Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil | Beatriz Mamigonian

A historiografia brasileira vem há décadas tendo a escravidão e o tráfico como um dos seus principais temas. Novas interpretações e análises surgiram nos últimos anos para demonstrar que ainda se trata de um tema muito atual para a escrita da história nacional. Entre as novas reflexões desenvolvidas nos últimos anos, está a obra Africanos Livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil, da historiadora Beatriz Mamigonian, publicado em 2017 pela Editora Companhia das Letras.

O livro se divide em introdução, epílogo e mais dez capítulos. Como o próprio prefácio, escrito brilhantemente por João José Reis, “este é um livro há muito esperado”. A historiadora amplia uma pesquisa, originalmente desenvolvida no doutorado, através da inserção de novas fontes e análises. Sua linha de raciocínio se debruça nas questões dos escravizados ilegalmente. Vale constar que a historiadora, ao longo da obra, mostra o papel dos sujeitos históricos, no caso aqui os africanos livres, dentro das dinâmicas políticas, sociais, culturais e jurídicas do Brasil oitocentista.

João José Reis, no prefácio, assinalou que o tráfico e a escravidão foram os pilares de formação do Brasil. Através dessa afirmação, o leitor percebe alguns eixos em que os capítulos seguintes da obra se desenvolveram: os problemas jurídicos da aplicabilidade da Lei de 1831; a abordagem sobre o trabalho livre e a escravidão no Brasil; as disputas pela abolição do tráfico de escravos no país; e, por fim, os embates sociais, políticos e jurídicos que permitiram o fim da escravidão.

Ao longo dos capítulos, a autora nos apresentou alguns casos e trajetórias de africanos livres desde começo de oitocentos. A categoria de africanos livres foi criada devido às primeiras leis e tratados de XIX que condenavam o tráfico de escravos e buscavam combater a escravidão. Dessa forma, a obra Africanos Livres buscou ser uma narrativa das ilegalidades das práticas do tráfico de escravos desenvolvida no Brasil e busca demonstrar a ação ativa dos africanos livres em busca de sua liberdade.

Ao nos apresentar situações de reivindicações da luta pela liberdade dos africanos livres, dando nomes e especificando os casos, Beatriz Mamigonian trouxe a luz para as trajetórias de vidas que foram silenciadas ao longo de décadas na nossa historiografia. Assim, percebemos as disputas pela memória e o silenciamento que perpassam a pesquisa.

Na introdução, a autora elenca que os africanos possuíam lugar e hierarquia dentro da sociedade colonial. É frisado que o alvará de 1818 tratou os africanos emancipados dentro das questões jurídicas lusitanas. Mas com a independência do Brasil isso se alterou: a constituição de 1824 não permitia cidadania brasileira aos africanos libertos e, nessas primeiras décadas, não havia autoridades diplomáticas para defende-los, o que apenas será alterado com a lei de 7 de novembro de 1831.

Ainda nessa parte, a autora faz uma ressalva aos historiadores que buscam compreender a formação histórica do Brasil no século XIX que não podem desconsiderar em suas análises a “extensão e a gravidade da ilegalidade associada ao tráfico de escravos” na trajetória nacional dessa época.

No primeiro capítulo, Emancipação na chegada, é-nos relatado o conhecido caso do navio Emília apreendido com africanos, além da visão que as pessoas faziam sobre Serra Leoa, considerada a província da liberdade por receber ex-escravos de outras partes da América. Percebemos, nesse e no seguinte capítulo, que o contexto de fundo foi o período da independência e o Primeiro Reinado. Como sombra desse contexto, foi analisado o projeto antiescravista defendido por José Bonifácio na Assembleia Constituinte pós-independência, os tratados de reconhecimento do Brasil como nação soberana com a Grã-Bretanha e Lei de 1831.

Um dado extremamente importante é que, no Brasil de 1823, 29% da população era composta sujeitos em condição escrava. Dessa forma, notamos o número avantajado de escravos que nas primeiras décadas da jovem nação e que se mantiveram constantes ao longo de oitocentos.

No segundo capítulo, Impasses da nova nação, a autora chama atenção sobre a lei de 1831, pois na própria historiografia ela é considerada como uma “lei para inglês ver”, mas a pesquisadora mostrou que em seus primeiros anos houve de fato aplicabilidade, caindo em desuso a partir da segunda metade da década de 1830 pela influência de cafeicultores.

Logo nas primeiras linhas desse capítulo, é apresentado ao leitor o caso de Lázaro Mina, que foi preso sob suspeita de escravo foragido, sendo consequentemente reescravizado. Vale assinalar, nessa parte, que os construtores da nação projetavam o futuro do Brasil sem a escravidão no pós-independência. Mas isso foi um processo nada fácil e que pendurou ao longo do século XIX. Inclusive, é mencionado que alguns da assembleia discutiam a importância de esclarecer a população sobre o fim do tráfico de escravos.

No terceiro capítulo, Africanos livres e a política conservadora, conhecemos os casos dos africanos livres, Caetano, Helena e Damião de Benguela, em busca da tão sonhada liberdade. O início das tensões existentes entre Brasil e Grã-Bretanha começam a ganhar destaque, mostrando que foram desencadeados devido ao tráfico. Beatriz Mamigonian argumenta que tal busca pela emancipação teria contribuído para a intensificação da crise entre ambos os países. De acordo com a autora, os africanos livres, ao acessarem a embaixada britânica, judiciário ou associações abolicionistas, conseguiam constranger as autoridades brasileiras de forma ampla. Além disso, o fato de que o contato existente entre africanos livres e escravos possibilitava estimular a resistência contra práticas escravagista e contrabando.

Ao longo dessa parte, percebemos que, de forma gradual, o Ministério da Justiça começou a centralizar as informações existentes africanos livres no país. Diversos deles entraram com ações civis em busca de suas liberdades, mas, como as instituições governamentais estavam aliadas com os interesses de comerciantes e proprietários de escravos, dificilmente estes últimos seriam processados ou lesados por escravizarem.

O quarto capítulo, O tempo do trabalho compulsório, salienta a variedade de condições de vida e de trabalho às quais os africanos livres foram submetidos. A maioria dos concessionários que ganharam o direito de exploração do africano livre os submetiam aos maus tratos e ignoravam o tempo de concessão. Dessa forma, em pouco se diferiam o africano livre do escravo.

Outros casos e situações de africanos livres nos são exibidos como, por exemplo, o de Eugênia de Benguela ou de Dionísia de Angola, impostas ao trabalho doméstico por mais de dezesseis anos. Ambas precisaram comprovar que poderiam viver por si mesmas. Certos casos chamam a atenção do leitor, pois se nota que alguns concessionários embaralhavam as identidades e nomes de africanos livres para acobertar uma escravização ilegal e até mesmo processos de reescravização.

Nesse capítulo, distingue-se a legislação aplicada na década de 1830 para os africanos livres daquela submetida aos trabalhadores livres. Não havia uma clareza sobre a condição de africano livre e de escravizado. De modo geral, a administração dos africanos livres demonstrava que o Estado Imperial Brasileiro buscou utilizá-los de forma compulsória nas instituições públicas e ajudava a promover um esquema de exploração forçada dessas pessoas para interesses particulares.

O capítulo seguinte, O contraponto britânico, descreve o caso de Serafina, de 1843, que buscou ajuda do consulado britânico para conseguir proteção devido à sua liberdade. O governo britânico preocupava-se, nos anos de 1820 e 1830, com africanos resgatados do tráfico e administrados pela Comissão Mista existente no Rio de Janeiro. Funcionários britânicos acompanhavam de perto a situação brasileira e interferiram no tratamento dos africanos livres. Em um primeiro momento, devido às dificuldades da Comissão Mista do Rio de Janeiro em garantir a liberdade dos africanos livres, os funcionários britânicos do Foreign Office queriam passar para si próprios as responsabilidades sobre tais pessoas, entretanto, posteriormente houve desistência dessa proposta.

Os próprios britânicos começaram a suprir a falta de mão de obra em suas colônias pós-abolição com os africanos resgatados do tráfico, atitude que começou a ser condenada pela comunidade internacional. Os representantes britânicos acreditavam que colocar esses africanos no trabalho compulsório seria um período de transição em busca de suas liberdades, lição essa que queria ser passada ao governo brasileiro. Assim, após esse período de transição, os africanos poderiam gozar de uma cidadania plena, fato que nunca aconteceu.

Altos funcionários contemporâneos defendiam que a solução para essas pessoas era retorná-los à África, buscando, através da luta contra o tráfico de escravos, inserir a África em um projeto mais amplo de civilidade. Essa proposta era baseada nas experiências dos exescravos que foram emancipados para a região de Serra Leoa. Percebe-se, nesse capítulo, a germinação de discursos civilizatórios que seriam utilizados nas décadas finais de oitocentos como justificativa para a colonização (imperialismo) em África.

No sexto capítulo, a autora defende que a pressão inglesa e a abolição do tráfico decorreram da existência de pessoas articuladas nas mais diferentes esferas (jurídicas, institucionais, sociais e internacionais), sujeitos contrários ao tráfico que prevalecia no Brasil.

Ao iniciar essa unidade, Beatriz menciona o periódico O philantropo, que existiu entre os anos de 1849 a 1852, de publicações responsáveis por combater a escravidão, condenar o tráfico ilegal e denunciar as conivências das autoridades brasileiras a essa instituição, indicando meio para a possibilidade de extinção dessa forma de trabalho compulsório. Outro dado importante foi a existência da possibilidade de uma revolta escrava em 1848, descoberta por um juiz de Lorena. Essa possível revolta mostrava uma articulação existente entre escravos de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. A autora articula a possibilidade dessa revolta ter influenciado para a promulgação da Lei Eusébio de Queiroz em 1850.

Ao final do capítulo, percebemos a existência de uma articulação que ligaria O philantropo, o governo britânico e políticos do Partido Liberal. Essas considerações da autora permitem ao público leitor notar a existência de uma rede de articulação de combate a escravidão e o tráfico ilegal no Brasil.

No capítulo seguinte, A lei Eusébio de Queiroz e os africanos livres, começou a partir das repercussões dos primeiros meses da existência dessa nova legislação que permitiu que milhares de africanos fossem emancipados em pouco tempo. Nessa parte, temos contato com o caso de Maria Rebola que exemplifica mais uma vez a participação ativa de africanos livres em busca de sua liberdade após o período de trabalho compulsório que eram submetidos pelas autoridades brasileiras.

Chama a atenção a utilização do posicionamento de importantes intelectuais que estavam analisando a formação histórica do Brasil: Von Martius e Varnhagen. Vale frisar que em seus posicionamentos os escritores eram favoráveis a uma abolição gradual da escravatura e enxergavam seus malefícios para a construção da nação.

No oitavo capítulo, Emancipação da tutela, Mamigonian demonstrou como os concessionários e protetores dos africanos tinham influência na tramitação de processos pedindo a emancipação dessas pessoas. Dessa forma, podemos perceber a existências de grupos que dificultavam os africanos livres alcançarem as suas liberdades.

Mamigonian apresentou que após anos no Brasil, os africanos livres buscaram seguir suas vidas formando laços familiares, tendo filhos e com a própria adoção de novos nomes dentro dos limites da legislação imposta até meados de oitocentos.

Em seu penúltimo capítulo, A questão Christie e a ‘questão dos africanos livres’, foi interligado a emancipação dos africanos livres da década de 1860 devido a pressão exercida pelo ministro britânico Christie que se articulou com políticos liberais do governo imperial.

Foi apresentada a famosa questão Christie, o bloqueio de portos do Rio de Janeiro por forças britânicas como forma de combater o tráfico ilegal que ainda se pendurava. Essa situação fez com que o governo brasileiro se rompe relações diplomáticas com a Grã-Bretanha e buscou reparações de perdas econômicas sofridas com o bloqueio naval, mas sem sucesso.

Após o decreto de 1864, o Ministério da Justiça fez relatórios sobre a existência dos africanos livres no país. Foram identificados, no período de 1864 a 1869, o destino de onze mil pessoas que foram emancipados desde 1821. A partir desse levantamento, a autora assinala que o Governo buscou utilizar o maior número de africanos livres nas instituições públicas e dificultou a emancipação dessa camada populacional.

Em finais da década de 1860, diversos juristas começaram a questionar a legalidade da escravidão, instituição que era sólida no Brasil Imperial. Ao final desse capítulo, a historiadora demonstrou a atuação de Luiz Gama na sociedade imperial em busca da emancipação de africanos livres e escravos.

No capítulo final, Registros de escravidão e da liberdade, a autora analisa os impactos das reivindicações de liberdade dos africanos livres para o restante de pessoas escravizadas na sociedade brasileira. Foi apresentado algumas formas de resistências dos próprios escravos para conseguir sua liberdade como, por exemplo, a aprendizagem de línguas africanas para passarem como africanos livres.

O direito à liberdade, que foi intensificado após situações como a Lei Eusébio de Queiroz, a questão Christie e aceleração da emancipação dos africanos livres entre os anos de 1863- 1864, possibilitou que os escravizados tivessem um horizonte de expectativa em conseguir suas próprias libertações. Dessa forma, buscaram ampliar o sentido e significado de africano livres na sociedade imperial.

Entre os principais abolicionistas que irão se destacar nas décadas de 1870 e 1880 estão José do Patrocínio, Luiz Gama, André Rebouças e Joaquim Nabuco que denunciaram as mazelas e consequências da escravidão na sociedade brasileira. Vale frisar que, enquanto o Parlamento brasileiro tornava-se conservador em questões sociais, as ruas eram tomadas pela causa abolicionista.

Ao final do capítulo, as disputas pela memória e esquecimento voltam a assinalar e trazer suas marcas como fizeram em capítulos anteriores. O episódio da incineração de documentos sobre a escravidão, após dois anos dela ser decretada extinta, a mando do ministro Rui Barbosa aparece. Rui Barbosa assinalava que aquela atitude era um “ato humanitário” para o ex-escravos, mas sabemos que essa atitude buscou deletar a memória da escravidão existente no país.

No Epílogo: o baobá de Papary, a memória e a história da abolição do tráfico, Beatriz Mamigonian toma a palavra para pontuar que o livro teve como objetivo desafiar a historiografia da abolição do tráfico das décadas de 1850 e 1860 que ainda hoje se pendura na memória nacional. Percebe-se que a historiadora buscou uma leitura alternativa valorizando os conflitos e os atores sociais anteriormente desprezados na historiografia brasileira.

Nota-se uma obra com um grande arcabouço analítico, apropriação de novas fontes e releituras de documentação já muito conhecida na historiografia do tráfico de escravos. Essas qualidades existentes no livro permitem o leitor perceber que a escravidão e o tráfico são temas muitos atuais e necessários de estudos na sociedade brasileira.

Ao refutar a memória oficial brasileira a respeito do tráfico de escravos e da própria escravidão na sociedade oitocentista, Mamigonian resgatou os marginalizados sociais de XIX e mostrou como protagonistas na construção de suas próprias liberdades. O livro carrega e denúncia as marcas de um esquecimento seletivo em nossa memória nacional.

Em Africanos Livres, como uma importante intelectual brasileira, Beatriz Mamigonian, demonstrou a existência de paralelos da situação da sociedade atual com os acontecimentos de oitocentos. Seus leitores são convidados a repensar sobre os tempos sombrios que assolam a nação, como as destruições de direitos e garantias civis.


Resenhista

Thiago Henrique Sampaio – Universidade Estadual Paulista. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

MAMIGONIAN, Beatriz. Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. Resenha de: SAMPAIO, Thiago Henrique. A luta de africanos livres pela emancipação. Cadernos de História. Belo Horizonte, v. 22, n. 36, p. 206-212, 2021. Acessar publicação original [DR]

 

 

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