A tecelã: uma jornada iniciática rumo a individuação feminina

INTRODUÇÃO

Esta é uma resenha do livro: “A tecelã: uma jornada iniciática rumo a individuação feminina”, de Barbara Black Koltuv, que faz uma análise psicológica junguiana de casos clínicos da atualidade, comparando à dinâmica psicológica dos mitos da antiguidade, relatos bíblicos e sonhos, em mulheres. Para a autora, a obra demonstra um sentimento de mistério, força e alegria que as mulheres encontram em sua jornada rumo à individuação; segundo Koltuv, uma jornada que não tem fim e que está sempre sendo reiniciada em um trabalho paciente e contínuo, como o de uma tecelã.

Barbara Black Koltuv é doutora em Psicologia Clínica pela Universidade Columbia (EUA) desde 1962. Recebeu seu diploma em Psicanálise no Programa de Pós-doutorado da Universidade de Nova York (EUA) em 1969 e, em 1980, o de analista junguiana, pelo Instituto C. G. Jung de Nova York. Estudou hebraico bíblico por várias décadas e ministrou cursos na Fundação C. G. Jung sobre psicologia feminina, Lilith, relacionamentos, criatividade e espiritualidade. Em 2003, foi uma das fundadoras da Associação Psicanalítica Junguiana, onde continua atuando como supervisora e analista sênior. Em seu quase meio século de prática, a Dra. Barbara Koltuv aprendeu que a cura e a saúde física e mental são resultado de uma profunda conexão espiritual com o Ser interior. Ela também é autora de O Livro de Lilith, que faz parte da coleção Biblioteca Psicologia e Mito da Editora Cultrix.

O livro é o resultado de ensaios que foram concebidos em 1973, como uma série de seminários para a Fundação C. G. Jung, em Nova York. Chamava-se “A Tecelã”, segundo livro da série Biblioteca Junguiana de Psicologia Feminina. A obra ilustrada foi lida no formato ebook, está dividida em nove capítulos e um epílogo.

Nesta obra Koltuv reafirma o reaparecimento dos valores femininos nos dias de hoje e discute o processo de transformação por meio do qual as mulheres voltam a confiar em si mesmas.

“O capítulo 1: Mistérios Sanguíneos, trata que num nível biológico básico as mulheres são diferentes: capazes de carregar e nutrir outra vida dentro de si, de dar à luz e amamentar com o corpo. Esse é o aspecto transformacional miraculoso das mulheres. Esse ciclo lunar interior, ou ciclo menstrual, afeta a energia, as ideias, as emoções, e é a matriz da própria natureza delas. Esses Mistérios Sanguíneos – menstruação, sexualidade, gravidez, parto, lactação e menopausa – são a história, dentro delas mesmas e no mundo.

No capítulo 2: Mães e Filhas, a autora discute que ninguém jamais se separa inteiramente da mãe. Após anos e anos de análise e autoconhecimento, somos passíveis de chegar a uma rede de sentimentos que nos une irrevogavelmente à nossa mãe. Ouvimos a sua voz saindo da nossa boca quando falamos com uma criança ou nos deparamos com seu rosto no espelho, numa certa expressão, ou nos sentimos como crianças indefesas e exasperadas na idade de 30, 40 ou 50 anos. Portanto, poderíamos dizer que toda mãe contém a filha em si mesma, que toda filha contém a mãe e que toda mulher se amplia para trás, em sua mãe, e para a frente, em sua filha.

O capítulo 3: Hetairas, Amazonas e Médiuns, trata que o oposto da característica da mãe é a hetaira, descrita por Toni Wolff. Segunda a autora é aquilo que nos tornamos quando temos um complexo materno negativo e queremos ser qualquer coisa, mas “não como ela”. A característica hetaira numa mulher deve ser comprometida com um encontro heroico com seu próprio animus, senão ela transformará suas criações – suas filhas – em tolas Brancas de Neve dentro de redomas de vidro, indefinidamente à espera do beijo do príncipe para acordá-las e libertá-las. A característica amazona está presente na mulher na medida em que ela funciona independentemente e encontra prazer naquilo que faz e realiza. Sua personalidade frequentemente é formada em seu bom relacionamento com a mãe e no encorajamento do pai e/ou do animus da mãe. Ainda segundo Koltuv, já aquilo que chamam “pensamento feminino”, “intuição feminina”, “pensamento empático”, “consciência difusa” ou “uma voz diferente” é o modo de conhecer baseado na característica mediúnica do feminino. Quando a estrutura do ego é fraca, o tipo mediúnico de mulher pode ser violentado pelo que ela vê e torna-se psicótico.

Já no capítulo 4: Irmãs e Sombras, a autora diz que as mulheres descobriram que podem atrair o olhar do Self feminino espelhado nos olhos de outras mulheres, amigas e irmãs. Nesse sentido, mesmo nossas mães se tornaram nossas irmãs, como na história de Ruth e Naomi. Trabalhar para fazer irmãs e curar a inteireza dos aspectos da própria sombra é algo que pode ser feito num nível exterior, com amigas e às vezes até mesmo com inimigas, e, num nível interior, quando encontramos nossas sombras femininas em sonhos.

No capítulo 5: Animus: Amante e Tirano, é a deia de que toda mulher tem dentro de si, um elemento contrassexual, um outro, um homem interior, uma alma parcial, um lado masculino, às vezes plural, um comitê, um júri, um conselho editorial. Trata-se da experiência interior do outro masculino, e às vezes o que esperamos dos homens, ou o animus exterior projetado. O animus é formado a partir da experiência do nosso pai, do animus ou lado masculino da nossa mãe e do inconsciente coletivo que fornece a dimensão arquetípica. Para Koltuv o animus como amante é, na melhor das hipóteses, o parceiro da alma, a metade perdida de si mesma restaurada. Os sintomas de um ataque do animus são sentir-se presa ou possuída, ou encontrar-se numa espiral furiosa, ou sentir-se terrivelmente vitimada, ou deprimida, perder o interesse pela vida, ter dor ou pressão, não conseguir respirar, sentir rigidez, dor ou tensão nas costas, no pescoço, nos ombros e na cabeça. A autora afirma que a imagem da “mulher conduzida pelo animus” é a do animus cavalgando nas costas da mulher.

No capítulo 6: O Desenvolvimento do Animus, refere-se a um momento de decisão, como exemplo a autora traz o relato bíblico de Ester, que trouxe a questão da autoafirmação para dentro do seu próprio reino feminino. Com seu ato de reverência e coragem, obteve seu próprio espaço. Nesse contexto, os aspectos negativos do animus são prontamente transformados. Tudo começa a dar certo. As coisas se encaixam em seus lugares. Haman, conduzido pelo seu próprio lado feminino inferior, constrói pomposamente o instrumento de sua própria morte, a forca. O animus do rei conscientiza-se da dependência do animus da rainha para a própria vida dele. Conscientiza-se da necessidade de obedecer às leis da individuação e de ligação com o Self. O lado de sombra negativa é revelado e rapidamente transformado. Tudo se mostra preciso e correto. Há uma recepção e um banquete, e todos vivem felizes.

O capítulo 7: Os Estágios do Desenvolvimento do Animus, a autora discute agora que a função do animus liga o ego feminino aos níveis mais profundos do Self feminino. O desenvolvimento da função do animus opera uma transformação na mulher, de modo que ela possa assumir sua própria autoridade como mulher. Ela se torna inteiramente ela mesma, e é capaz de pisar seu próprio terreno, com sua própria autoridade. Koltuv diz que é esse encontro contínuo, sem fim, com o outro contrassexual que oferece a prima matéria, o fogo, a energia e o caldeirão para a transformação e a individuação. A batalha dos sexos – ou a história de amor – está sempre continuando num nível interior e num nível exterior, e “é preciso que nos conscientizemos disso”. O primeiro estágio do desenvolvimento feminino é de inteireza “urobórica” maternal. Não há separação entre o ego e o inconsciente. O ego depende do inconsciente e está contido nele, assim como o bebê depende da mãe e está contido nela. Há o perigo de fixação nesse nível, porque a menina pode vivenciar-se sem jamais abandonar o círculo possessivo do arquétipo da Grande Mãe. Ela permanece uma mulher-criança, mas não é alienada de si mesma e desfruta do sentido de inteireza e completude natural, mas nunca se torna um todo inteiramente desenvolvido e uma mulher humana, individualizada.

No capítulo 8: Criatividade e Realização, aborda-se sobre o processo criativo, dirigido pelo Self feminino, “o doador de vida”, a “matriz e o nutridor”, atrai tanto o aspecto transformador como o aspecto maternal do feminino. A necessidade de dizer não – a diferenciação das necessidades da pessoa em relação às necessidades dos outros – é uma das tarefas psicológicas mais difíceis. O mito de Isis e de Osíris ilustra a construção esmerada de um relacionamento com o lado masculino. O conto de Amor e Psiquê é uma história de amor que ilustra algumas das dificuldades para adquirir a inteireza como mulheres. Em acréscimo, propõe a discutir problemas e dificuldades que as mulheres têm na área da criatividade e da realização. “Mas se o animus dirigir o show, então estaremos perdidas, ou se ele fizer todo o trabalho, não vai adiantar nada e vai tornar-se autodestrutivo. Descobrir como transcender o eixo ego feminino/Self é a jornada da individuação para as mulheres” (KOLTUV, 2020, livro eletrônico).

O capítulo 9: A Feiticeira e a Sabedoria, segundo Koltuv, a feiticeira é o arquétipo feminino desprezado e rejeitado. Ela não é o verde abundante, criativo e viçoso da natureza, mas o aspecto sombrio, cruel, sem sentido, destruidor. Não é companheira amorosa, compassiva, a mão direita do homem. Seus ornamentos para seduzir o homem são os seguintes: cabelo comprido e vermelho como a rosa, faces brancas e vermelhas, enfeites pendentes nas orelhas. Trata-se de uma percepção da sombra que se aprofunda. No nível individual toda mulher carrega na sua sombra os aspectos negligenciados, rejeitados exilados do feminino, para a autora, que precisam ser redimidos a fim de trazer a cura, a integridade e o equilíbrio para o planeta e a humanidade.

No Epílogo aborda-se que, originalmente o título: A Tecelã foi escolhido com dupla intenção, achou que ele refletia tanto o processo como a matéria, o conceito de mulher. Para Koltuv a coleção poderia “[…] ter sido chamada simplesmente Feminina, porque a própria palavra diz tudo, e é todo o processo. Não existe uma definição completa da mulher” (KOLTUV, 2020, livro eletrônico). Para a autora uma mulher é uma experiência e uma energia feminina que tece, que é tecida, que é desfeita e que se movimenta.”

Portanto, a partir de seminários, a autora do livro desenvolve uma abordagem sobre a mulher atual, numa perspectiva feminista, psicológica junguiana e esotérica (enigmática) como “as influências lunares” no início do livro: “A Lua e o nosso próprio ciclo lunar interior estão intimamente relacionados a criatividade” (KOLTUV, 2020, livro eletrônico). Compara na maioria dos capítulos, maneiras de comportamento das “deusas” antigas com simbologias dos sonhos de mulheres na atualidade, mesmo sendo o contexto histórico-cultural atual, complexo e plural. A obra não possui uma linguagem de fácil compreensão, precisa de um glossário e mais notas de rodapé, pois utiliza ao longo de seus nove capítulos, muitos mitos e conceitos de culturas antigas, misteriosas; algumas já obsoletas. Esta obra não deixa de ser pertinente para o estudo psicológico arquetípico na clínica, tendo em vista o currículo da autora e a relevância dos conceitos junguianos que explora, mas parece, muitas vezes, ficar no âmbito das crenças pessoais, mesmo com amplo arcabouço teórico. A obra poderia ter sido mais abrangente culturalmente, contextualizada, para evitar anacronismos e seletividade. Ao explorar as poucas personagens femininas judaicas, que coloca, deveria aprofundar os aspectos de integralização psíquica, tendo em vista a abrangência e influência desta cultura monoteísta na psique feminina atual, global, e nos seus ideais básicos de alteridade, autonomia e inclusão, tão presentes nas Leis e Constituições contemporâneas, que favorecem a emancipação da mulher e a efetivação dos direitos humanos universal. Na intervenção psicológica é essencial levar em consideração o ponto de vista cultural do cliente, sua individualidade, sob uma ótica metodológica acadêmica, e não do ponto de vista religioso, empírico, de quem avalia; sempre norteando-se pelo prisma dos direitos humanos universal, da dignidade da pessoa, do respeito a sua integralidade e a sua saúde mental.


Resenhista

Rosa Maria Pereira de Melo – Mestranda em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Professora Especialista em História. Graduada em Psicologia pela Universidade de Pernambuco – UPE (2010), atuou como psicóloga clínica no Ambulatório da Casa de Saúde e N. S. Hospital Perpétuo Socorro, Garanhuns – PE (2015-2016). Bolsista CAPES, membro do grupo de pesquisa: Religiões, Identidades e Diálogos, no Programa de Pós-graduação da Universidade Católica de Pernambuco – PROPESP-UNICAP (desde 2019). Lattes: http://lattes.cnpq.br/5548594919295133  Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3270-6326  E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

KOLTUV, Barbara Black. A tecelã: uma jornada iniciática rumo a individuação feminina. Trad. Eliane Fittipaldi Pereira. São Paulo: Editora Pensamento Cultrix, 2020. [Livro eletrônico]. Resenha de: MELO, Rosa Maria Pereira de. Filosofia e História. Pombal, v. 9, n. 1, p. 110-115, jan./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]

 

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