A vida de laboratório: a construção dos fatos científicos | Bruno Latour e Steve Woolga

A tradução para o português do livro de Latour e Woolgar nos coloca o desafio de fazer a resenha de uma obra que, depois de quase duas décadas de sua primeira edição, tornou-se um clássico dos chamados estudos sociais da ciência. Optamos por enfrentá-lo organizando a presente apresentação a partir de uma questão que, ao nosso ver, se apresenta como crucial para a compreensão tanto dos conteúdos mais substantivos — e inovadores — do livro, bem como do lugar que ele vem ocupando no campo da história e sociologia da ciência. Trata-se da discussão sobre qual o sentido, a pertinência e as implicações teóricas de um estudo etnográfico sobre a atividade científica.

Um primeiro e importante aspecto que merece ser considerado nessa perspectiva é a própria situação que deu origem à pesquisa de campo realizada por Bruno Latour entre 1975 e 1977 junto ao grupo de cientistas chefiado por Roger Guillemin, e que serviria de base para a redação do livro com Steve Woolgar. No início da década de 1970, Latour trabalhava como pesquisador em sociologia do desenvolvimento na Costa do Marfim, com o seguinte objetivo: “explicar por que era tão difícil para executivos negros adaptarem-se à vida industrial moderna” (Latour, 1986, p. 273). Argumentava que essa dificuldade não era, como muitos pretendiam, uma questão de inabilidade cognitiva intrínseca àqueles indivíduos, mas um problema relacionado ao processo de formação escolar, reprodutor do modelo francês, que desconsiderava que o aprendizado teórico requerido pela atividade tecnológica moderna estava totalmente dissociado das práticas concretas relativas à vida social dos alunos. Estimulado pela interlocução com seus colegas antropólogos, Latour (idem, p. 274) chegou a uma indagação que mudaria o rumo de seus interesses teóricos: “O que aconteceria a essa grande divisão entre raciocínio científico e raciocínio pré-científico se os mesmos métodos de campo usados para estudar os agricultores da Costa do Marfim fossem aplicados a cientistas de primeira linha?” Foi nessa ocasião que o professor Guillemin convidou-o a desenvolver uma pesquisa no Instituto Salk, na Califórnia.

As reflexões de Latour na África nos fornecem uma chave importante para compreendermos a perspectiva que motivou e orientou sua investigação da prática científica. Embora tenha sido chamado a realizar uma análise epistemológica do laboratório, foram o olhar e o método da antropologia que o transformaram no sociólogo da ciência que foi “ao campo” empreender um estudo empírico detalhado das atividades cotidianas dos cientistas em seu habitat natural. É importante mencionar que, ao iniciar o período de sua imersão no laboratório, Latour encontrava-se na clássica posição do etnógrafo que depara com uma cultura a ele totalmente estranha. Como o próprio autor aponta, seu conhecimento de ciência era nulo e seu domínio da língua inglesa, fraco. Além disso, ele desconhecia totalmente a existência cios estudos sociais da ciência (idem, ibidem, p. 273). Esse último ponto, surpreendente em se tratando do autor que produziria um livro que marcaria o debate contemporâneo da sociologia da ciência, reforça a centralidade assumida pela abordagem etnográfica. Foi essa perspectiva metodológica o ponto de partida para a análise da ciência proposta em A vida de laboratório. O diálogo com as questões constitutivas daquele debate — e tudo leva a crer que a parceria com Woolgar foi decisiva nesse sentido — foi um desdobramento, e não o ponto de partida, das questões levantadas pelo trabalho empírico.

O caráter microscópico e artesanal da pesquisa de campo tem sido apontado como um dos aspectos mais inovadores do ponto de vista do tratamento da ciência proposto pelo livro, por se diferenciar radicalmente dos estudos de natureza historiográfica e/ou sociológica que se baseavam estritamente em fontes textuais sem a observação direta da prática científica em curso. Tal procedimento metodológico veio de encontro aos preceitos teóricos do chamado Programa Forte da Sociologia do Conhecimento, elaborado por David Bloor e Barry Barnes na década de 1970, e que, seguindo a trilha aberta por Thomas Kuhn, pretendeu empreender uma análise sociológica dos conteúdos do conhecimento científico, rompendo assim com uma tradição de estudos sociais da ciência restrita à investigação das relações entre cientistas e dos aspectos institucionais da atividade científica. Por outro lado, ainda que diretamente associado a esse programa teórico mais amplo, o livro recebeu críticas justamente por sua suposta incapacidade cie desdobrar, da descrição microssociológica do laboratório, questões que permitissem uma compreensão global da ciência como atividade social. A questão que está na base dessa dualidade de leituras é: qual o alcance teórico da pesquisa etnográfica? O debate contemporâneo entre os antropólogos a respeito do valor da etnografia e do vínculo entre teoria e pesquisa nos ajuda a responder essa pergunta.

Como indica Mariza Peirano (1995), a tradição teórica da antropologia contempla diversas formas de combinar a tensão sempre presente entre o particular/etnográfico e o universal/teórico. Nesse sentido, o trabalho de Clifforfd Geertz (1989) destaca-se ao chamar a atenção para a riqueza cio entrelaçamento entre o repertório de conceitos gerais das ciências sociais e a descrição minuciosa estabelecida pela etnografia (“descrição densa”). Segundo esse autor, a pesquisa de campo ocupa um lugar central na investigação antropológica, pois as análises locais de eventos exóticos são o que efetivamente propicia o tratamento de questões totalizadoras. Corroborando tal linha argumentativa, Peirano (1995, p. 43) afirma que “a pesquisa etnográfica é o meio pelo qual a teoria antropológica se desenvolve e se sofistica quanto desafia os conceitos estabelecidos pelo senso comum no confronto entre a teoria que o pesquisador leva para o campo e a observação dos nativos que estuda”. De acordo com essa concepção, as etnografias constituem, mais do que os sistemas teóricos por elas suscitados, a maior herança da antropologia, e essa é a razão pela qual os dados levantados por uma boa etnografia freqüentemente servem de fontes para novas abordagens e formulações teóricas.

Partindo da visão de que os trabalhos etnográficos podem e devem ser efetivamente fertilizadores da teoria, cabe analisar em que sentido A vida de laboratório desempenha este papel. Tal apreciação foi desenvolvida pelo próprio Woolgar (1982) ao comentar o estado da arte dos estudos de laboratório. Segundo o autor, uma questão fundamental levantada por tais estudos diz respeito ao seu valor metodológico enquanto chave para especificar o caráter da atividade científica, tendo por base a “cláusula” da observação da ciência “como ela acontece”. Um caminho para avaliar as diferentes respostas dadas a tal questão aponta no sentido de duas concepções distintas sobre a natureza da abordagem etnográfica tal como aplicada ao estudo da ciência, concepções estas que Woolgar chama de “instrumental” e “reflexiva”.

A concepção instrumental seria a que atribui à etnografia de laboratório o papel de “revelar”, a partir de um acesso direto ao ambiente da prática científica, o que esta apresenta de novidade, de diferente em relação ao que era esperado. Uma conseqüência dessa leitura instrumental é a crítica feita aos estudos de laboratório como linha de investigação meramente voltada para os aspecto “micro” da ciência e, enquanto tal, incapaz de estabelecer o significado específico da atividade científica para além dos limites internos e contingentes relativos ao cotidiano do laboratório.

Segundo Woolgar, o fato de os estudos de laboratório basearem a análise nas observações detalhadas dos eventos locais referentes à vida diária dos cientistas significa que as questões analíticas daí derivadas não tenham relevância. Ao contrário, a grande virtude destacada nesses estudos, justamente devido ao seu caráter etnográfico, é a capacidade de enfrentar problemas de “macro” importância usando “micro” materiais. O ponto fundamental é saber a quais questões dessa natureza eles buscam responder. Nesse sentido, Woolgar ressalta que a compreensão mais substantiva das questões para as quais se direciona o esforço analítico dos estudos de laboratório exige que se vá além de uma concepção instrumental e que se adote uma concepção reflexiva da etnografia, que é o que efetivamente representa o principal propósito desse esforço.

Woolgar afirma que, embora a pesquisa etnográfica possa produzir novidades sobre a ciência a partir da descrição minuciosa do laboratório, esse é um produto incidental da pesquisa etnográfica reflexiva e não seu principal objetivo, que é o de proporcionar a compreensão dos aspectos de nossa própria cultura que tomamos como estabelecidos. O estudo etnográfico do laboratório seria assim uma ocasião para investigar a atividade científica como uma prática social especialmente pertinente ao propósito de gerar informações sobre os processos sociais de raciocínio e argumentação em geral. Parafraseando Geertz, ele afirma que a etnografia da prática científica deve ser um estudo no laboratório e não um estudo do laboratório.1 É justamente nesse sentido que a observação dos aspectos particulares cia vida de laboratório pode oferecer sua contribuição teórica mais efetiva, uma vez que, “somente com uma concepção instrumental de etnografia, existe o perigo de que as descrições da prática científica que emergem do laboratório continuem a servir apenas de ferragem para preocupações teóricas preconcebidas” (idem, ibidem, p. 493). A orientação proposta por Woolgar nos permite resgatar o sentido original que levou Latour ao Instituto Salk e compreender como o valor teórico do livro produzido a partir dessa experiência se nutriu de uma concepção de etnografia que, nas palavras de Geertz, apresenta-se como fonte não apenas de hipóteses específicas relativas ao campo, mas sobretudo de um conjunto de padrões de interpretação social e cultural (Peirano, 1995, p. 51).

Se, de acordo com tal perspectiva, A vida de laboratório deve ser lido como um estudo que permite refletir em que medida a ciência esclarece sobre as práticas gerais de raciocínio e argumentação, cabe a pergunta: Quais os aspectos da análise que nos conduzem mais substantivamente a essa reflexão? Quais as ferramentas o livro apresenta para essa travessia cio particular/etnográfico ao universal/teórico?

O argumento central proposto por Latour e Woolgar é que a ciência não se distingue de outras práticas sociais, como postula a epistemologia, em função de uma superioridade cognitiva derivada da racionalidade intrínseca a esta atividade. O cientista, como qualquer outro ator social, é alguém que se utiliza de estratégias persuasivas que visam garantir a aceitação dos enunciados por ele produzidos. Nessa perspectiva, os autores corroboram a tese fundamental do Programa Forte, segundo a qual o conhecimento científico é um sistema de convenções socialmente estabelecido e reproduzido. O princípio metodológico que informa tal perspectiva é o da simetria, ou seja, a idéia de que tanto o enunciado científico “verdadeiro” quanto o “falso” assumem tais atributos não por suas qualidades internas distinguidas pelo “bom” ou “mau” uso do método científico, mas em função de um processo social de convencimento que possibilitou que eles fossem reconhecidos enquanto tais.

Porém, Latour e Woolgar declaram a intenção de estender o princípio cia simetria na direção de um questionamento das próprias noções tradicionalmente aceitas pelos sociólogos para explicar o caráter “social” cio processo de fabricação do conhecimento científico. Esse foi o motivo que os levou a não utilizar categorias como “fator social” ou “contexto social”, mas buscar novos conceitos que pudessem explicar melhor os contornos próprios à vida (social) da ciência.2 Assim, sua contribuição mais original seria fazer avançar a análise sociológica da atividade científica para além cia tese de que esta é socialmente construída, enfrentando efetivamente o desafio cie apontar e compreender de que maneira a ciência, sendo uma prática de construção de enunciados — e de argumentação persuasiva sobre a validade dos mesmos — semelhante a outras práticas sociais, realiza concretamente essa prática e em que sentido isso é feito de maneira singular. Na nossa leitura, esse é efetivamente o aspecto mais inovador e interessante da análise desenvolvida na obra e, nessa perspectiva, o suporte empírico fornecido pela abordagem etnográfica é decisivo.

A tese que Latour e Woolgar pretendem demonstrar é que o fato científico, estável e estabelecido como “natural”, é o resultado de um processo de construção que tem a peculiaridade de só se completar enquanto tal na medida em que é capaz de apagar qualquer traço de si próprio. Ou seja, a produção do fato científico depende necessariamente de estratégias e procedimentos extremamente eficazes no sentido de eliminar os vestígios da trajetória na qual ele foi produzido. Os autores buscam demonstrar essa tese a partir de algumas noções cujo alcance explicativo é testado no confronto com o material etnográfico.

A primeira delas é a de inscrição literária, que diz respeito aos procedimentos de materialização dos objetos de estudo da ciência através de traços, pontos, gráficos, espectros e demais registros produzidos por aparelhos manipulados no sentido cie formalizar literariamente os fenômenos que servirão posteriormente de matéria-prima para a elaboração dos enunciados científicos. Tais aparelhos são denominados inscritores, e sua importância no laboratório deve-se ao fato cie que eles são os meios que dão existência material aos fenômenos investigados. Ainda que as representações gráficas já tivessem sido destacadas como uma forma característica cie apresentação cios conteúdos cia ciência (Moles, 1981), a novidade trazida por Latour e Woolgar é que as inscrições literárias não são concebidas como indicadores ou representações cia presença de uma substância “exterior” ou “prévia”: a substância só se configura enquanto tal sob a forma material dessas inscrições. É à realidade produzida pelos inscritores que os cientistas se referem quando falam das entidades “objetivas” por eles enunciadas. Uma característica essencial cia maneira como os inscritores são utilizados no laboratório é que, uma vez obtidas as inscrições, rapidamente são esquecidos os procedimentos e etapas circunstanciais que conduziram à sua produção, sendo estes então relegados ao domínio cia “pura técnica”. Dessa forma, alcança-se o efeito cie considerar o fenômeno em questão um objeto “natural”, dotado cie uma realidade prévia e totalmente independente.

É a partir das inscrições assim produzidas que os cientistas elaboram seus enunciados e essa é uma segunda noção importante para a compreensão cia atividade cio cientista no laboratório. Os enunciados são cie diferentes tipos e, através cie um conjunto cie operações sobre e entre eles, os cientistas buscam transformar os que se apresentam como assertivas meramente especulativas em enunciados referentes a um fato plenamente instituído. Tais operações constituem diversas estratégias discursivas postas em ação com o intuito cie aumentar o poder cie convencimento cie um ciado enunciado, aumentando assim o seu grau cie “faticidade”. Nessa perspectiva, a atividade do cientista no laboratório pode ser definida como uma luta constante para criar e fazer aceitar certos tipos particulares cie enunciados. A dinâmica das operações através das quais se transforma um tipo de enunciado em outro resulta no que os autores chamam cie campo agonístico. O que importa destacar é que um enunciado não existe por si próprio, mas sim nos contextos contingentes e específicos em cada momento de configuração desse campo de forças. Se mudam as condições cio contexto local, mudam necessariamente as operações entre enunciados postas em prática e, conseqüentemente, os rumos cio processo cie construção cio fato.

As noções de sistema cie inscrições literárias e cie operações sobre enunciados encaminham a análise para seu núcleo, referente à noção cie construção cio fato científico. Segundo os autores, um fato científico se define enquanto “‘um enunciado’ que não está mais acompanhado por qualquer outro enunciado que modifique a sua natureza (isto é, ele não é mais ‘modalizado’)” (p. 33). A investigação das operações práticas através cias quais esse processo se realiza apresenta-se assim como o objeto central cio estudo cia ciência praticada no laboratório.

Da mesma maneira como apontado na etapa relativa à produção das inscrições, Latour e Woolgar chamam a atenção para a característica peculiar que distingue o processo de transformação de um enunciado num fato estabelecido. Trata-se de um processo que se realiza na medida em que lança mão de certos dispositivos pelos quais torna-se muito difícil detectar qualquer traço de sua produção. Um fato científico é reconhecido enquanto tal quando perde todos seus atributos temporais e integra-se no conjunto cie conhecimentos edificados por outros fatos. Nesse movimento, ele alcança uma qualidade que lhe permite eliminar as referências ao contexto social e histórico a partir do qual foi construído, e assim resistir às tentativas cie explica-lo sociológica e historicamente. Latour e Woolgar descrevem os mecanismos discursivos acionados pelos cientistas na direção desse “apagamento” das circunstâncias relativas à trajetória do fato: trata-se cio que eles chamam cie estabilização de um enunciado. O momento inicial desse movimento corresponde a uma importante mudança na qualidade do enunciado, que passa a ser uma entidade cindida. Por um lado, apresenta-se como uma seqüência de palavras que dizem algo de um objeto, e, por outro, o próprio enunciado se coloca como um objeto que tem vida independente, ao qual se passa então a atribuir cada vez mais realidade e importância. Assim, a estabilização se completa por meio de uma inversão: o objeto torna-se a razão que levou à formulação do enunciado. Nas palavras dos autores: “No começo cia estabilização o objeto é a imagem virtual cio enunciado; em seguida, o enunciado torna-se a imagem no espelho da realidade ‘exterior'” (p. 193).

A descrição desse processo é fundamental, na medida em que ela permite compreensão da eficácia da argumentação e enunciação científica em produzir fatos com um tamanho efeito de realidade. Segundo os autores, “não é um milagre que os enunciados pareçam corresponder tão exatamente às entidades externas: eles são uma única e mesma coisa” (p. 194). A sua separação constitui justamente a etapa final do processo cie construção cio fato científico. Assim, Latour e Woolgar afirmam que a noção de realidade não pode ser usada para explicar por que um enunciado se estabiliza em fato, por que tal realidade é justamente um efeito e conseqüência dessa estabilização. Isso, ressaltam os autores, não eqüivale a uma posição relativista de negação da existência da realidade. O que se postula é que essa “exterioridade” é conseqüência da atividade científica e não a sua condição. Este é o ponto que justifica a relevância de uma análise do espaço onde a ciência é concretamente praticada.

Em suma, o argumento dos autores é que a construção do fato científico envolve, essencialmente, uma delicada negociação entre os cientistas, que para isso se valem de múltiplas estratégias de argumentação persuasiva. O que define a ciência como prática social de produção de conhecimento é portanto a interação entre os atores dada nas circunstâncias locais e contingentes do laboratório. Ao nosso ver, a descrição etnográfica da cadeia de eventos e práticas que dão forma concreta a essa interação é a contribuição mais original cie A vida de laboratório.

Contudo, poderíamos colocar a seguinte questão: Qual o sentido da ação dos cientistas no laboratório? O que explica o comportamento desses atores? Segundo Latour e Woolgar, os cientistas se comportam de maneira similar a um investidor capitalista, ou seja, como alguém que age com o objetivo de maximizar cada vez mais a lucratividade de seus investimentos, aumentando assim a capacidade de reprodução ampliada de seu capital acumulado. Essa concepção está formalizada na noção que os autores propõem de ciclo de credibilidade. A característica essencial desse ciclo é a busca contínua por um ganho de credibilidade que permita o reinvestimento e, conseqüentemente, um ganho posterior de credibilidade.

Na utilização que Latour e Woolgar fazem da noção de ciclo de credibilidade como chave que fornece o sentido e a orientação da ação/ interação dos cientistas residem, na nossa leitura, os aspectos mais problemáticos de sua análise sobre a prática científica. Tais limites são decorrentes da própria perspectiva interacionista que informa tal análise.

Um primeiro ponto a ser destacado é a afirmação segundo a qual essa noção traz um avanço substantivo em relação ao conceito de capital científico proposto por Bourdieu em sua análise a respeito do campo científico,3 ainda que os autores reconheçam que as discussões por ela introduzidas se baseiam em grande parte na perspectiva inaugurada por este conceito. A concepção de ciclo de credibilidade, ao atribuir sentido às estratégias dos cientistas exclusivamente em função das condições contingentes a partir das quais eles agem no laboratório, desconsidera a influência de condições prévias e/ ou exteriores aos limites desse campo particular de ações. É nessa perspectiva que, ao nosso ver, ao invés de ampliar a formulação de Bourdieu, Latour e Woolgar acabam restringindo-a e não suplantando o seu potencial explicativo. Na concepção de Bourdieu, a idéia de um capital social prévio permite justamente compreender como os cientistas se posicionam desigualmente no campo científico e a, partir destas posições, têm condições diferenciadas de se movimentar nesse campo e de investir seu capital científico de forma a ocupar novas posições. Nesse sentido, as posições iniciais dos cientistas nesse jogo de forças que constitui o campo da ciência não são irrelevantes, pois suas chances de “aposta” dependem do capital acumulado em outros campos, dentre os quais o escolar assume importância destacada.4 A lógica de funcionamento da ciência como um espaço de luta concorrencial, ainda que tendo sua especificidade, não se explica unicamente pelos contornos particulares a esse espaço, como parece sugerir a noção de ciclo de credibilidade. Para usar a terminologia de Latour e Woolgar, a própria conformação local das ações dos cientistas enquanto estrategistas que calculam seus investimentos em credibilidade depende das condições a partir das quais o indivíduo entra nesse ‘mercado’ que é a ciência.

Na nossa leitura, um outro limite, ainda mais decisivo, da abordagem proposta por Latour e Woolgar quanto ao sentido circunstancial da ação do cientista no campo de forças no qual ele se movimenta reside na própria noção de credibilidade. Segundo os autores, ela foi formulada com a intenção de ampliar a noção de crédito para além do seu sentido tradicional de busca de reconhecimento pelos pares. Os autores afirmam que a obtenção desse reconhecimento por parte da comunidade científica é apenas uma das diversas formas de crédito utilizadas pelo cientista para alcançar seu objetivo último, como um investidor-estrategista, cuja meta é aumentar sua própria capacidade de continuar investindo. Nas palavras dos autores, “por mais importante que ele seja, o crédito como sinônimo de reconhecimento é um problema secundário” e “não é suficiente para analisar o comportamento do pesquisador” (pp. 213-4).

Na nossa concepção, mesmo que se postule que o reconhecimento pela comunidade não é a única dimensão que confere sentido à intencionalidade da ação do cientista, voltada para a otimização de suas condições de investimento, consideramos que esse reconhecimento é, em última instância, o que necessariamente garante o potencial mesmo dessas estratégias, ou seja, é o que estabelece as possibilidades e condições que o cientista tem  para investir. Também aqui consideramos que Latour e Woolgar ficam aquém cios elementos analíticos fornecidos por Bourdieu, quando este afirma que, para se compreender as estratégias de ação do cientista, é fundamental analisar a posição que estes ocupam no campo, e essa posição envolve necessariamente a idéia do crédito como reconhecimento pelos pares. É curioso que o próprio caso da construção do fator de liberação da tirotropina (TRF) como fato científico, tal como analisado pelos autores, nos fornece indicações significativas nesse sentido. Segundo eles apontam, foi a partir cie um lugar específico na comunidade dos pesquisadores em neuro-endocrinologia que Roger Guillemin adotou a estratégia — que se revelou extremamente bem-sucedida — de investir toda a sua credibilidade na reformulação da disciplina tendo por base o objetivo de identificar a estrutura do TRF.5

Nessa perspectiva, concordamos com o argumento crítico cie Thomas Gieryn (1982) quando este afirma que considerar o caráter contingente, idiossincrático e local da prática do cientista no laboratório não significa que se deva desqualificar como irrelevante os aspectos relativos à organização da ciência como instituição, para além das fronteiras desse espaço específico, tal como proposto pela perspectiva mertoniana. Latour e Woolgar afirmam que a ação do cientista é calculada a partir das circunstâncias que se apresentam em cada momento como contexto específico para essa ação. Excluir a dimensão relativa aos valores e normas institucionais da ciência empobrece a própria compreensão de como tais circunstâncias se configuram e como os cálculos são feitos a partir cie determinadas condições de possibilidade.

Segundo os autores, um dos limites da etnografia que desenvolvem nesse livro é a necessidade cie um estudo complementar sobre a “rede”, “cia qual nosso laboratório não passa de um ponto” (p. 33), que compreende atores, circunstâncias e interesses distribuídos por outros espaços e instituições para além da própria ciência. Embora construído no laboratório, é circulando nessa cadeia de transformações, traduções e deslocamentos constitutiva cia rede que o fato científico alcança sua estabilização definitiva, conquistando efetivamente sua legitimidade social. Essa noção de rede reforça a recusa cios autores em aceitar a tese da centralidade da comunidade científica como espaço institucional próprio para a construção do consenso e da legitimidade do conhecimento científico. Assim, além de não determinar as condições a partir das quais se configuram as ações dos cientistas, a comunidade, segundo os autores, também não é o espaço responsável pela legitimação cios resultados dessas ações. Contudo, ainda que se possa argumentar que a legitimidade cio fato científico é ciada, em última instância, na rede, a legitimidade do cientista, por sua vez, é essencialmente construída através do reconhecimento pela comunidade, e é essa legitimidade que o habilita a produzir enunciados e a investir na construção de fatos estáveis capazes cie circular na rede.

Assim, a desqualificação que os autores fazem da dimensão cie reconhecimento institucional relativa à posição do cientista na comunidade prejudica, ao nosso ver, a tese mais consistente e original que eles apresentam, que é a de que a construção do conhecimento científico é um processo social cie argumentação persuasiva. Segundo o argumento fundamental dessa tese, o que confere capacidade de convencimento a um enunciado — e, conseqüentemente, a possibilidade de sua transformação em fato — não é, como supõem os epistemólogos, sua racionalidade intrínseca, mas sim a força do cientista em persuadir aqueles aos quais se dirigem tais enunciados. Ora, o que confere ao cientista esse poder de convencimento senão a credibilidade e o reconhecimento estabelecidos pelos pares? Quem confere aos enunciados o estatuto de artefato ou fato senão os outros cientistas que lêem e discutem os artigos nos quais os enunciados são formulados?

Essa crítica não descarta a descrição etnográfica dos processos circunstanciais de interação no laboratório como analiticamente relevante para a análise sociológica da prática científica. Ela chama a atenção para que os aspectos referentes à dimensão institucional dessa prática — e aí as formulações tanto de Merton quanto de Bourdieu se destacam como contribuições necessárias — são fundamentais para aprofundar a própria compreensão desses processos.

Como afirma Mariza Peirano (1995, p. 56), “toda boa etnografia precisa ser tão rica que possa sustentar uma reanálise dos dados iniciais”. Ainda que considerando os limites apontados, estamos convencidos de que Latour e Woolgar desenvolveram uma boa etnografia e através dela efetivamente contribuíram para as discussões que a prática científica apresenta às reflexões no campo das ciências sociais. Dezoito anos depois, A vida de laboratório é um livro a ser ainda muitas vezes revisitado.

Notas

1 Segundo Geertz 1989), os etnólogos não estudam aldeias, mas em aldeias.

2″ Essa foi a razão que os fez suprimir o termo “social” do subtítulo do livro por ocasião cie sua segunda edição.

3 Segundo Bourdieu (1983, p. 127), o capital científico “é uma espécie particular de capital social que assegura um poder sobre os mecanismos constitutivos do campo e que pode ser reconvertido em outras espécies de capital”.

4 Nas palavras de Bourdieu (1983, p. 124), “os julgamentos sobre a capacidade científica de um estudante ou de um pesquisador estão sempre contaminados, no transcurso de sua carreira, pelo conhecimento da posição que ele ocupa nas hierarquias instituídas (as grandes escolas, na França, ou as universidades, por exemplo, nos Estados Unidos)”.

5 Os autores citam um comentário, ao nosso ver bastante elucidativo, cie Schally, concorrente cie Guillemin, em que este se refere à “posição periférica” (palavras cios autores) que ambos assumiam na comunidade científica americana. Segundo Schally: “Guillemin e eu somos imigrantes, obscuros doutorzinhos, precisamos lutar para chegar ao topo” Cp. 119).

Referências

BOURDIEU, Pierre 1983 ‘O campo científico’. Em Renato Ortiz (org.), Pierre Bourdieu: sociologiaSão Paulo, Ática. Coleção Grandes Cientistas Sociais.

GEERTZ, Clifford 1989 A interpretação das culturasRio de Janeiro, Guanabara.

GIERYN, Thomas mai. 1982 ‘Relativism/constructivism programmes in the sociology of science: redundances and retreat’. Em Social studies of science. Beverly Hills/Londres, Sage, vol. 12, nº 2.

LATOUr, Bruno e WOOLGAr, Steve 1986 ‘Postscript to second edition’. Em Laboratory life: the construction of scientific facts. Princeton, Princeton University Press. (Bruno Latour e Steve Woolgar, The social construction of scientific facts1ª ed., Beverly Hills/Londres, Sage, 1979.)

MOLES, Abraham 1981 A. A criação científicaSão Paulo, Perspectiva.

PEIRANO, Mariza 1995 A favor da etnografiaRio de Janeiro, Relume-Dumará.

WOOLGAR, Steve nov. 1982 ‘Laboratory studies: a comment on the state of the art’. Em Social studies of science. Beverly Hills/Londres, Sage, vol. 12, nº 4.


Resenhistas

Simone Petraglia Kropf – Pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz.

Luiz Otávio Ferreira – Doutor em sociologia, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz.


Referências desta Resenha

LATOUR, Bruno; WOOLGA, Steve. A vida de laboratório: a construção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. Resenha de: KROPF, Simone Petraglia; FERREIRA, Luiz Otávio. A prática da ciência: uma etnografia no laboratório. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.4, n.3, nov. 1997.  Acessar publicação original [DR]

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