A trajetória de um libertário: Pietro Gori na América do Sul (1898-1902) | Hugo Quinta

Hugo Quinta publica sua obra como resultado de dissertação de mestrado defendida em 2017 no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos Latinoamericanos da Universidade Federal da Integração Latinoamericana (UNILA). O autor atribui ao italiano Pietro Gori (1865-1911) um papel de influência nos círculos intelectuais anarquistas, socialistas e da criminologia de Buenos Aires ao final do século XIX e início do século XX (2018, p.28-29), bem como de outros países da América Latina, quando veio da Itália em viagem que durou cerca de três anos. Vejamos um pequeno trecho da introdução da obra:

Um dos primeiros feitos de Gori ao chegar em Buenos Aires, em junho de 1898, é a fundação da CM [Criminalogía Moderna, revista]. Ele não abandona a militância e propaganda anarquista enquanto dirige a revista. Na verdade, a energia imprimida por ele está, supostamente, equacionada entre a militância, ciência e a arte. Ainda assim, o círculo de atuação não está restrito à cidade. Ele percorre o país a proferir conferências, a visitar prisões e a apresentar suas peças teatrais nos círculos filodramáticos anarquistas. Nesse viés […] buscamos compreender a polivalência de sua influência no campo intelectual e cultural anarquista em Buenos Aires (QUINTA, 2018, p.28-29).

Conforme se conclui desse trecho, e do conjunto do livro de Quinta, Gori é um sujeito histórico que representa várias fronteiras, entre elas a fronteira da América Latina com a Itália pela questão de ser um estrangeiro do “centro” influente na periferia, na relação centro-margem utilizada por Goés (2016) para o estudo da eugenia no Brasil; a fronteira dos movimentos operários (anarquista e comunista) com o campo intelectual da elite (liberalismo, positivismo e eugenismo), por ser formado no campo dos criminólogos positivistas autoritários, corrente em voga a partir da mescla das teorias do darwinismo social com noções de políticas criminais.

Vale ressaltar as estratégias de Gori, tanto na construção de artigos científicos nos diversos assuntos que dominava, quanto escrevendo peças e organizando espetáculos teatrais populares ou mesmo debates direcionados às massas, sendo um formulador de teorias e um agitador político no campo anarquista. Como advogado e criminólogo, também circulava em ambientes seletos, vindo a participar de uma expedição do governo na Patagônia para pesquisa na penitenciária modelo do país, bem como sua atuação ao fundar a primeira revista científica da América Latina sobre sociologia criminal, a Criminalogía Moderna. É possível concluir que Gori conhecia os públicos com quem dialogava e utilizava de estratégias diversas, de acordo com a ocasião e a necessidade. Tal arcabouço intelectual pode ter sido aprofundado na sua formação em Direito na Università di Pisa, bem como nos cafés da cidade em que fervilhavam ideias de vanguarda para a época e o contato entre “alunos ‘subversivos’ e trabalhadores estudiosos” (QUINTA, 2018, p.22).

No primeiro capítulo, “A morada: Pietro Gori em Buenos Aires”, Quinta (2018, p.32-82) analisa as mudanças do entresséculos (XIX-XX) com base no fortalecimento do papel agroexportador da Argentina, que resultou em forte urbanização da região portuária de Buenos Aires (sem planejamento), com grande vinda de migrantes e imigrantes. Essa mudança que gerou imigração abriu postos de trabalho, mas não tanto quanto a vinda de novos moradores precisava ou prometia, obtendo aumento da desigualdade social e condições insalubres de moradia e subsistência. Logicamente, os cidadãos mais estabelecidos (etnicamente inclusive) conseguiram esses trabalhos enquanto grande parte ficou marginalizado, aumentando a criminalidade.

Para Quinta, “o discurso modernizador existe para que a população se convença de que o atraso é pior que o moderno” (QUINTA, 2018, p.34) e também de que “os intelectuais dirigentes estatais promovem a ideia de modernidade como uma maneira de se esquivar das contradições sociais” (QUINTA, 2018, p.34), de modo que o repertório científico da época para explicar as tensões sociais foi autoritário e apropriado da biologia, permitindo defender a ideia de que os mais aptos alcançaram os melhores postos, enquanto aos menos aptos restou a condição de errantes, os lunfardos1 . A moralidade burguesa também construiu uma noção higienista de sociedade, em que os hábitos (sexuais incluídos) das camadas populares explicariam seu fracasso econômico e não a falta de organização do sistema.

Essa mesma Buenos Aires (QUINTA, 2018, p.35), repleta de contradições, também consolidou um ambiente propício para as ideias anarquistas e socialistas, uma vez que possuía uma grande massa de trabalhadores em condições miseráveis e o início de um ambiente intelectual inspirado nos europeus, com jornais, revistas (algumas muito avançadas na técnica da caricatura), folhetins e cafés para discussão, auxiliadas com a vinda de imigrantes que já conheciam a organização por sindicatos e frentes. Pietro Gori se utilizava de um grande arcabouço teórico, defendendo justiça social, mas legitimando a repressão aos “desajustados” com base no positivismo criminal, com exceção dos próprios anarquistas. Assim, os operários revoltados de Buenos Aires, cidades do interior da Argentina e países vizinhos de língua espanhola (Paraguai, Chile e Uruguai) receberam muito bem Gori porque possuíam as condições ideais para fortalecer a verve humanitária e libertária ácrata.

No capítulo 2, “O andarilho: Pietro Gori na estrada” (QUINTA, 2018, p.83-127), há explicações sobre o Gori como personagem, o militante. Assim como o imigrante é excluído do seu próprio país pela falta de condições materiais, portanto, sem pátria, o militante é excluído por subverter a ordem – saindo algumas vezes como exilado. Vale ressaltar que Gori foi ao Egito, Palestina, Estados Unidos, entre outros países, para proferir palestras em que “a palavra falada [nos eventos] se sobrepõe à escrita” (QUINTA, 2018, p.85).

Uma das diferenças nas condições de cada local é o caráter dos movimentos: em alguns locais se voltam para o anarco-sindicalismo defendendo partidos políticos e a noção de algumas autoridades, corrente da qual Gori pode ser melhor encaixado, tendo em vista que chegou a arbitrar pelos interesses dos trabalhadores em algumas greves como a de Bahia Blanca (AR) e Assunção (PY) (QUINTA, 2018, p.96); em outros, a ação coletiva é fora do sistema vigente e dessa atuação, sem arbitragem, aos moldes do sindicalismo revolucionário, que foi “rigorosamente contra qualquer ato de recorrer ao Estado para garantir a salvação do proletariado” (Bihr apud SILVA, 2019), ou mesmo “repudiando todos os projectos de arbitragem obrigatoria e todos aquelles que tendam a transformar os sindicatos em associações de soccorros mútuos” (LOURENÇO, 2015).

Dentre as fontes para o trabalho, constam os textos de Gori e os jornais de grande circulação. Da análise dessas fontes, o autor (QUINTA, 2018, p.108) demonstra que o anarquista foi conquistando cada vez mais o público burguês, chegando a ser convidado pela Sociedade Cientifica Argentina para uma excursão à Patagônia, com a finalidade de pesquisar os povos que habitavam e as pessoas detidas na penitenciária, sendo convidado também o artista Angelo Tommasi.

No terceiro capítulo, “A revista Criminalogía Moderna” (QUINTA, p.128-205), trata da primeira revista científica sobre criminologia da América Latina, fruto das condições de possibilidade da época, em que Gori e o médico José Ingenieros são fundadores. Diferenciava-se dos outros periódicos porque não continham charges e caricaturas para ser um meio democrático de informação até aos pouco letrados, mas sim uma revista de parcos recursos gráficos, porém com correspondentes internacionais como os renomados criminologistas Cesare Lombroso e Enrico Ferri. Foi um dos meios de consolidação da ciência, em especial como resposta à criminalidade urbana da região portuária argentina. Uma ponte entre a produção europeia com a portenha.

Quinta explica que Gori transita em diversas fronteiras, o intelectual que defende a extinção delas (Sem Pátria, uma de suas peças) é em si uma pessoa de diversas características e que buscou ser ponte entre tantos ambientes, tanto físicos (Europa e América) como simbólicos (movimento operário anarco-sindicalista, anarquista, ciência burguesa e positivismo). Ele mudou seu campo de influência, agregando os burgueses, conforme atuava na área das ciências criminais e sociológicas, ao mesmo tempo em que auxiliava na normalização dos corpos das camadas populares. Talvez ele tenha sido escolhido para representar o movimento operário marginalizando diversos outros pensadores, mas a sua imagem como ícone pode significar o caráter polifônico das suas atuações.

Reitera-se que as fronteiras que Gori circulou são várias, tanto as de campo intelectual, quanto as de classe e entre nações, representando várias identidades. Algumas em aparente contradição, como a representação das camadas populares e a defesa da disciplinarização do corpo dessas pessoas. Corpo que também é uma fronteira. Sobre o pensamento de fronteira, a méxico-estadunidense Gloria Evangelina Anzaldúa (1987, p.85-86) – ao tratar das fronteiras de identidade, por etnia ou orientação sexual, incluindo o corpo – explana que a identidade na fronteira se constrói no estranhamento, motivado por diversos fatores, como receio de perda da liderança. Anzaldúa acredita que esse contato (estranhamento) é necessário porque pode romper preconceitos. Ela usa na epígrafe um trecho de Gina Valdes no sentido de que as fronteiras não apenas separam, mas podem unir as pessoas: “Hay tantisimas fronteras que dividen a la gente, pero por cada frontera existe también una puente” (1987, p.85). Gori é uma ponte.

O livro é uma importante contribuição para pesquisadores interessados em conhecer o ambiente intelectual da Buenos Aires na passagem do século XIX para o XX, os movimentos políticos, ou mesmo o método de pensar identidade, fronteira e ideias. Na obra, são especialmente interessantes os debates sobre a questão da antropologia e da sociologia criminal nas Américas, a ressignificação dos conceitos europeus e o racismo científico, no que a obra ajuda bastante a enriquecer as discussões. Por fim, a leitura acaba por fazer enxergar os problemas estruturais da sociedade no tempo presente como a desigualdade social contemporânea, os fracos argumentos de quem detém as relações formais de poder (e luta para que a sociedade não mude) e os movimentos de humanitários de reação.

Nota

1. Algo semelhante ao malandro, mas com significado próprio para os portenhos. Também se refere a um dialeto marginalizado, “gíria dos gatunos” (AZEVEDO, 1984, p.145).

Referências

ANZALDÚA, Gloria. Borderlands: the new mestiza. San Francisco: Aunt Lute, 1987.

AZEVEDO, Maria Consuelo de. Lunfardo, vesre e outras modalidades do linguajar argentino. Revistas de Letras, Fortaleza, v. 7, n. 1/2, p.145-154, 1984.

LOURENÇO, Maria Gabriela dos Santos. Ideia(s) e Movimento(s): sindicalismo libertário e educação. Dissertação – Mestrado em Ciências da Educação. Instituto de Educação. Universidade de Lisboa. Lisboa, p.164. 2015.

QUINTA, Hugo. A trajetória de um libertário: Pietro Gori na América do Sul (1898-1902). Foz do Iguaçú: EdUnila, 2018.

QUINTA, Hugo de Carvalho. Anarquismo, teatro e criminologia: os caminhos de Pietro Gori na América do Sul (1898-1902). Dissertação (mestrado em Estudos Latino-Americanos) – Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos Latino-Americanos da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Foz do Iguaçú, p.223. 2017.

SILVA, Selmo Nascimento. O sindicalismo revolucionário: suas origens, princípios e programa. Revista Estudos Libertários (REL), UFRJ, Rio de Janeiro, v. 1, 2019.


Resenhista

Rodrigo Mello Campos – Mestrado em História Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná [email protected]


Referências desta resenha

QUINTA, Hugo. A trajetória de um libertário: Pietro Gori na América do Sul (1898-1902). Foz do Iguaçú: EdUnila, 2018. Resenha de: CAMPOS, Rodrigo Mello. Temporalidades. Belo Horizonte, v.12, n.1, p.919-923, jan./abr. 2020. Acessar publicação original [DR]

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