A vida sportiva de Nichteroy (séc. XIX-1919) | Victor Andrade Melo

Victor Andrade Melo Foto Sergio Settani GiglioLudopedio
Victor Andrade Melo | Foto: Sérgio Settani Giglio/Ludopédio

O presente livro resenhado trata-se de uma contribuição para as discussões acadêmicas sobre a história do esporte nacional. A obra intitulada “A vida sportiva de Nictheroy”, publicada pela Editora Niterói Livros em parceria com a Fundação de Arte de Niterói, foi escrita por Victor Andrade de Melo3, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O livro é organizado em cinco capítulos e tem por objetivo investigar as experiências esportivas estruturadas na antiga capital do estado do Rio de Janeiro – Niterói. Essa localidade é carinhosamente apelidada de “Cidade Sorriso”, por seu acolhimento e hospitalidade, e “Cidade Invicta” por sua atuação na Revolta da Armada (1891-1894).

Há que se destacar que o recorte temporal abordado pelo autor, em especial o século XIX, foi um período emblemático na história do Brasil. Representa uma época singular no que tange a sua formação enquanto estado-nação em um território que passou de colônia para império e, posteriormente, à república. Foi um momento de intensas mudanças no que diz respeito ao desenvolvimento das ideias de modernidade e progresso. Aliás, elementos de ordem progressista são aspectos percorridos pelo autor durante toda obra, ao sinalizar que nesse contexto, o esporte, objeto central de sua investigação, emergia como uma importante prática moderna e modernizadora. Destaca-se, ainda, que para a escrita da presente obra, Victor Andrade de Melo usufruiu de uma estrutura descritiva e materialista da história social, pautada em fontes coletadas de jornais4 referentes ao local e período investigado. Essas empirias foram rotineiramente apresentadas com o suporte de ilustrações e mapas da cidade de Niterói, características que se figuraram na obra como elementos chave, pois facilitam a localização geográfica das dinâmicas e aproximam com riqueza o leitor da vida social, cultural e econômica explorada.

As fontes utilizadas no livro são problematizadas junto a uma série de referências bibliográficas, especialmente de autores que escrevem sobre a história da cidade de Niterói e do Rio de Janeiro. Ganha destaque os escritos dos historiadores Ismênia de Lima Martins, Paulo Knauss (principalmente o livro “Cidade Múltipla”) e do escritor Emmanuel de Macedo Soares, além de uma série de artigos científicos de autoria do próprio autor da obra. É válido destacar que noções abordadas durante o livro, tais como as ideias de progresso, não são muito transparentes, dificultando ao leitor compreender de onde o autor alicerça seu pensamento. Todavia, ao mesmo tempo, pela riqueza descritiva das fontes, essas noções aparentam-se estar centradas numa perspectiva que associa tal conceito a um pensamento de ordem liberal, ligado ao desenvolvimento material da sociedade brasileira e carioca.

Dando abertura ao material, no primeiro capítulo, intitulado “Entre o rural e o urbano” a autoria tem como objetivo explorar as primeiras experiências modernizadoras da cidade, além de abordar a presença e contribuição das atividades esportivas nessa conjuntura. Ao narrar, ainda que brevemente, os primórdios da localidade até sua elevação como cidade, Melo é enfático em observar que uma transição do rural para o urbano se estabelecia, e que foi pari passu com os avanços da infraestrutura urbana que se estruturaram as primeiras iniciativas esportivas da antiga capital do estado do Rio de Janeiro. Nesse sentido, a autoria percebe que boa parte da vida social de Niterói se ancorava em diversas modalidades esportivas que se espalhavam pelo município e litoral.

Com a leitura foi possível compreender que, ainda que a passos lentos, Niterói vivenciava durante a segunda parcela do século XIX um tímido avanço urbano. Estava se iniciando a instalação de luz elétrica, pavimentação e saneamento. O esporte seria, na percepção do autor, mais um destes elementos citadinos que aportavam na cidade. Contudo, as práticas esportivas que se destacavam nesse primeiro momento de conformação do campo esportivo – e assim abordadas primeiramente por Melo – eram as ligados ao meio rural, especialmente aquela que seria o primeiro esporte a se difundir no país: o turfe. As touradas, corridas com pombos e brigas de galos também foram fomentadas por um embrionário mercado de entretenimento, isso acompanhado do crescimento da cidade e população – elementos esses que a autoria faz questão de ressaltar como fundamentais para a sustentação e manutenção dessas iniciativas recreativas. Ao que parece, em Niterói, assim como usualmente5 é apontado em pesquisas sobre história do esporte brasileira que exploraram suas relações com a história das cidades, o processo de adesão à essas práticas se deram justamente por estarem interligadas às ideias de progresso e civilização.

Por fim, o pesquisador finaliza o referido capítulo advertindo que antes mesmo início do século XX as práticas com animais eram contestadas pelo seu caráter bárbaro (sobretudo, as touradas e brigas de galos) e viviam seus últimos momentos. De todo modo, foram importantes marcas de um processo de transição rural para uma experiência eminentemente urbana na cidade investigada, servindo inclusive para indicar certos limiares de tolerância à violência. Contudo, foram as dinâmicas esportivas de caráter físico que melhor se estruturaram em Niterói, principalmente aquelas que ocorriam no mar, assunto palco do segundo capítulo da obra.

O capitulo dois, “O mar em festa”, 6 busca problematizar as experiências esportivas marítimas desenvolvidas em Niterói durante a transição do século XIX para o XX e como essas práticas são bons indicadores das tensões da sociedade niteroiense. As “experiências guanabarinas” são centrais nessa discussão, sendo um termo aparentemente formulado por ele próprio para abordar as dinâmicas comuns que os esportes aquáticos possibilitavam entre a capital federal e a capital estadual do Rio de Janeiro, essas geograficamente impulsionadas pela Baía de Guanabara.

Os principais esportes tratados foram o remo, iatismo, natação e o polo aquático. De fato, o mar era e ainda é uma ligação entre as cidades que se desenvolveram nesse mesmo cenário, ainda que com tempos e graus distintos. Os esportistas e clubes náuticos que emergiam especializados em suas práticas também forjaram conexões históricas entre as urbes. Em ambas localidades os protagonistas eram ligados a uma burguesia urbana ascendente, basicamente constituída de profissionais liberais, negociantes liberais, funcionários públicos civis e militares de alta patente. Para Victor Andrade de Melo, as provas esportivas e suas disputas gestada nas idas e vindas, nos encontros e desencontros que tinham a Baía de Guanabara como elo, dramatizavam, por meio das relações competitivas, movimentos de identidade e alteridade, disputas, distanciamentos e aproximações das capitais, principalmente no que tange a exigir do poder público7 melhorias dos espaços e transportes para os locais dos espetáculos competitivos.

Durante a Revolta da Armada, os eventos esportivos cessaram. Entretanto, após a contenda, as dinâmicas, por serem consideradas como indício de que a cidade progrediria, ganharam entonação em discursos rotineiramente estampados nas fontes jornalísticas locais, que vinculavam as práticas com os novos tempos e como úteis contribuintes para a retomada da dinâmica social de Niterói à condição de capital do estado do Rio de Janeiro. Melo evidencia que os esportes se vinculavam às ideias de que sua prática poderia ajudar no processo de renovação urbana e, através das façanhas físicas dos competidores, se demonstrava o valor e a pujança da Cidade Invicta. As atividades esportivas, ainda, se faziam presentes em discursos de caráter médico e higiênico que as observavam com bons olhos, além de serem frequentemente compostas por sensações como as de velocidade e vertigem – agregando-as valor de ineditismo nesse período. Ademais, o enaltecimento do físico e suas façanhas podem ser notadas nesse capítulo, e ainda melhor percebidas no terceiro capítulo descrito a seguir.

Em “Cada vez mais veloz” o autor explora a história das dinâmicas esportivas niteroiense que se forjaram ligadas às noções de velocidade, notadamente sobre atletismo, ciclismo, automobilismo e patinação. Melo é enfático ao afirmar que durante os anos iniciais do século XX, em Niterói, uma valorização das práticas atléticas era sentida mesmo em âmbitos não esportivos, como no circo, onde artistas exibiam suas proezas e forma física para delírio do público. Com fontes jornalísticas, assim como em todos os capítulos, o autor demonstra que os esportes iam muito além da finalidade de combater o marasmo, o reconhecimento das façanhas atléticas, e seus contributos para a “educação física” da população. Nos jornais, eram encarados paulatinamente como uma necessidade urbana, frequentemente relacionadas com preocupações de higiene, saúde8 e fortalecimento corporal – preocupações que estavam em voga nesse início de século no Brasil.

As noções de velocidade que progressivamente foram se instaurando em função das mudanças das dinâmicas sociais, induzidas, inclusive, pelo avanço tecnológico, são um aspecto que o autor é cuidadoso em considerar ao abordar esse período. Outra característica que o pesquisador é zeloso ao tratar, é sobre o aparecimento da presença feminina na vida pública por meio das atividades esportivas, sobretudo através dos passeios e corridas de bicicletas. Nesse capítulo, nessa esteira, o autor elucida que com as novas dinâmicas físicas, com a presença das máquinas, dramatizaram-se cada vez mais o apreço pela velocidade na cidade. Nos é evidenciado, dessa maneira, que o esporte caia cada vez mais nas graças da população da época, e com a chegada do futebol – a modalidade que mais se difundiu pela cidade – a materialização de um campo esportivo era definitiva, aspectos que o autor busca abordar no próximo capítulo.

No quarto capítulo, “O esporte se consolida: o futebol”, Melo dedica-se a explorar os primórdios das experiências do esporte bretão em Niterói. Ao narrar sobre os aspectos da estruturação da prática, o autor localiza o leitor sobre quais foram os primeiros praticantes e clubes da cidade, constituídos inicialmente por sujeitos de origem inglesa. Destaca-se que essa conjuntura histórica se deu durante a transição do século, na última década do século XIX9 e, principalmente, nos primeiros anos do século XX. O ápice do capítulo é a visão de que com o futebol a conformação do campo esportivo de Niterói estaria completa, visão sustentada pela formação e presença de ligas esportivas, campeonatos mais bem estruturados, processos de treinamento e uma mobilização maior da população como espectadora e praticante – inclusive de estratos sociais menos abastados, como o caso dos operários, um grupo que apresentou fortes ligações com o ludopédio na cidade.

Dessa forma, Melo apresenta que o público, que já demonstrava gosto pelas práticas esportivas, conforme retratado nos capítulos anteriores, de vez estava envolto pelos esportes, e no caso do futebol, o fato de ser uma modalidade de caráter coletivo, mobilizava um novo conjunto de emoções, além de ser ainda mais fácil de acompanhar e praticar. O ludopédio se espalharia de maneira mais intensa por diversos locais e classes sociais da cidade, simbolizava, inclusive, uma expressão da nova conformação urbana com a instalação das fábricas na região, que vinha se materializando cada vez mais intensamente.

Há que se mencionar que o quarto capítulo acima, soa como um início de desfecho, algo que é realizado no quinto e último capítulo. Em “Outras práticas na cidade em mudança”, a autoria aborda brevemente três modalidades com características esportivas que dialogaram com diferentes sentidos e significados em construção na cidade de Niterói. Foram elas: o jogo da pelota – uma atividade que bem expressava a tensão entre o que parecia e que se desejava como sinal de progresso, pois fomentava uma série de debates em torno de ideias do seu possível benefício para a modernização e de desenvolvimento material da sociedade niteroiense10 –, a esgrima e o tiro, duas atividades que o autor demarca que eram mais claramente mobilizados como projetos educacionais11 ou de defesa da nação, do que necessariamente atividades competitivas em si.

Em síntese, mesmo que de forma mais tímida, essas iniciativas são consideradas pelo pesquisador como elementos da conformação do processo de consolidação esportiva e do mercado de entretenimento de Niterói. Consideramos que, pelo fato dessas atividades se somarem ao universo de outras que nasciam, se desenvolviam, gestavam estruturas, atraíam público e promoviam debates, o autor é assertivo ao trazê-las aos holofotes historiográficos, afinal, ainda que de maneira menos intensa, são representações das experiências com o esporte conectadas à realidade investigada e que merecem, portanto, serem descortinadas.

A título de considerações finais sobre o livro resenhado, observa-se que a leitura dessa obra convida os leitores a pensar, de maneira criteriosa e aprofundada, acerca da formação do campo esportivo de outros locais. Nesse sentido, a obra incentiva o fomento de estudos sobre os primórdios das experiências com o esporte em variadas localidades. Esse estímulo advém pelo fato de a obra ser carregada de peculiaridades do contexto explorado, o que facilita a realização de futuros trabalhos com características mais regionalizadas, tornando-se, desse modo, leitura obrigatória para os pesquisadores da História do Esporte.

Por fim, é necessário salientar que, apesar dos diversificados jornais utilizados, outras fontes usuais12 poderiam ter sido utilizadas na produção acadêmica sobre a história do esporte na cidade investigada – enriquecendo ainda mais o detalhamento das experiências esportivas. Todavia, considera-se que tais apontamentos não diminuem a potência investigativa que o livro apresenta, o qual cumpriu com o objetivo de investigar as experiências com o esporte que foram estruturadas na Cidade Sorriso.

Notas

3 Nessa instituição o autor atua no Programa de Pós-Graduação em História Comparada e no Programa de Pós-Graduação em Educação. Além disso, Melo é professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos do Lazer da Universidade Federal de Minas Gerais e coordena o Sport: Laboratório de História do Esporte e do Lazer.

4 Os principais jornais utilizados pelo autor foram os periódicos O Fluminense e A Pátria de Niterói, além de diversos folhetins da cidade do Rio de Janeiro: Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, Gazeta de Notícias, Gazeta da Tarde, Diário de Notícias, O Paiz, The Rio News, The Brazilian Review e a Vida Fluminense.

5 O estudo de Capraro (2002) sobre as experiências esportivas de Curitiba, Rocha Junior (2011) na Bahia, Karls (2017) em Porto Alegre e Santos (2017) a respeito da capital paulista são exemplos de trabalhos que exploram tal perspectiva em outras cidades.

6 Uma parcela desse capítulo foi publicada na Revista Tempo. Aos interessados sugerimos acessar: https://doi.org/10.1590/TEM-1980-542X2019v260103

7 Em 1898, de acordo com o autor, uma chapa de vereadores de Niterói chegou a anunciar que pretendia modernizar a cidade à moda europeia, uma das iniciativas do programa estava relacionada à implementação de modalidades esportivas, que seriam ricas possibilidades de acabar com o marasmo. O jogo da pelota, turfe, remo, ciclismo e corridas a pé, além de outras ligadas a outros campos do entretenimento como a dança, teatro e carnaval faziam parte do leque de atrações.

8 Para maiores informações sobre as relações históricas entre esporte, higiene e saúde, ler Dalben (2009).

9 Segundo Soares (1994), em Niterói a primeira partida de futebol foi jogada em 1892, no Largo da Memória (atual Praça do Rink), disputada por ingleses.

10 De acordo com o autor, a ligação do jogo com a higiene e saúde foram alguns dos caminhos percorridos para construir um novo entendimento sobre as práticas de atividade física, isto é, como algo útil em Niterói.

11 A modalidade das espadas, sabres e floretes, por exemplo, foi pioneiramente oferecida em escolas cariocas.

12 O estudo de Moraes, Gomes, Marchi Junior (2021) ao analisar a produção cientifica publicada na Revista Recorde, identifica que além dos jornais, decretos, leis e estatutos são fontes corriqueiras na produção dessa área.

Referências

CAPRARO, André Mendes. Football, uma prática elitista e civilizadora: investigando o ambiente social e esportivo paranaense do início do século XX. 2002. 159 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Paraná, Paraná.

DALBEN, André. Educação do corpo e vida ao ar livre: natureza e educação física em São Paulo (1930-1945). 2009. Dissertação (Mestrado em Educação Física) – Universidade Estadual de Campinas, São Paulo.

KARLS, Cleber Eduardo. Modernidades sortidas: o esporte oitocentista em Porto Alegre e no Rio de Janeiro. 2017. 187 f. Tese (Doutorado em História Comparada)-Universidade Federal Do Rio De Janeiro, Rio de Janeiro.

MELO, Victor Andrade de. A vida sportiva de Nichteroy (séc. XIX-1919). Niterói Livros/Fundação de Arte de Niterói. Rio de Janeiro: Niterói, 296 p.

MORAES, Letícia Cristina Lima; GOMES, Leonardo do Couto; MARCHI JÚNIOR, Wanderley. Recorde: Revista de História do Esporte–An Overview of Its Publications (2008–2020). The International Journal of the History of Sport, p. 1-16, 2021.

ROCHA JUNIOR, Coriolano Pereira da. Esporte e modernidade: uma análise comparada da experiência esportiva no Rio de Janeiro e na Bahia nos anos finais do século XIX e iniciais do século XX. 2011. Tese (Doutorado em História Comparada), Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

SANTOS, Flávia da Cruz. Uma história do conceito de divertimento na São Paulo do século XIX (1828-1889). 2017. Tese (Doutorado em Estudos do Lazer), Universidade Federal de Minas Gerais, Minas Gerais.

SOARES, Emmanuel de Macedo. Notas. In: BACKHEUSER, Everardo. Minha terra e minha vida (Niterói há um século). Niterói: Niterói Livros, 1994.


Resenhistas

Letícia Cristina Lima Moraes – Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected]

Leonardo do Couto Gomes – Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

MELO, Victor Andrade de. A vida sportiva de Nichteroy (séc. XIX-1919). Rio de Janeiro: Niterói Livros; Fundação de Arte de Niteró, 2020. Resenha de: MORAES, Letícia Cristina Lima; GOMES, Leonardo do Couto. A cidade sorriso – uma história da experiência esportiva de Niterói (século XIX-1919). Recorde: Revista de História do Esporte. Rio de Janeiro, v.15, n.1, jan./jun. 2022. Acessar publicação original [DR]

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