Alguma coisa aconteceu comigo: a experiência soropositiva nas obras de Caio Fernando Abreu e Hervé Guibert/1988-1996 | Eliza da Silva Vianna

A obra publicada pela historiadora Eliza da Silva Vianna, Alguma coisa aconteceu comigo: a experiência soropositiva nas obras de Caio Fernando Abreu e Hervé Guibert, 1988-1996, é um dos estudos mais sensíveis sobre a história da Aids em nosso país. Envolvendo o melhor da produção historiográfica e antropológica, sua aposta metodológica correta e certeira procurou se aproximar de um período ímpar da epidemia, quando desconhecimento e incerteza se misturavam a preconceitos e culpabilizações – da “peste gay” ao grupo de risco – colocando seus protagonistas, mesmo em lugares distantes como Brasil e França, diante de uma onda que parecia engolir toda uma geração. Para isso, Eliza recorre a determinadas obras de cada autor: de Guibert (1955-1991), os livros, Para o amigo que não me salvou a vida, de 1990, Protocolo da compaixão e O homem do chapéu vermelho, publicados postumamente. De Abreu (1948-1996), cartas, crônicas e o conto “Depois de agosto”, publicado em Ovelhas negras, de 1995.

Com maestria, a autora se ancora num rico e renovado debate, triangulando hipóteses, documentação e bibliografia, sem arredar do eixo de seus objetivos, ou seja, fazer falarem esses dois mundos, que ora se afastam, ora se cruzam pela experiência do adoecimento. Por meio de escritos, impressões pessoais, remissivas e pela poesia da palavra, passamos pelos dias difíceis do debate médico-científico em torno da identificação do vírus, do embate farmacêutico, do controle e da repressão da sexualidade homossexual, do medo e da representação do adoecimento e dos sintomas clínicos, bem como da chegada da morte, sem esquecer da morte social, tão dramática e boa tradutora de uma sociedade mais doente que as próprias vítimas da Aids.

Aprendemos nessa leitura de duas vidas que no universo do adoecimento rompe-se a concepção de uma permanência histórica do vivido; uma ruptura evidente faz surgir a singularidade, remetendo à primeira ameaça da experiência humana, quando o corpo luta por ser ainda um significado no jogo social, no esforço de não cair no cadafalso de seu apagamento paulatino. O corpo doente é o corpo que cobra e é cobrado. E justamente suas formas não silenciadas e refletidas pelo sofrimento têm sua historicidade num tempo nem sempre compreendido, acusado pelo desequilíbrio dos “modos de andar a vida” e pela disfunção de um regramento preestabelecido. Seu sofrimento é quase uma punição para aquele que o carrega, e aqueles que presenciarão a sua rebeldia mundana diante do asséptico, do controlado e do normal que devem reger a experiência de todos. Assim, no caso específico da AIDS, entrelaçam- -se os espaços de existência da doença, que só é tolerada longe do olhar social – o doente deve ser escondido, mas já transfigurado pelo codinome de “aidético”.

Eliza Vianna constrói com destreza o que sua prefaciadora definiu como brilhante, ou seja, o contexto daqueles primeiros anos epidêmicos. A sensação do leitor é de uma proximidade espantosa com o vivido, capaz de provocar sentimentos dos mais variados, não só pela exatidão interpretativa ou pelos excertos escolhidos dos autores, mas por acertar em cheio nos temas centrais que se discutiam à época, nas notícias que se veiculavam e nas imagens que permaneceram, caso de Cazuza na capa da revista Veja em 1989, ainda hoje tatuado em nossa memória.

Abreu e Guibert são os guias dessa trajetória, como Virgílio guiou Dante por entre seus personagens e afetos, passando pelas fases que a doença imprimia a sua vida privada e coletiva, intercalando dor e luta, ora calmos, ora sufocados, numa minuciosa descrição do mundo interior e exterior. Contam a tentativa de controlar a doença por meio da palavra escrita, como se dela nascesse a força para enfrentar o difícil cotidiano, mesmo que assistindo a vida escorrer por entre os dedos.

Há ainda um último aspecto a destacar nesse belíssimo estudo: o do leitor e do corte geracional. Os mais jovens conhecerão um tempo não vivido com a força de um aprendizado que a história das doenças e epidemias pode trazer, fazendo pensar sobre os dias atuais e suas próprias mazelas epidêmicas como as da Covid-19. Aos mais velhos, a obra remete à sensação de que, na plácida montanha esculpida por pedras, árvores e flores, fruto de uma espécie de trauma a ser esquecido, um vulcão da memória explode em lavas incandescentes, sem dia ou hora para silenciar. Para estes, a leitura da obra não é fácil, pois remete, mais uma vez, aos amigos, amigas e amores que se foram naqueles tristes anos de intermináveis dias.


Resenhista

André Mota – Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]  https://orcid.org/0000-0002-5697-8628


Referências desta Resenha

VIANNA, Eliza da Silva. Alguma coisa aconteceu comigo: a experiência soropositiva nas obras de Caio Fernando Abreu e Hervé Guibert, 1988-1996. Salvador: Diálogos, 2022. Resenha de: MOTA, André. Revista Brasileira de História da Ciência, v. 15, n. 2, p.648- 649, jul./dez. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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