Repensar el anarquismo en América Latina. Historias/ epistemes/ luchas y otras formas de organización | Javier Ruiz

Los estudios contemporáneos sobre anarquismo latinoamericano, comienzan a hacerse cargo sobre una de sus principales falencias: la falta de una mirada en perspectiva descolonizadora en sus categorías de análisis. No nos detendremos aquí a repasar las cuestiones ya consabidas del anarquismo, esto es, que se trata de una ideología relativamente reciente en occidente, proveniente de la lucha de obreros y artesanos de fines del siglo XVIII y comienzos del XIX, hija de la revolución francesa y la revolución industrial, etc. Leia Mais

Anarquistas de ultramar: Anarquismo/indigenismo/descolonización | C. Taibo

Hay una serie de estudios, muy específicos, destinados a entender y difundir cómo es que los anarquistas extendieron su filosofía por el mundo, en nivel intelectual y en dimensión práctica. Porque si algo caracterizó a los emisarios libertarios decimonónicos fue el no desligar la praxis de la idea. Esto lo entendieron, casi en un consenso general, los investigadores en las primeras décadas del siglo XX. Su producción historiográfica así lo constata. Pasar lista, por todos los autores sería una labor inconmensurable. Pero podemos identificar, al menos para los casos que son más contiguos a los contextos latinoamericanos, los trabajos puntuales de José C. Valadés y John M. Hart en México; Iaacov Oved en Argentina; Luis Heredia M. para el caso chileno; y el de Ricardo Melgar Bao en su compilado del movimiento obrero en Hispanoamérica. Leia Mais

Civilização, tronco de escravos | Maria Lacerda de Moura

Maria de Lacerda Tronco de Escravos
Maria Lacerda de Moura | Imagem: Arte Andreia Freire / Reprodução / Revista Cult

Chamamos de visionárias aquelas que, atentas às questões da sua época, teciam críticas que nos servem dezenas ou mesmo centenas de anos depois. Entretanto, trata-se, muitas vezes, de pessoas que souberam analisar tão bem o presente que nele captaram as centelhas que acendem outros fogos no futuro. Assim é a obra de Maria Lacerda de Moura (1887-1945) e é assim que recebemos a nova edição lançada pela editora Entremares da obra Civilização, Tronco de Escravos, organizada pelas pesquisadoras e professoras Patrícia Lessa e Cláudia Maia, ambas historiadoras com amplas pesquisas relacionadas às lutas das mulheres e com trabalhos já desenvolvidos sobre a anarquista brasileira.

Civilização, tronco de escravos é a segunda obra de Maria Lacerda de Moura lançada pela editora Entremares, que também já publicou uma nova edição de Fascismo: filho dileto da Igreja e do Capital (2018) e recentemente lançou a obra Amor & Libertação em Maria Lacerda de Moura (2020), de Patrícia Lessa. Leia Mais

Bibliografia Libertária – O Anarquismo em Língua Portuguesa | Adelaide Gonçalves e Jorge E. Silva

Em edição revista e ampliada, a editora Imaginário lança A Bibliografia Libertária – O Anarquismo em Língua Portuguesa, de Adelaide Gonçalves e Jorge E. Silva, trabalho que sintetiza informações acerca da atividade editorial voltada para o pensamento e prática anarquistas em Portugal e no Brasil, constituindo um importante guia para leituras e estudos sobre o tema.

Buscando contemplar a atividade editorial libertária lusófona desde a década final do século XIX, a catalogação corrige e amplia consideravelmente àquela da primeira edição, que incluía apenas livros publicados em Portugal após 1974 e, no Brasil, a partir de 1980, datas que marcaram o ocaso das ditaduras que assolaram os dois países. A listagem, desta forma, inclui também as edições feitas no período de maior visibilidade do movimento anarquista, a fase de seu surgimento e propagação como movimento socialmente representativo, que vai da última metade do século XIX até meados dos anos 30 do século XX. Leia Mais

A trajetória de um libertário: Pietro Gori na América do Sul (1898-1902) | Hugo Quinta

Hugo Quinta publica sua obra como resultado de dissertação de mestrado defendida em 2017 no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos Latinoamericanos da Universidade Federal da Integração Latinoamericana (UNILA). O autor atribui ao italiano Pietro Gori (1865-1911) um papel de influência nos círculos intelectuais anarquistas, socialistas e da criminologia de Buenos Aires ao final do século XIX e início do século XX (2018, p.28-29), bem como de outros países da América Latina, quando veio da Itália em viagem que durou cerca de três anos. Vejamos um pequeno trecho da introdução da obra:

Um dos primeiros feitos de Gori ao chegar em Buenos Aires, em junho de 1898, é a fundação da CM [Criminalogía Moderna, revista]. Ele não abandona a militância e propaganda anarquista enquanto dirige a revista. Na verdade, a energia imprimida por ele está, supostamente, equacionada entre a militância, ciência e a arte. Ainda assim, o círculo de atuação não está restrito à cidade. Ele percorre o país a proferir conferências, a visitar prisões e a apresentar suas peças teatrais nos círculos filodramáticos anarquistas. Nesse viés […] buscamos compreender a polivalência de sua influência no campo intelectual e cultural anarquista em Buenos Aires (QUINTA, 2018, p.28-29). Leia Mais

El anarquismo después del anarquismo. Una historia espectral | Agustín Nieto

El anarquismo después del anarquismo. Una historia espectral es una compilación de artículos que estudian variadas facetas del derrotero ácrata en Argentina. A los efectos de ampliar las pesquisas y superar ciertos esquemas y barreras historiográficas, estos trabajos abordan organizaciones menos conocidas, temáticas heterodoxas, espacios geográficos escasamente trabajados o bien períodos temporales poco abordados. La estructura del trabajo reposa en una presentación a cargo de los compiladores y doce artículos de distintos investigadores.

En la “Presentación” ofrecen una pincelada del contenido de cada artículo y aclaran la necesidad y la utilidad de este tipo de producciones. Expresan que, habida cuenta la centralidad de los estudios sobre el anarquismo en Argentina en torno a los primeros años del siglo XX, el espectro libertario se aparece hoy no sólo ante la autoridad policial sino también ante la académica. Por lo que, según exponen, asoman en estos artículos mujeres, jóvenes, obreros, científicos, artistas y universitarios, comprometidos con las ideas ácratas. Leia Mais

Elementos Inflamáveis: organizações e militância anarquista no Rio de Janeiro e São Paulo (1945-1964) – SILVA (RBH)

SILVA, Rafael Viana da. Elementos Inflamáveis: organizações e militância anarquista no Rio de Janeiro e São Paulo (1945-1964). Curitiba: Prismas, 2017. 338p. Resenha de: SANTOS, Kauan William dos. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.37, n.76 São Paulo set./dez. 2017

Uma visão clássica do anarquismo no Brasil e em algumas partes do mundo afirma que essa corrente política, predominante no movimento operário nas primeiras décadas do século XX, apresentou declínio evidente após 1920, sofrendo sua derrota em nosso país na Era Vargas, com suas mudanças no mundo sindical. Nas análises de certos militantes que buscam legitimar outras propostas de transformação, o anarquismo seria um movimento prematuro, com a ausência de alianças concretas e apresentando um projeto falho para a sociedade. Enquanto isso, para um número significativo de pesquisas atentas ao mundo do trabalho, reverberando em parte tal visão, o anarquismo quase desapareceu desde então e não apresentou grande influência para o movimento operário, principalmente depois da segunda metade do século XX.

Buscando rebater e relativizar tais visões temos em mãos Elementos inflamáveis, livro ligeiramente modificado da dissertação de mestrado de Rafael Viana da Silva, defendida em 2014 no programa de pós-graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Aproveitando pesquisas recentes e também proeminentes que já apontaram a resistência dos anarquistas, seja no âmbito cultural ou sindical, durante os anos de 1930 e 1945, o autor tenciona mostrar a reorganização do anarquismo durante a chamada redemocratização, entre os anos 1945 e 1964. Sem ignorar o contexto para tal, Silva mostra como, em meio à crise do Estado Novo, os anarquistas vão aproveitar brechas para se organizarem de forma mais sistemática e tentarem aumentar sua influência entre as classes populares, assim como incrementar suas fileiras militantes, fato que se deu nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro e, em certa medida, no estado do Rio Grande do Sul.

Entre as primeiras atitudes dos adeptos da bandeira negra esteve a criação e a reativação de seus periódicos. Entre eles cita-se o Remodelações, que circulou entre 1945 e 1947 e era coordenado pelos militantes cearenses Moacir Caminha e Maria Iêda, contando também com militantes clássicos como José Oiticica. Em 1947 foi relançado o periódico A Plebe, um dos mais importantes para o anarquismo anos atrás e também essencial para a nova aproximação com as demandas sindicais. Outro importante órgão para a difusão da cultura política anarquista foi o Ação Direta, essencial para as propostas de organização interna do movimento.

Nesse último sentido surgem as primeiras contribuições importantes de Rafael Silva para o tema. Com a aproximação de diferentes gerações militantes concluiu-se em seus debates ser inadmissível ver as estratégias anarquistas como imóveis e imutáveis – era necessário encaixar as demandas libertárias aos novos condicionamentos. Esses militantes referiam-se principalmente à ausência de organização política entre os anarquistas durante as primeiras décadas do século XX, que seria uma das causas, nessa visão, da perda de suas influências. Os anarquistas brasileiros, diferentemente do que se observou em outros países, não conseguiram efetivar suas propostas de organização interna, chamadas de alianças ou partidos, que se protegeriam em momentos de refluxo e também garantiriam certa homogeneidade em suas práticas. Estando os anarquistas enraizados profunda e quase exclusivamente no movimento sindical, este quando foi transformado na década de 1930 garantiu o declínio da estratégia do sindicalismo revolucionário e da consequente influência anarquista, restando apenas seus grupos de afinidade dispersos para a continuação de suas propostas, perdendo assim o contato com os trabalhadores. Na perspectiva dos militantes anarquistas entre 1945 e 1964, portanto, antes de tudo era necessário se organizar politicamente e então garantir formas e estratégias diversas para recuperar esse e outros contatos.

Seguindo esse debate, Silva examina na primeira parte do livro as discussões e dilemas internos do anarquismo. No primeiro capítulo dessa seção, evidencia-se a importância da participação dos militantes em congressos internacionais, absorvendo e disseminando experiências transnacionais para o anarquismo em nível global. O autor segue analisando os congressos anarquistas no país, em 1948, 1953, 1959 e 1963, essenciais para a reorganização do movimento. No terceiro capítulo, debate-se a retomada da estratégia do sindicalismo revolucionário no papel da transformação da realidade para os anarquistas no período. Nesse sentido, longe de se ater principalmente a propostas culturais como se imaginou, a intentona majoritária anarquista continuou sendo, ao menos até 1959, o sindicalismo e o movimento operário, onde seus militantes dispensaram numerosas energias (p.182).

Percebemos que as principais referências metodológicas do livro nessa parte são os autores que desenvolvem as concepções de cultura política como Serge Berstein, já que é importante, para Rafael Silva, perceber o desenvolvimento do anarquismo dentro de suas próprias referências, da sua família política, suas leituras e dilemas. Já na segunda parte da obra o autor analisa como tais estratégias foram absorvidas e articuladas no movimento operário, em meio aos trabalhadores e, também, aos grupos militantes de outras vertentes ideológicas. Por isso, decide utilizar como referência Edward Palmer Thompson, inspirado nos estudos que mostram as ideologias e práticas como não estanques aos comportamentos de classe.

Seguindo essa tendência, no quarto capítulo, primeiro dessa seção, evidencia-se o importante papel dos jornais e impressos também para disseminar a influência do anarquismo e de seus debates externos com outras correntes políticas, assim como em sua adaptação ao contexto. Nesse sentido, até mesmo a forma de venda ou doação desses periódicos foi importante, como numa banca de jornais em frente ao posto de trabalho da Light.

No quinto capítulo, Silva adentra com mais profundidade as relações e articulações políticas dos anarquistas em âmbito internacional e nacional. Na primeira parte, além de ver suas influências e ligações com a Federação Anarquista Ibérica (FAI) e a Solidariedade Internacional Antifascista (SIA), evidencia-se a recepção dos anarquistas aos imigrantes, principalmente saídos das ditaduras de Franco e Salazar, alguns com experiências na Revolução Espanhola. Esse contato foi essencial para a reformulação de estratégias e táticas e para alavancar o próprio movimento anarquista no país. Após isso, o autor nos mostra os embates no anarquismo com o Partido Comunista Brasileiro, principal força de esquerda do período. A principal crítica dos libertários ao partido se referia exatamente às posições do sindicalismo – os primeiros eram contrários a disputar a estrutura corporativista desses espaços, propondo novos organismos e frentes que respondessem aos interesses dos trabalhadores fora de um ambiente supostamente impregnado pelos mecanismos da classe dominante. O autor discorda da historiografia que viu os trabalhadores e militantes desse período como estagnados, presos à estrutura e aos condicionamentos do período, mas também rebate a corrente que afirma total liberdade e agência dos personagens em torno do sindicalismo do período. Sua posição é a de que os trabalhadores, de fato, negociavam e barganhavam em meio às regras do sindicalismo e da política do período, mas também, por vezes, se sentiam pressionados a essa estrutura e, além de não conseguirem alcançar seus alvos, também decidiam lutar recorrendo a outros instrumentos.

Esse debate se estende ao último capítulo da obra, no qual o autor adentra a inserção social do anarquismo. Na primeira parte, Rafael Silva analisa como as estratégias sindicais dos anarquistas foram recebidas e efetuadas na prática. Os anarquistas conseguiam dialogar com os marxistas críticos do stalinismo e sindicalistas independentes criando o Grupo de Orientação Sindical dos Trabalhadores da Light e deixando uma influência visível no Sindicato dos Trabalhadores Gráficos, também de caráter combativo, convergindo, posteriormente, para a criação do Movimento de Orientação Sindical (MOS). A inserção libertária nesses ambientes garantiu posições nas manifestações importantes no período, como a greve dos 400 mil em 1957. Na última parte da obra, o autor mostra como as ações culturais dos anarquistas eram mediadas entre as culturas de classe dos trabalhadores e dos grupos subalternos, ainda os principais alvos do anarquismo. Nesse sentido, mostra-se a importância de espaços como o Centro de Cultura Social para a formação de novos militantes e de trabalhadores, principalmente informais. Os periódicos também foram importantes para a criação de centros de cultura e estudos, poemas e debates públicos, inserção que se dava muito fortemente entre os estudantes universitários. As táticas educativas e o apoio às ações culturais nesse período foram importantes para garantir um lugar a partir do início da década de 1960, quando os militantes libertários deixavam aos poucos os ambientes estritamente sindicais, interpretando que gastavam muita energia para barrarem o reformismo e a disputa com outras tendências de esquerda. O apoio a outros ambientes, dessa vez discutidos e minimamente organizados nos congressos citados, garantiu a sobrevivência mínima do anarquismo nas décadas posteriores, durante a Ditadura Militar, quando os anarquistas enfrentaram outros dilemas.

Tudo isso torna o livro de Rafael Viana da Silva uma importante contribuição a um período não muito estudado, inclusive entre os próprios anarquistas contemporâneos, que preferem visualizar o anarquismo áureo a se ater em épocas nas quais foi mais difícil implementar e articular suas estratégias. Ainda assim, aprendemos que quando o anarquismo não foi um elemento explosivo, certamente foi um elemento inflamável.

Kauan Willian dos Santos – Doutorando em História Social. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected].

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Sob Três Bandeiras: Anarquismo e imaginação anticolonial | Benedict Anderson

Como muito bem indicado por Mônica Dias Martins, no prefácio da edição brasileira do livro Sob Três Bandeiras de Benedict Anderson, ele “representa certa mudança no paradigma de como se estudam os nacionalismos” (p.15). Isso parece correto na medida em que é possível observar que ele desenvolveu uma análise que perpassa um conjunto de dados muito bem apresentados e analisados. Anderson se distancia, por exemplo, da clássica escrita de Hobsbawm, sobre os nacionalismos, já que não se ancora em dados não referenciados ou pouco referenciados em fontes, mas que desenvolve uma análise ampla que atravessa espaços continentais e não se restringe à preponderância dos problemas europeus. Seu trabalho não é original em relação à temática porque, anteriormente, já havia escrito Comunidades imaginadas, seu texto de referência sobre o nacionalismo, assim como Nação e consciência nacional, todavia é original ao vincular o anarquismo e a imaginação anticolonial ao que ele chamou de “Era da globalização primitiva”.

Cuba, China, Japão, Espanha, Estados Unidos, Filipinas, França, são alguns dos países que integram essa tensa “Era”. Anderson demonstrou, principalmente a partir de dois autores, Isabelo de los Reyes e José Rizal, como se configurou o levante em prol da independência das Filipinas em relação à Espanha e como as ideias transitaram pelo mundo no sentido de encontrar formas de estruturação da sociedade, distintas das que, até então, estavam vigentes, sob rédeas do capitalismo ocidental. Daí o sentido do subtítulo Anarquismo e imaginação anticolonial. Leia Mais

Entre a história e a liberdade: (Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo) – RAGO (RBH)

RAGO, Margareth. Entre a história e a liberdade: (Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo). São Paulo: UNESP, 2001. 368 p. Resenha de: LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.23, n.46, 2003.

Margareth Rago teve uma oportunidade raríssima: conversar com Luce Fabbri na casa dela, em Montevidéu. Enquanto a autora italiana (1908-2000) se empenhava em terminar de escrever a biografia de seu pai, Luigi Fabbri (1877-1935), relata à brasileira etapas de sua vida e o desenvolvimento de suas idéias.

Apesar da diferença de aproximadamente 40 anos, a historiadora brasileira e a italiana tinham, como professoras universitárias, um universo de discurso comum. Partilhavam inúmeras idéias e aspirações, não só políticas como educacionais. Encontraram as condições ideais para uma troca produtiva de idéias, raramente atingida em entrevistas comuns.

Assim como a biografia de Luigi Fabbri estava inserida na história do anarquismo europeu, a de Luce insere-se na do anarquismo europeu e sul-americano. Houve, portanto, não apenas a oportunidade de comparar experiências, como também a possibilidade de discutir o processo de trabalho que estavam realizando. As duas recuperavam, através de vida intelectual, uma história de que eram representantes e que tem sido desmerecida, deformada e ocultada pela história dos poderosos.

Para Luce, os instrumentos de trabalho e as fontes provinham de amigos de infância, textos escritos, documentos recolhidos através da vida organizados por critério diversos dos da história oficial. Para Margareth Rago, com um gravador e um computador, bolsas de estudo e visitas sucessivas à casa, à biblioteca e ao arquivo de uma anfitriã erudita, tão interessada no seu, como no trabalho da jovem anarquista.

As duas estavam conscientes de estar revelando aos contemporâneos o sentido da libertação social do anarquismo, que vem sendo desprezado como utopia pré-capitalista e soterrado sob o título de utopias românticas. Esta corrente de elos históricos vem desde Malatesta (1853-1922), que no maior Congresso Anarquista, em Amsterdã, em 1907, já teria apresentado o então jovem Luigi como seu “filho.” Esta, amigo de Malatesta até a morte, encarregou-se de sua biografia. O anti-autoritarismo fundamental do anarquismo, a sua busca de uma liberdade solidária e fraternal como um meio de vida e a rejeição os poderes macros e micros da vida social vêm sendo revelados em inúmeras de suas faces por esses biógrafos sucessivos. E agora, através das línguas italiana, castelhana e portuguesa, pelas duas militantes contemporâneas.

A casa em que Luce nasceu tinha um ambiente de compreensão e liberdade sem imposições externas — nem de opiniões, nem de atitudes, nem de religiões. Eram todos antiautoritários e solidários. Nem sequer o anarquismo lhes foi imposto. O pai explicou aos filhos os seus pensamentos a respeito, pediu-lhes que refletissem sobre isso e decidissem quando se sentissem capazes de fazê-lo. Luce estudou Letras na Universidade de Bolonha e seu irmão tornou-se marceneiro, sem qualquer ingerência em suas vocações, nem apelos aos seus gêneros. O pensamento de cada um era respeitado, o que é comprovado pela contestação que Luce, ainda muito jovem, fez ao pensamento de Malatesta, já figura proclamada do pensamento anarquista.

Nessa casa de uma harmonia invejável, Luce teve contato desde muito cedo com os amigos de seu pai, um professor primário e depois secundário, criador de uma Biblioteca popular para os operários, por volta de 1917. Esses contatos constituíram um outro perfil de educação, além da educação formal pequeno-burguesa, e revelou a sua vocação teórica em trabalhos de literatura, história e crítica política que publicava nos jornais criados pelos amigos de seu pai.

O respeito a essa vocação fez com que sua mãe, e depois no Uruguai, seu marido — um operário italiano imigrado e autodidata — a eximissem das “obrigações femininas” da vida privada (com comida e crianças) para que pudesse desenvolver sua vocação. Neste sentido, não passou pelos problemas de gênero que sufocaram inúmeras feministas, proibidas de estudar, proibidas de pensar e de trabalhar fora, consideradas como elementos de Segunda classe. A questão feminina não se apresentava como prioritária em suas reflexões. Considerava que resolvido o problema social, o sexual estava automaticamente decidido. Mais tarde, retomou a questão verificando a possibilidade das mulheres, habituadas a administrar situações não-lucrativas, como cuidar de crianças, de velhos e doentes, serem mais capazes de administrar as associações solidárias.

Sofreu desde a infância as injustiças e os temores provocados pela perseguição política infringida ao seu pai pela polícia fascista. Viver vigiada pela polícia foi uma experiência de toda a vida. Seu pai perdeu o cargo de professor, conquistado em concurso, por não Ter jurado fidelidade ao fascismo italiano, o que ela veio a repetir por ocasião de seu doutoramento na Universidade de Bolonha, com uma tese sobre o geógrafo anarquista Eliseé Reclus.

Perderam assim o direito a ter passaporte, e para sobreviver foram obrigados a sair clandestinamente da Itália, através do auxílio de núcleos anarquista capazes de se articularem sob a truculenta polícia fascista.

Nas mais difíceis condições e deixando para trás o irmão, a família Fabbri emigrou para Montevidéu, onde uma grande população de italianos imigrados os acolheu e auxiliou.

Luigi Fabbri sofreu muito com o afastamento do filho e da terra em que sempre vivera e da qual se afastara obrigado. Luce ainda moça, conhecendo a língua e com um entusiasmo militante, teve condições de aproveitar as características sociais do país a que tinha chegado, com suas associações e ateneus, além de um clima bem mais ameno que o de Bolonha. Ademais, veio a encontrar aí, em sua própria casa, o marido. Trabalhou inicialmente como professora de História, e mais tarde, na Universidade, pôde voltar-se para sua paixão pela literatura italiana, que nunca a abandonara.

Em Montevidéu, formara-se a Comunidad del Sur e uma editora, a Nordan-Comunidad, que funcionavam de acordo com os princípios anarquistas, de autogestão, incorporando a tecnologia contemporânea. A liberdade individual era cultivada como meio de criatividade e desenvolvida por formas educacionais alternativas, através de jornais, panfletos e trabalhos que levavam em conta pensamentos e sentimentos dos componentes da comunidade.

Uma questão mal estudada e que preocupou Luce Fabbri foi o autodidatismo dos trabalhadores. A necessidade de absorver o conhecimento com que ela conviveu desde muito cedo e a sede de instrução que sentiu entre homens e mulheres, sem oportunidade de contar com educação formal, que freqüentavam a Biblioteca Popular, depois de um dia de dez horas de trabalho estafante, estimularam os seus esforços didáticos e suas reflexões dirigidas para a auto-educação. “Caracteres e importância del autodidactismo obrero”, que publicou em Brecha, jornal de Montevidéu, em 1998, foi apenas uma de suas abordagens desse aspecto da educação.

Intercalando as entrevistas com cenas do convívio diário, Margareth Rago nos apresenta uma obra restauradora da confiança no ser humano e em sua capacidade de viver o presente. Embora disfarce as dificuldades da tarefa interlingüística a que se propôs com um entusiasmo contagiante, é possível constatar o esforço exigido para organizar uma bio-bibliografia de tais proporções e de tal conteúdo.

Mostra claramente como a idéia de anarquismo não deve ser pensada como ponto fixo ao qual se deve chegar, mas como um caminho a seguir, como Luce escreveu em 1952, em La Strada. Esse caminho que Luce continuou a percorrer pela vida afora, sempre preocupada em inventar um presente que permitisse a descoberta e a criação de novas alternativas. O conhecimento do passado e das tradições nos é necessário como solo onde é possível enraizar-se e fortalecer-se, para politizar constantemente as palavras e reconhecer o seu poder e a magia da produção poética por sua capacidade criadora. Ao trabalhar sobre a reforma do secundário, insistiu no ensino da língua castelhana em todos os graus, como o grande instrumento de comunicação e congraçamento.

Escrito como tese para obtenção do título de livre-docência, ele deve ser lido mais como um ato de militância e de esperança no momento presente.

Miriam Lifchitz Moreira Leite – Universidade de São Paulo.

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Anarquismo, Estado e pastoral do imigrante. Das disputas ideológicas pelo imigrante aos limites da ordem: o caso Idalina – SOUZA (RBH)

SOUZA, Wlaumir Donizeti de. Anarquismo, Estado e pastoral do imigrante. Das disputas ideológicas pelo imigrante aos limites da ordem: o caso Idalina. Sn. Editora da Unesp, 2000. 243p. Resenha de: ALMEIDA, Vasni de. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.44, 2002.

Um bom estudo em ciências humanas, um estudo histórico em particular, ganha relevância ao primar por dois aspectos: a preocupação com as mudanças que marcam uma sociedade numa determinada trajetória histórica e a atenção redobrada com as alterações verificadas nas instituições inseridas e ativas nesse processo de transformação1. Um tratamento cuidadoso para com as redes de interdependências entre diferentes grupos no estabelecimento de uma nova ordem social e cultural e para com os rearranjos internos que acompanham cada um dos grupos envolvidos aponta para a eficácia de um estudo acadêmico transformado em publicação. Esse é o caso do livro de Wlaumir Donizeti de Souza, voltado para a imigração italiana para o Brasil, ocorrida entre a segunda metade do século XIX e os primeiros decênios do século XX. Transição da monarquia para o sistema republicano de governo, a imigração como fator de mudança cultural e social e os elementos sociais em conflito (Estado, catolicismo e anarquismo) formam o esteio da obra.

Procurando se desvincular das armadilhas que tendem a estreitar “o leito do rio”, o autor verificou e destacou a intrincada teia de interesses desse significativo período de mudanças políticas e culturais pelo qual passou o País. Seu olhar esteve atento para as ações da Igreja Católica em relação às forças sociais externas a ela e em relação aos “catolicismos” coexistentes na sua esfera interna. Da mesma forma, sua atenção se voltou para os movimentos anarquistas em suas relações com o poder social do catolicismo, notadamente no que tange ao trato com o imigrante. Completando as forças que se locomoviam ao redor do trabalhador imigrante, estava o agricultor contratador de mão-de-obra. Esses são os elementos básicos que compõem a trama tecida pelo autor.

Para Donizeti de Souza, a população imigrante italiana, contratada para trabalhar no Brasil a partir da segunda metade do século XIX, foi instrumentalizada pelo catolicismo ultramontano, com a Igreja Católica buscando influenciar a política imigratória num período em que se aproximava o rompimento formal e tardio entre essa religião e o Estado brasileiro. Na tentativa de estabelecer os critérios para a arregimentação de trabalhadores, o catolicismo romanizado estimulou a elaboração de pastorais voltadas para o enquadramento do imigrante, tendo em vista o seu projeto religioso e político. Aos scalabrinianos, instituição missionária fundada em 1887, por dom Giovanni Baptista Scalabrini, religioso com larga experiência no trato com os postulantes `a imigração nas suas cidades de origem, coube essa tarefa. Para sustentar sua análise, o autor se apega ao conceito de imigrante ideal, ou seja, um trabalhador lapidado para atender a interesses econômicos políticos dos grupos que pensavam no sentido de nação, que então se desenhava lentamente, tanto na visão de fazendeiros quanto na de políticos de linhagem conservadora. O imigrante ideal seria aquele comprometido com os laços culturais e religiosos propostos na perspectiva romana de sociedade e indivíduo, imagem idealizada também pela oligarquia que o contratava. Para os fazendeiros, o estrangeiro contratado deveria ser “dócil, ordeiro, familiar e trabalhador”, uma mão-de-obra com as marcas da “resignação”. Na visão do poder religioso ultramontano, caberia ao catolicismo a moldagem do imigrante que satisfizesse os requisitos dos contratantes. O autor aponta com acuidade a conexidade entre o ideal de trabalhador desenvolvido pelo catolicismo romano e o tipo de trabalhador procurado pelo coronel para ser empregado na lavoura. Os dois ansiavam por trabalhadores obedientes. Quais as pretensões de um catolicismo que se via ameaçado por intrincada e complexa rede de inimigos, dentre os quais podemos encontrar os anarquistas, os maçons, os políticos liberais e os protestantes? Donizeti de Souza responde sem mais delongas: ser fonte inspiradora da cidadania brasileira e fonte única de unidade nacional. Enquanto o chefe local buscava aumentar o lucro (com a devida ordem) na unidade agrícola, o catolicismo buscava forjar, sob seus auspícios, a unidade cultural e religiosa do País. O que um fazendeiro esperava de um padre era que este ressaltasse “as obrigações morais do empregado para com o patrão, seu dever de obediência, de humildade, de docilidade e resignação, aceitando sua situação como desígnio divino, uma vez que a ordem social era por ele estabelecida”.

Da sua parte, o ultramontanismo pretendia, além das prerrogativas políticas e econômicas, enquadrar religiosamente o colono do interior do País, pouco afinado com as doutrinas da Igreja, procurando “instar um tempo sem magia”. Sendo assim, os scalabrinianos foram os designados para acompanhar o homem católico, desde a partida até sua instalação definitiva na sociedade hospedeira, isso dada a experiência acumulada por esses religiosos na missão junto ao imigrante. Na visão dos scalabrinianos, a religião seria um fator de patriotismo e de princípios civilizadores para os imigrantes em terras brasileiras. No entanto, como acontece em todos os processos de incursões missionárias, o agente não fica incólume na sociedade envolvente, não tardando muito para que esses religiosos percebecessem os fatores complicadores de sua missão. Havia inúmeras dificuldades em implantar o projeto de pastoral de imigrante: falta de padres, custo das viagens de religiosos, descontinuidade na formação de trabalhadores contratados. Padres ávidos por lucros, ostentadores, boêmios, apresentavam-se também como percalços na organização de uma pastoral alicerçada no ultramontanismo.

Os scalabrinianos, assim, tencionavam atuar junto ao imigrante italiano com maior independência possível do clero local, dada a influência que esse exercia junto às populações interioranas e por serem poucos afeitos às exigências de um catolicismo disciplinador. A religiosidade praticada em regiões distantes dos grandes centros, com a complacência dos padres, poderia colocar em risco o projeto educacional que pretendiam implantar. As divergências entre os scalabrinianos e padres das paróquias logo emergiram e são reveladoras dos embates internos no seio de um catolicismo que atuava numa sociedade que passava por profundas transformações, tanto na esfera política quanto na cultural. Em determinado momento da missão dos scalabrinianos no Brasil, mais precisamente no período em que o padre Cansoni esteve no País, a ordem foi aconselhada a assumir paróquias, onde o sustento seria mais viável. Isso porque a inquietude entre o clero nacional e o ultramontano estava se tornando visível, com os primeiros cada vez mais resistentes à presença da ordem em sua área de atuação, já que esta tinha a liberdade de acompanhar os imigrantes em qualquer paróquia, mesmo sem estar comprometida com ela.

Uma proposta de Domenico Vicentine, substituto de Scalabrini na condução da ordem, restringia a missão dos carlistas à formação de quadros para o serviço junto aos imigrantes, cabendo aos bispos das dioceses a administração da política pastoral ao imigrante. Na verdade, o clero nacional pretendia enquadrar os scalabrinianos nas estruturas das paróquias, impedindo assim que a missão junto aos imigrantes invadisse a jurisdição das dioceses, o que contrariava a intenção da ordem, que era a de agir sem necessariamente estar vinculado às estruturas eclesiais vigentes. Percebendo as dificuldades em atuar na jurisdição das paróquias, os scalabrinianos fundaram um orfanato cujo objetivo seria o de amparar crianças órfãs que vagavam pelas ruas (esquálidas, tristes, fracas e miseráveis), preparando-as para o trabalho e para serem “bons cidadãos” e “cidadãs”. Utilizando como recurso de convencimento o fato de o orfanato ser um espaço de formação de crianças desvalidas, moldando-as para o trabalho, os scalabrinianos obtiveram dos fazendeiros o apoio necessário para a implantação do projeto, conseqüentemente, da estruturação da ordem no País. Lembra o autor que os orfanatos constituíam-se através de uma mentalidade tridentina, fato que mais uma vez denota a tentativa de romanização do imigrante por meio da ação educacional.Ao saírem em missão para angariar fundos para o orfanato, os padres scalabrinianos batizavam, ouviam confissões, faziam casamentos, enfim, atrelavam a proposta educacional à estruturação da ordem, funcionando o orfanato como um ponto estabilizador das missões.

O autor destaca que os scalabrinianos foram acossados, no final do processo imigratório, em três frentes: na primeira, pela oligarquia, já que o imigrante não mais se apresentava como um investimento seguro; na segunda, pelos párocos locais, temerosos de perder a arrecadação junto aos poucos imigrantes que ainda entravam no país; na terceira, sofria a concorrência dos anarquistas e dos maçons. Nessas frentes de combate, a que mais merecia atenção por parte do clero romano era a política desencadeada pelos anarquistas juntos aos imigrantes.

A celeuma entre a ordem scalabriniana e grupos anarquistas, na atuação junto aos imigrantes, mereceu por parte do autor um capítulo à parte. De posse de um documento desses religiosos sobre o desaparecimento de uma das internas do orfanato, Donizeti de Souza rastreou em publicações anarquistas o mesmo assunto. Nas leituras dos periódicos, percebeu com perspicácia a disputa que se travava entre o movimento político anarquista e o movimento religioso católico ultramontano pelo controle do imigrante. Tencionando alcançar o monopólio do acompanhamento ao imigrante em diversas regiões do País, as duas partes procuravam atingir a imagem do outro perante a opinião pública e perante o Estado. Não foi intenção do autor apontar o desenlace da trama envolvendo a menina Idalina, personagem central da discórdia, o que certamente o faria enveredar para um texto novelesco, tão em moda na historiografia atual. Antes, sua atenção esteve voltada para a distinção dos elementos em conflito, fazendo de sua obra uma possibilidade de compreensão dos interesses de instituições nas formulações ideológicas de um período que ainda carece de novos estudos.

Resta apontar os complicadores das considerações de Donizeti de Souza, que são de duas ordens: a primeira diz respeito à afirmação de que a intenção dos scalabrinianos era a de constituir, nas pequenas cidades em ascensão, dada a presença do imigrante italiano, “pequenas itálias”; o segundo complicador desse texto bem articulado reside na afirmação do autor de que no projeto dos religiosos estava embutido um projeto “neocolonial”. Não estariam essas responsabilidades aquém das forças de uma ordem religiosa que não se configurava entre as mais influentes dentre o escopo missionário católico, tanto no Império quanto na Primeira República?

Para além desse pequeno deslize (se é possível considerar como tal uma afirmação que não compromete o texto), essa obra é um alerta para quem reduz aos liberais, à maçonaria e ao protestantismo a capacitação de indivíduos voltados para uma sociedade ordeira e laboriosa, quesitos básicos para a consolidação da República. Em se tratando de moralização de condutas, as intenções de protestantes, católicos e maçons não eram tão díspares quanto podem parecer numa análise estreita. Os ultramontanos buscavam com disposição instilar o rigor disciplinar entre os trabalhadores imigrantes tendo em vista a composição de uma nova ordem social, um tanto quanto ameaçada pelos ideais políticos anarquistas, dos quais os italianos não estavam distantes.

Notas

1 Temos em mente, quando sinalizamos para a rede de interdependências em processos de mudanças (ou de desenvolvimento), as concepções teóricas de Norbert Elias sobre transformações sociais no processo civilizador. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, vol. 1.

Vasni de Almeida – Doutorando em História-UNESP/Assis.

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Bibliografia Libertária – O Anarquismo em Língua Portuguesa / Adelaide Gonçalves e Jorge E. Silva

Em edição revista e ampliada, a editora Imaginário lança A Bibliografia Libertária – O Anarquismo em Língua Portuguesa, de Adelaide Gonçalves e Jorge E. Silva, trabalho que sintetiza informações acerca da atividade editorial voltada para o pensamento e prática anarquistas em Portugal e no Brasil, constituindo um importante guia para leituras e estudos sobre o tema.

Buscando contemplar a atividade editorial libertária lusófona desde a década final do século XIX, a catalogação corrige e amplia consideravelmente àquela da primeira edição, que incluía apenas livros publicados em Portugal após 1974 e, no Brasil, a partir de 1980, datas que marcaram o ocaso das ditaduras que assolaram os dois países. A listagem, desta forma, inclui também as edições feitas no período de maior visibilidade do movimento anarquista, a fase de seu surgimento e propagação como movimento socialmente representativo, que vai da última metade do século XIX até meados dos anos 30 do século XX.

Os vários títulos reunidos nesse período de mais de 100 anos refletem, em si, a longevidade do ideal ácrata, ao passo que as obras posteriores à década de 60 atestam o ressurgimento do interesse pelo pensamento libertário, ocorrido em nível mundial e marcado, entre outros acontecimentos, pela emergência das críticas aos regimes despóticos que advogavam-se a alcunha de socialistas e pelo aparecimento dos movimentos contra-culturais nas décadas de 50 e 60. Desta forma, é possível verificar, nesta bibliografia libertária, não apenas a obstinação dos primeiros tempos da atividade editorial anarquista, como também o impulso editorial que receberam alguns clássicos teóricos da Anarquia nas décadas mais recentes (como, por exemplo, a obra de Bakunin), o aparecimento de trabalhos de caráter acadêmico sobre o movimento operário influenciado pelo sindicalismo revolucionário e pelo anarco-sindicalismo das primeiras décadas do século XX, bem como o aparecimento de obras críticas de viés libertário à chamada modernidade.

Estão presentes, ainda, diversos livros de memórias de militantes anarquistas e anarco-sindicalistas portugueses, editados após a derrubada da ditadura portuguesa em 1974, e obras publicadas por editoras que se mantém à margem da cultura massificante que apregoa a morte das ideologias, como a Achiamé e a própria Imaginário. Em anexo, o livro traz uma listagem de temas afins ao anarquismo, tais como as idéias anti-clericais, o cooperativismo e o anti-autoritarismo, que como afirmam os autores, são “bastante presentes na propaganda libertária e que contribuíram para a formação da visão de mundo dos anarquistas.”

O leitor, no entanto, não será simplesmente levado a conhecer esta variedade de edições acerca do anarquismo e temas afins. Os autores enriquecem o trabalho com uma bela introdução à bibliografia libertária na qual encontram-se informações que incluem o aparecimento das primeiras idéias socialistas nos dois países, o intercâmbio de publicações entre portugueses e brasileiros durante o século XX, a efervescência das idéias na busca da formação de uma cultura genuinamente popular e libertária e, por fim, os obstáculos e transformações conjunturais enfrentadas por aqueles que se dedicaram à divulgação das idéias socialistas.

Mas o que de mais importante se sobressai no conhecimento desta atividade editorial libertária, que em meio a tantas adversidades se manteve firme propagando ideais de elevação humana, é que ela foi fruto da espontaneidade e do voluntarismo de militantes livres, que não cessaram de acreditar na grandeza de seus propósitos, na pluralidade e no anti-dogmatismo. A determinação e a perseverança com que as adversidades foram enfrentadas e superadas por todos aqueles que lutaram pela divulgação das idéias ácratas devem, acima de tudo, servir de exemplo aos que, nos dias de hoje, nesse contexto social tão hostil dominado pelos “mass media”, continuam acreditando e trabalhando pela liberdade e pela emancipação humana.

Desta forma, a “Bibliografia Libertária” é não apenas um guia capaz de instrumentalizar pesquisas sobre o vasto e importante legado da Anarquia, mas também um convite para que mergulhemos nessa grande herança das lutas sociais, de cujo conhecimento depende não só a compreensão da nossa sociedade atual, mas também os caminhos para sua transformação.

Allyson Bruno Viana – Universidade Federal do Ceará GONÇALVES, Adelaide; SILVA, Jorge E.


Bibliografia Libertária – O Anarquismo em Língua Portuguesa. São Paulo: Ed. Imaginário, 2001. Resenha de: VIANA, Allyson Bruno. Revista Trajetos, Fortaleza, v.1, n.1, 2001. Acessar publicação original. [IF].

Musa Libertaria – arte, literatura y vida cultural del anarquismo español (1880-1913) – LITVAK (VH)

LITVAK, Lily. Musa Libertaria – arte, literatura y vida cultural del anarquismo español (1880-1913). Barcelona, Antoni Bosch Editor, 1981. Resenha de: DUARTE, Regina Horta. Varia História, Belo Horizonte, v.5, n.9, p. 185-187, jun., 1989.

“No se presenta un plan prefabricado, sino ideas

audaces y heterodoxas, porque exigían que cada

hombre fuese único e uno dentre muchos” (p. 402)

Musa Libertaria cumpre, segundo a concepção benjaminiana, a função da obra do historiador, despertando no passado as “centelhas da esperança”. A autora reflete sobre o papal da arte como forma de luta. Alguns artistas consagraram-se e imortalizaram-se como Tolstoi, Picasso, Pissaro. Muitos, entretanto, permaneceram na obscuridade.

Lily Litvak dedica seu livro ao estudo desses artistas ocultos, destacando os anarquistas espanh6is. Chamando a atenção para a escassez de obras sobre a vida cultural e literária dos anarquistas, afirma que estes valorizavam a obra de arte como parte inseparável da propaganda, atribuindo-lhe um papel revolucionário. As criações artísticas de tendência libertaria se inspiravam nas vozes silenciadas e nas vidas dos despossuídos.

0 anonimato em que permaneceram tais obras e a derrota sofrida pelos anarquistas espanhóis não justificariam que o tema permanecesse esquecido. Como afirma a pr6pria autora, existem “tristes êxitos e her6icas derrotas”. Quanto a questão da eficácia ou não da atuação anarquista como arma contra a dominação, sempre se costuma lembrar seus fracassos. Porém, sua efetividade encontrava-se em sua própria existência, “enquanto testemunho da rebeldia humana contra a opressão e a injustiça” (p. 399).

Nota-se a forte influência de W, Benjamin sobre o propósito da obra em questionar o domínio dos vitoriosos e estabelecer uma relação de empatia com os que foram vencidos e derrotados.

0 estudo das manifestações artísticas libertarias não se faz de maneira simplesmente descritiva, mas esquadrinhando-se, com perspicácia, inúmeros pontos básicos e problemas fundamentais presentes no ideário anarquista.

0 levantamento dos temas a serem abordados no decorrer da obra é feito a partir da análise das imagens ficcionais construídas na literatura, nas gravuras, desenhos e pinturas de inspiração libertária. Assim, é através de poemas, romances e canções que se reconstrói, por exemplo, a concepção de natureza comum entre os libertários: a natureza harmoniosa, fonte de exemplos para a regeneração da sociedade humana, equilíbrio ao qual retornaria o homem na sociedade anárquica. São reproduzidas gravuras de jornais anarquistas, dentre alas uma que exemplifica a vida anarquista através da imagem de uma família trabalhando no campo: esta presente a noção de continuidade do labor na vida do homem, da beleza moral do trabalho e da premiação do esforço humano pela natureza, vista como uma mãe serena e fecunda (p. 27 e 28).

As figuras do padre, do capitalista, do miserável, do revolucionário, etc., eram apresentadas pelos anarquistas de forma estereotipada, tornando fácil a identificação. A autora destaca o expressionismo presente nestas caricaturas e a forma como as mensagens são’ comunicadas intensa e vibrantemente. 0 inimigo é simbolizado através de objetos (crucifixos, espadas, coroas, etc.), como animais ferozes (cobras, serpentes, monstros) ou através da ênfase a aspectos burlescos (burgueses gordos, avaros amarelados com um riso falso nos lábios, etc.). Os miseráveis são representados como possuidores de grande beleza moral e dignidade. A imagem do operário militante revela coragem, luta, rosto nobre, fronte larga. Na linguagem, como na construção das personagens, nada é sutil, tudo é manifesto, claro e simples. A emotividade transparece no use frequente de expressões extravagantes, de palavras de sonoridade significativa, repetições, exclamações e interrogações.

Este excessivo maniqueísmo levava a uma estética dominada por contrastes absolutos. 0 realismo anarquista era exagerado e desmedido, buscando demonstrar a todo o custo uma verdade inquestionável, cujo conhecimento levaria ao caminho da anarquia.

Analisando a linguagem e a construção de imagens ficcionais pelo realismo anarquista, Lily Litvak faz uma instigante reflexão sobre temas importantes do ideário anarquista e a extensão do conhecimento científico; o pacifismo; a valorização do potencial revolucionário dos miseráveis, criminosos, mulheres e camponeses; a preocupação com a criação de uma estética revolucionaria; a representação do caráter digno do trabalho (desvirtuado pela sociedade capitalista); o fervor religioso presente na crença no caráter regenerador da doutrina anarquista; visões da utopia, dentre outros.

Além da literatura e da pintura, a autora também examina outras atividades culturais. A imprensa é uma delas. 0 papel alternativo da imprensa anarquista era valorizado pois divulgava idéias, fatos e eventos silenciados pela imprensa burguesa. Os libertários buscavam organizar um sistema eficiente de distribuição. Os jornais lidavam com dois tipos de mensagens, as escritas e as tipográficas. As disposições tipográficas, na busca de impacto, traziam cores agressivas e simbólicas. Gravuras complementavam o texto, buscando despertar emoções. A imprensa libertaria intencionava ser um canal de comunicação alternativo que criticasse, desmascarasse e negasse a linguagem e os canais institucionalizados pela burguesia, contribuindo para a pratica de uma cultura revolucionaria.

0 teatro libertário é analisado em seu caráter popular (à medida em que era facilmente compreensível pela massa, por retratar com simplicidade seu pr6prio cotidiano) e realista medida em que procurava mostrar verdades absolutas que transcendiam a própria realidade “palpável”). A educação e a cultura também eram muito estimuladas. Várias revistas foram criadas, procurava-se facilitar o acesso a livros, jornais, etc.

A partir da avaliação de todas estas atividades, conclui-se que existia uma verdadeira pratica cultural levada a frente pelos anarquistas. Estes, opondo-se cultura burguesa, pretendiam forjar outros códigos linguísticos e novos veículos de comunicação (p. 283).

A concepção corrente entre os anarquistas espanhóis sobre a arte também objeto de reflexão da autora: a arte como forma de luta, como meio de despertar as consciências e o espírito de rebeldia. Relacionado a vida cotidiana, o ato criador era mais valorizado que o produto final, pois as obras artísticas eram vistas como uma forma de ação direta. Desmitificava-se as obras artísticas consagradas, assim como os museus, exposic6es, etc.

Lily Litvak realiza um estudo esclarecedor do anarquismo espanhol, utilizando livros, poemas, canções e gravuras. Investigando as especificidades desse movimento, consegue trazer ao leitor uma maior compreensão das ideias, esperanças e desejos libertários.

Regina Horta Duarte

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