Alimentação: História, Cultura e Patrimônio | Revista Latino-Americana de História | 2019

Na chamada de artigos que publicamos e divulgamos para este dossiê, havíamos afirmado que “é notável que as discussões em torno dos hábitos e das culturas alimentares têm ganhado cada vez mais espaço na sociedade e na academia”. Podemos considerar o grande número de produções de pesquisadoras e pesquisadores [3] que recebemos para compor este número da Revista Latino-Americana de História um acontecimento que ajuda a comprovar aquela sentença. Hoje, no Brasil, os estudos sobre alimentação estão em vias de consolidação, sendo a perspectiva interdisciplinar um dos seus principais trunfos. Há poucos dias do lançamento desta publicação, experienciamos um evento ocorrido na Universidade de São Paulo que demonstrava justamente isso. O II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação [4] reuniu mais de uma centena de historiadores, sociólogos, antropólogos, museólogos, nutricionistas, gastrólogos, economistas – além de cozinheiros, produtores rurais e ativistas sociais –, compartilhando diferentes mesas, discussões e grupos de trabalho.

Por mais que tenhamos um caminho já trilhado por acadêmicas e acadêmicos que se debruçam sobre a história e a cultura da alimentação desde a década de 1990 [5], há uma nova geração de estudiosos que acabou por ampliar não só o número de projetos de pesquisas em programas de pós-graduação, mas as possibilidades de investigação em termos de objetos, perguntas e metodologias. Pode-se conjecturar que a procura pela temática da alimentação e o alargamento das perspectivas possíveis para abordá-la na academia sejam possíveis e estejam orientando-se pelas próprias demandas e reflexões da sociedade contemporânea.

Uma série de questões referentes à comida e ao ato de alimentar-se se apresenta como fundamental no tempo presente, sobretudo nas sociedades ocidentais e ocidentalizadas. Por um lado, ocorre a popularização da gastronomia e do discurso gastronômico, com a proliferação de cursos técnicos e superiores na área, o sucesso dos programas de televisão e das séries em serviços de streaming que abordam a cozinha especializada e a destacada posição que cheffes e chefs conquistaram na mídia, no mundo editorial e no debate público. Disto decorre, em alguma medida, a “gastronomização” da alimentação, a qual acaba por criar uma nova relação entre a comida e o comedor-consumidor que, além de estetizada (BARBOSA, 2009), é mediada e expressa pelo marketing, pela publicidade (DÓRIA, 2015) e, agora, também por influenciadores digitais.

De outra parte, as mudanças nas formas de produzir, distribuir e consumir alimentos ocorridas, especialmente, a partir da segunda metade do século XX, acabaram por criar sentimentos de apreensão e culpa à mesa, muitas vezes causadas por aquilo que Claude Fischler chamou de gastro-anomia [6]. O que ocorre é paradoxal: ainda que haja diversos benefícios na alimentação contemporânea – abundância, preço, segurança e qualidade nutricional, por exemplo –, dela se originam inúmeros problemas, tais como “excessos e carências, medo de contaminação e sentimentos de alienação e perda da ‘competência alimentar’” (CARNEIRO, 2010, p. 10 ). Assim, ao tempo em que temos acesso, nos restaurantes de nossas cidades e nas prateleiras dos supermercados, a culinárias de várias partes do mundo ou a novos alimentos criados em laboratórios de gastronomia ou engenharia, vamos desaprendendo a preparar a nossa comida e a reconhecê-la em suas qualidades, especialmente gustativas, e em seus referentes territoriais, culturais, conviviais e identitários (POLLAN, 2014; WILSON, 2019).

O sentimento de ameaça da perda e do desaparecimento de determinados hábitos alimentares e de comensalidade, de saberes e fazeres culinários e, até mesmo, de insumos alimentícios e das formas de produzi-los, acabaram promovendo o fenômeno da patrimonialização (POULAIN, 2016) de quase tudo o que se refere à comida. Nos anos-patrimônio (HARTOG, 2014), receita, artefato culinário, cozinha regional ou nacional, produto e saber-fazer são objetos de registro, tombamento e/ou museificação. Neste sentido, movimentos como o Slow Food surgem para promover discursos e ações de preservação que acabam por recair em discursos nostálgicos e por celebrar a retomada de elementos do passado (COSTA, 2015). O mesmo Slow Food, por outro lado, também se preocupa com algo que desejávamos já estar no pretérito, mas que ainda não foi superado por muitas comunidades ao redor do globo: a fome e a insegurança alimentar. Experienciar a “fome na abundância”, afinal, é mais um paradoxo dos nossos tempos (CONTRERAS, 2015).

Na atualidade, a alimentação é pauta cultural, social, econômica, ambiental, humanitária e política. Aquilo que comemos e as escolhas alimentares que fazemos dizem respeito não só às nossas formas de expressão e às nossas identidades, mas aos direitos fundamentais dos seres humanos, à sobrevivência dos ecossistemas e às questões climáticas, à ética em relação aos animais, às questões relativas ao acesso à terra, à divisão de papeis de gênero na sociedade, às políticas públicas de saúde e segurança social, à soberania das populações tradicionais, entre tantos outros pontos. Mais do que nunca, comida é “boa pra pensar” (CASTRO; MACIEL, 2013).

Foi justamente para promover a reflexão e a produção de conhecimento a partir de diferentes problematizações em torno da comida, bem como a divulgação de investigações recentes produzidas no Brasil, que produzimos o dossiê “Alimentação: História, Cultura e Patrimônio”. Os artigos aprovados para a edição são diversos em suas temáticas, abordagens, reflexões teóricas e fontes de pesquisa. O primeiro deles, “Açúcar e devoção: saberes e fazeres das Verônicas de Alfenim da festa do divino de Pirenópolis”, de Amanda Alexandre Ferreira Geraldes, aborda a história, o processo do saber-fazer e os significados de um doce relacionado às práticas de religiosidade popular da Festa do Divino Espírito Santo da cidade de Pirenópolis, em Goiás: o alfenim, ali denominado Verônica. O texto seguinte, de Eliane Morelli Abrahão, é parte dos resultados da investigação do pós-doutoramento sobre “A estética dos sabores e do poder: a coleção de menus da Coleção Washington Luís (1889-1930)” que a autora realiza junto ao Museu Republicano “Convenção de Itu”/Museu Paulista (USP). Em seu artigo, Abrahão examina a coleção de cardápios de almoços e jantares reunida por Rui Barbosa ao final do século XIX e no início do XX, tratando-a como um conjunto de fontes relevantes para pensar as práticas alimentares, de sociabilidade e as formas de, à mesa, constituir poder e construir a política nos primeiros anos da nossa República. O terceiro estudo também trata dos hábitos alimentares e de comensalidade dos primeiros anos do Brasil republicano, agora abordando o mundo privado. Ao pesquisar o consumo alimentar e as significações culturais dadas à comida por uma família de classe média de Belo Horizonte, Natânia Silva Ferreira procura compreender como era a alimentação na capital mineira nas primeiras duas décadas do século XX.

Em “Sabores e memórias portuguesas (São Paulo 1940-2000)”, Maria Izilda Santos de Matos investiga a dinâmica de apropriação e de invenção das tradições realizada por portuguesas e portugueses que se deslocaram para São Paulo ao longo de boa parte do novecentos. Estudando em diferentes fontes as experiências alimentares em celebrações ou no cotidiano paulista, a pesquisadora analisou os fluxos de memórias gustativas, de saberes e de gestos culinários do grupo imigrante desde o além-mar até o território de chegada, assim como suas respectivas adaptações e reconstruções. Já o artigo de Fernando Santa Clara Viana Junior e Patrícia Merlo buscou compreender a importância do ofício das Paneleiras de Goiabeiras, registrado em 2012 como Patrimônio Imaterial no Livro dos Saberes do IPHAN, para a manutenção de uma dada “identidade gastronômica capixaba”. Para isso, o autor e a autora retomam a trajetória histórica deste saber e analisam de que maneira as práticas das Paneleiras de Vitória são atualizadas em nossos tempos, especialmente em virtude do consumo turístico.

Carolina Figueira da Costa reflete sobre a construção histórica do gosto alimentar em “Gosto se discute? Dimensões históricas e sociais de expressões contemporâneas do gosto”. Em seu trabalho, a pesquisadora defende que a dimensão do gosto enquanto saber – os juízos sobre aquilo que é considerado bom ou ruim – é construída cultural e historicamente. A partir da análise das obras de Carlo Petrini e de Michael Pollan, Costa investiga o que significa, no início do século XXI, aquilo que chamamos de “boa comida”. Também pensando em historicidade e em contemporaneidade, Viviane Soares Aguiar investiga como a trajetória do “virado à paulista” foi produzida nas narrativas de intelectuais, procurando entender como este preparo, recentemente tombado como Patrimônio Imaterial de São Paulo, tornou-se parte de um imaginário identitário daquele estado até ser alçado a “prato típico” paulista. Em seu artigo, intitulado “Do feijão com toucinho ao ‘virado à paulista’: o percurso simbólico de uma receita na formação de um patrimônio culinário de São Paulo”, a autora questiona o processo de criação de cozinhas regionais e receitas emblemáticas, chamando a atenção para a necessidade de desnaturalizá-las.

“Comida é arte, cultura é arte, conhecimento também é arte: primeiros passos para um esboço de arte, gastronomia e educação para além da alma”, de Marcos Antônio Bessa-Oliveira, é texto originado de seu pós-doutoramento e relacionado ao Grupo de Pesquisa NAV(r)E – Núcleo de Artes Visuais em (re)Verificações Epistemológicas (UEMS/CNPq), do qual o autor é líder. Bessa-Oliveira propõe entrecruzar arte, gastronomia e educação com o intuito de criar e possibilitar a construção de conhecimentos formais e informais de sujeitos sociais. Para isso, sugere descolonizar os saberes, produzindo-os e inscrevendo-os, então, a partir daquilo que conceitua como “experivivências” socioculturais. A seguir, o trabalho de Adriana Salay Leme, “Câmara Cascudo e Josué de Castro: Um diálogo sobre a epistemologia da alimentação” joga luzes sobre a formação da epistemologia nos estudos sobre alimentação no Brasil, ao analisar missivas trocadas entre o intelectual potiguar e o pernambucano. A investigadora procura identificar nas correspondências, nas trajetórias e nas obras de Câmara Cascudo e Josué de Castro como cada um construiu seu pensamento em um momento em que áreas como a nutrição, a sociologia, a antropologia ou a história apenas começavam a ser institucionalizadas e disciplinarizadas, e que as investigações sobre a alimentação eram ainda incipientes no Brasil.

Utilizando outros estudos historiográficos e o relato do alferes José Peixoto da Silva Braga, Deusdedith Alves Rocha Junior produziu artigo em que descreve os hábitos alimentares dos integrantes da bandeira de Bartolomeu Bueno da Silva, conhecido como Anhanguera, ocorrida entre 1722 e 1725. Em seu texto, o autor intencionou, ainda, relacionar as práticas de alimentação dos bandeirantes setecentistas com aquelas que tinham as populações nativas por eles contatadas e com a cultura alimentar paulista do mesmo período. Em “Chega de Nabisco na lata! Queremos arroz, feijão, e farinha no prato: a alimentação da FEB na 2GM”, Priscila Ervin Saval analisa como era a dieta desenvolvida e consumida pelos exércitos estadunidenses e brasileiros durante a Segunda Guerra Mundial. A mestranda chama a atenção para a importância da comida como elemento cultural e identitário dos combatentes, sobre o quanto o planejamento e a preparação de suas provisões acabou por desconsiderar este aspecto e quais foram as consequências disto no front e na memória que os soldados acabaram por construir sobre o combate. Para finalizar, o artigo de Ricardo da Silva Mayer objetiva reconstituir a trajetória da bomba de chimarrão ao realizar uma revisão da bibliografia sobre o tema e analisar relatos de missionários jesuítas e de viajantes que percorreram o sul do Brasil ao longo do século XVIII. Aqui, Mayer discute e testa a hipótese do folclorista gaúcho Luiz Carlos Barbosa Lessa, que sugeriu a presença do artefato utilizado para beber a infusão de erva-mate entre indígenas guarani já no século XVI, quando da chegada de colonizadores espanhóis naquele território.

Desejando a todos uma boa e proveitosa leitura, torcemos para que os artigos aqui publicados estimulem novos questionamentos e estudos sobre alimentação!

Notas

3. Temos ciência de que o uso de palavras no masculino como gênero de concordância geral, ou seja, para referir-se tanto a homens quanto a mulheres, não é algo recomendável quando queremos uma sociedade – e também uma língua – menos desigual. Durante este texto, no entanto, para garantir sua fluidez e posterior compreensão por parte do leitor, nem sempre flexionamos o gênero no feminino e no masculino, optando, algumas vezes, por utilizar o “falso neutro”. Ressaltamos que isso não quer dizer que compreendemos o sujeito masculino como universal.

4. No website do Simpósio é possível ler os resumos das comunicações, bem como assistir aos vídeos das conferências e mesas redondas. Disponível em: https://spalimenta.hypotheses.org/. Acesso em: 31 dez. 2019.

5. E aqui destacamos, para citar algumas, as trajetórias de Carlos Roberto Antunes dos Santos e seu Grupo de Estudos e Pesquisas em História e Cultura da Alimentação da UFPR, da professora Leila Mezan Algranti e o DIAITA – Patrimônio Alimentar da Lusofonia, de Maria Eunice Maciel e o Núcleo de Estudos Interdisciplinares em Cultura e Alimentação da UFRGS e de Henrique Carneiro, que hoje coordena o Laboratório de Estudos Históricos das Drogas e da Alimentação na USP.

6. O sociólogo francês criou o conceito em 1979, divulgando-o no artigo “Gastro-nomie et gastro-anomie. Sagesse du corps et crise bioculturelle de l’alimentation moderne”. Em entrevista a Mirian Goldenberg, Fischler afirmou que a ideia de “gastro-anomia” intenta expressar as “dificuldades que as pessoas têm para lidar com a complexidade que se tornaram as práticas e representações alimentares na sociedade contemporânea”. Assim, ainda segundo o estudioso, enquanto as sociedades, em todas as culturas, têm códigos complexos e regras implícitas sobre a comida e o ato de comer, atualmente isto é desestruturado pela crescente individualização e desinstitucionalização dos hábitos alimentares e de comensalidade: “as pessoas se sentem desconfortáveis e cheias de medos e conflitos sobre o que deveriam comer e como deveriam comer; isso de algum modo é uma forma de gastro-anomia” (GOLDENBERG, 2011, p. 237).

Referência

BARBOSA, Lívia. Tendências da alimentação contemporânea. In: PINTO, Michele de Lavra; PACHECO, Janine K. Juventude, consumo e educação 2. Porto Alegre: ESPM, 2009, p. 15-64.

CARNEIRO, Henrique. Apresentação à edição brasileira. In: FISCHLER, Claude; MASSON, Stelle. Comer: a alimentação de franceses, outros europeus e americanos. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2010, p. 9-16.

CASTRO, Helisa Canfield de; MACIEL, Maria Eunice. A comida boa para pensar: sobre práticas, gostos e sistemas alimentares a partir de um olhar socioantropológico. Demetra: Alimentação, Nutrição & Saúde, v. 8 (Suplemento Temático “Ciências Humanas e Sociais em Alimentação e Nutrição), p. 321-328, 2013.

CONTRERAS, Jesús. Fome na abundância. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, ano 10, n. 115, p. 40-45, abr. 2015.

COSTA, Carolina Figueira da. A boa comida no início do século XXI: entre Carlo Petrini e Michael Pollan. Dissertação (Mestrado em Alimentação – Fontes, Cultura e Sociedade) – Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas da Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, Coimbra, 2015.

DÓRIA, Carlos Alberto. O que é a gastronomia hoje. Revista Cult, São Paulo, n. 198, p. 19-23, fev. 2015.

GOLDENBERG, Miriam. Cultura e gastro-anomia: Psicopatologia da alimentação cotidiana. Entrevista com Claude Fischler. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 17, n. 36, p. 235-256, jul./dez. 2011.

HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.

POLLAN, Michael. Cozinhar: uma história natural da transformação. São Paulo: Intrínseca, 2014.

POULAIN, Jean-Pierre. A gastronomização das cozinhas locais. In: WOORTMANN, Ellen; CAVIGNAC, Julie A. (Orgs). Ensaios sobre a Antropologia da Alimentação: saberes, dinâmicas e patrimônios. Natal: EDUFRN; Brasília: ABA Publicações, 2016, p. 33-57.

WILSON, Bee. The Way We Eat Now: how the food revolution has transformed our lives, our bodies, and our world. Londres: Hachette UK, 2019.


Organizadores

Deise Cristina Schell – Licenciada e Mestra em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora da Graduação Tecnológica em Gastronomia e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

Everton Luiz Simon – Graduado no Curso Superior de Tecnologia em Gastronomia e Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade de Santa Cruz do Sul. Doutor em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Professor e coordenador do Curso Superior de Tecnologia em Gastronomia, do Bacharelado em Turismo e da Pós-Graduação em História da Alimentação e Patrimônio Cultural da Universidade de Santa Cruz do Sul.


Referências desta apresentação

SCHELL, Deise Cristina; SIMON, Everton Luiz. Apresentação. Revista Latino-Americana de História. São Leopoldo, v.8, n.22, p. 5-11, ago./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]

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