância do inglês como “segunda língua”, tornou a referida produção pouco acessível a um público mais amplo no país, mesmo se tratando de estudantes da área de ciências humanas.

As especificidades do contexto francês suscitaram uma produção teórica com características bastante distintas em relação, por exemplo, aos Estados Unidos. Os conceitos “relações sociais de sexo” (rapports sociaux de sexe) e “modo de produção doméstico” são exemplos de contribuições teóricas do feminismo francês. Esse quadro conceitual pode causar certo estranhamento em parte das/os leitoras/es brasileiras/os mais acostumados a outros referenciais teóricos e conceituais.

Alguns verbetes são fundamentais para compreender o contexto teórico/político feminista francês, entre os quais destacamos: “diferença dos sexos”, “igualdade”, “movimento feminista”, “patriarcado (teorias do)”, “sexo e gênero”, “universalismo e particularismo”.

A escolha dos temas abordados também é bastante significativa do contexto de elaboração da obra. Chamam a atenção, por exemplo, verbetes como “paridade”, “diferença sexual” e a ausência de outros como “gênero” e “queer“. Destaca-se também um grande número de verbetes relacionados à temática trabalho (“trabalho”, “ofício, profissão, bico”; “categorias socioprofissionais”, “desemprego”, “divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo”, “emprego”, “flexibilidade”, “saúde no trabalho”, “sindicatos”, “trabalho”, “trabalho doméstico”, etc.), que parece refletir em parte temas de interesse do grupo que organizou a obra. Segundo o esclarecimento no prefácio, essa obra é fruto da atividade do Grupo de Estudos sobre Divisão Social e Sexual do Trabalho (GEDISST-CNRS) que ganhou o nome de Gênero, Trabalho, Mobilidades (GTM)3 em 2005 (16).

Em análise comparativa com outros dicionários congêneres produzidos nos Estados Unidos percebe-se que no Dicionário em questão são poucos os verbetes relacionados à “sexualidade”. Brigitte Lhomond ressalta que alguns debates relacionados à temática que deram lugar a “vívidas polêmicas nos países anglo-saxões” restaram marginais na França – como, por exemplo, prostituição, pornografia, sadomasoquismo dentre outras práticas sexuais (234). O fraco interesse por alguns debates que polarizaram feministas estadunidenses, como pornografia e políticas sexuais em geral, é uma questão ressaltada em outras obras . Para Lilian Mathieu (2003:45-46), diante do pouco interesse das feministas francesas pela discussão sobre prostituição, a presença de dois verbetes sobre o tema no Dicionário seria um “fato excepcional”. Cabe ressaltar que é o único verbete com esse formato. O primeiro, escrito por Claudine Legardinier, define a prostituição como “uma organização lucrativa, nacional e internacional de exploração sexual do outro” (198) e critica a expressão “trabalhadoras do sexo” que legitimaria “a ideia de que a mercadoria sexo se tornou um dado indiscutível da economia moderna” (200). Por outro lado, Gail Pheterson, autora do segundo verbete, define a prostituição como uma instituição de regulação das relações sociais de sexo, procurando mostrar que há um continuum de trocas econômico-sexuais entre homens e mulheres, no qual a prostituição seria somente uma de suas modalidades (203-204).

No prefácio da obra, as organizadoras esclarecem que as análises que concebem a prostituição como um trabalho e aquelas que a definem como uma violência constituiriam, na França, pontos de vista irredutíveis e por isso a opção de apresentar duas rubricas contraditórias (15).4

Ainda sobre os verbetes, uma outra observação pertinente para o público brasileiro é que alguns estão bastante presos ao contexto francês, como “sindicatos”5, por exemplo.

Em relação ao referencial teórico predominante no Dicionário, cabe fazermos alguns comentários. Françoise Collin, no verbete “diferença dos sexos (teorias da)”, enfatiza a importância da ideia de universalismo, vinculada às tradições cultural, filosófica e política herdadas do racionalismo iluminista, para o feminismo francês. Em “universalismo e particularismo”, Eleni Varikas reconstrói as origens da noção de universalismo e assim resume um dos dilemas da discussão para o feminismo:

O interesse geral está tão associado a uma visão homogênea e uniforme do ‘corpo’ político que qualquer expressão de particularidades é imediatamente tida como suspeita de um particularismo ameaçador do princípio da universalidade dos direitos, que fundou a sacrossanta República (269).

Embora o verbete “movimentos feministas”, de autoria de Dominique Fougeyrollas-Schwebel, enfatize a clivagem entre feminismo radical, marxista e liberal, essa não foi a divisão mais importante dentro do MLF (Mouvement de Libération des Femmes) na França (Picq, 1993 e Kandel, 2000). A polarização entre feminismo universalista e diferencialista, que dividiu MLF e provoca vivas polêmicas até os dias atuais, abordada por Collin no verbete acima mencionado, é fundamental para o feminismo francês. O Dicionário se insere claramente dentro de uma perspectiva universalista para a qual, como define Collin, a diferença que caracteriza homens e mulheres seria em si mesma insignificante e “sua importância determinante e socialmente estruturante é um efeito das relações de poder” (62).

Por tudo isso, pode-se perceber o distanciamento do Dicionário daquilo que ficou conhecido como “french feminism“. Essa categoria, muito utilizada por acadêmicas anglófonas, engloba um conjunto de elaborações influenciadas pela psicanálise lacaniana e outros autores/as pós-estruturalistas, cujos principais nomes seriam Helene Cixous, Julia Kristeva e Luce Irigaray, e que têm, em maior ou menor medida, afinidades com as ideias da corrente diferencialista do feminismo francês.6

Outra particularidade do feminismo francês foi a importância do marxismo na sua constituição. Ao contrapor os movimentos feministas europeus ao contexto norte-americano Fougeyrollas-Schwebel enfatiza que nos primeiros “a relação com os partidos de esquerda é essencial e a dialética de inclusão-exclusão é permanente” (148). Como nos lembra Teresa de Lauretis, a ideia de que as mulheres não constituem um “grupo natural”, cuja opressão seria o resultado de sua natureza física era compartilhada por diversas feministas de contextos diversos, “ainda que na Europa essa compreensão tenha precedido o feminismo, na América anglófona ela frequentemente seguiu e foi resultado de uma análise feminista do gênero” (Lauretis, 2003).

As militantes do MLF eram provenientes, em grande medida, de organizações de esquerda, embora a relação de muitas dessas com esses agrupamentos fosse de oposição e até mesmo de ruptura. As elaborações teóricas feministas na França se deram em constante debate com a teoria marxista, e é nesse contexto que devem ser compreendidos alguns dos seus conceitos e propostas. Uma das correntes que surge no seu bojo e que tem significativa influência do marxismo é o feminismo materialista. Essa perspectiva, que teve pouca divulgação e impacto no Brasil, mas cuja penetração foi significativa na França entre pesquisadoras de ciências humanas, particularmente sociólogas (Giraud, 2004:109), desponta em diversos momentos do Dicionário. Essa corrente surge no interior das mobilizações feministas francesas no final dos anos 1970, e se articula inicialmente em torno da revista Questions féministes, tendo como marca um posicionamento antiessencialista. A crítica ao naturalismo proposta consiste não somente na compreensão do caráter cultural das noções de feminilidade e masculinidade, mas, de maneira ainda mais radical, na afirmação de que as diferenciações sociais entre os sexos não preexistem logicamente às relações sociais que as engendram. Estão entre as propositoras dessa perspectiva Christine Delphy, Nicole-Claude Mathieu, Monique Wittig, Paola Tabet, Colete Guillaumin, entre outras. As duas primeiras autoras colaboraram com o Dicionário, e suas contribuições são expressamente mencionadas ao longo da obra, assim como as de outras autoras citadas. O primeiro parágrafo do verbete “divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo”, de Danièle Kergoat, sintetiza algumas das contribuições desse referencial:

As condições em que vivem homens e mulheres não são produtos de um destino biológico, mas, sobretudo, construções sociais. Homens e mulheres não são uma coleção – ou duas coleções – de indivíduos biologicamente diferentes. Eles formam dois grupos sociais envolvidos numa relação social específica: as relações sociais de sexo. (67)

No Brasil, é muito difundida a ideia de uma certa equivalência entre teorias pós-modernas e uma perspectiva antiessencialista, como se a segunda só pudesse ser fruto da primeira posição. É interessante notar que os referenciais antinaturalistas vêm, em grande medida, nessa obra, de autoras de outras perspectivas teóricas. Além disso, percebe-se até mesmo uma certa reticência, por parte de algumas autoras, em relação às teorias chamadas de “pós-modernas” ou “pós-estruturalistas”. Collin faz referência ao “pouco impacto” dessa perspectiva na França (64). Para Danielle Juteau essas teorias ocultariam frequentemente “as relações sociais fundadoras das categorias de sexo” (93). Para Nicole-Claude Mathieu nessas teorias “os aspectos simbólicos, discursivos e paródicos do gênero são privilegiados em detrimento da realidade material histórica das opressões sofridas pelas mulheres” (228).

Uma polêmica que perpassa o Dicionário já mencionada na introdução como uma das grandes controvérsias do livro é sobre o uso da categoria “gênero”. O termo é frequentemente descrito como “de origem anglo-saxã” (15), “muito utilizado nos meios anglo-saxões” (93). Para Françoise Collin, o termo “importado dos Estados Unidos e traduzido por ‘gênero'” não seria de “uso habitual” na França (59). Sabe-se que o conceito não teve aceitação imediata na França, mas, apesar das controvérsias, foi progressivamente incorporado. Embora seja de uso menos frequente que “relações sociais de sexo”, o termo aparece em diversos verbetes. Múltiplas são as razões para que o conceito não tivesse uma aceitação imediata na França – e aqui não me limito às argumentações presentes no Dicionário. Para algumas autoras, o uso do termo “gênero” seria não só inapropriado como desnecessário. Um primeiro motivo, dentro dessa argumentação, é que “gênero” seria um estrangeirismo desnecessário, chegando ao ponto de considerá-lo como “tão somente um anglicismo irritante” (Ozouf e Sohn apud Offen, 2006). Delphy nos alerta para o que ela considera ser  uma certa “hostilidade irracional contra aquilo que é visto como uma ‘importação do exterior'” (177) existente na França. Embora algumas objeções ao uso do conceito de gênero na França se enquadrem nessa argumentação, há oposições de outra ordem que comentaremos ligeiramente a seguir.

Algumas leituras apontam para o caráter intraduzível do termo “gender” para o francês. Há inclusive uma recomendação oficial de 2005 da Comissão Geral de Terminologia e Neologismo (França) para o uso de termos franceses equivalentes ao termo “gender“, considerando que não há necessidade linguística que justifique a substituição de “sexe” por “genre“.[7] Nicole-Claude Mathieu, no verbete “sexo e gênero”, menciona algumas outras objeções ao uso. Para algumas autoras, a distinção entre sexo e gênero, uma vez que compreenderia uma dicotomização entre biológico e cultural, acarretaria uma reificação da biologia, ocultando, assim, seu caráter ideológico e histórico. Para outras, o conceito de gênero eufemizaria as relações de poder e a ideia de antagonismo social correspondente a um sistema de exploração e dominação. Mas percebe-se que em muitos momentos as categorias “gênero” e “relações sociais de sexo” são utilizadas como sinônimos, sem que isso implique necessariamente um posicionamento teórico. Como enfatiza Delphy

não mais que outros termos de Ciências Sociais, os termos ‘patriarcado’, ‘gênero’ ou ‘sistema de gênero’, ‘relações sociais de sexo’ ou ‘relações sociais de gênero’, ou qualquer outro termo suscetível de ser empregado em seu lugar, não têm definição estrita e tampouco uma com a qual todos estejam de acordo (177-8).

Essa obra constitui um bom “guia” para uma viagem por alguns dos conceitos e propostas de um movimento teórico-político que revolucionou o século XX. Mas, trata-se de um dicionário, como procuramos mostrar, profundamente ancorado numa certa tradição teórica feminista francesa. O quadro teórico utilizado, a bibliografia que serviu de referência, os verbetes escolhidos são resultado de um contexto teórico/político particular. O caráter situado dessas elaborações, como de qualquer outra, não pode ser esquecido. Mas isso, de forma alguma, tira a pertinência da edição da obra no Brasil. Esperamos que a viagem dessas teorias ao país traga novos elementos para os debates brasileiros.

Referências

Code, Lorraine. (org.) Encyclopedia of feminist theories. Londres/Nova York, Routledge, 2000.         [ Links ]

Delphy, Christine. L’invention du “French Feminism”: un démarche essentielle. Nouvelles Questions Féministes, Paris, vol. 17, nº 1, 1996, pp.15-58.         [ Links ]

Gambe, Sara. (org) The Routledge Companion to Feminism and Postfeminism. Londres, Routledge, 2001.         [ Links ]

Giraud, Véronique et alii. Fonde en théorie qui n’y a pas hierarchie de domination et de lutes. Entretien avec Christine Delphy. Mouvements, nº 35, Paris, La Découverte, setembro-outubro de 2004, pp.119-131.         [ Links ]

Gubin, Eliane; Jacques, Catherine. (orgs.) Le siècle des féminismes. Paris, Éditions de l’Atelier/ Éditions Ouvrières, 2004.         [ Links ]

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Kandel,Liliane. Sur la difference des sexes et celle des feminismes. Les Temps modernes, nº 609, Paris, Gallimard, junho-julho-agosto 2000, pp.283-306.         [ Links ]

Lauretis, Teresa de. When lesbians were not women. Labrys, études féministes, número especial, setembro 2003. Site: http://vsites.unb.br/ih/his/gefem/special/special/delauretis.htm [visitado em 10/07/2010]         [ Links ].

Louis, Marie-Victoire. Lettre à Danièle Kergoat – GEDISST [14/09/1999]. Site: http://www.marievictoirelouis.net/document.php? id=354&themeid=336 [visitado em 30/01/2011]         [ Links ].

Mathieu, Lilian. Prostituées et féministes en 1975 et 2002: l’impossible reconduction d’un alliance. Travail, genre et societé, nº 10, Paris, La Découverte, 2003.         [ Links ]

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Ortiz, Renato. A diversidade de sotaques: o inglês e as ciências sociais. São Paulo, Brasiliense, 2002.         [ Links ]

Picq, Françoise. Liberation des femmes. Les années-mouvement. Paris, Seuil, 1993.         [ Links ]

Spender, Citeris. Routledge International Encyclopedia of women.Global women’s issues and kwowledge. Londres/Nova York, Routledge, 2000.         [ Links ]

Varikas, Eleni. Féminisme, modernité, postmodernisme: pour un dialogue des deux cotés de l’ocean. Futur Anterieur, 1993. Site: www.multitudes.samizdat,net/spip.php?rubrique334 – visitado em 5/03/2007.         [ Links ]

__________. Penser le sexe et le genre. Paris, PUF, 2006.         [ Links ]

Notas

1  A versão brasileira é uma tradução da 2ª edição da obra publicada na França em 2004. A principal modificação em relação à edição anterior, de 2000, é a inclusão de dois verbetes: emprego e lesbianismo.
2  Nos Estados Unidos há diversas publicações do gênero, ver, por exemplo: Code, 2000; Spender, 2000; Gambe, 2001.
3  “Genre Travail Mobilités” é apresentado no site do grupo como uma equipe do laboratório CRESSPPA (Centre de Recherches Sociologiques et Politiques de Paris) centrado nas questões do trabalho numa perspectiva de análise de gênero. Para maiores informações, ver site http://www.gtm.cnrs.fr/
4  Para se ter uma ideia das polêmicas envolvidas na elaboração desse verbete, cito um trecho da carta de Marie-Victoire Louis a Danièle Kergoat recusando o convite para escrever um verbete sobre o tema no Dicionário e explicando os motivos dessa posição: “Participar deste dicionário, conjuntamente com esta pesquisadora [Gail Pheterson], cujas posições eu conheço após diversos anos, significa que nossas duas “análises” pertencem ao mesmo debate de ‘ideias’. E seriam da mesma natureza. Eu considero, de minha parte, que um texto legitimando um sistema de dominação proxeneta que – depois de séculos, frequentemente em acordo com os Estados – justificou o aprisionamento, a negação de direitos, os estupros, as violências, as torturas, os assassinatos praticados depois de séculos sobre as mulheres, as crianças e adolescentes dos dois sexos – mas também cada vez mais sobre os homens – não tem seu lugar num projeto de dicionário feminista” [www.marievictoirelous.netdocument.php?id=354 – visitado em 30/01/2011].
5  O verbete “sindicatos” começa, sem especificar o contexto ao qual se refere, com a seguinte frase “Em 21 de março de 1884, a lei Waldeck-Rousseau põe fim à lei de Le Chapelier (1791), permitindo a formação de sindicatos profissionais de operários e de trabalhadores de escritório” (236).
6  Sobre a ideia de “french feminism” ver Delphy (1996) e Varikas (1993).
7  Para consultar o documento, ver anexo do livro de Eleni Varikas, Penser le sexe et le genre (2006).

Maira Abreu – Doutoranda em Ciências Sociais – Unicamp, E-mail: [email protected].

Acessar publicação original

[MLPDB]

A Revolução Mexicana | Carlos Alberto Sampaio

Em novembro de 2010 a Revolução Mexicana completou o seu centenário. O marco propiciou uma série de debates sobre o legado e o significado desse evento no México, como também na América Latina. E o Brasil não ficou ausente de tais altercações.

A coleção da editora UNESP “Revoluções do Século 20”, dirigido pela profª drª Emília Viotti da Costa, tem como proposta realizar um estudo sobre os principais eventos revolucionários do século anterior, que segundo defende a autora, foram embalados por ideais socialistas. Dos 14 títulos já publicados pela coleção, faltava o estudo da primeira revolução de cunho social do século XX, como definido por Eric J. Hobsbawm (1988, p. 396): a Revolução Mexicana. Leia Mais

Leituras e Leitores na França do Antigo Regime – CHARTIER (PH)

CHARTIER, Roger. Leituras e Leitores na França do Antigo Regime. São Paulo: Editora Unesp, 2004. Resenha de: BOBEK, João Vinícius. Distinção e divulgação: a civilidade e seus livros. Projeto História n. 41. 650 Dezembro de 2010.

Chartier historiador francês vinculado à atual historiografia da Escola de Annales, onde trabalha sobre a história do livro, da edição e da leitura, e que nesta obra apresenta oito ensaios que constituem uma história cultural em busca de textos, crenças e gestos aptos a caracterizar a cultura popular tal como ela existia na sociedade francesa entre a Idade Média e a Revolução Francesa. O intelectual francês mostra que a cultura escrita influencia mesmo aqueles que não produzem ou lêem textos, mas interagem com eles.

Ao revisitar a chamada Biblioteca Azul, coleção de livros acessíveis vendidos por ambulantes (romances de cavalaria, contos de fada, livros de devoção), além de documentos próprios da chamada “religião popular” e textos sobre temas que se dirigem a um público geral, como a cultura folclórica, o autor enfoca as tênues fronteiras entre a chamada cultura erudita e a popular e mostra como se ligam duas histórias: da leitura e dos objetos de leitura.

Assim sendo Chartier reforça o plural do plural “civilidades”, que remete aos usos e intercâmbios de um código de polidez reconhecido por uma sociedade distinta, fazendo menção a Erasmo que rejeita os modelos aristocráticos da época pregando que a civilidade deveria ser uma instrução de um grupo moralizadora, determinado, e deveria começar pelas crianças fazendo do aprendizado escolar a primeira instrução. O autor também indica sempre citando autores como Courtin, que a civilidade pode ser uma virtude cristã, a caridade, pois deve ser uma questão de cada um, diferenciando o Homem do Animal, distinguido na sua execução em tantos comportamentos convenientes a cada estado ou situação. A partir desses conceitos a partir do século XVII, a noção de civilidade ganha um sentido ambíguo, pois sua função é designar a conduta histórica dos príncipes de tragédia, pois segundo Toussaint, a civilidade torna-se “um cerimonial de convenção”, dando origem a uma polidez devida aos príncipes, sendo muitas vezes uma aparência ou uma máscara que disfarça e engana. Assim nesse contexto, o conceito de civilidade está situado no próprio centro da tensão entre o parecer e o ser que define a sensibilidade e a etiqueta barroca.

Sendo Roger Chartier discípulo da Escola de Annales1 percebe-se no texto um intercâmbio entre a História Cultural e a Antropologia, pois ele menciona Jean-Baptiste de La Salle para citar que este pensador abrange a civilidade como honestidade e piedade como conveniência social. Portanto nessa teoria a civilidade se afasta do uso aristocrático para constituir-se num controle permanente e geral se todas as condutas, sendo um modelo eficaz de comportamento das elites nas camadas inferiores. A partir do século XVIII, a noção de civilidade conhece um duplo e contraditório destino, segundo Chartier. Ela permite aos humildes compreender o código de comportamentos, sendo que ensinada ao povo, a polidez se vê ao mesmo tempo desvalorizada aos olhos da elite que a partir daí não exige nenhuma autenticidade de sentimento, sanciona a ruptura admitida e contraditória.

História, Historiadores, Historiografia. 651 Para Jacourt a civilidade foi imposta a inúmeros indivíduos e por isso perdeu seu valor de distinção, considerando que foi colocada a maioria e se tornou uma norma para as condutas populares.

Para fundar uma civilidade republicana, o articulista, juntamente com outros pensadores sugerem uma ruptura radical com a educação tradicional, já que a repetição dos gestos considerados convenientes é idealmente substituída pela aprendizagem de virtudes que conseguirão sempre expressar-se numa linguagem moral resultando numa instrução moral. Para o autor as novas obrigações dessa civilidade republicana não devem se regulamentar-se pelas diferenças de condição ou posição, pois se apoia na liberdade, conforme a igualdade, a civilidade refundida deve reconciliar enfim as qualidades da alma e as aparências exteriores, sendo nítida a recusa das formalidades antigas, pois essa abdicação à etiqueta tradicional encontrase manifesta na esfera política.

Finalizando esse capítulo de sua obra, que deixa claro os conceitos de polidez e civilidade, Chartier, deixa evidente que a partir do século XIX, a civilidade pode ser definida como um conjunto de regras que tornam agradáveis e fáceis às relações dos homens entre si, podendo ser entendida como um código de boas maneiras necessárias na sociedade, sendo fixada por todo esse século, a identificação da civilidade com a conveniência burguesa.

Conclui então que entre os séculos XVI e XIX, a noção de civilidade sofre mudanças e apanha um enfraquecimento, portanto apesar das tentativas de reformulá-la, a noção perde um pouco da teoria ético-cristã para significar apenas a aprendizagem das maneiras convenientes na vida das relações da sociedade, que questionando a diferença entre cultura popular e erudita e a definição de popular simplesmente como oposição à cultura erudita, Roger discute como diversos textos franceses desses séculos atravessam as fronteiras sociais entre clero, nobreza e Terceiro Estado. O historiador francês mostra assim a influência exercida pelo texto escrito mesmo entre os que não estão familiarizados com o livro e reconstitui em sua complexidade a comunicação cultural entre os homens do Antigo Regime.

Projeto História nº 41. 652 Dezembro de 2010 Sendo assim, através dessa leitura é possível trabalhar com os discursos historiográficos, realizando uma análise da passagem da leitura extensiva à intensiva, para assim poder abordar com destaque os aspectos da leitura como formação da identidade cultural intelectual francesa, para futuramente abordar tópicos sociais do Antigo Regime.

Nota

1 Incorpora métodos das Ciências Sociais à História. Encontramos neste movimento, certa unidade em sua composição, mas não uma homogeneidade. Sendo como um conjunto de estratégias, uma nova sensibilidade, uma atividade que de fato mostra-se pouco preocupada com definições teóricas.

João Vinícius Bobek – Licenciado em História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). E-mail: [email protected].

Cinematógrafo: um olhar sobre a história | Jorge Nóvoa e Soleni Biscouto Fressato

O cinema é a arte da luz, da imagem e do movimento, é a arte da expressão audiovisual. Geertz nos ensina que é difícil falar de arte, pois, “a arte parece existir em um mundo próprio, que o discurso não pode alcançar” [1] e este preceito é válido para o cinema, conhecido como a sétima arte. Analisar uma arte que envolve imagem e movimento é uma tarefa complexa, pois “aquilo que vimos, ou que imaginamos ter visto, parece ser tão maior e tão mais importante que o que logramos expressar com nossa balbucia, que nossas palavras soam vazias, cheias de ar, até falsas.” [2] A imagem é captada e projetada por meio de um processo mecânico, através do olhar e do veículo condutor da câmera. A mensagem audiovisual é composta dentro de determinados parâmetros e preceitos da construção cinematográfica, na maioria das vezes de forma narrativa. Como observa Bertoni e Montagnoli:

Elementos que trabalham com a expressividade da câmera, com os detalhes, com as mudanças de planos, os enquadramentos, o som, a possibilidade de sugestão daquilo que está dentro e fora do quadro; mas também com o corte que direciona a visão do espectador, com a articulação da montagem, a característica minimal do cinema, com a irrealidade construída. Enfim, todo esse conjunto de elementos e de procedimentos, traça a característica de construção fundamental da linguagem e da estética do cinema.[3] Leia Mais

Cinematógrafo: um olhar sobre a história | Jorge Nóvoa, Soleni Biscouto Fressato e Kristian Feigelson

O cinema é a arte da luz, da imagem e do movimento, é a arte da expressão audiovisual. Geertz nos ensina que é difícil falar de arte, pois, “a arte parece existir em um mundo próprio, que o discurso não pode alcançar” [1] e este preceito é válido para o cinema, conhecido como a sétima arte. Analisar uma arte que envolve imagem e movimento é uma tarefa complexa, pois “aquilo que vimos, ou que imaginamos ter visto, parece ser tão maior e tão mais importante que o que logramos expressar com nossa balbucia, que nossas palavras soam vazias, cheias de ar, até falsas.” [2] A imagem é captada e projetada por meio de um processo mecânico, através do olhar e do veículo condutor da câmera. A mensagem audiovisual é composta dentro de determinados parâmetros e preceitos da construção cinematográfica, na maioria das vezes de forma narrativa. Como observa Bertoni e Montagnoli:

Elementos que trabalham com a expressividade da câmera, com os detalhes, com as mudanças de planos, os enquadramentos, o som, a possibilidade de sugestão daquilo que está dentro e fora do quadro; mas também com o corte que direciona a visão do espectador, com a articulação da montagem, a característica minimal do cinema, com a irrealidade construída. Enfim, todo esse conjunto de elementos e de procedimentos, traça a característica de construção fundamental da linguagem e da estética do cinema.[3] Leia Mais

De volta ao Lago de Leite: gênero e transformação no Alto Rio Negro – LASMAR (CP)

LASMAR, Cristiane. De volta ao Lago de Leite: gênero e transformação no Alto Rio Negro. São Paulo/Rio de Janeiro, Editora UNESP-ISA/NUTI, 2005. Resenha de: FERREIRA, Carolina Branco de Castro. Virando “branca” e subvertendo a ordem? Gênero e transformação no Alto Rio Negro. Cadernos Pagu, Campinas, n. 32, Jul./Dez. 2009.

O livro De Volta ao Lago de Leite: gênero e transformação no Alto Rio Negro foi originalmente apresentado como tese de doutorado por Cristiane Lasmar no Programa de Pós Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, sob a orientação de Bruna Franchetto. Ao longo de suas 285 páginas somos levados pela autora a refletir sobre as transformações que ocorrem no modo de vida quando os/as indígenas deixam suas comunidades, situadas ao longo da faixa ribeirinha dos rios Uaupés e Negro, e passam a residir na cidade amazônica de São Gabriel da Cachoeira.

O olhar de Lasmar situa-se no pólo nativo e a partir de uma sociologia indígena, ela busca compreender as instituições e organizações sociais, a sócio-cosmologia dos grupos estudados e como a população indígena percebe e define, em seus próprios termos, a situação de contato. Em minha leitura, a pesquisa da autora está interessada em revelar, ao modo de Sahlins (1997), como os grupos ameríndios do Uapés vêm tentando incorporar o sistema tecnológico e de conhecimentos “dos brancos” a uma ordem ainda mais abrangente: seu próprio sistema de mundo.

O que motiva os índios em direção ao mundo dos brancos?1, pergunta a autora. Além disso, uma problemática de gênero permeia seus questionamentos, porque dentre as transformações que a autora investiga está a preferência das mulheres indígenas em se casar com homens brancos, o questionamento sobre o status dos filhos nascidos deste enlace e a violência de gênero.

Para organizar sua etnografia, Lasmar utiliza o recurso analítico de contrastar “comunidade” e “cidade”, pois segundo ela estas palavras remetem a modos de vida distintos no discurso indígena. Para a autora, o contraste entre “viver na cidade” e “viver na comunidade” permite compreender a diferença entre índios e brancos, bem como a experiência social dos índios que vivem em São Gabriel da Cachoeira, uma vez que a “comunidade” e seus padrões de sociabilidade ainda representam uma referência moral organizativa importante para estes sujeitos, porque na comunidade ainda se vive como índio.

Além da introdução e das considerações finais, o texto está dividido em duas partes, cada qual com um prólogo e um epílogo. O livro conta com dois cadernos de desenho de autoria de Feliciano Lana, um de seus colaboradores. Bem como, com dois mapas, um do Alto Rio Negro, onde é possível ter uma boa idéia da localização das comunidades ribeirinhas e da cidade de São Gabriel, e outro com a divisão dos bairros deste município, onde o leitor pode localizar os bairros da Praia e de Dabaru, que concentram a população indígena citadina. E ainda, se encontra uma tabela de convenções sobre segmentos fonêmicos e indicações de pronúncia em língua tukano. No anexo está na integra o mito de origem – A viagem na canoa da Fermentação, leitura imprescindível para compreender as sócio-cosmologias dos grupos referidos e também a proposta teórico-metodológica inovadora de Lasmar.

A metáfora espacial entre “comunidade” e “cidade”, ao invés de opor tradicional/moderno, nos permite perceber a translocalidade, para tomar emprestado um termo de Sahlins (1997), existente no “movimento dos índios em direção ao mundo dos brancos” (Lasmar, 2003:213). Assim, ao estabelecer esse modo de análise, a autora busca esse movimento e suas várias interfaces, privilegiando as narrativas das mulheres indígenas. Vale lembrar que os grupos do Uaupés organizam as relações de parentesco por um cálculo agnático, portanto, ao focar nas histórias de vida feminina, é possível perceber como esses deslocamentos, eu diria até subversões da “tradição” e da ideologia de gênero, são explicados, vividos e agenciados por estes sujeitos.

Antes de entrar na discussão sobre esses deslocamentos ou subversões da “tradição”, recupero alguns argumentos da autora sobre a organização social ribeirinha dos grupos do Uaupés. A bacia do rio Uaupés se localiza em território brasileiro e colombiano e abarca uma população de 9.300 indivíduos que se dividem em dezessete grupos étnicos, os quais se organizam exogâmicamente e falam línguas distintas.

A regra matrimonial é que um homem deve se casar com uma mulher que fale uma língua diferente da dele. A residência é virilocal, ou seja, é a mulher quem se muda para a comunidade do marido, e o sistema de descendência é patrilinear. As relações de parentesco são fundamentais para entender a cosmologia destes grupos, uma vez que o sistema de descendência não diz respeito apenas às regras de transmissão de bens e direitos, mas também à idéia de transmissão de uma “alma” e um nome indígena. Para ser índio é necessário estar ligado a um ancestral reconhecido pelo sib2 patrilinear. Essa forma de organizar o parentesco insere uma assimetria na posição das mulheres. São elas que personificam uma alteridade ameaçadora, e não raro são ligadas a um descompromisso com a harmonia coletiva. Com o passar do tempo e com as relações de comensalidade e co-residência essa alteridade vai se tornando menos marcada entre o casal.

Aqui, vale um comentário a respeito das relações de parentesco nas sociedades ameríndias. Lasmar é caudatária da reflexão de vários antropólogos (Carneiro da Cunha, 1978; Rivière, 1993; Viveiros de Castro, 2002; Overing, 1973, dentre muitos outros)3 a respeito da amerindianização da descendência e da afinidade. Esses autores rejeitaram o modelo africanista, que enfatizava a definição de grupos de descendência e a transmissão de bens/ofícios, e elaboraram explicações mais próximas aos princípios subjacentes à composição dos grupos de parentesco nativo das terras baixas sul-ameríndias.

Overing argumenta que para muitas sociedades os grupos locais são a base do parentesco e o casamento por aliança se torna a instituição crucial responsável pela coesão e perpetuação do grupo. Segundo ela:

Nós deveríamos distinguir entre aquelas sociedades que enfatizam a descendência, aquelas que enfatizam a descendência e a aliança, e finalmente aquelas que dão ênfase apenas na aliança como o princípio básico organizador das relações (Overing, 1973:556, tradução livre).

Nesse artigo, a autora está interessada em certos problemas de interpretação, especificamente em relação a sociedades que combinam a regra positiva de casamento, a pouca ênfase dada por elas ao princípio de descendência e o casamento endogâmico. Os dados etnográficos explorados pela autora são retirados de sua pesquisa de mais de 10 anos entre os Piaroa. Overing (1973) chama a atenção para o fato de que estamos diante de sociedades que não operam com o princípio da descendência unilinear, mas há uma regularidade que precisa ser entendida a partir de outro arcabouço teórico. Já nesse texto a autora aponta para a importância que a noção de diferença ocupa para a reprodução social neste grupo e também para outros das terras baixas da América do Sul.

Segundo Viveiros de Castro (2002a; 2002b), para os grupos ameríndios, a afinidade (ou a diferença/alteridade) é o “dado” e é na esfera da consangüinidade que a “energia social é despendida”. Na teoria nativa dos grupos ameríndios a afinidade é um valor que desempenha um papel fundamental como operador sociocosmológico. O autor distingue duas espécies de afinidade: a “afinidade atual”, na qual os afins são consanguinizados a partir da consubstanciação por meio da co-residência4, e a “afinidade potencial”, que extrapola as alianças matrimoniais e constitui-se como gramática de trocas simbólicas do interior para o exterior, da passagem do local para o global. Assim, a socialidade ameríndia não é marcada pela troca de esposas e de coisas, mas envolve trocas simbólicas, nas quais há lugar para a incorporação do desconhecido.

Nesse sentido, a noção de afinidade transcende as relações de parentesco. Iniciei essa digressão teórica ao discutir os dados etnográficos relacionados ao parentesco do livro de Lasmar. No entanto, após essa reflexão, é possível falar de parentesco indígena? Ou à maneira de Shneider (1980), o parentesco seria uma ideologia da sociedade ocidental ou euro-americana (para lembrar Strathern, 1992) que, às vezes, se aplica a outros grupos sociais? Segundo Viveiros de Castro a responda é sim. No entanto, ao falar de parentesco é possível colocar em perspectiva as matrizes sócio-cosmológicas e as ontologias ocidentais e também ameríndias (entendidas aqui fora de pressupostos identitários). Esse jogo semântico é fundamental para entender o empreendimento de Lasmar, que ao tomar como objeto de pesquisa as relações entre índios e brancos, se diferencia das perspectivas que rapidamente associam essas relações a exploração, submissão e aculturação.

A partir de um olhar feminista, privilegiando narrativas femininas, a autora complexifica o “movimento dos índios em direção ao mundo dos brancos” de modo crítico e inovador. No entanto, a reflexão sobre episódios de violência propriamente ditos até questões colocadas pelo cotidiano das mulheres, certamente marcadas por gênero, suscita algumas questões, subjacentes no texto e não retomadas.

Mesmo havendo uma inversão no sistema de descendência e na ideologia de gênero a partir do casamento de mulheres indígenas com brancos, segundo a autora, essa inversão é pautada pela socialidade ribeirinha, que tem na diferença seu operador/produtor social fundamental. Como aponta Lasmar, esta inversão não se dá sem conflitos.

A autora explora bem os conflitos entre irmãos e irmãs resultantes dessa inversão. No entanto, ela explora menos aqueles resultantes do casamento das mulheres indígenas com os brancos. É verdade que Lasmar mostra como depois de um tempo as mulheres se decepcionam com o comportamento de seus maridos, bem como os maridos muitas vezes se fartam com a presença contínua dos parentes da mulher em casa. No entanto, o texto mostra uma certa homogeneidade do conflito. Se a convivencialidade é fundamental para operacionalizar as cosmologias ameríndias, neste caso, ligada ao campo etnográfico da autora, cuja centralidade está na relação entre índios e brancos como produtora de identidade entre co-residentes, nem sempre essa convivencialidade acontece de modo homogêneo.5

Lasmar mostra como na visão dos parentes da mulher indígena, ela está se “tornando branca”, já que se casou com branco e mora na cidade. Esse processo atualiza a teoria nativa da socialidade, na qual são sempre seres que guardam diferenças que entram em relação – a mulher, antes filha, neta, ou seja, consangüínea, agora é “branca” e, por conseguinte, uma afim. Se não há uma ligação automática entre diferença e desigualdade ou entre diferença e violência, é necessário escrutinar, neste caso, onde e como essas relações acontecem.

Na segunda parte do livro, Lasmar busca compreender como nessa translocalidade entre comunidade e cidade, na qual a primeira é um ponto de referência simbólico importante para os indígenas, existem maneiras distintas de estar na cidade. Aqui, a autora é herdeira das reflexões de Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro (1987) a respeito da noção de pessoa e corporalidade nas sociedades ameríndias. Esses autores buscaram compreender as cosmologias ameríndias a partir dos seus próprios termos e afirmam que elas apontam para a importância de pensar a pessoa e a corporalidade como elementos centrais da experiência vivida socialmente, pois a “produção física de indivíduos se insere em um contexto voltado para a produção social de pessoas” (Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro, 1987:13).

Segundo Lasmar, há uma forma mais próxima do modo branco e outra mais próxima do modo indígena de se viver na cidade. Assim, é a partir da trajetória de três mulheres indígenas de gerações distintas em São Gabriel da Cachoeira que a autora mostra como são as práticas cotidianas, a idade e a corporalidade que informam e desenham essas posicionalidades – por exemplo, ter uma roça ou não, o tipo de alimento consumido, o jeito de andar, as roupas que se veste, dentre outros.

A partir dessas trajetórias e da etnografia podemos perceber uma preferência das mulheres indígenas em se casar com homens brancos, muitas vezes, influenciadas por suas mães. Segundo Lasmar, essa preferência pode ser explicada pelos benefícios econômicos que esse tipo de casamento permite a partir de um acesso facilitado ao “mundo de mercadorias dos brancos”, bem como pelo fato de ampliar a rede familiar, de reciprocidade e de circulação dos parentes. Por exemplo, ter uma filha casada com um branco, facilita o acesso ao mundo da cidade, do hospital, da escola, etc., ao mesmo tempo em que transforma o estilo de vida e a corporalidade dessa mulher.

A autora argumenta que há uma hierarquização entre índios e brancos na cidade de São Gabriel da Cachoeira, onde os brancos teriam acesso mais facilitado e legitimado a bens, serviços, empregos e posições sociais. Assim, a condição da esposa de um branco pode estar próxima a de algumas mulheres casadas com homens indígenas que conseguiram uma boa colocação no mercado de trabalho e possuem condições de prover os parentes e ampará-los materialmente ou em caso de necessidade e cuidados. No entanto, a autora argumenta que o casamento com brancos potencializa a capacidade de agência das mulheres no que se refere aos processos de construção de uma identidade no âmbito da família extensa a partir da subversão da ideologia de gênero. Além disso, esse tipo de casamento cria uma tensão e uma inversão da assimetria de valor nas relações entre irmãos e irmãs no Uaupés. Para entendê-la é necessário remeter à identidade das crianças nascidas das uniões com brancos.

Como mencionei acima, é a partir da descendência agnática que é transmitido a “alma indígena”, ou seja, é por onde a identidade indígena é constituída. Neste caso, se uma mulher casa-se com um branco, esta transmissão seria impossível. O que não aconteceria, por exemplo, se um homem indígena se casa com uma branca, uma vez que ele teria legitimidade dentro dos “cânones tradicionais” da descendência para dar o nome cerimonial à criança e por conseqüência o acesso a “alma indígena”.

Lasmar mostra que tem sido habitual os filhos/as das mulheres casadas com brancos receberem o nome cerimonial pela via do avô materno, que faz com que a criança seja identificada com a etnia da mãe. Embora os filhos/as nascidos do casamento entre índios e brancos sejam considerados “misturados”, a “parte indígena” desse corpo é dada pela linha materna, contrariando o princípio de descendência. Isso tem causado uma tensão com os tios maternos, pois segundo a tradição seriam eles os únicos a terem o direito da transmissão do sib. A preferência das mulheres pelos brancos também tem sido foco de tensão não só em relação ao irmão materno, mas de maneira geral, pois os homens indígenas se queixam que os brancos “roubam” suas mulheres, uma vez que o casamento entre um índio e uma mulher branca é escasso.

Para a autora, esse ponto ao redor da identidade dos filhos “misturados” reforça sua hipótese de que o enlace com um branco dá a mulher uma oportunidade de se recolocar no sistema indígena de relações sociais. Pois, além de dotá-la de recursos que a permitem ajudar os parentes, esse casamento cria uma situação favorável para que ela transmita aos filhos o nome de seus antepassados com a conivência de seu pai ou de outro homem de seu sib. Assim, o casamento com um homem branco permite a mulher indígena uma posição relevante em meio a ambigüidade social da cidade, pois ela indica a tensão entre a reprodução da identidade indígena e a apropriação das capacidades/conhecimentos e bens dos brancos.Para a autora essa pode ser uma explicação do porquê as mães fazem pressão para que as filhas se casem com brancos (Lasmar,2005:245).

Enquanto lia o livro de Lasmar, eu me lembrava do texto de Bourdieu (2006), no qual ele mostra como as transformações pelas quais passam as sociedades camponesas (neste caso, no Béarn, no sudoeste da França) levam a desvantagens dos homens no mercado matrimonial quando as categorias urbanas penetram no campo. Segundo sua análise, as mulheres assimilariam mais rapidamente as transformações culturais vindas da cidade do que os rapazes, nesse sentido, eles seriam desvalorizados diante da visão de suas potenciais esposas, pois não sabem lidar com os padrões valorizados por uma nova “economia política” do casamento, ficando solteiros.

Assim, fica a questão: a partir de uma imagética de gênero, seriam as mulheres em diferentes sistemas sociais, nos quais a reprodução social como reposição de hierarquias implica na produção da diferença sexual, os sujeitos mais propensos a redefini-los? Essa pergunta me remeteu a quão diferente seriam os resultados da pesquisa de Lasmar, se retomássemos o debate da antropologia feminista da década de 1970, no qual havia um certo consenso sobre a subordinação universal das mulheres. De maneira similar a Strathern (2006), Lasmar trabalha com gênero como metáfora de categorias socio-cosmológicas mais gerais, permitindo conhecer, dentro de um grupo específico, como se arranjam as práticas e as idéias em torno dos sexos e dos objetos sexuados.

Nesse sentido, a categoria gênero não seria de ordem analítica e sim empírica, como uma categoria de diferenciação que não se reduz à diferenciação sexual/corporal de pessoas e sim como motivação empírica para o engendramento de sistemas simbólicos. A escolha dessa noção de gênero permitiu à autora apreender como a diferença sexual dá significado ao vivido a partir de categorias coletivas e suas transformações.

Essa escolha teórico-metodológica permitiu a Lasmar investigar as transformações sociais a partir de cosmologias produzidas pelos grupos da região do Uaupés e possibilitou, ainda, descortinar as questões de gênero a partir da agência dos sujeitos. Ao desmitificar generalizações pouco explicativas sobre a subordinação feminina ou outras, como a suposta “fixidez” e “subordinação” das “sociedades tradicionais”, a pesquisa da autora abre perspectivas para entender a natureza dessas transformações. Porque embora as mulheres invertam a orientação sexual do sistema de descendência, elas o fazem a partir das bases da socialidade ribeirinha, que guarda proximidade com a discussão que fiz a respeito dos grupos ameríndios, ou seja, essa inversão está informada pela lógica da diferença como marcação social entre os grupos (entre índios e brancos), bem como a identidade entre co-residentes (as transformações no modo de vida).

Lasmar explora a experiência das mulheres indígenas na cidade e sua preferência pelos homens brancos, ressaltando as transformações no sistema de relações entre índios e brancos e a capacidade de agência das mulheres. No entanto, a questão da violência de gênero é retomada de maneira menos sistematizada. A autora aponta que uma de suas motivações para construir seu objeto de pesquisa foi o convite do Instituto Socioambiental (ISA) para realizar uma pesquisa entre as mulheres indígenas residentes em São Gabriel da Cachoeira vítimas de violência sexual praticada, em sua maioria, por militares brancos na cidade. Logo, ela percebeu que a relação entre homens brancos e mulheres indígenas não se explicava somente a partir de episódios de violência, mas também em encontros sexuais consentidos, namoro e casamento. Nesse sentido, seria preciso apreender a experiência feminina na cidade e suas relações com os brancos também como potenciais parceiros sexuais e/ou maridos dessas mulheres (Lasmar, 2004:25-26).

Se as mulheres são responsabilizadas na maioria das explicações sobre os episódios de violência, esse entendimento passa pela culpabilização ou punição dessas por relações sexuais ilícitas presentes no mito e no discurso dos índios. Bem como, pela visão das moças do bairro da Praia, sugerindo que o comportamento das jovens indígenas recém-chegadas à cidade as torna mais expostas a esse tipo de situação, pois ainda seriam ingênuas e não saberiam viver na cidade. Além disso, é recorrente a explicação de que grande parte das mulheres usa plantas afrodisíacas para deixar os homens de “cabeça fraca” fazendo-os agir como “loucos” (Id. ib.:204).

O/a leitor/a poderia ter uma visão ampliada sobre os episódios de violência, caso o texto disponibilizasse mais informações a respeito dos sujeitos envolvidos e como eles se envolvem neles. A partir da visão das moças do bairro da Praia, a autora afirma que as mulheres indígenas recém-chegadas à cidade (consideradas por aquelas “as meninas do sítio”) estão mais vulneráveis a esses acontecimentos, mas o que pensam as moças do sítio? Outras questões permearam minha leitura: caso as mulheres se casem, deixam de estar vulneráveis a situações de violência sexual/de gênero?As mulheres casadas estão vulneráveis? De que modo? Como são coletados os dados sobre violência sexual e de gênero? Há denúncias por parte das mulheres indígenas? Como entender a complexidade desses sofrimentos marcados por gênero?

O livro de Lasmar deve ser lido por antropólogos/as e estudantes de ciências sociais em geral, porque sem dúvida traz contribuições relevantes, além de ser leitura instigante e trazer ótimas sínteses teóricas sobre parentesco e grupos ameríndios. Para os/as profissionais e estudiosos/as da área de etnologia indígena brasileira e ameríndia a leitura é fundamental, pois a autora não é herdeira da antropologia feminista dos anos 1970, que ligou automaticamente o antagonismo sexual à dominação masculina, influenciando muitos americanistas. Para a área de teoria feminista e de gênero vale a pena conferir como a autora trabalhou com gênero de modo criativo e inovador.

Referências

BOURDIEU, Pierre. O camponês e seu corpo. Revista de Sociologia e Política, número 26, UFPR, 2006.         [ Links ]

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Os mortos e os outros: uma análise do sistema funerário e da noção de pessoa entre os índios Krahó. São Paulo, Hucitec, 1978.         [ Links ]

OVERING, Joana Kaplan. Endogamy and the marriage alliance: a note on continuity in kindred-based groups. Man, vol. 8, nº 4, dec. 1973.         [ Links ]

RIVIÈRE, Peter. The amerindianization of descent and affinity. L’Homme, avril-décembre-XXXIII, 1993.         [ Links ]

SCHNEIDER, David M. American kinship. A cultural account. 2ª ed. Chicago/Londres, The University of Chicago Press, 1980.         [ Links ]

SEEGER, Antony; DAMATTA, Roberto; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras. In: OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. (org.) Sociedades indígenas e indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro, Marco Zero, 1987.         [ Links ]

STRATHERN, Marilyn. After Nature. English Kinship in the late Twentieth Century. Cambridge, Cambridge University Press, 1992.         [ Links ]

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O problema da afinidade na Amazônia. In: A inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac Naify, 2002a.         [ Links ]

__________. Atualização e contra-efetuação virtual: o processo do parentesco. In: A inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac Naify, 2002b.         [ Links ]

Notas

1 Na região do Alto Rio Negro podem ser encontradas mais de 17 etnias indígenas diferentes. No entanto, a autora opta por trabalhar com as categorias pan-étnicas de índio e branco, pois são estes os termos articulados no discurso nativo.
2 O sib é o termo norte-americano equivalente às linhagens dos grupos exógamos.
3 Esses antropólogos/as não têm uma produção homogênea – quero dizer que eles estabelecem diálogos críticos uns com os outros em busca de uma abordagem teórico-metodológica mais apropriada para tratar a relevância da afinidade nas terras baixas da América do Sul.
4 Overing (1973) também aponta a importância da convivencialidade como estratégia para consaguinizar os afins.
5 Agradeço ao professor Mauro Almeida por seus comentários inspiradores na disciplina de Parentesco e Redes Sociais.

Carolina Branco de Castro Ferreira – Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – área de gênero -, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp. E-mail: [email protected].

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Um peixe olhou para mim. O povo Yudjá e a perspectiva – LIMA (IA)

LIMA, Tânia Stolze. Um peixe olhou para mim. O povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo: Editora UNESP/ISA;  Rio de Janeiro: NuTI, 2005. 399p. Resenha de: SILLA, Rolando. Intersecciones en Antropología, Olavarría, n.9, ene./dic., 2008.

Un pez me miró es el nombre con que Tânia Stolze Lima (profesora de antropología de la Universidad Federal Fluminense) tituló su estudio etnológico (palabra maldita para el ambiente académico argentino) sobre los Yudjá que habitan a orillas del río Xingu, en el Estado de Mato Grosso (Brasil). Resultado de diferentes viajes realizados entre 1984 y 1990, el libro es una reformulación de su tesis doctoral defendida en el Museo Nacional (Universidad Federal de Rio de Janeiro) en 1995 e inspiradora de uno de los conceptos centrales del debate amazónico actual: el perspectivismo cosmológico amerindio, acuñado por Eduardo Viveiros de Castro. Obra dividida en siete capítulos, desarrolla progresivamente la gesta mítica de los Judjá, el concepto nativo de otredad, la concepción de cuerpo, embarazo y procreación, el canibalismo y las fiestas de sociabilidad. Estudio que intenta “liberarse de las categorías de finalidad cultural, causalidad sociológica y totalidad jerárquica”, parte del presupuesto de que el concepto de totalidad en el pensamiento antropológico clásico se haya fundamentado sobre las antinomias naturaleza-cultura e individuo-sociedad. Por ello la autora intenta desarrollar una perspectiva totalizadora pero sin reproducir estas antinomias. Así, a partir de las preguntas sobre cómo pensar relaciones entre perspectivas sin efectuar conceptualizaciones jerárquicas, o cómo crear totalidades que no sean cerradas, el texto plantea desafíos a la escritura etnográfica.

Su objetivo es la descripción del sistema sociocosmológico Yudjá; y Lima parte de la narración nativa para luego, y a partir de las cuales, desarrollar sus interpretaciones. Los relatos no son entonces considerados “supercherías” o representaciones mentales, sino realidades construidas y por lo tanto eficaces en la vida cotidiana indígena. Para describir tal sistema no sólo toma los relatos sino que analiza su vida social y en especial una actividad considerada central: las fiestas de embriaguez producida por la cerveza de madioca (cauim) que las mujeres producen. Según la autora, ésta es una de las tres prácticas con que los Yudjá se autoidentifican y eligieron como expresión de su diferencia, siendo las restantes la navegación y las narraciones sobre Sen´. Lima señala que “la historia de Sen´ le fue narrada diversas veces por personas que la dejaban con la impresión de que resumía todo aquello que los Yudjá querían decir a los karai (o sea a los brasileros, o sea a ella). Le fue presentada en un conjunto articulado de mitos que forman la epopeya propiamente dicha, y en mitos que componen un conjunto articulado independiente, pero que son citados por intermedio de Taku (2005: 71), un hombre que, según el relato mítico, fue invitado por los karai a participar de una expedición fluvial al país de Sen´, situado en los confines del mundo. Sen´ es el chaman a quién los Yudjá atribuyen gran parte de la configuración actual del mundo y de la condición humana. Lima desarrolla esta epopeya en gran parte del libro, pero es ante todo en el primer capítulo donde cuenta cómo el gran chaman sopló a una parte de los Yudjá para que se transformen en karai y los dotó de la condición de criadores de ganado, teniendo “su caza” almacenada en sus corrales, mientras que losYudjá propiamente dichos asumieron la condición de predadores, y por lo tanto estuvieron obligados a realizar expediciones para encontrar alimento. Después de su partida, Sen´ “inventó las mercaderías, las armas de fuego, los tejidos, los cuchillos de acero y los aviones pequeños” (2005: 25). De esta manera, la historia Yudjá no construye un discurso sobre sí, destinado a los karai y generando una política de la etnicidad, sino que construye un discurso para sí sobre los karai, y sobre por qué unos predan y los otros fabrican. El mito se transforma así en una “antropología indígena” sobre ellos y los Otros con quienes interaccionan; y crea categorías producidas por el propio grupo para explicar su actual condición, su relación y subordinación a los blancos y al Estado nacional brasilero. Esta explicación propia de los Yudjá no utiliza categorías de pensamiento occidental. Por ello la autora afirma que lo que en general se toma por meras ideas o representaciones son principios tan reales y de tanta eficacia como nuestros conceptos antropológicos de linaje, clase o tabú.

Otro aspecto central de esta etnografía es el desarrollo del concepto de perspectivismo, que nos lleva a reconsiderar las relaciones que la antropología clásica desarrolló sobre la dicotomía naturaleza-cultura. Desde la perspectiva Yudjá, Sen´ es un humano para los demás humanos y para sí mismo. Pero sus padres son jaguares para los humanos, aunque humanos para sí mismos; Sen´ los considera jaguares, excepto que entiende su lenguaje y los trata como a sus padres (2005: 28). Esta peculiar visión de los animales, las cosas y las personas, en dónde existe una diferencia de perspectiva entre lo que uno cree que es y cómo los demás (hombres o animales) lo ven a uno, es según Lima, el andamiaje fundamental desde donde estos grupos humanos construyen sus formas de ver el mundo, sus convicciones de cómo el mundo es, y por ende, cómo hay que operar sobre él. Se acostumbra llamar a este fenómeno “perspectivismo indígena panamericano” e implica la convicción nativa de que los animales, además de voluntad, tienen puntos de vista propios; y de que mientras los humanos (los Yudjá) ven a los animales como animales, estos se autoconsideran personas y nos ven a nosotros como personas también. Por ello, desde este punto de vista, los humanos pueden conocer a los animales como tales, pero también como otra persona, e incluso como otra sociedad con sus propias costumbres. Como una forma de conocer el mundo de los animales y de los espíritus radica en la capacidad del chaman del grupo en transformarse, esta cosmovisión implica también una concepción diferente de persona, de cuerpo y de sus potencialidades. Entonces, y según la perspectiva de las sociedades amazónicas, es propio de la persona humana estar dotada de una perspectiva que contenga a otras. Esta es la visión del mundo del cazador, y según la autora, oponer apariencia a esencia no essuficientemente explicativo del fenómeno. Como para los nativos esta diferencia de perspectiva, más que creencia es una certeza, actúan en consecuencia a este mundo construido y por lo tanto real para ellos; e incide sobre su concepción de cuerpo, de embarazo y procreación, de comensalidad y ante todo implica una conceptualización diferente de la identidad, tanto humana como animal, e incide sobre las nociones nativas de humanidad, sociedad, y naturaleza.

Para los Yudjá “el lugar en que hoy viven es un cielo derrumbado” (2005: 57). En su origen, los Yudjá le dijeron a Sen´ que los karai eran buenos. Entonces éste les dio la posibilidad de fabricar mercancías. Es así que fue un error de ellos que el gran chaman los privara de la capacidad de las artes industriales y se las otorgara a los blancos. Así el mito retrata la condición humana en términos de un equívoco. Se podría fácilmente asociar el derrumbe demográfico Yudjá causado por la explotación y corrimiento que sufrieron debido a la extracción del caucho por parte de los brasileros al mítico derrumbamiento celeste, y traducir un discurso “subjetivo y no-occidental” a una categoría sociológica propia de nuestro entendimiento. De hecho la merma demográfica es aterradora: 2000 miembros en 1842, 40 en 1916 y la ínfima suma de 37 en 1950. Sin embargo la autora se niega a seguir esta tentadora y directa explicación derivada de una causalidad sociológica para señalar que en su opinión el “derrumbe demográfico no destruyó el sistema, sólo hizo que operara en una escala menor” (2005: 79). Así, y pese a que los miembros casi desaparecieron, su lógica de pensar y actuar no; planteo que se opone a las concepciones clásicas de aculturación y contacto interétnico.

Los Yudjá distinguen a los karai de sus otros vecinos también indígenas. Si ellos “son dueños” del río, sus vecinos los Abi “son dueños” de la floresta. Por ello, y aunque se tiene gran aprecio por la carne de caza, la pesca es la actividad que domina y no se acostumbra ambular por la selva en busca de alimento, pues en general se caza desde la canoa.

Para los Yudjá vivir en sociedad es ante todo promover comidas colectivas y cauinagems. Las diferentes modalidades de embriaguez, ligadas a la guerra, al chaman y al cauinagem, definen, según Lima, el problema de la comunicación entre categorías sociocosmológicas como un venir-Otro, y sugieren que ese devenir es tan indisociable de la socialidad ritual cuanto del chaman, quien ocupa una situación ambigua por excelencia. Ni vivo ni muerto, bueno y malo, hombre y animal, es el gran mediador entre los hombres, los espíritus y los animales, pues por su capacidad de transformarse puede viajar y establecer puentes de comunicación entre todos estos mundos. Pero es por esta misma ambigüedad que también tiene algo en común con el guerrero y el borracho, pues sobre ninguno de ellos se puede estar enteramente seguro de sus buenas intenciones para con la aldea.

El carácter altamente transformacional del mundo según la visión amazónica se evidencia también a partir de la comensalidad. Una de las preguntas de la autora es si, desde la perspectiva nativa, existe una diferencia fundamental entre comer personas y beber cauim; de si en una sociedad en dónde el perspectivismo reina y la antropofagia aparece como una posibilidad latente sea suficiente evidencia que no comer personas no es ser caníbal. Si el vocablo gente y un tipo de cauim se dice igualmente dubia, entonces postulados que utilizan los Yudjá tales como los Arupaya “comen gente” (dubia) contiene ambos significados. Por otro lado, los Yudjá afirman que, desde el punto de vista de los espíritus, el cauim es producido a partir del cadáver de una persona, y que posee propiedades nutritivas para los Yudjá. O sea que cuando los espíritus observan los cauinagems que los Yudjá realizan, ven que están comiendo seres humanos. Entonces, si desde el punto de vista humano están bebiendo mandioca fermentada, desde el punto de vista de los espíritus están bebiendo el producto de un cadáver, y por lo tanto serían, desde la perspectiva de los espíritus, caníbales.

Texto construido a partir de un extenso trabajo de campo en el que implicó, entre otras cosas, aprender la lengua, la autora no deja de admitir los problemas inherentes a la traducción, así como a la comprensión de las prácticas nativas. Admite incluso que los propios informantes le señalaron lo difícil que fue explicarle su cosmovisión y de “que mil cosas le fueron dichas por pura aproximación”. Por ello considera que la monografía es sólo una aproximación a la vida Yudjá. De lectura compleja, combina sus datos con un profundo conocimiento del debate amazónico. Creo que tiene al menos dos méritos que sobrepasan la pertinencia al área en cuestión. Uno es la crítica a la causalidad sociológica intentando en todo momento no hacer traducciones rápidas de los conceptos y prácticas nativas a nuestro sentido y creencia de lo que es la sociedad y la cultura. El otro es estar atento a qué pertenece a la naturaleza y qué a la cultura desde las perspectivas nativas, y no dar esta división como un a priori. Sobre este punto, en la etnografía reseñada es admirable la sofisticación que la autora despliega respecto a la importancia de pensar otras totalidades en grupos humanos en la que la distinción entre lo humano y lo animal, lo terrenal y el “más allá”, lo real y lo simbólico, no se encuentran divididos exactamente de la misma forma en que nosotros lo hacemos; y que esto no es un falso saber, sino que tiene consecuencias reales sobre la vida cotidiana de estas poblaciones, pues es el fundamento sobre el que constituyen su mundo de vida. Por último, creo que desde la academia argentina debiéramos valorar cómo en un contexto como el brasilero etnología y antropología social han conseguido, no sin conflictos, tolerarse mutuamente, contribuyendo ambas y por diferentes caminos, a la comprensión de la vida en sociedad.

Rolando Silla – CONICET, IDES. Departamento de Antropología, Facultad de Ciencias Sociales (UNCPBA). Avda. del Valle 5737, B7400JWI, Olavarría. E-mail:[email protected]

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Chutando a escada: A estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica | Ha-Joon Chang

Nesta sua segunda obra, Ha-Joon Chang, atual Diretor Assistente do Departamento de Estudo do Desenvolvimento na Faculdade de Economia da Universidade de Cambridge na Inglaterra, utiliza-se da análise histórica aplicada à Economia para responder à questão se as políticas e instituições atualmente recomendadas aos países em desenvolvimento, foram adotadas pelas nações hoje desenvolvidas durante seus processos desenvolvimentistas.

Chang propõe-se desfazer o mito tão difundido atualmente, da importância do livre-comércio nos processos de desenvolvimento. Para tanto, analisa dados das principais nações desenvolvidas, como Grã-Bretanha, EUA, Alemanha, França, Bélgica, Japão, Coréia, entre outras, apresentando as políticas protecionistas e intervencionistas tomadas e montando um quadro bem diferente do que essas mesmas nações recomendam aos países hoje em desenvolvimento, sendo essa a base para a expressão utilizada no título do livro: “Chutando a escada”, que remete à idéia de que após galgarem os degraus do desenvolvimento, as nações esconderiam o caminho tomado como forma de se manterem protegidas no topo. Leia Mais

Israel-Palestina: a construção da paz vista de uma perspectiva global | Gilberto Dupas e Tullo Vigevani

Há algo singular na apreciação das relações internacionais contemporâneas e na história das relações internacionais do século XX. Apenas um tema tem sido ultrapassado, em volume e proporção quantitativa, pelo estudo das questões Israel-Palestina: a Grande Guerra de 1914-1918. Isso evidencia algo a nos induzir a uma forte preocupação: mais do que a paz, como lembram os clássicos realistas, a guerra é ainda o cerne a dar fundamento epistemológico às relações internacionais.

Nesse sentido, à primeira vista, pareceria que o livro organizado por Dupas e Vigevani padeceria da síndrome do sucesso do tema em voga ou da pouco criativa recorrência ao lugar comum, ao já dito, ao já qualificado. Em outras palavras, ao déjà vu. Mas não é isso o que emerge ao longo da leitura da coletânea conduzida pelos colegas paulistas. O conflito Israel-Palestina é posto em tela de uma maneira original, no esforço teleológico da busca de caminhos da paz. Os autores, ao aceitarem o desafio, não reificam a guerra, mas a desconstroem, de fato, por meio de múltiplos olhares e binóculos distintos, mas a partir da mesma colina: a da vontade de celebrar a convivência de contrários. Leia Mais