Amérique Latine – Political Outlook – OPALC (RTA)

Amérique Latine – Political Outlook (Observatoire politique de l’Amerique latine et des Caraïbes). Paris: Les Études du CERI, n. 198‐199, décembre 2013. Resenha de: SILVA, Daniel Afonso da. Visões Boreais. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 6, n.13, p. 246 ‐ 252, set./dez. 2014.

Acaba de sair o mais recente Political Outlook sobre a América Latina, do Observatoire politique de l’Amerique latine et des Caraïbes do Centre d’études et de recherchers internationales (CERI), da Sciences Po de Paris. Muito bem informado e formidavelmente apresentado, o relatório procura pôr em evidência os pontos fortes das mais variadas dimensões da vida política e social dos países latino‐americanos durante o ano de 2013. Orientado, coordenado e organizado pelo professor Olivier Dabène, esse Political Outlook vem se impondo como leitura obrigatória aos interessados em América Latina.

Onze textos, distribuídos em três seções, somados a uma esclarecedora introdução, compõem o Outlook. Seu ponto de partida, de não pouca importância, contempla o desaparecimento de Albert Hirschman (1915‐2012), com uma ode ao que foi um dos mais importantes latino‐americanistas de todos os tempos. Na sequência, são apresentados diversos temas e reflexões muitíssimo estimulantes: a presença chinesa na região; a visita do presidente Xi Jinping a Trinidad e Tobago, Costa Rica e México e seu crescente interesse pelo setor petroleiro local; o impacto da morte de Hugo Chaves (1954‐2013) sobre o imaginário venezuelano; o balanço do primeiro ano de Enrique Peña Nieto e o regresso do Partido Revolucionário Institucional à frente do México; a “justiça transicional” na Colômbia; a designação do argentino Jorge Bergoglio à condição de Sua Santidade o Papa; a situação da Guatemala após o julgamento do ditador Efraín Ríos Montt, acusado de assassinar mais de 200 mil pessoas entre 1960 e 1996, junto com o questionamento da possibilidade de alguma reconciliação; a situação, na Colômbia, das FARC, que sugeria avançar sobre o caminho de negociação de paz; a celebração dos 40 anos do 11 de setembro de 1973 no Chile, que depôs do poder e da vida Salvador Allende (1908‐1973); dos 40 anos do golpe de estado no Uruguai – pouco lembrado na região, mas que continua vivo na memória dos uruguaios –; dos 30 anos da iniciativa Contadora para a América Central, que auxiliou na superação do espírito de “década perdida” na região e dos dez anos de governos petistas na presidência do Brasil.

Muitas impressões podem ser registradas, ora para ressaltar momentos inegavelmente ricos ‐ como a feliz lembrança do marcante desaparecimento de Albert Hirschman e de Hugo Chaves ‐, ora para mencionar momentos não tão ricos, com certo menosprezo que recobre praticamente todos os textos, pelo contexto mais global da organização internacional ao longo de 2013, ano que registrou fortes movimentos de superação definitiva da crise financeira de 2008 nos países centrais, avanços e retrocessos nos conflitos do mundo árabe, a aproximação entre americanos e russos na gestão do caso sírio, o acordo prévio com o Irã, entre outros. Toda a América Latina tem a ver, de alguma maneira, com esses movimentos.

Excluída qualquer avaliação, a impressão mais diretamente justa e honesta deve estar no sentido de saudar e reconhecer o imenso esforço de criação e formação de expertise – muito competente, por sinal – sobre essa parte do continente americano. Impressionam a capacidade de síntese e a profundidade de algumas avaliações. Uma delas, demonstrada no estudo de Frédéric Louault sobre o Brasil.

Louault avalia o ano brasileiro de 2013 pelo prisma dos dez anos de PT no poder. Reconhece a densidade do projeto de governo que permite à presidente Dilma Rousseff ter 79% de aprovação popular e seu governo, 63% de opinião positiva. Da mesma forma, põe em questão as qualidades que os protestos de junho de 2013 impõem. Ressalta que milhões de pessoas nas ruas, reivindicando o saneamento da classe política, poderia expressar a vitalidade da democracia. Tendo em conta a sombra do passado ditatorial brasileiro, as vozes das ruas precisariam ser saudadas. Acentua que essa demonstração de insatisfação representaria a fragilidade da democracia brasileira e dos governos petistas que, ao não avançar sobre reformas para a melhoria da vida, especialmente dos segmentos médios, frustram os anseios gerais.

Argumenta que a estabilidade dos indicadores macroeconômicos e sociais (sujeito), apresentados ao longo dos governos do presidente Lula (2003‐2010) e da presidente Dilma (2011‐2014), vai invertendo os sinais.

O entusiasmo dos tempos do presidente Lula dá lugar a inquietações. Daí questionar:

S’agit‐il d’un simple ralentissement conjoncturel ou bien est‐ce la fin d’un cycle économique, l’épuisement d’une formulede développement qui s’est appuyée durant dix ans sur un environnement international favorable aux économies exportatrices d’Amérique Latine (en raison notamment des cours élèves des matières premières)?” (p. 55). (TRADUÇÃO EM NOTA DE RODAPÉ).1

Uma excelente questão, para um excelente problema.

Louault demonstra ser um pouco de cada. Mostra a importância da estratégia do presidente Lula da Silva na diversificação de parceiros comerciais e no estímulo às relações ditas Sul‐Sul. Acentua a importância da China, que em 2009 superou os Estados Unidos como parceiro de exportação‐importação. Mas analisa, neste sentido, o caráter desequilibrado da relação, uma vez que: 85% das exportações brasileiras para a China se compõem de matérias primas (45,5% de minerais, 24,7% de soja e 11% de petróleo). Já as importações chinesas ‐ 97% ‐ são de produtos manufaturados. Depois de 2010, os ventos econômicos foram mudando. Mas ganhos sociais permaneceram. As políticas de distribuição de renda, alocadas no programa Bolsa Família, beneficiaram mais de 10 milhões de famílias de baixa, baixíssima ou nenhuma renda. Isso permitiu não apenas a melhoria dos meios de subsistência, mas também favoreceu a escolarização e vacinação, seguida de acompanhamento médico, de mais de 14 milhões de crianças. Com isso, a real diminuição da desigualdade social referendada pelo coeficiente de Gini passou de 0,59 em 2003 para 0,49 em 2012. Tudo isso, interpreta Louault, explica o sucesso eleitoral do PT. Mesmo que a contemporização com os demais segmentos políticos – “Lula sans cesse a cherché à éviter toute confrontation avec les elites politiques traditionnelles” (p. 61) – tenha sido permanente, o “mensalão” deixa marca profunda na trajetória do partido, sobretudo pela prisão dos principais acusados, entre eles José Dirceu e José Genuíno, líderes históricos do PT.

Não resta dúvida que Frédéric Louault – como, de resto, Olivier Dabène, Gaspard Estrada, Damien Larrouqué, Nordin Lazreg, Delphine Lecombe, Antoine Maillet, Frédéric Massé, Kevin Parthenay, Eduardo Rios, Darío Rodrígues e Constantino Urcuyo‐Fournier, demais colaboradores do Political Outlook 2013 – continua muito bem postado nas discussões gerais de seu objeto de análise. Entretanto, algumas impressões, para além das evidências estampadas nos dados oficiais que sustentam o artigo, podem auxiliar na melhor qualificação e sofisticação da abordagem.

O sucesso eleitoral do presidente Lula e do PT nesses anos vem ganhando uma classificação inapelável: lulismo. Criação do cientista político André Singer, porta‐voz da Presidência da República de 2003 a 2006, a classificação indica elementos tangíveis para se compreender a reeleição do presidente Lula da Silva em 2006. Tem razão Louault ao sugerir que camadas sociais, especialmente localizadas nas Regiões Norte e Nordeste do Brasil, beneficiadas pelos programas de distribuição de renda a partir de 2003, votaram massivamente nele em 2006. Entretanto, vale lembrar que menos de um ano antes da eleição de 2006, o presidente Lula e o PT estavam praticamente em vias de desaparecimento político em função das denúncias do deputado Roberto Jefferson que revelaram o “escândalo do mensalão”. A imprensa e os segmentos políticos de oposição, ato contínuo e sem pudor, envolviam o presidente e seu partido no escândalo. Muitos diziam que era o fim da linha, sobretudo por ser o PT o partido que mais reivindicara, em tempos recentes, os atributos da ética e da não‐corrupção na política. Em meio ao alvoroço, peças centrais do governo – como o ministro fazenda, Antonio Pallocci, e o ministro‐chefe da Casa Civil, José Dirceu – tiveram de deixar os cargos. O presidente Lula e toda equipe político‐partidária ficaram amplamente fragilizados. Muitos simpatizantes históricos deixaram o partido. Os fundadores do PSOL, dissidentes avessos à postura majoritária do PT que conduzira a vitória de Lula da Silva nas eleições de 2002, festejavam. Exaltados da oposição, como o senador Jorge Bornhausen, diziam, alto e bom som, o que diversos outros pensavam, mas não diziam, que era o momento de se livrar dessa “raça”. Outros pediam o imediato impeachment do presidente. Enfim, só a pessoa do presidente Lula pode dimensionar com precisão a intensidade da pressão. E tudo isso ocorria no segundo semestre de 2005. As eleições de 2006 já estavam sendo programadas. A participação do presidente Lula era, para muitos, incerta. Sua vitória, improvável. A compreensão da reversão dessas tenebrosas expectativas ganha muito com o arranjo de André Singer sobre o lulismo, entendido como a base de sustentação eleitoral do PT. Louault acentua o fato da ampliação do número de eleitores de Lula em 2006, mas não avança sobre algumas constatações fundamentais. Desde 1980, a bandeira do PT era de diminuir as desigualdades sociais e melhorar as condições de vida dos menos favorecidos. No entanto, nas quatro primeiras apresentações de Lula ao sufrágio universal (1989, 1994, 1998 e 2002), esses desfavorecidos jamais lhe conferiram o voto. Isso ocorreu porque, enquanto a imprensa e a oposição massacravam o presidente Lula e o PT no âmbito do escândalo do mensalão, o governo ia ampliando os programas sociais. Essa ampliação e manutenção da melhoria da vida de milhões de pessoas, somada ao caráter pedagógico de identificar o presidente Lula como responsável direto, proporcionou uma evidente alteração à sua base eleitoral e à do PT.

Reeleito, Lula foi reconduzido ao poder em janeiro de 2007. Em poucos meses, aparecem os sinais de alerta mundiais sobre a possibilidade de uma crise econômica nos países centrais. Esse assunto – suposto, mas não frontalmente abordado por Louault – vai se mostrando essencial para a compreensão do Brasil atual. O segundo mandato do presidente Lula foi o momento de gestão da crise financeira.

Dotado de inegável tino político, o presidente Lula percebeu que era imperativo administrar as emoções de sua nova base eleitoral, que corria o risco de perder seus benefícios em função do tsunami das finanças que atingia o Brasil. Passou, de início, a responsabilizar os países ricos, afirmando que os países pobres não deveriam ser responsabilizados pela insanidade dos “brancos de olhos azuis”. Na sequência, aumentou políticas de crédito bancário e incentivou os brasileiros dos segmentos médios a consumir. Essas duas medidas, somadas a um sem‐fim de estratégias econômicas anticíclicas, permitiram a efetivação da percepção de suave “marolinha” econômica no Brasil, enquanto o resto do mundo vivia o inferno. Mas essa sagacidade do presidente e de sua inquestionável retórica presidencial, somadas a muitas doses de sorte e esperteza não foram transferidas a Dilma Rousseff, como os votos de credibilidade do povo brasileiro em 2010. Isso ajuda a explicar vários dos episódios de insatisfação vividos no Brasil desde junho de 2013.

Daniel Afonso da Silva – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba e chercheur invité do CERI‐Sciences Po de Paris. Brasil [email protected].

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