Sensibilidades e História do Tempo Presente | Tempo e Argumento | 2022

Desde as últimas décadas do século XX, mais especificamente a partir da queda do Muro de Berlim, do fim das ditaduras latino-americanas e do apartheid na África do Sul, podemos detectar a expansão de uma cultura e de uma política de memória em diversos países. A historiografia contemporânea tem destacado a explosão de narrativas memorialísticas, os discursos testemunhais e a chamada “febre patrimonial”, que estão articulados aos usos políticos do passado e aos embates do presente no campo político, ideológico e historiográfico. Nesse sentido, às historiadoras e aos historiadores tem sido lançado o desafio de compreender as leituras do passado que as memórias coletivas empreendem.

Essas narrativas e formas de rememoração do passado também têm trazido à tona um dos principais aspectos que caracterizariam a história do tempo presente – a noção de trauma coletivo, oriunda de experiências de violências políticas, étnico-raciais e de gênero, sobretudo nos regimes autoritários do final do século XX. Assim sendo, as problemáticas que envolvem as relações entre memória e esquecimento, as experiências traumáticas e o papel dos testemunhos na “era das catástrofes” estão amalgamadas ao ofício do historiador, em especial aos que se dedicam à história do tempo presente (FERREIRA, 2012). Este campo interdisciplinar de estudos e produção acadêmica entrecruza a História e a memória, colocando em destaque as novas sensibilidades da contemporaneidade, marcadas pelo trauma da violência política e pelas lutas por verdade, justiça e reparação. Leia Mais

¡Presente! la política de la presencia | Diana Taylor

Enquanto caminha pelo tempo e pelo espaço com, para e entre artistas e ativistas políticos do continente americano, Diana Taylor narra suas experiências e nos desafia a pensar como estar ¡presentes! em um mundo saturado de impossibilidades. Em ¡Presente! la política de la presencia (2020), a autora enfatiza a importância do posicionamento político e ético diante da questão “o que posso fazer quando não há nada o que fazer e o fazer nada não é uma opção?”. Analisando criticamente o seu posicionamento frente as cercas, em cima das cercas, ao transpassar as cercas e ao tentar derrubar as cercas que nos separam, ela expõe as narrativas de suas vivências, sentidos e afetos diante das performances experimentadas.

O projeto, concebido simultaneamente em espanhol e em inglês, foi lançado originalmente pela Duke University Press em agosto de 2020, e em dezembro do mesmo ano pela Ediciones Universidad Alberto Hurtado, versão traduzida pela historiadora australiana Ana Stervenson. O ¡presente! como tema central é abordado como algo que está para além da presença em si, e a palavra/ato segue a grafia em espanhol também na edição inglesa, na tentativa de enfatizar a sua potência pelos dois pontos de exclamação que a acompanha. Leia Mais

Uma latente filosofia do tempo | Reinhart Koselleck, Hans Ulrich Gumbrecht e Thamara de Oliveira Rodrigues

Com exceção ao clássico Crítica e crise e do menos conhecido Preußen zwischen reform und revolution [Prússia entre Reforma e Revolução], frutos de teses defendidas em 1954 e 1965, a obra do historiador Reinhart Koselleck é marcada por um caráter fragmentário, com artigos inicialmente publicados em revistas científicas e depois reunidos em coletâneas como Futuro Passado (1979), Estratos do Tempo (2000), História de Conceitos (2006) e Vom sinn und unsinn der geschichte, antologia póstuma organizada por Carsten Dutt em 2010. Há ainda os verbetes escritos para o Geschichtliche Grundbegriffe, o famoso dicionário de conceitos históricos do qual Koselleck foi também editor, entre 1972 e 1997. No Brasil, certa indiferença inicial pela sua obra foi seguida de um grande interesse. A Editora Contraponto publicou traduções completas de Crítica e crise (1999), Futuro passado (2006), Estratos do tempo (2014), e, mais recentemente, História de conceitos (2020). Em 2019, a Autêntica também publicou O conceito de História, retirado do segundo volume do dicionário (1975). Leia Mais

O que é história global? | Sebastian Conrad

O que é a história Global? É um ensaio histórico escrito por Sebastian Conrad, cujo título original é What is Global History? traduzido para a língua portuguesa por Teresa Furtado e Bernardo Cruz, publicado pelas edições 70, em Lisboa, em 2019, com 310 páginas. Os onze capítulos estão entre a introdução e o posfácio, “o lento fazer da história global”, escrito por Miguel Bandeira Jerónimo.

Para se entender a concepção do global é imperativo perceber como é que as noções de mundo mudaram ao longo do tempo, pois a globalização alterou a forma como escrevemos a história. Deixou de ser possível estudar o Estadonação de forma isolada e de apreender a história mundial a partir do Ocidente. Mas o que é a história global? Sebastian Conrad explica a razões do global, que é um estudo que se revelou em uma das áreas inovadoras e promissoras do conhecimento histórico. Leia Mais

The Hundred Year´s War on Palestine: A History of Settler Colonial Conquest and Resistance | Rashid Khalidi

A potente introdução de Rashid Khalidi neste livro, intitulado The Hundred Year´s War on Palestine: A History of Settler Colonial Conquest and Resistance, em tradução livre, A Guerra de Cem Anos na Palestina: Uma História de Conquista Colonial e Resistência, demonstra elementos relevantes para a compreensão histórica da Palestina, ao mesmo tempo em que fundamenta questões historiográficas para o estudo da temática. Rashid Ismail Khalidi, palestino nascido em Nova Iorque em 1948, consolida-se como um dos maiores especialistas da área, atualmente ocupante da cadeira de Edward Said, professor da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, na área de Estudos Árabes. Autor de diversos livros e artigos que tratam da construção nacional palestina, Khalidi inova ao propor, como enfatiza, uma produção de pesquisa acadêmica junto às reflexões em primeira pessoa, ao incorporar lembranças de eventos que presenciou, bem como registros materiais, como fotografias e documentos, pertencentes a ele e a sua família. Ao abandonar a impessoalidade da escrita acadêmica, o historiador palestino aproxima o/a leitora/a à compreensão de momentos decisivos da história palestina contemporânea, traçando a importância testemunhal de sua família em diversas situações – como, por exemplo, a troca de correspondências entre seu tio Yusuf Diya al-Din Pasha alKhalidi e Theodore Herzl, fundador do Sionismo. Ao delinear essas relações, no entanto, o autor ressalta que a sua história não é única, mas compartilhada por milhares de palestinos/as. Leia Mais

The Hundred Year´s War on Palestine: A History of Settler Colonial Conquest and Resistance | Rashid Khalidi

A potente introdução de Rashid Khalidi neste livro, intitulado The Hundred Year´s War on Palestine: A History of Settler Colonial Conquest and Resistance, em tradução livre, A Guerra de Cem Anos na Palestina: Uma História de Conquista Colonial e Resistência, demonstra elementos relevantes para a compreensão histórica da Palestina, ao mesmo tempo em que fundamenta questões historiográficas para o estudo da temática. Rashid Ismail Khalidi, palestino nascido em Nova Iorque em 1948, consolida-se como um dos maiores especialistas da área, atualmente ocupante da cadeira de Edward Said, professor da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, na área de Estudos Árabes. Autor de diversos livros e artigos que tratam da construção nacional palestina, Khalidi inova ao propor, como enfatiza, uma produção de pesquisa acadêmica junto às reflexões em primeira pessoa, ao incorporar lembranças de eventos que presenciou, bem como registros materiais, como fotografias e documentos, pertencentes a ele e a sua família. Ao abandonar a impessoalidade da escrita acadêmica, o historiador palestino aproxima o/a leitora/a à compreensão de momentos decisivos da história palestina contemporânea, traçando a importância testemunhal de sua família em diversas situações – como, por exemplo, a troca de correspondências entre seu tio Yusuf Diya al-Din Pasha alKhalidi e Theodore Herzl, fundador do Sionismo. Ao delinear essas relações, no entanto, o autor ressalta que a sua história não é única, mas compartilhada por milhares de palestinos/as.

Do ponto de vista historiográfico, o livro traz novas dimensões ao propor, para cada um dos seis capítulos, o que denomina de pontos de inflexão (turning points), ou eventos, analisando os elementos que considera centrais para a conformação desta temporalidade de acontecimentos nos últimos cem anos da história da Palestina. Seguindo a sua proposta, Khalidi inicia a periodização a partir da Declaração de Balfour, de 1917, situando que este documento marca a delineação, de fato, do futuro Estado de Israel, com apoio da Inglaterra. Nesse sentido, no primeiro capítulo, intitulado The First Declaration of War, 1917-1939, ou A Primeira Declaração de Guerra, 1917-1939, o autor ressalta que na Declaração não há qualquer menção aos termos ‘árabes’ e ‘palestinos’ para se referir à comunidade existente, ainda que esta, naquele momento, fosse de aproximadamente 94% da população total do território (p. 24). Em suma, a Declaração solidificou um discurso que reconhecia apenas a comunidade judaica, concluindo que o não reconhecimento da população nativa esteve na base da política e da ‘questão’ da Palestina, além de concebê-la como amorfa e a-histórica. Leia Mais

Gênero Neoconservadorismo e Democracia: Disputas e Retrocessos na América Latina | Flavia Biroli, Juan M. Vaggione e Maria das Dores C. Machado

O livro Gênero, Neoconservadorismo e Democracia: Disputas e Retrocessos na América Latina, organizado e escrito por Flávia Biroli, Juan Marco Vaggione e Maria das Dores Campos de Machado, publicado no ano de 2020 pela Editora Boitempo, analisa o crescimento do neoconservadorismo no que tange aos direitos sexuais e reprodutivos, à educação voltada ao gênero e sexualidade, aos estudos de gênero e aos direitos humanos. Sobretudo, o objetivo do livro, como identificado nas primeiras páginas, é de entender o avanço neoconservador em relação ao gênero a partir de uma perspectiva interdisciplinar, transnacional e comparativa ao relacioná-lo com os debates que envolvem religião, direitos e democracia (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020). O livro traz um debate significativo ao mobilizar as disputas e discussões políticas atreladas à “ideologia de gênero”, à “cultura da morte” e à igualdade de gênero que tomou corpo nas últimas duas décadas do século XXI na América Latina.

Já faz algumas décadas que as autoras e o autor do livro têm se dedicado às pesquisas que envolvem gênero, política e religião. Como poder ser visto, Flávia Biroli é professora e pesquisadora no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), onde tem realizado inúmeras publicações, e tem se dedicado às temáticas da democracia, política, estudos de gênero e teoria feminista no Brasil contemporâneo. Já, Juan Marco Vaggione é doutor em direito pela Universidade Nacional de Córdoba (UNC), na Argentina, e em sociologia pela New School for Social Research, nos Estados Unidos. Atualmente, é professor titular de sociologia da Faculdade de Direito da UNC e pesquisador do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Tecnicas (Conicet) da Argentina; também dirige o Programa de Direitos Sexuais e Reprodutivos da Faculdade de Direito da UNC. Por sua vez, Maria das Dores Campos de Machado é doutora em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro e tem se dedicado aos estudos das religiões, neoconservadorismo e à política brasileira. Atualmente, é professora aposentada e voluntária na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

A soma das diferentes trajetórias de pesquisas e análises acaba dando destaque à obra resenhada aqui. A análise está centrada na emergência do neoconservadorismo e no avanço sobre a democracia ao inter-relacionar os ataques ao gênero no contexto atual; aspecto, este, considerado muitas vezes menor nas principais produções que hoje se voltam a pensar a democracia na América Latina. Para analisar o fenômeno, Flávia Biroli, Juan Marco Vaggione e Maria das Dores Campos de Machado (2020) propõem cinco dimensões, a fim de identificar as características contemporâneas do neoconservadorismo: 1º) “o conceito de neoconservadorismos permite jogar luz sobre as alianças e afinidades entre diferentes setores” (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020, p. 28); 2º) a expressiva utilização da juridificação da moralidade; 3°) o fato de que o neoconservadorismo opera em contexto democrático, ao mesmo tempo em que o fere; 4°) o caráter global e transnacional (adicionado aqui por mim) do neoconservadorismo do século XXI; 5°) a relação entre neoconservadorismo e a agenda neoliberal no que tange aos direitos das mulheres e dos sujeitos LGBTQI.

O livro foi dividido em três capítulos, em que foram abordadas as seguintes temáticas: as reações dos atores religiosos (católicos ou evangélicos), as tentativas de restrição das agendas ligadas à igualdade de gênero, as disputas entre os movimentos feministas e LGBTQI e os movimentos conservadores; o transnacionalismo dos avanços das agendas conservadoras na América Latina, os ataques políticos em diferentes esferas institucionais (jurídicos, parlamentar, etc.) aos poucos avanços nas últimas décadas que envolveram a igualdade de gênero; a interconexão entre o avanço conservador com as políticas neoliberais, a mobilização dos direitos humanos como argumento para participação e defesa dos projetos conservadores, a centralidade da família como uma tendência transnacional no projeto político neoconservador, os padrões do neoconservadorismo religioso, o caráter novo do conservadorismo que emerge no século XXI e a aliança entre distintos setores nas agendas antigênero (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020).

No primeiro capítulo, intitulado A restauração legal: o neoconservadorismo e o direito na América Latina, escrito por Juan Marco Vaggione, o objetivo foi compreender como “o neoconservadorismo se instalou como um problema complexo para a reflexão analítica e normativa” (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020, p. 42). Mais precisamente, por meio do conceito de “juridificação reativa” [1], o autor se dedicou a entender como se deu (por meio de quais sujeitos e de que maneira) o crescente “movimento de restauração moral por meio do direito” (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020, p. 42). Em outras palavras, foi pensado como o direito vem sendo instrumentalizado para a defesa dos princípios morais neoconservadores na ofensiva contra o gênero. O capítulo é denso, cheio de exemplos e discussões que envolvem os direitos sexuais e reprodutivos das últimas décadas na América Latina e esteve pautado na ideia de que a juridificação reativa seria tanto uma arena quando uma estratégia para o avanço neoconservador (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020).

Já, no capítulo de Maria das Dores Campos Machado, com o título O neoconservadorismo cristão no Brasil e na Colômbia, o aspecto central foi a comparação entre os dois países que compõem o título no que diz respeito à emergência neoconservadora dos grupos cristãos. O capítulo traça um panorama ao abordar questões ligadas ao ensino, religião, projetos de leis, crescimento de percentuais religiosos, avanço do conservadorismo entre os anos de 2014 até 2018, o papel das ONG’s religiosas para a interversão no debate público, entre outros aspectos. Também sublinhou, graças à circulação dos líderes religiosos, sobre a propagação dos valores e da agenda antigênero, a construção de redes e eventos transnacionais e como as novas tecnologias facilitaram na promoção de agendas que desafiam a democracia (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020). O grande destaque do capítulo refere-se à autora ter chamado a atenção para a atuação das mulheres conservadoras (seja como deputadas, pastoras ou ministras) na agenda antigênero, contra os debates sobre os direitos sexuais e reprodutivos, na desqualificação do feminismo e em defesa da moral cristã.

Na tentativa de entender a relação entre gênero e democracia, Flávia Biroli, no capítulo Gênero, “valores familiares” e democracia, analisou “os processos de transformação das democracias no mesmo contexto em que as disputas em torno do gênero ganham novos padrões” (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020, p. 136). A autora foca na discussão dos estudos que vêm se indagando sobre a desdemocratização e como o gênero vem sendo considerado nas análises; a relação entre as evidências empíricas no combate ao gênero, principalmente, os valores democráticos e a maneira como se dá a contestação dos estudos de gênero na qualidade de área científica e acadêmica (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020).

Os aspectos mais interessantes do capítulo tratam de demarcar as ideias que constituem os argumentos dos grupos neoconservadores, de que os lobbies feministas e LGBTQI ameaçam as crianças e a família, que as organizações internacionais têm como objetivo subjugar a nação por meio do enfraquecimento da família, que as crianças precisam ser protegidas dentro das autoridades reconhecidas, a família, e que os movimentos de minorias ameaçam as maiorias agindo contra a democracia (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020). Por isso, o sentido de democracia está em disputa no tempo presente e precisa ser debatido.

As discussões propostas no livro tiveram como base dois grandes marcos conceituais (apresentados na introdução): o neoconservadorismo e a temporalidade. Foi com o segundo eixo que tive certo incômodo, uma vez que sua construção se deu ao tentar verificar as políticas antigênero. As autoras e o autor falam em “uma nova temporalidade” a partir das ameaças ao gênero, pautadas em termos como “ideologia de gênero”. No entanto, o tempo parece compacto em um grande bloco único, o que me faz questionar: não seriam múltiplas (no plural) temporalidades na América Latina? Em todos os países da América Latina, as ameaças se deram da mesma maneira e nos mesmos marcos temporais? Conforme foi sendo demostrado ao longo dos capítulos, ocorreram trânsitos, projetos, avanços e derrotas que não foram lineares e homogêneos em todos os países. Sem falar que o avanço neoconservador não tomou corpo em todos os países e já vendo sofrendo limitações. Em outras palavras, as temporalidades foram muito diversas e ainda precisam ser mais bem exploradas. Por último aqui, os avanços neoconservadores estão alinhados ao negacionismo enfrentado, de uma maneira geral, em diferentes âmbitos, como, aqueles ligados às ciências e às universidades; pouco citado em suas multiplicidades no livro.

O livro Gênero, Neoconservadorismo e Democracia é uma leitura precisa ao dar historicidade aos embates políticos presentes na América Latina do século XXI. Mobiliza diferentes disciplinas para a análise dos segmentos sociais, culturais e econômicos, que fizeram com que disputas e conservadorismo tomassem corpo e significado durante o período. O tema é extremamente atual, pertinente e importante, tanto para pesquisadores quanto para quem busca entender como se manifestou o avanço neoconservador nas últimas duas décadas. Por isso, o livro é importante a fim de entendermos mais sobre a história do tempo presente no que tange ao neoconservadorismo, às ameaças à igualdade de gênero e às democracias na América Latina. Também significa uma análise do quão complexo e novo são esses movimentos e os desafios que têm sido enfrentados pelos diferentes movimentos sociais, ativistas e pesquisadores, com os avanços das agendas antigênero. Como sinalizou Flávia Biroli, “há mais em jogo do que visões de mundo conflituosas” (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020, p. 185); entender, historicizar e analisar o que acontece (como foi feito neste livro) é valoroso para quem se interessa pela história do tempo presente.

Nota

1. Juridificaçãoreativa é o termo utilizado para designar o uso do direito por parte dos atores neoconservadores para a defesa dos seus princípios morais e para avançar na disputa contra o gênero (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020).

Eloisa Rosalen – Doutoranda em História na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Florianópolis, SC – BRASIL. lattes.cnpq.br/3857428948780807 . E-mail: [email protected].


BIROLI, Flavia; VAGGIONE, Juan Marco; MACHADO, Maria das Dores Campos Machado. Gênero, Neoconservadorismo e Democracia: Disputas e Retrocessos na América Latina. São Paulo: Boitempo, 2020. Resenha de: ROSALEN, Eloisa. O avanço neoconservador antigênero na América Latina durante o século XXI. Revista Tempo e Argumento. Florianópolis, v.13, n.32, p.1-6, 2021. Acessar publicação original [IF].

La niñez desviada: La tutela estatal de niños pobres huérfanos y delincuentes. Buenos Aires 1890-1919 | Claudia Freidenraij

La niñez desviada: La tutela estatal de niños pobres, huérfanos y delincuentes. Buenos Aires 1890-1919 es una investigación minuciosa y profunda realizada por la historiadora argentina Claudia Freidenraij sobre una época en la que “las calles [de tierra] de Buenos Aires estaban salpicadas de niños” (p.13). Enmarcado en el periodo que va desde 1890 a 1919 este libro analiza los intersticios de las intervenciones públicas que recayeron en la capital argentina sobre los niños pobres, huérfanos, infractores, delincuentes pero especialmente de los sectores trabajadores, en un momento clave de transformaciones urbanas.

Aquí no sólo reconstruye y analiza el complejo articulado de politicas de castigo y represión de actividades y hábitos de los niños de las clases trabajadoras urbanas previo a lo que se consideraría una “justicia para menores,” sino también las formas en que se estereotiparon esas prácticas construyendo categorías jerarquizadoras y segregacionistas sobre estos sectores etarios y poblacionales. Bajo la etiqueta criminalizante y clasista de “minoridad”, las élites morales, constituidas en parte por una constelación de especialistas, colocaron sobre los niños de las clases trabajadoras un conjunto de etiquetas que no sólo inventarían categorías infantiles sino que asociarían prácticas de la infancia pobre con la desviación, la inmoralidad, el abandono y la delincuencia.

A partir de un enfoque que se nutre y forma parte de la historia social, de la historia del delito y la justicia, así como de la historia de las infancias, la autora consigue el relevamiento y análisis de un amplio corpus documental, fotografías, diarios y revistas, memorias de justicia, legislación, fuentes policiales, autobiografías, crónicas urbanas, cuentos, informes médico-legales. Con estas fuentes Freidenraij va desagregando cada uno de los adjetivos, cada una de las prácticas, para estudiarlos separadamente y mostrar cómo la construcción discursiva de la minoridad, el abandono o la delincuencia, vista en espejo, devuelve una imagen que permite ver las ideologías clasistas y los prejuicios de las “elites morales” hacia las infancias pobres urbanas.

La presencia de niños de los sectores populares en el espacio urbano, como muestra con detalle Freidenraj, causó alarma e incomodidad en quienes pretendían un ilusorio orden urbano. Para contener y minimizar las imágenes de niños efectuando todo tipo de labores o transgrediendo constantemente las múltiples normativas, se construyó, para usar las palabras de la autora, un archipiélago penal y asistencial de establecimientos, agencias estatales e instituciones particulares, cuyos engranajes operaron en conjunto, en un concierto de voces e intervenciones que oscilaron más en discordancia que en armonía, más hacia la represión que hacia el amparo.

El libro se concentra en niños mayoritariamente varones, porque hacia ellos se orientaron las políticas criminológicas del periodo de estudio y porque constituían el 82 por ciento de los aprehendidos (p. 108). A través de una lúcida escritura y análisis, la autora acompaña a esos centenares de niños en sus trayectos y circulaciones. Su intención es no dejarlos solos en algún momento. De tal forma, frente al histórico emplazamiento como “niños abandonados” que han sufrido, ella se decide por tomar una postura vinculante de cuidado, de atención, de conexión con sus situaciones y de búsqueda de entendimiento sobre cómo ha sido que han llegado a las puertas de las instituciones de control social. Así, advierte su vida en los conventillos, sus intermitencias escolares, los sigue a sus andanzas en calles, veredas y plazas, presencia sus juegos, escucha sus malas palabras y sus risas, los ve subirse colgados a los tranvías. En las líneas de este texto es posible escuchar la sonoridad que producían los niños en la calle. Pero el libro muestra, cómo al terminar el día no todos aquellos niños y muchachitos podían volver a sus casas o a sus andanzas. En tanto caía sobre ellos un amplio abanico de disposiciones de corte jurídico y se consideraban parte de un “problema social” que había que combatir, sus actividades estuvieron siempre al borde de ser delictivas, irregulares o “predelictivas” en tanto pertenecían a un sector social sobre el cual el Estado buscaba intervenir (p. 285). La institucionalización, por lo tanto, aparece siempre acechante al otro lado de la esquina; esto no hace que la autora los pierda de vista: los sigue a sus comparecencias ante la justicia, hasta los interiores de las instituciones, como si de un estudio etnográfico se tratara, escucha lo que los agentes del estado piensan sobre ellos, lo que escriben los jueces de menores, advierte el tratamiento que se les da a los cuerpos infantiles y luego articula todas estas observaciones en un estudio puntilloso de las estructuras de control y de construcción del “peligro infantil”.

El libro disecciona la anatomía de las prácticas de los agentes encargados o interesados en la “corrección” de esa infancia: jueces, intelectuales, defensores de menores, médicos, abogados. La policía aparece especialmente protagónica, preocupada por lo que considera una ocupación anárquica de la ciudad por los niños: no le gusta como juegan, cómo se relacionan, cómo se comportan (p.115), considera sus actividades siempre sospechosas, elabora catálogos de cada vez más crecientes normativas, porque los niños en el espacio público, si lo ocupan autónomamente, incomodan, en cualquier sitio, en Argentina, en México, en Brasil, en América Latina.

Los vaivenes que sufre la justicia para menores en los primeros años de su implementación en Buenos Aires son una respuesta, explica la autora, a la alarma social frente a las condiciones antihigiénicas y de hacinamiento que sufrían los niños en las cárceles con adultos delincuentes o detenidos. Consideraciones de orden moral e higiénico fueron las que impulsaron a las autoridades a construir instituciones de castigo infantil diferenciadas del mundo adulto, que en un inicio serían de corte religioso y luego laboral. El texto subraya cómo las violencias físicas contra los niños y adolescentes se implementaron también como terapéuticas correccionales por los encargados del orden carcelario. Pero, como la sociología, la antropología y la historia de la infancia ya han apuntado, los niños son actores sociales y siempre tienen respuestas imprevistas a los intentos de control que caen sobre ellos. Por eso, en este libro, aparecen también las resistencias infantiles a ese sistema lacerante de cuerpos y emociones. Aparecen entonces los niños como sujetos capaces de burlarse de las autoridades carcelarias, de ejercer su sexualidad dentro de los límites marcados por la prisión, por el encierro, por el género, organizando sociabilidades estructuradas a partir del lenguaje, de la risa, del juego.

El periodo que se trabaja en este libro se inscribe en un momento de despunte de la transnacionalización de las ideas de infancia. En 1916 se reúnen los “especialistas”, esas élites morales, especialmente de los saberes médico-pedagógicos, en la ciudad de Buenos Aires, en lo que sería el I Congreso Panamericano del Niño, para discutir las acciones necesarias para higienizar, moralizar y escolarizar a la población infantil del continente. Los discursos estigmatizantes, las políticas sancionadoras y la persecución de las prácticas de los hijos de las clases trabajadoras se posicionan como uno de los nodos en las iniciativas en favor de la infancia de los países de la región.

Por todo lo anterior, este libro, si bien se dedica al caso argentino, también puede leerse en clave latinoamericana para vislumbrar los puntos en común con experiencias acaecidas en otras latitudes: las sociabilidades infantiles en conventillos, vecindades o inquilinatos y sus porosas fronteras con la calle, fabricada como espacio peligroso, la construcción de la figura del incorregible, las colocaciones de los niños en hogares y talleres, la criminalización constante de las prácticas cotidianas, la construcción de un andamiaje de leyes y normas para el control de la infancia en sus tránsitos por los rumbos de la ciudad, o la laborterapia como método de regeneración de los llamados menores delincuentes. Los niños argentinos no son los niños indígenas del México del porfiriato y de la revolución, tampoco los que venden diarios en Bogotá al iniciar el siglo, o los niños negros que trabajan en las calles de Sao Paulo. Sin embargo, coinciden con ellos temporalmente y sufren políticas que han cruzado las fronteras nacionales en forma de ponencias en congresos, de publicaciones en revistas médicas o criminológicas, en editoriales y noticias en la prensa. Así, terminan siendo depositarios de formas hegemónicas de concebir a las infancias populares acusadas de peligrosas, inmorales y antihigiénicas, discursos que justifican la obligatoriedad de que el Estado controle sus prácticas.

Los seis capítulos de este libro recuperan largos años de avances en la historia de las infancias en América Latina y proponen caminos novedosos para interpretar la minoridad, la categoría etaria, la historia de la criminalidad y el delito, y su vínculo con la historia social de la infancia. Es un libro propositivo e inteligente que da cuenta de la madurez y la plenitud en la que se encuentra este campo historiográfico en Latinoamérica.

Susana Sosenski – Doctora en Historia, Investigadora del Instituto de Investigaciones Históricas de la Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM). Ciudad de México – MÉXICO. investigadores/sosenski.html. E-mail: [email protected].


FREIDENRAIJ, Claudia. La niñez desviada: La tutela estatal de niños pobres, huérfanos y delincuentes. Buenos Aires 1890-1919. Buenos Aires: Editorial Biblos, 2020, 302p. Resenha de: SOSENSKI, Susana. Un archipiélago estatal para las infancias populares argentinas (1890-1919). Revista Tempo e Argumento. Florianópolis, v.13, n.32, p.1-6, 2021. Acessar publicação original [IF].

Securing sex: morality and repression in the making of Cold War Brazil – COWAN (RTA)

COWAN, Benjamin A. Securing sex: morality and repression in the making of Cold War Brazil. Chapel Hill, NC: University of North Carolina Press, 2016. Resenha de: ZALUSKI, Jorge Luiz. Impressos, discursos e moralidade nos regimes autoritários instituídos no Brasil. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.12, n.29, e0501. jan./abr., 2020.

Atualmente, os regimes autoritários instituídos durante o século XX na América do Sul e na América Central constituem tema de muitas investigações científicas e, ainda, um profícuo campo de pesquisa na historiografia. No livro Securing sex: morality and repression in the making of Cold War Brazil, Benjamin A. Cowan apresenta uma interpretação sobre determinadas “facetas” dos regimes autoritários instituídos no Brasil, centrando o foco de sua análise na ditadura militar que governou o país entre 1964 e 1985. O autor é Doutor em História pela Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) e realizou estudos sobre as temáticas relações de gênero, sexualidade, movimentos sociais da denominada direita e violências no século XX. Essa obra, que recebeu o prêmio da Associação de Estudos Latino-Americanos (Latino American Studies Association [LASA]) em 2017, ainda não tem tradução para o português.

Para a elaboração da narrativa histórica, o historiador analisou 35 impressos publicados no Brasil entre as décadas de 1930 e 1980. Dentre esses impressos se encontram os jornais O Estado de S. Paulo, Correio da Manhã e O Globo, que circulavam em diversos estados da federação. As revistas de informação, como Claudia, Veja, Manchete, e as revistas produzidas por instituições militares, com ênfase para A Defesa Nacional, Revista Militar Brasileira e Segurança e Desenvolvimento também fazem parte da documentação investigada. Tais impressos foram pesquisados pelo autor em várias instituições, com destaque para o Arquivo Nacional, o Arquivo Nacional do Exército, a Biblioteca da Academia Militar das Agulhas Negras e a Biblioteca do Exército.

A obra se divide em 7 capítulos, que têm como “fio condutor” as ações de diferentes naturezas adotadas por representantes do Estado brasileiro e pelos civis para combater o que foi considerado um “desvio moral” da população à época. O autor, no processo de construção da narrativa histórica, apoia-se no referencial conceitual relativo ao “pânico moral”, idealizado pelo sociólogo sul-africano Stanley Cohen na década de 1970. Benjamin A. Cowan afirma que as mudanças socioculturais ocorridas na sociedade brasileira na segunda metade do século XX geraram novas experiências que provocaram grande preocupação em grupos sociais identificados no campo da política como de direita.

O autor destaca que algumas premissas dos discursos autoritários e moralistas estão presentes na sociedade brasileira durante grande parte do século XX. No primeiro capítulo da obra, intitulado “Only for the cause of the pátria: the frustrations of interwar moralism” (tradução livre: Somente pela causa da pátria: as frustrações do moralismo no entreguerras), Cowan analisa como a política socioeconômica adotada no primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945) contribuiu para instaurar em uma significativa parcela da população novas práticas e novos valores, que acabaram sendo alvo de questionamento por parte de intelectuais, religiosos, juristas e outros personagens identificados com a direita. Para Cowan, parte dos grupos sociais de direita, entre eles integrantes do Movimento Integralista e católicos, que associaram as novas práticas e os novos valores a 2 processos: a) ao comunismo; e b) a uma crise moral que colocava em xeque muitos dos “valores tradicionais da família brasileira” (aqui entendida como a configuração de família das elites), inclusive os relativos à masculinidade. Segundo o autor, o governo de Getúlio Vargas, especialmente durante a Ditadura do Estado Novo, como “resposta” ao referido quadro, optou por manter um estreito “diálogo” com os grupos sociais de direita, adotando políticas nos campos da educação escolar, da assistência social etc. que instituíam e/ou reforçavam uma configuração de família nuclear associada aos valores burgueses e com distinções de gênero Na década de 1960 e no início da década de 1970, a política socioeconômica implementada durante o “Milagre Econômico” pelos governantes da ditatura provocou novas mudanças no âmbito da família e das relações de gênero que foram alvo de questionamentos de grupos sociais de direita. No segundo capítulo da obra, intitulado “Sexual revolution? Contexts of countersubversive moralism” (tradução livre: Revolução sexual? Contextos do moralismo contrassubversivo), Cowan explora como se deu a aproximação entre os civis e os governantes militares, com o objetivo de combater os considerados subversivos. Por meio da análise das revistas Manchete e Realidade, o pesquisador observou que temas como juventude, sexualidade e moralismo estiveram no centro de debates públicos na década de 1960, muitas vezes associados aos discursos comunistas. O autor destaca que muitos jovens brasileiros das diferentes camadas sociais não estavam interessados nos debates públicos da época sobre família e sexualidade. Apesar desse fato, a produção de discursos para a “proteção” da família nuclear burguesa e de determinada perspectiva de sexualidade heteronormativa foi bastante grande. Esses discursos de cunho moralista incitaram a ampliação da vigilância sobre as escolas ginasiais e secundárias e as universidades, vistas como espaços privilegiados onde se propagavam ideais considerados subversivos.

No terceiro capítulo, intitulado “Sexual revolution! Moral panic and the repressive right” (tradução livre: Revolução sexual! Pânico moral e direita repressiva), Cowan enfoca as relações estabelecidas em nível transnacional entre grupos de direita do Brasil e do exterior. Para o autor, após as manifestações estudantis de maio de 1968 emergiu um discurso de crise cultural no Ocidente que contribuiu para a construção de muitas narrativas voltadas ao combate do comunismo e à defesa da família nuclear burguesa. No Brasil, tal discurso foi difundido por meio da ideia de “pânico moral”, que apresentava a resistência armada, a delinquência juvenil e a crítica às relações de gênero como sinônimos de uma crise moral que supostamente destruiria a juventude brasileira. Segundo o autor, integrantes de movimentos sociais, como Tradição, Família e Propriedade (TFP) e Rearmamento Moral do Brasil (RM), tinham por “missão” defender as práticas e os valores morais da família brasileira. Por meio da revista Doutrina de Segurança Nacional, o autor analisou os discursos de membros dos referidos movimentos sociais que foram utilizados para sustentar o moralismo instituído no período e proporcionar legitimidade às ações do Estado brasileiro de diferentes ordens contra aqueles que rompiam com práticas e valores relativos à família compartilhados pela direita.

No quarto capítulo, intitulado “Drugs, anarchism, and eroticism: moral technocracy and the military regime” (tradução livre: Drogas, anarquismo e erotismo: tecnocracia moral e o regime militar), Cowan aborda o papel desempenhado pelos tecnocratas durante a ditadura militar em relação às temáticas família e relações de gênero. Juristas, filósofos, educadores, médicos etc. publicavam artigos na Revista da Escola Superior de Guerra, considerada um dos principais “porta-vozes” do regime autoritário. Esses técnicos, que atuam em diferentes setores da burocracia, sobretudo da federal, partilhavam do ideário que atribuía aos comunistas a difusão de ideais sobre a “liberação das mulheres” que ocasionavam a “degeneração da família” e o “problema da juventude”. A juventude, nesse discurso, era considerada delinquente, usuária de drogas e portadora de práticas e valores relativos à sexualidade que necessitavam ser controlados. Para o autor, o discurso enunciado por esses burocratas se mostrou de fundamental importância na construção de leis e na implementação de políticas sociais no período. Dentre essas leis se destacam o Código de Menores, de 1979, e a Lei do Divórcio, aprovada em 19771.

No quinto capítulo, intitulado “Young ladies seduced and carried off by terrorists: secrets, spies, and anticommunist moral panic” (tradução livre: Moças seduzidas e levadas por terroristas: segredos, espiões e pânico moral anticomunista), o autor investiga os discursos que acusavam uma parcela das mulheres brasileiras de ser responsáveis pela divulgação de discursos de cunho subversivo. As revistas Ação Democrática e A Defesa Nacional dedicaram inúmeras páginas a esse ideário antifeminista e anticomunista. Segundo o historiador, essas duas concepções conjugadas favoreceram a perseguição e a tortura de muitas jovens que integraram os agrupamentos políticos contrários ao regime ditatorial. Em “Brazil counts on its sons for redemption moral, civic, and countersubversive education” (tradução livre: O Brasil conta com seus filhos para a redenção moral, cívica e a educação contrassubversiva), sexto capítulo do livro, Cowan analisa como a disciplina escolar Educação Moral e Cívica (EMC) foi utilizada como “instrumento” de combate ao comunismo. Para o historiador, a EMC articulou em seu conteúdo programático as preocupações construídas em torno do “pânico moral” anticomunista. Por meio da disciplina, esse discurso circulou em larga escala em materiais didáticos produzidos para o ensino ginasial da época. Na revista A Defesa Nacional, por exemplo, eram recorrentes os artigos que entendiam que a escola deveria difundir entre os alunos noções sobre uma masculinidade que subsidiasse a preparação para a carreira militar, bem como para a edificação de uma família nuclear.

No último capítulo do livro, intitulado “From pornography to the pill: bagunça and the limitations of moralist efficacy” (tradução livre: Da pornografia à pílula: bagunça e as limitações da eficácia moralista), Cowan analisa as “fissuras” presentes nos discursos sobre o uso de métodos contraceptivos pelas mulheres durante o processo de redemocratização, iniciado no final da década de 1970. Temas como controle da natalidade e pornografia ganharam destaque nos debates sobre saúde pública do país. Para o autor, os defensores do regime ditatorial teceram largas críticas às políticas sociais colocadas em prática na época, que distribuíam contraceptivos para a população e também passaram a associar o processo de redemocratização à ideia de retrocesso político.

É notável como o historiador mobilizou um grande número de fontes na obra Securing sex: morality and repression in the making of Cold War Brazil, que possibilitou a produção de reflexões inovadoras sobre as temáticas estudadas, muitas vezes de modo tangencial, em relação aos regimes autoritários instituídos no Brasil. Soma-se a esse trabalho de pesquisa das fontes o uso de um extenso e atual referencial bibliográfico sobre as ditaduras brasileiras (governo de Getúlio Vargas e ditadura militar) para além das publicadas em português. Esse fato, que permite que o(a) leitor(a) estabeleça conexões entre as produções nacionais e internacionais. Por fim, a obra contribui com os estudos da História do Tempo Presente seja em relação às temáticas estudadas, seja em relação à temporalidade dos discursos. Dados os recentes acontecimentos no Brasil, uma parte desse passado parece inseparável, como lembra Henry Rousso (2016, p. 302), “um passado que volta para assombrar o presente”.

Referências

ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2016.

Jorge Luiz Zaluski – Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Florianópolis, SC – BRASIL. E-mail: [email protected].

El museo apagado: Pornografía, arquitectura, neoliberalismo y museos – PRECIADO (RTA)

PRECIADO, Paulo B. El museo apagado: Pornografía, arquitectura, neoliberalismo y museos. Colección Posmuseo. Buenos Aires: MALBA, 2017. Resenha de: MELO, Sabrina Fernandes. Museus e neoliberalismo no Tempo Presente. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 11, n.28, p.540-545. set./dez., 2019.

Paul B. Preciado é filosofo e Mestre em Filosofia Contemporânea e Teoria de Gênero pela New School for Social Research, de Nova York e doutor em Filosofia e Teoria da Arquitetura pela Universidade de Princeton. É escritor, curador independente e militante ativo no debate contemporâneo sobre os modos de subjetivação e identidade de gênero, cuja obra Manifiesto Contrasexual (2002) tornou-se referência indispensável para discussão sobre a teoria queer. As reflexões de Preciado perpassam por modalidades alternativas de relações entre corpos e críticas historiográficas de gênero sob uma perspectiva decolonial. Atualmente, o autor ministra aulas sobre Teoria de Gênero em diferentes universidades como Paris VIII, École des Beaux Arts, de Bourges, e no Programa de Estudos Independentes do Museu de Arte Contemporânea de Barcelona.

El museo apagado Pornografía, arquitectura, neoliberalismo y museos é a primeira publicação a integrar a coleção PosMuseo, parte do Programa Público do Museu de Arte Latino Americana de Buenos Aires (MALBA). A coleção objetiva reunir vozes de destaque no pensamento museológico e artístico contemporâneo. O livro, que conta com o prólogo da filósofa argentina Julieta Massacesse, reúne três análises de Preciado sobre museus, exposições, gênero, arquitetura e cidade. Paul Preciado investigou desenhos feitos em banheiros, tratou das exposições de Bjork no MoMA e problematizou as imagens eróticas encontradas nas ruínas de Pompeia. Imagens colocadas em diálogo com a pornografia, entendida como uma categoria de gestão do espaço público. O autor desnaturaliza a organização expográfica das coleções e a ordenação de corpos estabelecida pela arquitetura em taxinomias que distinguem homens e mulheres. O fio condutor dos três textos está na reflexão sobre os espaços pelos quais transitamos, em especial, o espaço cambiante e global dos museus.

Em Basura y Género. Mear/Cagar.Masculino/Feminino, texto originalmente publicado na Revista Web Hartza em 2006, as múltiplas fronteiras nacionais e de gênero são questionadas. Fronteiras difusas e tentaculares que se alastram por cada centímetro dos espaços habitados/vividos/praticados. Em espaços cotidianos utilizados para necessidades fisiológicas básicas, as portas, as janelas e as entradas são reguladas sob uma discreta e efetiva ‘tecnologia de gênero’. Nessa reflexão, a criação de latrinas públicas no século XIX é historicamente problematizada. As latrinas foram inseridas nos espaços urbanos de forma concomitante ao estabelecimento de novos códigos conjugais, definidores dos papéis de gênero relacionados à patologização da homossexualidade e à normalização da heterossexualidade.

As imagens utilizadas para sinalizar as portas dos banheiros públicos se resumem a masculino/feminino, damas/cavalheiros, sombrinhas/bengalas, flores/bigodes. Imagens que, segundo Preciado, dizem mais sobre fazer-se em determinado gênero do que desfazer-se das fezes ou da urina. A arquitetura constrói barreiras quase naturais relacionadas às funções e separações entre homens e mulheres. Escapar desse regime, afirma Preciado, é desafiar a segregação sexual imposta pela arquitetura moderna.

No segundo texto, Museo, Basura Urbana e Pornografia, o mercado de arte e sua articulação com o consumo de produções pornográficas são colocados em pauta. Entretanto, a pornografia a ser consumida é aquela que reside como mero resíduo estético e não aquela oriunda do feminismo e da crítica social. Grandes centros de arte como o Barbican, em Londres, abrigam obras de artistas como Jeff Koons ou de ‘testículos bem desenhados por cavaleiros solenes’. Já artistas, como Daniel Edwards, e sua obra Autópsia de Paris Hilton, transcendem de forma singular o sórdido mundo da pornografia e, com perspicácia, aumentam a transgressão dos YABs (Young British Artists), grupo de jovens artistas britânicos que, a partir do final da década de 1980, produziram obras de contestação à sacralidade da arte.

Na construção de uma nova História da Arte, a pornografia, a prostituição e o feminismo muitas vezes não fizeram/fazem parte do mesmo relato. Na historiografia recente, artistas mulheres dos anos de 1970 e 80 são retomadas e ‘etiquetadas como feministas’: Judith Chicago, Martha Rosler, Rebeca Horn, Marina Abramovich, entre outras. A essas artistas, são cobradas produções relacionadas a temáticas como corpo, maternidade, trabalho doméstico ou aspectos da sexualidade naturalizados como ‘femininos’. Já a pornografia, vista como grosseira, estaria relacionada aos homens. Tal pressuposto explicaria o ‘vazio historiográfico’ referente às práticas artísticas como as de Annie Sprinkle, Linda Montano, Lea Cheang, Maria Llopis e outras tantas artistas que se encontram em novas categorias como pós-pornografia, videoarte ou performance pornofeminista. Neste capítulo, Preciado traça uma genealogia que auxilia no entendimento dos motivos pelos quais a pornografia se converteu, a partir de 1970, em um espaço crucial de análise crítica e, ao mesmo tempo, em espaço de reapropriação para as micropolíticas de gênero, sexo, raça e sexualidade.

Preciado entende a pornografia enquanto discurso cultural. Aponta para uma saturação pornográfica com a grande distribuição de imagens e modos de consumo. Ao mesmo tempo, essa saturação vem acompanhada de uma opacidade discursiva apartada como objeto de estudo cinematográfico e filosófico. O autor retoma a emergência da noção de pornografia nas línguas vernáculas durante a modernidade e nas imagens descobertas nas ruínas de Pompeia. O objetivo é entender a emergência da pornografia no Ocidente como parte integrante de um regime mais amplo – capitalista, global, midiatizado – de produção de subjetividade por meio da gestão técnica da imagem.

Imagens de corpos entrelaçados e desnudos, esculturas de corpos animais e humanos, pinturas, afrescos e murais com representações de falos de grandes proporções, sátiros em terracota, falos em forma de pantera e órgãos genitais masculinos autônomos, foram encontrados nos cantos das ruas, nas paredes das lojas ou servindo como lápides na antiga cidade de Pompeia. Imagens até então soterradas, reprimidas, desconhecidas que desvelam outro modelo de conhecimento e organização dos corpos e das formas de prazer na Antiguidade. Tipologia contrária àquela desenvolvida na Europa do século XVIII, momento das escavações em Pompeia e do encontro dessas imagens.

Em 1794, as escavações iniciadas pelo Rei Carlos III reuniram um enorme contingente de imagens eróticas, que ganharam uma sala própria no Museu Herculano, em Portici, Itália. No século XIX, as imagens foram transferidas para o Museu Royal Bourbon, atual Museu Arqueológico de Nápoles, conhecido como Museu Secreto. A coleção secreta das imagens eróticas era resguardada em local fechado e a visitação era regulada através de dispositivos de vigilância e controle. De acordo com um decreto real, a entrada era proibida para mulheres, crianças ou pessoas de classe popular. Somente os aristocratas poderiam adentrar o espaço, o que configurou novas categorias de feminilidade, infância e classes populares, ao mesmo tempo em que emergia uma nova hegemonia político-visual. A palavra pornografia surgiu neste contexto museológico, conceituada pelo historiador da arte alemão C. O. Muller, que definiu a raiz grega da palavra (porno – grafei: pinturas de prostitutas, escritos sobre a vida de prostitutas) e deliberou a coleção do Museu Secreto como pornográfica. Em 1864, o Dicionário Webster definiu a palavra pornografia como as pinturas obscenas utilizadas para decorar os muros das habitações de Pompeia, cujos exemplos se encontravam no Museu Secreto. Preciado defende que a regulação desse espaço museológico secreto e da taxonomia aplicada a esses objetos podem ser entendidos como marcos fundadores de uma racionalidade visual, sexual e urbana da modernidade ocidental do que viria a ser a pornografia. Estratégias relacionadas ao controle do olhar, da visualidade, da ocupação dos espaços públicos, de limites daquilo que é ou não visível ao público.

Preciado aponta que a introdução do conceito de pornografia pela História da Arte abre caminho para o surgimento de medidas higienistas no século XIX, principalmente nas metrópoles modernas. A pornografia aparece associada à prostituição nas cidades como questão de saúde pública e passível de medidas policiais e sanitárias para mediar a atividade sexual no espaço público, além disso, é percebida como uma categoria higiênica e um dispositivo de regulação da sexualidade e domesticação de corpos, sobretudo das mulheres.

No último texto, El Museo Apagado, Preciado aborda o papel dos museus de arte moderna e contemporânea na era do liberalismo a partir de duas exposições: a de Bjork no MoMA e a de Jeff Koons no Pompidou. Tais exposições demostram os grandes investimentos direcionados para os museus e o marketing de exposições. Segundo o autor, a tentativa das grandes corporações é fazer com que o museu torne-se um local rentável e uma indústria de produção e venda de bens de consumo. Uma das estratégias é realizar megaexposições, com artistas conhecidos visando principalmente o turismo. No chamado “museu barroco- financeiro” tudo é intercambiável, os signos e o dinheiro se sobressaem à experiência e à subjetividade.

Os textos de Preciado discutem a questão da pornografia e da (re)configuração dos grandes museus e exposições, uma questão extremamente atual, percebida no MoMA de Nova York, em exposições como “Queer Museu” e com a mostra “Histórias das Sexualidades”, no Museu de Arte de São Paulo, o MASP.

Sabrina Fernandes Melo – Doutora em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora Adjunta do Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professora permanente no Programa Associado de Pós-graduação em Artes Visuais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) João Pessoa, PB – BRASIL. E-mail: [email protected].

HUNT, Lynn. History: Why It Matters. Cambridge: Polity Press, 2018. 140p. Resenha de: SILVA, Guilherme José da. Agora mais do que nunca: History Why it Matters. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 12, n. 29, e0502. jan/abr. 2020

A história, e não é de hoje, tem sido alvo das mais diversas disputas, que foram acentuadas exponencialmente com o avanço dos meios de comunicação da era digital. Algumas destas controvérsias são muito arriscadas, levando-nos a enfrentar negacionismos da história. Outras concernem a embates de memórias sobre tragédias, identidades e discursos. Por esses motivos, a história hoje é mais importante do que jamais foi.

É dessa maneira que Lynn Hunt inicia sua jornada intelectual para tornar lúcidos alguns dos principais motivos, no que diz respeito à compreensão epistemológica da autora e do consenso acadêmico, da história ser importante na atualidade, enquanto disciplina e como ferramenta utilitária na costura do tecido social. A autora, embora tenha nascido no Panamá, viveu e foi criada no estado de Minnesota, nos Estados Unidos, tendo concluído grande parte de seus estudos acadêmicos entre as décadas de 1960 e 1970, época emblemática envolvendo os movimentos de maio de 1968. O recorte histórico, o espírito revolucionário da época e as reivindicações próprias do período atraíram sua atenção ao estudo sobre a Revolução Francesa, âmbito de pesquisa que a tornou conhecida em outros países. Em 2014, foi reconhecida pela Academia Britânica como parceira associada, um reconhecimento de distinção acadêmica nos estudos de humanidades e ciências sociais, título geralmente conquistado através de trabalhos publicados, no caso de Hunt, muito provavelmente por obras como A Invenção dos Direitos Humanos, de 2007, tendo sua versão traduzida em 2009, e Writing history in the global era de 2014, ainda inédito no Brasil.

History: why it matters é composta por quatro capítulos, o primeiro chamado Now more than ever, seguido por Truth in history, History’s politics e History’s future1. O livro faz uso de uma linguagem acessível, embora isso não o torne superficial, tendo em vista que compõe a série Why it matters2, da editora inglesa Polity3. A série tem por objetivo introduzir assuntos, através de lideranças intelectuais relevantes, e inspirar uma nova geração de estudantes, o que também elucida a forma com que Lynn Hunt constrói sua narrativa, evitando citações longas, fornecendo subdivisões curtas de seus capítulos, além de utilizar como mola propulsora para seus debates, de forma harmônica, recortes de tempo e espaços próximos e remotos da história, navegando entre Roma Antiga, a corrida eleitoral estadunidense de 2016, as produções de livros didáticos no Japão e discussões memoriais do pós-guerra.

O fato de ser uma produção recente, lançada em maio de 2018, desfavorece a acessibilidade de leitores que não compreendem língua inglesa, pois, pelo menos no Brasil, ainda não há tradução ou mesmo previsão para tal. No entanto, em termos documentais, esse aspecto só tem a acrescentar no conjunto da obra, fato visível ao observarmos a seção de notas e referências, as quais trazem produções muito atuais, o que nos proporciona não só informações cada vez mais contemporâneas e acuradas, mas também perspectivas coerentes com o mundo interseccional que presenciamos manifestado na questão da globalização. Não é à toa que Hunt preocupa-se constantemente em fazer esse giro epistemológico, trazendo exemplos e perspectivas de várias localidades. Suas experiências pessoais e acadêmicas evidenciam e tornam compreensível a preocupação, considerando ser uma mulher adentrando ao mundo acadêmico em um momento histórico que este movimento era considerado contra-hegemônico. Focalizando na obra, em um primeiro momento, a autora define algumas categorias de análise que remetem a estas disputas de interesse político e os usos e abusos da história. Dentre elas, podemos salientar as mentiras, ou simplesmente, as fake news; Hunt é muito feliz não só em estabelecer momentos da história que compõem muito bem suas teses, mas também de construir seu argumento de forma sagaz e fluída através desses fatos ilustrativos. Outras ferramentas nessas pelejas discursais seriam os monumentos, os quais emendam um debate extremamente presente na atualidade: a possibilidade de alternância patrimonial. Se em determinado momento e espaço, alguns patrimônios evocam ideias e figuras que já não cabem em uma democracia constituída, eles devem, no entanto, permanecer para que a história não seja desvanecida ou devem ser superados para que novas construções tomem seu lugar? Em todo caso, essas disputas são políticas.

Fenômenos no tempo como as falsificações, as disputas patrimoniais, a produção de livros didáticos e mesmo os confrontos relacionados às memórias de guerra são amostras de como o mundo globalizado acentua os debates que envolvem a história. Isso tudo nos leva a pensar como a história pública tem se tornado um campo de lutas cada vez mais borbulhante, tal qual a própria autora faz questão de trabalhar em seu livro. A era da informação digital transformou o modo como a população alheia à produção acadêmica consome as produções de temática histórica. Para além de filmes, romances, vídeo games, apresentações, se intenta em viver a experiência histórica em níveis sensoriais, entretanto, nenhuma dessas vivências, nem mesmo as disputas sobre a memória têm muita importância caso não sejam embebidas em uma catalogação verídica dos fatos e uma problematização coerente sobre o passado. No entanto, como a autora coloca, é necessário reconhecer que a experiência histórica hoje é diferente do que jamais foi, e é preciso, então, não negar essas experiências, mas apreendê-las para melhor balancear a engenhosidade, a precisão e a reflexão histórica.

Tamanhas são as guerras travadas nas trincheiras da história, que se faz necessário estabelecer os meandros da ciência histórica. Dando continuidade a isso, Lynn Hunt explana, então, alguns portos seguros no que se refere às práticas e métodos históricos, para que possamos encontrar alguma verdade na história. De início, temos dois grandes pilares do conhecimento histórico: o documento e o fato. Os documentos nos auxiliam a construir uma narrativa sobre o passado, ou sobre o que nos é revelado do passado por meio das fontes históricas. As fontes existem, no entanto, os fatos são construídos e, portanto, podem ser reconstruídos. Eles são provisórios, o que não quer dizer falsos ou inverídicos; eles têm sua permanência até que novos documentos providenciem novos questionamentos ao passado e, por conseguinte, novas interpretações. Isso nos leva também a um ponto importante da reflexão de Hunt: os fatos fabricados, que muitas vezes nos surgem por meio de documentos falseados com interesses políticos. Cabe ao historiador escavar e cruzar fontes para que as falsas possam ruir diante das contradições expostas através das múltiplas perspectivas documentais.

A partir daí, a autora levanta apontamentos pertinentes quanto à centralidade epistemológica hegemônica em relação à ciência histórica: o eurocentrismo. Hunt resgata a ideia europeia de verdade histórica construída ao longo do século XIX no processo de formação disciplinar da história, principalmente ao apresentar outras documentações que revelam outros espaços e tempos na história, nos quais essa concepção já era presente, de acordo com as especificidades do recorte. Os europeus em si têm essa “vantagem”, angariada pela colonialidade enquanto dominação física e mental, de que não precisam preocupar-se com outras localidades e perspectivas ao desenvolverem suas teses, enquanto o contrário não ocorre sem críticas.

A exposição dessas perspectivas, alheias ao que se pode considerar o mainstream acadêmico, indicam, certamente, uma percepção latente de Lynn Hunt, influenciada por sua própria trajetória pessoal dentro das universidades e em sua vida, como relata ao longo do livro. Hunt ao perpassar a história da disciplina de História, analisa as modelações pelas quais a ciência histórica passou para atender as demandas de um grupo restrito da sociedade e que, resquícios dessas limitações permanecem, manifestados, em parte, em sua experiência como uma das poucas mulheres de um corpo docente universitário. A mudança gradual, segundo a autora, não possui uma importância em apenas incluir minorias sociais em ambientes que historicamente não as aceitavam, mas que tal movimento é importante para a própria construção do conhecimento histórico, pois democratiza, pluraliza e estimula novas perspectivas do que entendemos como História.

A história, em constante agregação do plural na atualidade, também foi e continua sendo remexida pela erupção de informações e concepções sobre o passado, sejam elas embasadas cientificamente ou não. A preocupação com uma nova revolução da informação agitou novas perspectivas dimensionais; as relações humanas vêm tomando formas nunca experienciadas, o que se reflete em uma concepção de tempo mais interseccionada, unindo dimensões locais, nacionais e globais de diversas direções. Hunt coloca como uma forma de superarmos a ideia do ser humano como o centro do conhecimento, para que possamos compreender as infinitas relações entre nós, enquanto sujeitos de estudo, para com o que nos cerca, como os animais, os micróbios, plantas e etc.

Estes pontos levantados por Hunt impulsionam debates sobre como utilizamos a História para o presente. O senso de continuidade foi e continua sendo uma ferramenta filosófica orientadora no que diz respeito à concepção cidadã da História. O que nos coloca frente ao presentismo4, uma tensão duradoura, mas que nos leva a armadilhas, como o anacronismo, as quais devemos evitar. Por fim, a História tem o potencial cívico de investigar como os seres do passado enfrentaram as problemáticas de seus tempos e essa é uma das grandes oportunidades que a disciplina nos apresenta. Hunt encarou um grande desafio ao intentar apontar ideias concernentes à ciência histórica em um formato palatável e que dialoga constantemente com o que se entende como História Pública, mas, mais do que um conteúdo bem estruturado e embasado, os seus questionamentos possuem um grau de relevância para que, como ela mesma coloca, possamos manter o espaço de debate histórico sempre em movimento, para que questionemos os lugares comuns dentro da própria ciência histórica, afinal, a história não permanece estagnada.

1 Respectivamente: “Agora mais do que nunca”, “Verdade na história”, “Política da história” e o “Futuro da história.”

2 Why It Matters. Polity Books. 2019 <http://politybooks.com/serieslanding/?subject_id=88&series_id=50> Acesso em: 29 de mar. 2019.

3 About. Polity Books. 2019 <http://politybooks.com/about/> Acesso em: 29 mar. 2019.

4 Por presentismo, podemos entender a predominância do presente sobre as relações com o passado ou mesmo o futuro, como bem desenvolve François Hartog (HARTOG, 2003).

Guilherme José da Silva – Mestrando no programa de Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória) da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Florianópolis, SC – BRASIL. E-mail: [email protected].

Podemos gobernarnos nosotros mismos: La autonomía, una política sin el Estado – BASCHET (RTA)

BASCHET, Jérôme. Podemos gobernarnos nosotros mismos: La autonomía, una política sin el Estado. Chiapas: Ediciones Cideci, 2017, 150 p. Resenha de: GUERRA, Rodrigo de Morais. Autonomia, espacialidades e novas sociabilidades no Tempo Presente: a experiência zapatista. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.11, n.28, p.534-539. set./dez., 2019.

Consagrado pelos seus estudos sobre o medievo, Jérôme Baschet nos propõe com “Podemos gobernarnos nosotros mismos: La autonomia, una política sin el Estado” uma nova perspectiva acerca do seu trabalho como historiador, bem como, acerca das relações político-sociais do Tempo Presente. Professor da Universidad Autónoma de Chiapas, desde 1997, Baschet vivenciou o enfervecido contexto mexicano de fins do século XX e presenciou um dos momentos mais marcantes da história dos novos movimentos sociais latino-americanos: a insurgência zapatista para o mundo no 1º de janeiro de 1994. Neste livro, o historiador adentra ao complexo universo zapatista, explora suas espacialidades e nos oferece novas reflexões a respeito das (con)vivências em sociedade e seus desafios frente a uma pluralidade de mundos que coexistem em nossas ricas diferenças culturais.

Oriunda de uma verdadeira imersão intelectual e antropológica, a pesquisa de Baschet resulta em um estudo que tem como problemática central compreender de forma mais aprofundada as sociabilidades zapatistas, a partir de uma análise ampla do conceito de autonomia e seus efeitos. Para tanto, a obra gira em torno de duas perguntas basilares: “o que pode ser uma política da autonomia?” e “há outras opções frente a devastação capitalista?”. A fim de endossar este debate, temos, logo de início, uma distinção política que polariza a problemática em questão por meio de duas formas, não apenas distintas, mas antagônicas, de exercer um governo: a política de arriba e a política de abajo. Como forma política de arriba, temos uma política que segue as instituições do Estado moderno, englobando seus partidos políticos, toda a classe política e todo o seu aparato burocrático; por outro lado, como forma política de abajo, temos uma política que segue estritamente o povo. Para além de suas distinções estruturais, essas duas formas políticas diferem, essencialmente, em suas manifestações de poder e participações plenamente democráticas, assim, ambas as formas políticas apresentam-se numa condição de total incompatibilidade, de modo que, a primeira (de arriba), caracterizada, por desapropriar o povo de suas capacidades de auto-organização, por meio de seus mecanismos institucionais, não admite o pleno exercício da segunda (de abajo); que, por sua vez, não tem como ser exercida se não combater a primeira e o seu monopólio na centralidade do poder. Portanto, diante de tal cenário, a autonomia zapatista incorpora um caráter anti-institucional: uma forma política de abajo, exercida por e para o povo e constante combatente à centralidade do poder político heterônomo estatal (de arriba).

Sendo assim, a autonomia zapatista, uma configuração governamental político-popular, fruto de um processo histórico de lutas e resistências frente à imposição do poder (o que caracteriza a violência) de cima para baixo, ocupa o cerne do texto com sua conceituação e aplicabilidades práticas. A autonomia surge, destarte, não como um sonho ou devaneio dos indígenas de Chiapas, mas como uma arma de resistência, como um refúgio para a proteção de suas vidas, como uma resposta ao Estado moderno heterônomo capitalista e, incessantemente, mantém seu processo construtivo ativo, diante das necessidades de adaptação e autotransformação, a partir dos novos desafios propostos pela experiência vivida. Dessa forma, a autonomia zapatista materializa-se numa configuração que Jérôme Baschet (2017) distingue em três dimensões: a comunidade, ou seja, o modo de organização dos povos indígenas, assumindo a dimensão coletiva do viver; o território, compreendido como as partes habitadas e cultivadas, mas também bosques e montanhas, como o lugar próprio da consistência e singularidade da comunidade; e a terra, dimensão caracterizada por Baschet como “potência de vida englobante”, que seria, portanto, sua vida, sua tradição, sua cultura, sua visão do mundo, sua coesão e sua identidade (BUENROSTRO Y ARELLANO, 2002, p. 17). Em sua aplicabilidade prática, a experiência zapatista ainda propõe uma organização política articulada em outros três níveis: comunidade, município e zona, nos quais, cada um dispõe de mecanismos vigilantes de seus plenos funcionamentos enquanto política de abajo, tais como: assembleias e autoridades eleitas, Conselho municipal autônomo e Juntas de bom governo, conformando, assim, a estrutura organizativa política autônoma de abajo zapatista.

Ao ser estabelecida uma estrutura política para gerir um sistema autônomo, podemos nos indagar sobre a real horizontalidade neste governo, pois, se há instituições organizativas das sociabilidades dos sujeitos, presume-se que há hierarquias e superioridades. Entretanto, a existência de uma estrutura reguladora do poder não deve ser confundida com um sistema de dominação através do poder. O poder, em sua essência, jamais será singular, mas sempre plural, como nos advertiu Hannah Arendt (2010); o poder aparece, pois, como manifestação organizativa das aspirações coletivas. Dessa forma, a autonomia, por mais que se estabeleça sob a responsabilidade de promover uma sociedade em que todos estão em pé de igualdade e todos têm responsabilidade sobre todos, ainda assim, é um modelo político no qual as relações de poder são fundamentais para a sua existência e sobrevivência. Para lidar com essa questão, os zapatistas dispõem de mecanismos reguladores que preservem a forma política de abajo de se autogovernar, para tanto, o seu já consagrado oximoro mandar obedecendo é um dos pilares de sustentação do bem caminhar da autonomia. Algumas características fundamentais do mandar obedecendo que regulam esta dinâmica são: os mandatos se concebem como cargos realizados para servir à comunidade, sem remuneração, nem nenhum tipo de vantagem material; ninguém se autopropõe para as funções e são as próprias comunidades que solicitam a quem consideram que podem exercê-las; os cargos são assumidos sobre a base de uma ética efetivamente vivida do serviço à coletividade; e os cargos sempre são exercidos de maneira colegiada e sob o controle permanente tanto da “Comissão de vigilância”, responsável por conferir as contas dos conselhos, quanto da população, à vista que os cargos são revogáveis a qualquer momento, fazendo valer a máxima de que o poder só é efetivado quando a palavra e o ato não se divorciam (ARENDT, 2010, p. 249).

Ademais das características descritas que garantem a governabilidade autônoma, o mandar obedecendo engloba um outro aspecto de fundamental importância que consiste na “desespecialização” das tarefas políticas. A partir de uma não especialização dos representantes do povo no governo, o exercício da autoridade se cumpre desde uma posição de não saber e “asumir ese no saber es lo que permite ser una ‘buena autoridade’, la cual se esfuerza por escuchar y aprender de todos, sabe reconocer sus errores y deja que la comunidad la guíe en la elaboración de las decisiones” (BASCHET, 2017, pp. 32-33). Logo, permitindo que o mandar obedecendo constitua uma “sólida defensa contra el riesgo de una separación entre gobernantes y gobernados (BASCHET, 2017, p. 33). Por fim, “Podemos gobernarnos nosotros mismos” traz importantes contribuições para o campo teórico no estudo da autonomia. Uma primeira reflexão diz a respeito de que uma política não-estatal não exige, necessariamente, um horizontalismo puro: há momentos em que o povo manda e o governo obedece, e há momentos em que o povo obedece e o governo manda, configurando, dessa forma, o exercício coletivo do poder, como já apontamos, o que, por sua parte, não dissocia inteiramente as duas relações inversas, mas as coloca numa condição de reciprocidade. Desta forma, não se trata de um poder heterônomo e, tampouco, de uma perfeita horizontalidade, mas o exercício de uma coletividade do poder que permite o pleno funcionamento da autonomia e não põe em risco toda a dinâmica de governo. Posto isso, enquanto que o Estado heterônomo emprega um modelo de delegação dissociativa, ou seja, na articulação com a estrutura social, almeja produzir e reproduzir a separação entre governantes e governados, concentrando o “poder-sobre” em um aparato burocrático e um grupo isolado; a autonomia sugere um modelo de delegação não dissociativa, ou seja, busca restringir ao máximo a separação entre governantes e governados, através de mecanismos ativos no combate à dissociação e na manutenção do uso efetivo da potência coletiva.

Por último, mais uma importante provocação levantada por Baschet (2017) consiste na eterna condição de inacabada da autonomia, o que o autor coloca como “um processo sem fim”. A autonomia, desse modo, consiste, portanto, em uma manifestação política incompleta e, necessariamente, infinita, pois, a pretensão de se criar uma sociedade ideal que afirmaria ter alcançado seu objetivo e sua forma última, completa e realizada, significaria, imediatamente, a morte da autonomia, haja vista que a autonomia, tal qual o rio de Heráclito, está, cotidianamente, transformando e transformando-se, destacando, dessa forma, uma condição paradoxal para a sua vigência: a autonomia só existe enquanto ela não é. Diferentemente das utopias normativas, que partem de pressupostos e objetivos finais a priori, a autonomia parte das singularidades de suas vivências concretas, utilizando-se da sua inacabável capacidade de adaptar-se e reinventar-se, o que os zapatistas tratam como “buscar el modo”, ou seja, descartar toda resolução pronta, abstrata e geral. Opondo-se, drasticamente, às lógicas constitutivas do Estado capitalista, a autonomia “es una política procesual que no puede ser(pre)determinada por ningún texto; se ubica en las antípodas del fetichismo de la Constitución” (BASCHET, 2017, p. 64). Portanto, a busca pela autonomia consiste na elevação do espírito inquieto, na permanente insatisfação, na constante vigilância frente aos erros e incansáveis esforços para retificá-los. Trata-se de uma experimentação que busca seu caminho, caminhando.

Em suma, o autogoverno zapatista não é mais que uma expressão da capacidade coletiva de organizar-se e afirmar formas de vidas próprias aos avanços da coletividade e dignidade compartilhada. Muito mais do que uma utopia, a autonomia mostra-se como uma arma de resistência, como uma “potência destituinte” (BASCHET, 2017), como um caminho em busca da emancipação abarcado por uma dupla dimensão: destruição-negação do mundo capitalista que ameaça a vida indígena; e construção-afirmação de uma nova sociabilidade possível. A experiência zapatista extrapola os limites das simplistas interpretações da autonomia, nos propõe novos modelos de espacialidades e nos faz repensar as sociabilidades regidas por um Estado heterônomo: valorosas contribuições em tempos de crises políticas no Brasil, na América-Latina e no mundo.

Rodrigo de Morais Guerra Mestrando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Natal, RN – BRASIL. E-mail: [email protected].

Ditadura e Democracia: legados da memória – RAIMUNDO (RTA)

RAIMUNDO, Filipa. Ditadura e Democracia: legados da memória. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2018. Resenha de: SILVA, Paulo Renato da. Os “cravos” da memória: democracia e passado autoritário em Portugal. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.11, n.28, p.546-552. set./dez., 2019.

Ditadura e Democracia: legados da memória, da socióloga Filipa Raimundo, foi publicado em 2018 pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. O livro é o 87o da coleção “Ensaios da Fundação”, uma das mais importantes coleções portuguesas tendo em vista a publicação de títulos que superem o meio acadêmico.

Escrito em linguagem acessível – mas não simplista –, e bem estruturado, o livro é composto por uma introdução, quatro capítulos e uma conclusão. Na introdução, De que é que trata este livro?, a autora evidencia o propósito do livro, a análise “(…) da relação da democracia portuguesa com o seu passado autoritário e dos elementos que têm contribuído para a construção da memória deste período (…)” (p. 9). No caso de Portugal, o passado autoritário se refere ao Estado Novo (1933-1974), período marcado pelo governo de António de Oliveira Salazar (1889-1970), Presidente do Conselho de Ministros entre 1932 e 1968, quando sofreu um acidente e foi afastado de suas funções. A Revolução dos Cravos, de 25 de abril de 1974, representou o fim da ditadura do Estado Novo1. Para leitores que não sejam de Portugal, é importante acrescentar que o primeiro governo constitucional eleito depois da ditadura se estabeleceu apenas em julho de 1976, informação que ajudará a compreender alguns elementos tratados no livro e críticas feitas à condução da Revolução dos Cravos por diferentes grupos políticos portugueses.

O capítulo 1, Democracia e passado autoritário, destaca como as democracias de cada país se relacionam de modo diferente com os seus respectivos passados autoritários. “A decisão de punir ou não os responsáveis pelo regime deposto é, em larga medida, um produto das condições políticas existentes durante a mudança de regime. (…). Mais tarde, só conjunturas críticas permitem mudar a relação entre um povo e o seu passado autoritário” (p. 17). No capítulo 2, Ajustar contas com o passado, Raimundo passa a focar no caso português; analisa como alguns nomes ligados ao Estado Novo sofreram sanções institucionais e políticas depois da queda da ditadura e como outros foram processados criminalmente pelos atos cometidos. O capítulo 3, Romper com o passado, mas sem o apagar, analisa as novas narrativas sobre o passado promovidas a partir da Revolução dos Cravos, “(…) acções no plano simbólico e museológico [que] permitiram que a democracia se legitimasse tanto por oposição como por rejeição ao regime anterior, mesmo que ela nem sempre tenha sido tão profunda quanto a narrativa revolucionária faria supor” (p. 55). No capítulo 4, O antifascismo como imagem de marca, a autora investiga o tema das reparações econômicas e simbólicas aos perseguidos pela ditadura até os dias atuais. No início, as associações de perseguidos tinham o principal objetivo de libertar os presos políticos e “(…) sua existência foi relativamente efémera, tendo em conta a relativa rapidez com que os presos políticos foram libertados” (p. 77). Atualmente, poucas associações reuniriam ex-membros da oposição e da resistência e as atuais propostas de reconhecimento estariam muito concentradas nas mãos dos partidos políticos. Enquanto as associações primariam pelo reconhecimento simbólico, dos partidos políticos viriam as principais propostas de compensação financeira aos perseguidos. “(…) os beneficiários desses mecanismos parecem ser, em grande medida, os militares e simpatizantes dos partidos que lideram as propostas legislativas” (p. 78). De acordo com Raimundo, a reunião das iniciativas de sucessivos governos e dos principais partidos, sobretudo de esquerda, “(…) mais do que dar resposta a (…) certos sectores da sociedade, poderá ser encarada (…) como uma forma de cultivar uma imagem de marca através da qual podem reforçar as suas credenciais democráticas e chamar a si a herança da luta pela democracia e contra o autoritarismo” (p. 78). Na Conclusão, a autora faz um balanço do tratado em todo o livro e aponta aquilo que ficou de fora2.

Os méritos do livro começam pela própria temática, pois a memória de um passado autoritário é sempre um tema complexo e controverso. Ao abordar o tema, Raimundo sistematiza e analisa as principais ações quanto a esse passado3, destacando as contribuições, limites e contradições das medidas adotadas por governos, partidos e associações de perseguidos pela ditadura. Além disso, a autora evidencia as relações entre esse passado e a política portuguesa contemporânea, indicando como os usos dessa memória variam entre governos e partidos de diferentes vertentes políticas. Já comentamos que, segundo o livro, os usos desse passado estariam relacionados à construção de “credenciais democráticas” para os partidos e governos e a maioria das propostas de reconhecimento dos perseguidos partiria de governos e partidos de esquerda. Entretanto, ainda que não haja reivindicação do passado autoritário pelos atuais partidos portugueses, a autora demonstra que existem divergências sobre o reconhecimento aos perseguidos e a condução do processo revolucionário, o que aponta para diferentes concepções de democracia em Portugal após a Revolução dos Cravos. Para mencionar apenas um exemplo tratado no livro, além de indicar divergências existentes entre os próprios partidos de esquerda, Ditadura e Democracia mostra como o CDS, partido conservador português, procurou estender uma lei que beneficiava os perseguidos pela ditadura aos que sofreram sanções pelo processo revolucionário iniciado em abril de 1974, o qual teria cometido abusos semelhantes aos da ditadura:

Como mostram os registros da Assembleia da República, duas semanas depois da aprovação da Lei 20/97, aquele partido [CDS] apresentou uma proposta de alteração da lei que se baseava no facto de muitos portugueses terem sido “perseguidos e vítimas de repressão em virtude das suas convicções democráticas e anticomunistas [grifo meu]. Foram deste modo prejudicados no exercício das suas profissões, afastados ou saneados dos cargos e funções que desempenhavam, impedidos de ensinar, obrigados a recorrer à clandestinidade ou ao exílio, tendo em alguns casos sido presos por longos períodos. (p. 91) Se na Assembleia existem tensões sobre o tema, na sociedade portuguesa não poderia ser diferente. Raimundo destaca várias reivindicações de António de Oliveira Salazar em Santa Comba Dão, terra natal do ditador, e na imprensa, como o caso do documentário da RTP – uma das principais redes de televisão de Portugal – que apresentou Salazar como o expoente do século XX português (p. 10-14). “Tendo já superado a longevidade do regime autoritário, a democracia portuguesa dificilmente poderá continuar a ser apelidada de ‘jovem’. Ainda assim, estes temas surgem no debate com relativa frequência (…)” (p. 14). Ao apontar para as divergências existentes na Assembleia e na sociedade portuguesa – ainda que pontuais, esporádicas e minoritárias –, o livro nos leva a considerar que existem elementos que poderiam mudar a relação dos portugueses com seu passado autoritário diante de eventuais “conjunturas críticas”, conforme a autora defende no início de Ditadura e Democracia sem mencionar especificamente o caso português.

Ainda sobre a sistematização das ações e medidas tomadas em relação ao passado autoritário português, o livro se destaca pela comparação com o ocorrido em outros países europeus, africanos e latino-americanos, destacando convergências e divergências em relação a Portugal. A autora defende que “(…) o conhecimento sobre a forma como se ajustou contas com o passado noutros países poderá contribuir para mitigar a avaliação negativa que os portugueses fazem do seu próprio processo de ajuste de contas (…)” (p. 53). Raimundo apresenta dados de uma pesquisa que coordenou, na qual 95% de 131 perseguidos pela ditadura responderam que não teria ocorrido justiça no caso português (p. 51). A autora cita que nos casos de Espanha e Brasil, por exemplo, a opção punitiva não esteve nem sequer à disposição da elite política (p. 53). Além desse esforço de História Comparada, é necessário valorizar, ainda, o diálogo multi e interdisciplinar apresentado pelo livro entre áreas como História, Direito, Ciência Política e Sociologia.

Quanto às polêmicas suscitadas pelo livro, uma delas se refere ao termo “ajuste de contas” para se referir às sanções e processos sofridos por nomes ligados ao Estado Novo depois da Revolução dos Cravos. A polêmica, por exemplo, apareceu em 21 de setembro de 2018 no lançamento do livro no Museu do Aljube – Resistência e Liberdade, uma das principais referências quanto à memória do Estado Novo português. O lançamento no Museu do Aljube contou com comentários de Fernando Rosas e Riccardo Marchi. Rosas foi enfático na crítica ao termo “ajuste de contas”: “Ajuste de contas ou responsabilização cívica e criminal de responsáveis da ditadura e dos seus crimes? Ajuste de contas tem um subtexto. É o subtexto da vingança. Não se trata bem de um ajuste de contas. Trata-se de justiça.” (2018, 17m30s).

Para leitores da maioria dos países latino-americanos e em particular do Brasil, como é o caso do que aqui escreve, o livro pode soar deveras crítico quanto à forma como a Revolução dos Cravos lidou e como os governos constitucionais têm lidado com a memória do passado autoritário português. Deveras crítico, pois muitos de nós ainda esperamos ansiosamente por um “ajuste de contas”, ainda que limitado e com imperfeições. Assim, para muitos de nós latino-americanos, ler o livro é experimentar um choque entre a nossa temporalidade e a portuguesa no que se refere à relação com o passado autoritário. Só é possível criticar o “ajuste” com o passado quando o processo foi feito ou pelo menos tentaram fazê-lo.

A crítica feita por Ditadura e Democracia é necessária e muito bem-vinda. Serve de experiência e referência àqueles que ainda esperam por um “ajuste” com o passado. Entretanto, faltou ampliar a contextualização das limitações e contradições apresentadas no caso português. Ressaltamos: os excessos cometidos no pós-25 de Abril de 1974 devem ser lembrados e criticados para (des)construir e historicizar os discursos políticos em Portugal desde então. Devem ser lembrados e criticados, pois, em alguns casos, foram muito graves e resultaram em “(…) diversas prisões arbitrárias, uso de tortura e violenta agressão física” (p. 99-100), conforme apontou comissão constituída para averiguar os excessos. Contudo, esses excessos também estão profundamente relacionados a um estrangulamento do espaço público promovido por décadas pelo Estado Novo. O (re)estabelecimento de princípios legais e constitucionais depois de períodos autoritários não é um processo simples. Por sua vez, que os excessos de Abril sejam “esquecidos” ou silenciados por forças políticas que outrora os promoveram ou defenderam (p. 99-101) também deve ser analisado como um sinal de revisão do passado revolucionário por essas forças e de seu alinhamento – ou submissão – a valores presentes na sociedade portuguesa contemporânea ou em setores expressivos dela. Para além dos interesses imediatos, presentes nos usos que os partidos e governos fazem do passado autoritário, caberia apontar como a experiência democrática transformou as forças políticas portuguesas e provocou mudanças na forma de lidar com a memória da ditadura e da Revolução dos Cravos. Em outras palavras, o “esquecimento” ou o silenciamento dos excessos cometidos por Abril talvez indiquem um aprendizado maior com a democracia do que reivindicações de Salazar em sua terra natal ou em programas de televisão de grande alcance. Enfim, faltou ao livro um equilíbrio entre a crítica à memória de Abril e os legados que a Revolução dos Cravos deixou para a democracia portuguesa, o que implica conceber a democracia para além do seu aspecto institucional.

Em tempos nos quais o passado autoritário brasileiro é minimizado ou mesmo negado por expoentes e setores de nossa política e sociedade – o que se verifica com variações em outros países latino-americanos –, a leitura de Ditadura e Democracia nos conecta com experiências históricas vividas pelos portugueses desde a queda da ditadura. Ajuda-nos a pensar nas particularidades de cada processo, mas também nos problemas e dilemas em comum deixados por governos autoritários e ditatoriais. Quanto às críticas que Filipa Raimundo faz aos usos da memória do passado autoritário português e da Revolução dos Cravos, estas nos servem, sobretudo, para que a sociedade civil seja a grande promotora de nosso “ajuste” e, assim, não fiquemos à mercê das instabilidades que marcam a política partidária e institucional. 1 Entre 1968, quando Salazar se acidentou, e 1974, quando ocorreu a Revolução dos Cravos, a presidência do Conselho de Ministros foi exercida por Marcello Caetano. 2 “Este livro não teve a pretensão de apresentar uma análise exaustiva das ferramentas e mecanismos usados para lidar com o passado em Portugal. (…). Ficaram de fora desta análise muitos outros aspectos, tais como: o exílio forçado da cúpula do regime, a punição dos funcionários da Legião Portuguesa, o Tribunal Cívico Humberto Delgado, a mudança na toponímia, a proibição de constituição de partidos fascistas, a amnistia aos desertores e refractários, entre outros temas (…)” (p. 98). 3 No que se refere à sistematização, são dignas de nota as tabelas 1 “Funções abrangidas pela restrição de direitos políticos em 1975-76” (p. 31) e 2 “Temas, conteúdos e principais conclusões dos 25 relatórios publicados pelo Livro Negro” (p. 65). O Livro Negro foi uma proposta iniciada em 1977 pelo primeiro governo constitucional depois da queda da ditadura e teve o objetivo de reunir documentos sobre o autoritarismo e a repressão durante o Estado Novo.

Paulo Renato da Silva – Doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Foz do Iguaçu, PR – BRASIL. E-mail: [email protected].

Expressões do Nazismo no Brasil: partido, ideias, práticas e reflexos – CARVALHO; LUCAS (RTA)

CARVALHO, Bruno Leal Pastor de; LUCAS, Taís Campelo (orgs.). Expressões do Nazismo no Brasil: partido, ideias, práticas e reflexos. Salvador: Saga, 2018, 220 p. Resenha de: OLIVEIRA NETO, Wilson de. A suástica sobre o Brasil. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.11, n.27, p.517-522. maio/ago., 2019.

“O debate acerca do estatuto da Segunda Guerra Mundial no campo historiográfico tem se mostrado incessante e com bastante abertura tanto no âmbito teórico quanto metodológico”, afirmou Karl Schurster (2015, p. 257), em uma resenha a respeito de um livro sobre a propaganda antissemita nazista durante a Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945).

Quatro anos após sua publicação, a citação continua válida, pois, o Nazismo e a Segunda Guerra Mundial continuam a ser temas estudados por pesquisadores brasileiros e estrangeiros, dentro e fora da universidade, por meio de diferentes fontes e métodos, com resultados variados, a exemplo dos trabalhos recentes produzidos por Denise Rollemberg (2017) e Richard J. Evans (2018).

O livro Expressões do Nazismo no Brasil reforça essa tendência de renovação dos estudos históricos sobre o Nazismo, pois reúne trabalhos inéditos acerca da experiência nacional-socialista no país, a partir de recortes temáticos inéditos, a exemplo das interferências da ideologia nazista na escolha e no envio de professores universitários alemães ao Brasil, ou, de fontes primárias e secundárias consultadas em arquivos e bibliotecas alemãs, tais como os documentos relativos à Organização para o Exterior do partido nazista.

A obra é formada por nove capítulos, assinados por Luis Edmundo de Souza Moraes, Taís Campelo Lucas, Rafael Athaides, Vinícius Liebel, Priscila Perazzo, Mariana Lins Prado, Sergio Luiz Marlow, Igor Gak, Bruno Leal Pastor de Carvalho e René Gertz. Os capítulos foram divididos em três partes que conferem coerência e coesão aos textos, respectivamente: “O Partido”; “Ideias e Práticas”; “Reflexos”. Há também uma apresentação redigida pelos organizadores e um prefácio de João Fábio Bertonha, segundo o qual a experiência histórica nazista continua a ser um tema atraente para a indústria cultural, além dos seus usos políticos ao longo do tempo. Ainda no prefácio, foi destacada a relevância dos trabalhos nacionais e a necessidade de sua internacionalização.

As origens dos estudos sobre o Nazismo no Brasil estão situadas nas décadas de 1970 e 1980. Com a liberação de arquivos nacionais e alemães, a partir do fim de década de 1990, a exemplo do material do extinto Departamento de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo, o tema ganhou novo impulso, o que permitiu a revisão e ampliação da bibliografia produzida, além da formulação de novos problemas de pesquisa, como por exemplo, a complexa relação entre o governo alemão e os núcleos do NSDAP no Brasil.

No capítulo de abertura, Luis Edmundo de Souza Moraes explica que as atividades do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães1 no exterior foram orientadas pela Auslandorganisation – AO, a organização do NSDAP para os cidadãos alemães residentes no estrangeiro. As origens da AO estão situadas em 1931, quando o líder nazista Gregor Strasser criou o Departamento para o Exterior do NSDAP, sob a direção do então deputado Hans Nieland. Em fevereiro de 1934, após avanços e retrocessos, a organização foi consolidada através do status de Gau, além de receber a denominação pela qual ficou historicamente conhecida, informa Moraes.

Em seguida, Taís Campelo Lucas narra a trajetória do Landesgruppe Brasilien, a maior seção partidária do NSDAP no exterior, com 2.903 membros registrados, além de ser o Landesgruppe mais antigo, que funcionou entre os anos de 1928 e 1937. O Landesgruppe foi dividido em grupos locais (Ortsgruppen) espalhados pelos estados da federação. Porém, a filiação ao NSDAP era somente para os cidadãos alemães residentes no exterior, fato este que deixou de fora os descendentes de alemães nascidos no Brasil. Segundo Lucas, a adesão formal ao NSDAP foi ínfima, 1 em cada 26, um percentual de 3,87%, entre 75 mil pessoas.

Ainda no capítulo de Lucas, o primeiro grupo local do NSDAP no Brasil foi fundado em 1928, no município de Timbó, em Santa Catarina. Os primeiros militantes nazistas no país eram agressivos e despertaram grande antipatia. Embora o NSDAP, dentro e fora da Alemanha, adotasse o “princípio de liderança”, nem sempre as diretrizes e as orientações de Berlim, através da AO, foram seguidas pelos seus militantes residentes no Brasil. Durante seus nove anos de existência, o Landesgruppen Brasilien promoveu diversas atividades de propaganda do Nazismo e do regime nacional-socialista, especialmente entre as comunidades de origem alemã localizadas nas regiões Sudeste e Sul do país. Além disso, seus militantes mantiveram relações ambíguas e complexas com a Ação Integralista Brasileira – AIB, o poder público e a Igreja Luterana.

No Brasil, a propaganda nazista foi veiculada através de diferentes tipos de publicações impressas, a exemplo do guia oficial da Semana Alemã de 1937, na cidade de Curitiba, cujos textos foram organizados pelo grupo local do NSDAP. Em seu capítulo, Vinícius Liebel examinou essa publicação, na qual constatou a veiculação de propaganda nazista através de escritos sobre “raça”, “sangue” e outros conceitos relevantes para ideologia nacional-socialista.

Outro alvo da propaganda nazista nas regiões de colonização alemã foram as “escolas alemãs”. Segundo o estudo feito por Priscila Perazzo e Mariana Lins Padro, durante a década de 1930, as escolas alemãs localizadas na microrregião do ABC Paulista foram abastecidas de brochuras, livros, partituras e panfletos nazificados, destinados a alunos, pais e professores.

Ao estudar as relações entre os militantes nazistas e a AIB no Paraná, Rafael Athaides explica que, até o fim da década de 1930, em um contexto de aproximação diplomática e econômica entre Brasil e Alemanha, o NSDAP não foi incomodado pelo poder público. Inclusive, o então interventor federal no estado, Manoel Ribas (1873 – 1946), prestigiou celebrações nazistas, assim como outro interventor, Flores da Cunha (1880 – 1959), no Rio Grande do Sul. No tocante às relações com a AIB, Athaides (2018, p. 83) constatou a existência de “certas zonas de interface entre a NSDAP e a AIB”. Porém, nada igual ao que foi denunciado pelos órgãos de segurança do regime estadonovista (1937-1945) como uma conspiração nazi-integralista, cujas denúncias foram recorrentes na imprensa brasileira da época.

Contudo, a situação do NSDAP, dos cidadãos alemães e das comunidades teuto-brasileiras mudou radicalmente após a instalação do Estado Novo, em novembro de 1937. Governando como um autocrata, Getúlio Vargas outorgou uma Constituição nova e aboliu os partidos políticos no país, entre os quais o NSDAP. O desencadeamento da Campanha de Nacionalização, em 1938, o início da Segunda Guerra Mundial, em 1939, e a deterioração das relações diplomáticas entre Brasil e Alemanha transformaram alemães e teuto-brasileiros em nazistas, sendo considerados ameaças à segurança do país, especialmente, com base na retórica do “perigo alemão”. Nesse contexto, instituições de origem alemã, a exemplo da Igreja Luterana, foram perseguidas pelas autoridades públicas civis e militares, conforme mostra o capítulo escrito por Sergio Luiz Marlow.

A obra é encerrada com dois capítulos que abordam alguns dos reflexos da experiência nazista no Brasil, a partir do pós-guerra. O primeiro, escrito por Bruno Leal Pastor de Carvalho, examina a repercussão na imprensa brasileira dos casos de criminosos de guerra do Eixo descobertos no Brasil, a exemplo de Herberts Cukurs (1900-1965). Já o segundo, de autoria de René Gertz, discute as formas com as quais comunidades de origem alemã no Rio Grande do Sul procuraram superar a associação ao Nazismo e as perseguições sofridas durante a Campanha de Nacionalização e a Segunda Guerra Mundial. Segundo Gertz, a partir do pós-guerra, foi iniciada uma operação de produção de memórias que valorizaram as contribuições dos imigrantes alemães para o país e de tentativas de apurar e punir os abusos cometidos pelas autoridades públicas rio-grandenses durante o período.

Os efeitos do Nazismo e da Segunda Guerra Mundial afetaram de forma incisiva as comunidades teuto-brasileiras do Rio Grande do Sul. Nessas comunidades, a cicatrização das feridas abertas durante as décadas de 1930 e 1940 ocorreu ao longo da segunda metade do século passado, tendo na memória e na história dois dos seus meios.

Ao encerrar uma conferência denominada “O Fascismo eterno”, realizada nos Estados Unidos, em 1995, Umberto Eco (2018, p. 56-57) afirmou que, em nosso futuro, “desenha-se um populismo qualitativo de TV ou internet, no qual a resposta emocional de um grupo selecionado de cidadãos pode ser apresentada e aceita como a ‘voz do povo’”, como nas experiências históricas da Itália (Fascismo) e da Alemanha (Nazismo). No Brasil contemporâneo, os “salvadores da pátria”, o apelo à emoção e a hostilidade contra os intelectuais estão na ordem do dia, características estas que lembram os fascismos históricos.

Esta resenha não tem o objetivo de avaliar o risco do país em sofrer uma “fascistização”, embora o problema já faça parte do repertório de discussões acadêmicas em cursos universitários e periódicos, conforme sugere o artigo assinado por Eduardo Rebuá (2019). O livro Expressões do Nazismo no Brasil examina a experiência histórica do Nazismo em terras brasileiras durante a década de 1930 com inegável relevância historiográfica. Ademais, seus capítulos também contribuem para o entendimento do nosso tempo presente e os riscos que ele envolve. Afinal, como certa vez escreveu o historiador Caio Boschi (2004), estudamos a história para conhecer e transformar a vida, motivados pelas indagações e perplexidades do presente.

Referências

BOSCHI, Caio. História: por que e para quê? Nossa história, Rio de Janeiro, v. 1, n. 11, p. 98, set. 2004.

ECO, Umberto. O Fascismo eterno. Rio de Janeiro: Record, 2018.

EVANS, Richard J. Terceiro Reich na história e na memória: novas perspectivas sobre o nazismo, seu poder político, sua intrincada economia e seus efeitos na Alemanha do pós-guerra. São Paulo: Crítica, 2018.

REBUÁ, Eduardo. Fascistização no Brasil do tempo-de-agora. Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, v. 12, n. 138, p. 22-23, jan. 2019.

ROLLEMBERG, Denise. Revoluções de direita na Europa do Entre-guerras: o Fascismo e o Nazismo. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 30, n. 61, p. 355 – 378, maio/ago. 2017.

SCHURSTER, Karl. A construção do inimigo judeu: uma análise da obra de Jeffrey Herf. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 7, n.15, p. 256 – 261, maio/ago. 2015.

1 Doravante, identificado através da sigla NSDAP, do alemão Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei.

Wilson de Oliveira Neto Doutorando em Comunicação e Cultura na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor da Universidade da Região de Joinville (Univille). Joinville, SC – BRASIL. E-maio: [email protected].

História, memória e violência de Estado: tempo e justiça | Berber Bevernage

“Por que é tão difícil entender o passado assombroso e irrevogável na perspectiva da historiografia acadêmica e do pensamento histórico moderno ocidental em geral?” A pergunta que guia História, Memória e Violência de Estado: tempo e justiça, de Berber Bevernage (2018), pressupõe a angústia da incompletude e do inacabamento (MBEMBE, 2014), da indeterminação e instabilidade do objeto “tempo presente” (DELACROIX, 2018). O autor nos oferece um mergulho na história da crítica à noção de tempo construída pela modernidade para mostrar toda a sua potência e enraizamento enquanto engenhosa forma de “não ver” certos mundos, grandemente incorporada pela disciplina histórica. Por entre as brechas desse olhar pretensamente universal, América Latina e África emergem como que alçadas à categoria de experiências (i)morais – porque marcadas pela violência e injustiça –, da luta política que marca o século XXI periférico: o direito ao tempo.

Entre as referências mais conhecidas pelo universo acadêmico brasileiro dedicado à História do Tempo Presente e que constituem a base da argumentação de Tempo e Justiça estão o crítico literário alemão Hans Gumbrecht e o historiador francês François Hartog. Por caminhos diferentes, ambos chamam atenção para o crescimento ao longo do século XX de uma nova sensibilidade temporal marcada por uma assimétrica concentração na esfera de um presente repleto de simultaneidades (GUMBRECHT, 2014), demarcando a emergência de um novo “regime de historicidade” chamado presentista (HARTOG, 2013). No interior dessa discussão, o livro apresenta os anos de 1980 como período de evidência dos embates entre formas distintas de experienciar o tempo (com suas diferentes articulações entre passado, presente e futuro), expressas pelo desaparecimento da linguagem do esquecimento e da anistia do vocabulário político global. Leia Mais

A violência de gênero nos espaços do Direito: Narrativas sobre ensino e aplicação do direito em uma sociedade machista – SCHINKE (RTA)

SCHINKE, Vanessa Dorneles (Org.). A violência de gênero nos espaços do Direito: Narrativas sobre ensino e aplicação do direito em uma sociedade machista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. 388 p. Resenha de: REIS, Jade. Relações de Gênero nos espaços do Direito: experiências compartilhadas. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.11, n.27, p.523-529, maio/ago., 2019.

Diversos relatos de mulheres advogadas sobre o seu ofício diário mostram que durante sua trajetória jurídica lhes são apresentados empecilhos e violências simbólicas que envolvem as relações de gênero. Não coincidentemente, a coletânea de artigos organizada pela professora e doutora em Direito Vanessa Dorneles Schinke, objeto desta resenha, aborda experiências de mulheres da área do Direito, em carreiras absolutamente marcadas pelos estereótipos historicamente construídos nas relações de gênero.

O livro, lançado no ano de 2017, é dividido em três partes, sendo a primeira delas o “Prelúdio”, na qual estudantes de Direito narram suas trajetórias e experiências da vida universitária, bem como expressam as relações complexas de poder que permeiam estes espaços. O exercício de questionar e historicizar a situação das mulheres está presente nesta parte, assim como em todo o livro, bem como o de refletir sobre o papel de educadoras e operadoras do Direito em uma sociedade machista. Para as autoras, partindo da perspectiva de que, por muito tempo, este campo científico foi essencialmente masculino em termos de representatividade, e tendo em vista a luta das mulheres pela democratização do ensino superior e do mercado de trabalho, sua presença nestes espaços e no espaço público de maneira geral, estudando, profissionalizando-se, adentrando carreiras e cargos públicos, se apresenta como um avanço no que se refere ao árduo processo de ocupação dos espaços considerados pela norma patriarcal como “masculinos”.

A segunda parte, intitulada “Andante”, conta com doze artigos escritos por professoras, estudantes de graduação, pós-graduação e operadoras do Direito. Esta tem como foco temático questões que, como afirmam, não encontram espaço na circulação acadêmica do campo do Direito, mas fazem parte das experiências e cotidianos destas mulheres no âmbito universitário, como, por exemplo, nas salas de aula e instâncias politicamente deliberativas do meio universitário. As autoras buscam, por meio da narrativa de suas experiências, problematizar a naturalização de práticas violentas e machistas no ensino do Direito.

Segundo estas autoras, a condição de gênero expressa nas relações sociais no campo do ensino do Direito é definida historicamente a partir da socialização e das definições impostas pela sociedade patriarcal, gerando assim o problema da ausência de reconhecimento e a descrença no seu potencial de desenvolvimento na área jurídica. Roberta Baggio, professora do curso de Direito da UFRGS relatou em seu artigo que, na banca de um concurso público que prestou, ouviu de um membro a seguinte frase “como pode você ser mulher e ter um currículo com tantas experiências acadêmicas ao mesmo tempo?” (BAGGIO, 2017, p. 66), demonstrando assim o grau de incapacitação destinado às mulheres em suas avaliações de emprego, o que é por vezes um fator determinante em suas trajetórias profissionais. A autora afirma que na medida em que o ensino do Direito contribui para tais práticas, formam-se juristas que naturalizam as violências de gênero, culpabilizam e responsabilizam as mulheres pela cultura machista em casos de opressão.

As violências físicas e simbólicas existentes nos “trotes” nos cursos de Direito são, também, tema de abordagem nesta parte do livro. Violências estas que, muitas vezes advindas dos professores, envolvem provocações e incitações machistas, homofóbicas, transfóbicas e racistas, nas quais os corpos femininos são objetificados. Estudantes e professoras se organizam em ações contra os episódios de extremo machismo e preconceitos na universidade através de cartas de repúdio, escrachos, atos e movimentações, criação de coletivos e meios de solidariedade e articulações via internet e redes sociais. No entanto, denunciam as poucas oportunidades de debater gênero e violência nos cursos de Direito, bem como nos demais cursos de graduação e pós-graduação. A pesquisa realizada pela advogada Luana Pereira com estudantes da faculdade de Direito da UFRGS revela que 69% destas afirmaram já ter sido vítimas de práticas machistas na academia, 52% afirmaram ter passado por situações de assédio moral e 19,4% assédio sexual (PEREIRA, 2017, p. 94). Muitos dos casos de extrema violência de gênero que ocorrem nestes espaços têm repercussão em nível público, atingindo assim um maior número de mulheres, formando uma rede de sociabilidades e luta contra tais práticas. Todavia, o silenciamento dos assédios continua sendo uma realidade para as mulheres, professoras, estudantes e funcionárias técnicas e terceirizadas. Segundo a advogada Alice Abelar, na PUCRS, dentre 126 professores de graduação, 26% são mulheres. Apenas 20% na Pós-graduação em Direito e 10% na Pós-graduação em Ciências Criminais. Estes dados evidenciam a dificuldade do acesso das mulheres ao cargo de professora universitária, enquanto que não há discussão e questionamento sobre o assunto que não sejam impulsionados pelas mulheres, e daí a importância de sua representatividade.

A partir da leitura da obra é possível observar que entre as décadas de 1970 e 1990, com a crescente expansão das universidades, as mulheres passam a ter maior expressão neste campo, ainda que com as demarcações de classe e raça. Problematizar a violência de gênero nestes espaços deve considerar a gritante ausência de mulheres negras, indígenas e deficientes no ensino superior, que tem se democratizado processualmente a partir das lutas dos Movimentos Sociais e dos incentivos governamentais, como, por exemplo, a Lei n.º 12.711 de 2012 (Lei de Cotas).

O machismo dentro da militância do movimento estudantil também é apontado pelas autoras, na medida em que os estudantes homens ocupam cargos de representatividade, interrompem as falas de companheiras do movimento, não levam em consideração suas boas ideias, considerando-as apenas auxiliares de determinadas funções dentro das organizações.

As mulheres encontram-se em árduo combate político na academia, espaço que durante muito tempo fora homogeneizado pela presença masculina. Por isso a importância dada às professoras e militantes deste espaço na construção de diferentes futuros para estas mulheres. A terceira parte da coletânea, intitulada “Adagio”, reúne o total de onze artigos que apresentam criticamente a disputa de gênero no interior do judiciário, no qual a presença das violências simbólicas se destaca sobremaneira. Nesta parte da obra em questão, são narrados diversos casos que apresentam a naturalização e o descaso com as violências de gênero expressas no campo.

Marta Machado e Fernanda Matsuda, em seu estudo sobre a representação das mulheres nos processos judiciais no Sistema de Justiça Criminal, apontam que o discurso sobre as mulheres apresenta figuras dicotômicas idealizadas de mulher, sendo a “boa mulher” de família, boa esposa, dedicada, trabalhadeira, e a “mulher desafiadora, festeira, nervosa” (MACHADO e MATSUDA, 2017, p. 196), enquanto que os homens são sempre representados como pais de família, honestos e trabalhadores. As violências cometidas por estes, segundo as autoras, são rotineiramente justificadas nas salas de audiência pelo “mau comportamento” das mulheres, e apontadas como comportamento isolado dos homens. Estas demarcações interferem sobremaneira nos desfechos processuais das ações, legitimando, por vezes, danos irreparáveis às vidas de mulheres que são vítimas das violências de gênero, raça, etnicidade e demais preconceitos.

Segundo as autoras, os órgãos do Sistema Judiciário não reconhecem tais violências, e portanto não incidem os dispositivos legais específicos para os respectivos casos. Neste sentido, percebemos a desigualdade de gênero do exercício de poder nas instâncias do Judiciário brasileiro, o que está expresso, também, na baixa representatividade das mulheres nas esferas de decisão das organizações jurídicas, igualmente abordadas nesta parte do livro. Da mesma forma, ocorre nos escritórios de advocacia, nos quais a pesquisadora Patrícia Bertolin observou alto número de evasão de mulheres, ainda que nas entrevistas realizadas com os advogados homens que trabalham nestes espaços tenha sido frequente a negação de qualquer tipo de discriminação de gênero. A maternidade nesta profissão parece ser um dos principais problemas aparentes que obstacularizam a ascensão das mulheres no meio, como um “problema a ser resolvido”. Nesse sentido, é consenso entre as autoras que a advocacia é uma profissão que vem se femilinizando, mas ainda nos padrões machistas excludentes, obrigando as mulheres a afirmar e provar o tempo todo sua competência e eficiência profissional.

O livro “A violência de gênero nos espaços do Direito” é uma obra sobre experiências cotidianas. Um manifesto de mulheres feministas. Mulheres que lutam pela igualdade e promoção de direitos. Trata-se de pesquisadoras guiadas pela epistemologia feminista, que buscam problematizar seus posicionamentos e lugares de fala de forma interseccional, considerando os diferentes tipos de opressão decorrentes dos diversos marcadores sociais historicamente constituídos em nossa sociedade. Suas narrativas expressam uma série de subjetividades, com as quais se identificam o tempo todo as mulheres que as leem. Estas narrativas, como afirmam diversas vezes as autoras, saem da posição estritamente acadêmica, na medida em que tratam de experiências de mulheres que vivenciam as violências e demarcações de gênero não apenas nos espaços do Direito, mas na sociedade como um todo. A pesquisadora e organizadora da obra, Vanessa Dorneles Schinke, apontou ao encerrar as discussões realizadas no livro: “Aqui não há linha clara entre sujeito e objeto, empiria e teoria. O resultado é uma complexa composição que se retroalimenta da colaboração entre diversas pessoas – verbais e de carne e osso” (SCHINKE, 2017, p. 367) São diversos os arcabouços teóricos sobre Relações de Gênero e Teoria Feminista, específicos de cada temática abordada, utilizados nos 23 artigos que compõem a obra. Dentre eles, estão os que possibilitam articular as categorias como gênero e poder, através dos escritos de Michel Foucault e Joann Scott, por exemplo, gênero, raça e interseccionalidade, através dos estudos das teóricas Kimberlé Crenshaw e Helena Hirata, por exemplo, gênero e classe social, utilizando como referencial teórico os escritos da socióloga Heleieth Saffioti, dentre outras. Bem como referenciais teóricos clássicos dos estudos de gênero, como Simone de Beauvoir, Judith Butler e Bell Hooks, por exemplo. As autoras partem, em comum, da já mencionada epistemologia feminista, na medida em que têm como proposta a mudança do paradigma referencial das experiências compartilhadas pelos sujeitos e abordadas nas pesquisas científicas. A lógica da narrativa de suas experiências vivenciadas no campo alinha-se na epistemologia feminista, na medida em que justamente descola a figura masculina como detentora principal das discussões acerca das relações no meio jurídico.

A universidade e os demais campos do Judiciário são entendidos por estas pesquisadoras como espaços privilegiados da reprodução de uma cultura machista e sexista, mas são também expressos como espaços de luta e resistência de mulheres pela democratização dos espaços do Direito.

Jade Liz Almeida dos Reis – Mestranda em História na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Florianópolis, SC – BRASIL. E-mail: [email protected].

Democracia, ditadura: memória e justiça política – REZOLA; PIMENTEL (RTA)

REZOLA, Maria Inácia; PIMENTEL, Irene Flunser (Orgs). Democracia, ditadura: memória e justiça política. Lisboa: ed. Tinta da China, 2013. 520 p. Resenha de: NEVES, Hudson Campos; NUNES, Carlos Alberto Lourenço. Justiça política e memória: redemocratização na esfera lusófona. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.11, n.26, p.623-629, jan./abr., 2019.

A coletânea “Democracia, Ditadura: memória e justiça política” reúne trabalhos de pesquisadores que participaram do Colóquio Internacional “Legados do autoritarismo em Portugal em perspectiva comparada”, ocorrido na cidade portuguesa de Lisboa, em abril de 2012. O livro foi coordenado pelas pesquisadoras Irene Flunser Pimentel e Maria Inácia Rezola. As organizadoras observam a construção de uma justiça transicional ou de transição que significa “a concepção de justiça associada a períodos de mudança política, caracterizada por respostas legais para confrontar os crimes de repressão de anteriores regimes” (p. 9). As autoras avançam na questão:

As violações básicas dos direitos humanos não podem ser actos legitimados do Estado e têm de ser vistas como actos cometidos por indivíduos; quem comete este tipo de crimes deve ser perseguido criminalmente; e, finalmente, os acusados também têm direitos e merecem um julgamento justo. (p. 9-10) Está situada aí a diferença entre um julgamento no âmbito dos Direitos Humanos e do que seria um julgamento político. A importância dos Direitos Humanos tem sido reafirmada em diferentes ocasiões ao longo do século XX, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, passando pela criação do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, de 1953, e pela American Convention of Human Rights, de 1978. Um dos fenômenos característicos dos anos 1980 foi a criação de Comissões da Verdade, como por exemplo, na África do Sul, Chile, Argentina, bem como na Europa do leste, procurando responsabilizar os agentes da violência de Estado. Há também a criação de tribunais nacionais, regionais ou internacionais voltados para essas questões como os tribunais organizados na ex-Iugoslávia, em 1993, e em Ruanda, em 1994, bem como o Tribunal Internacional e alguns tribunais híbridos, como o de Kosovo, de 1999, o do Timor Leste, em 2000, além de Serra Leoa e Camboja, ambos de 2003.

A obra está dividida em seis partes, que abordam aspectos ligados aos processos de transição democrática em Portugal e também no Brasil. Na primeira parte, a ênfase é dada ao caso brasileiro. Intitulada de “História da democratização e amnistia no Brasil”, é composta por quatro capítulos, com abordagens de diferentes disciplinas como História, Sociologia e Direito. Maria Celina D’Araújo analisa a questão da anistia no contexto do Cone Sul do continente americano. Por sua vez, Janaína de Almeida Teles estuda o papel dos familiares dos mortos e desaparecidos ao longo da transição democrática. O questionamento sobre até que ponto a Lei de Anistia se constitui em obstáculo para a transição brasileira nos dias atuais é feito por Lauro Swensson Jr. Por fim, Gilberto Calil faz uma releitura a respeito do processo de democratização ocorrido em 1945, salientando a pressão de diferentes organizações e movimentos populares na tomada de decisão do governo Vargas em entrar na luta contra o fascismo, ao lado dos aliados, na Segunda Guerra Mundial.

Intitulada “Justiça política de transição e revolução em Portugal”, a segunda parte traz como destaque no conjunto da obra o capítulo escrito por Irene Flunser Pimentel, “A extinção da polícia política do regime ditatorial português, PIDE/DGS”. No texto, a autora descreve a forma como o Movimento das Forças Armadas (MFA), após a chamada Revolução dos Cravos, em abril de 1974, que derrubou o regime salazarista em Portugal, lidou com a Polícia Internacional de Defesa do Estado/Direção-Geral de Segurança (PIDE/DGS), tanto na metrópole quanto nas colônias do ultramar. Num primeiro momento, algumas frações do MFA cogitaram reaproveitar membros da PIDE no novo governo. Havia pressões internas para que isso ocorresse, o que foi obstado pela mobilização popular. A população pressionou a Junta de Salvação Nacional instalada no poder na sequência da revolução, impedindo a aceitação de membros da PIDE na montagem da nova estrutura governamental portuguesa, além de demandar a punição dos agentes acusados de diferentes atos de violência e repressão durante a ditadura salazarista. Sobre este aspecto, também na segunda parte da obra, o capítulo escrito por Fernando Pereira Marques analisa como o novo poder estabelecido após abril de 1974 se posicionou com relação aos cidadãos que sofreram com a repressão perpetrada pelo Estado Novo e Miguel Cardina, por sua vez, analisa a Associação de Ex-Presos Políticos Antifascistas (AEPPA) e sua luta pelo direito à memória. Já João Madeira estuda a experiência do Tribunal Cívico Humberto Delgado em seu curto período de existência (1977-78).

Ao longo desse processo, que se desdobrou na segunda metade dos anos de 1970, houve avanços e retrocessos. Cabe destacar uma virada à esquerda, ocorrida no MFA, a partir de 11 de março de 1975. Houve uma radicalização para criminalizar a PIDE e seus integrantes. No período que se estendeu até outubro daquele ano, um grande número de processos contra os agentes da polícia política foi apontado por Irene Pimentel. Outra virada no âmbito do MFA ocorreu a partir de 25 de outubro de 1975, quando houve um afrouxamento das ações contra antigos membros da PIDE e “muitos viriam depois a ser absolvidos ou apenas condenados à prisão preventiva já cumprida, sendo libertados de imediato”. No fim das contas, a maioria sofreu condenações com “tempo de prisão já cumprido: em 1982, 98 por cento dos presos já estavam em regime de liberdade plena” (p. 122-126).

Na terceira parte, “As purgas políticas no Portugal revolucionário”, o texto de uma das organizadoras da coletânea, Maria Inácia Rezola, destaca-se pela rica base documental e por apresentar elementos que, como se faz depreender, relativizam uma visão compartilhada por uma parcela expressiva da sociedade portuguesa na qual está presente um ceticismo acerca das reais condições em que se realizaram os afastamentos e punições de membros do regime autoritário na sequência do 25 de abril de 1974. Esse tema também é alvo do capítulo escrito por Pedro Serra, que se debruça especificamente nos assim chamados saneamentos políticos ocorridos na educação. Já Pedro Marques Gomes analisa o processo que deu origem ao afastamento de jornalistas, com destaque para os conflitos internos no “Diário de Notícias”, jornal de grande circulação no país, durante o chamado “verão quente” de 1975, quando aquele órgão tinha dirigentes próximos ao Partido Comunista Português, entre os quais, José Saramago.

Rezola aponta que as chamadas purgas políticas – operacionalizadas no âmbito de um organismo oficial denominado Comissão Interministerial de Saneamento e Reclassificação (CISR) – teriam sido, no olhar de tendências críticas da opinião pública de Portugal, limitadas e temporariamente circunscritas, de forma que seus efeitos pouco teriam contribuído à aplicação da justiça aos colaboradores da ditadura. Segundo a autora, esse descontentamento localiza-se nos poucos resultados concretos apresentados pela CISR, ou seja, dos processos instaurados contra funcionários da ditatura, apenas 2% resultaram em condenações e perdas de cargos públicos. Mas cabe atentar para elementos que são trazidos à tona por Maria Inácia Rezola e que ressaltam a complexidade da matéria. Muitos juízes que haviam colaborado de forma direta ou indireta com a ditadura, tornaram-se alvos das ações da CISR. Essa situação certamente gerou um impasse, afinal, levar a ferro e a fogo as reclassificações e afastamentos levaria à paralisação de diferentes setores do Estado, sobretudo no âmbito do judiciário. Além disso, houve uma série de ações que resultaram na demissão automática de funcionários de extintas agências governamentais, o que ao todo chegou a mais de 12 mil exclusões, mas que não chegaram a ser computadas como parte do processo de saneamento. O texto ainda avança sobre questões que costumam fazer parte de processos de transição, como disputas internas e ambiguidades políticas ao longo da implementação de um regime democrático, dificultando as ações punitivas e reparatórias.

O capítulo “Os dividendos do autoritarismo colonial”, de Augusto Nascimento, abre a quarta parte da coletânea, dedicada ao “legado colonial”. O autor centra suas análises no pós-independência de São Tomé e Príncipe. Demonstra a concomitância da substituição dos símbolos nacionais portugueses por são-tomenses, sugerindo que aspectos das ações dos independentistas pareciam denotar a persistência de métodos e procedimentos do passado colonial. Por sua vez, Roselma Évora examina a transição para formação de uma sociedade independente em Cabo Verde no texto “O peso do legado autoritário na configuração do processo decisório democrático em Cabo Verde”. Segundo sua análise, o legado autoritário afetou o processo decisório do novo regime e interferiu nos níveis de desempenho institucional, fragilizando a atuação dos atores políticos no sistema democrático.

A quinta parte, “Memória da ditadura”, é a que reúne o maior número de capítulos, o que por si só demonstra o quanto este tema continua presente na primeira linha das preocupações de historiadores e historiadoras de tais processos, e ainda destaca como os testemunhos são parte fundamental da escrita de uma história de processos recentes ou mesmo que ainda não se encerraram completamente, ao menos em sociedades recentemente democratizadas. Francesca Blockeel estuda e compara as similaridades entre as ditaduras de Portugal e Espanha. A autora faz um apanhado, em paralelo, do trajeto dos dois países para tratar sobre os sistemas de repressão que ambas as ditaduras construíram e as narrativas predominantes nos dois países acerca da transição para a democracia. As formas repressivas da codificação do crime político e das normas para a punição aos opositores do Estado Novo são a temática de Guya Accornero, enquanto que Jacinto Godinho demonstra a importância da utilização de uma série documental histórica produzida no âmbito das ações da PIDE. João Paulo Nunes analisa como Portugal atual se define e caracteriza tendo em conta as memórias vigentes acerca do Estado Novo. Luciana Soutelo estuda o revisionismo histórico que passou a ter o Estado Novo Português como alvo, as novas interpretações históricas e os desdobramentos do Estado Novo na sociedade portuguesa. O estudo de Flamarion Maués focaliza o “surto” editorial de cunho político a partir do 25 de abril, quando livros que haviam sido proibidos e/ou recolhidos pela ditadura foram publicados e disponibilizados na sociedade lusa pós-ditadura. Por outro lado, o Brasil é o tema dos capítulos escritos por Roberto Vecchi e por Ettore Finazzi-Agrò. No primeiro caso, há uma importante discussão sobre o acobertamento e as dificuldades para acessar documentos relativos à guerrilha do Araguaia, enquanto o segundo trata das obras de Clarice Lispector durante a ditadura militar brasileira, sua militância e o impacto de seus textos.

Por fim, o sexto capítulo nomeado “Memória e revolução”, tem por âmbito o campo da produção cultural e as narrativas em torno de um dos processos políticos mais ricos e ainda indecifrável em grande medida na história recente de um país europeu, qual seja, a revolução portuguesa de 1974. O processo revolucionário e a transição profundamente conflitiva para uma sociedade democrática e integrada ao contexto da Comunidade Europeia ainda hoje suscitam inúmeras controvérsias. A memória social, portanto, segue sob o enquadramento de narrativas que se impuseram ao disputar a produção cultural e as imagens associadas ao novo Portugal, ainda que manejadas por setores que foram alvos da ação revolucionária por serem considerados próximos do regime salazarista. O capítulo de Paula Gomes Ribeiro trata dos padrões de funcionamento do Teatro de São Carlos, principal casa de ópera de Lisboa, no período que sucedeu o 25 de abril, demonstrando as questões relativas à implantação do que se pretendia ser uma democracia cultural, numa tentativa de facilitar o acesso a bens artísticos e culturais ao grande público, o que não deixou de gerar tensões. Por sua vez, o capítulo de Paula Borges Santos, intitulado “A Igreja Católica na transição para a democracia”, estuda o papel da Igreja Católica e suas relações com o Estado Novo e principalmente as estratégias da instituição com vistas a lidar com um passado de colaboração estrita com o regime autoritário, em meio à contestação à hierarquia. Houve uma redefinição do lugar social da Igreja Católica na sociedade portuguesa ao longo do processo de transição para a democracia, inicialmente pelos constrangimentos de justificar o colaboracionismo como o regime deposto e, posteriormente, por “reivindicar a sua participação no exercício das liberdades democráticas reclamadas e apropriadas pelo restante da sociedade” (p. 479). De sua parte, Riccardo Marchi estuda, a partir da imprensa da época, as direitas portuguesas ao longo dos anos de 1976 a 1980, particularmente a influência de tendências de extrema-direita no universo juvenil durante a construção da democracia em Portugal, quando tais posturas e agrupamentos pareciam desafiadores aos partidos e governos de centro-esquerda que então predominavam na composição política daquele país.

Hudson Campos Neves – Doutorando na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Florianópolis, SC – BRASIL. E-mail: hudsoncn.historia@gmail.

Carlos Alberto Lourenço Nunes – Doutorando na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Florianópolis, SC – BRASIL. E-mail: [email protected].

O Triunfo da persuasão: Brasil, Estados Unidos e a Política da Boa-Vizinhança durante a II Guerra Mundial – VALIM (RTA)

VALIM, Alexandre Busko. O Triunfo da persuasão: Brasil, Estados Unidos e a Política da Boa-Vizinhança durante a II Guerra Mundial. São Paulo: Ed. Alameda, 2017. Resenha de: CARNEIRO, Ana Marília. Cinematógrafos de guerra: cinema e propaganda estadunidense no Brasil durante a II Guerra Mundial. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.11, n.26, p.635-640, jan./abr., 2019.

A obra que temos em mãos trata de um tema caro às experiências bélicas do século XX: a propaganda como arma de guerra e instrumento de persuasão na formação de consenso em torno da hegemonia estadunidense na América Latina. Em contraste com a barbárie e a violência emergentes dos confrontos da II Guerra Mundial, a máquina de guerra mobilizada para conquistar mentes, corações e aliados em meio ao campo de batalha consistiu em uma das expressões mais extraordinárias e fascinantes da cultura contemporânea: o cinema.

O livro de Alexandre Busko Valim, O Triunfo da persuasão. Brasil, Estados Unidos e a Política da Boa-Vizinhança durante a II Guerra Mundial, publicado em 2017, dedica-se ao estudo da dinâmica da produção e difusão da propaganda estadunidense por meio do cinema no Brasil, alvo estratégico e privilegiado da campanha dos aliados em meio ao turbulento cenário da II Guerra Mundial. Resultado de uma pesquisa de fôlego, a obra é amparada no valioso e robusto acervo de fontes documentais referentes ao Office of the Coordinator of Inter-American Affairs – Office, consultadas no National Archives dos Estados Unidos. Ainda pouco exploradas pela literatura dedicada às relações interamericanas, as fontes — e, sem dúvida, a habilidade do autor aliada a um fecundo diálogo com a bibliografia especializada — permitiram a construção de uma narrativa potente, permeada de relatos surpreendentes e informações impactantes.

Um dos importantes diferenciais do estudo de Alexandre Valim é sua perspectiva de análise: o autor se esquiva de uma abordagem mais tradicional fundamentada na análise fílmica e pensa o cinema — e a problemática histórica — munido de uma visão mais ampla, como um fenômeno que envolve diversas dimensões. Ou seja, o cinema, como objeto de estudo, deve ser compreendido como um conjunto de práticas sociais que escapa à simples análise das fontes visuais, conduzindo o pesquisador em direção a um tratamento mais abrangente da visualidade como uma dimensão importante da vida social e dos processos sociais (MENESES, 2003, p. 11).

Para além da compreensão do cinema como mero entretenimento e obra estética, um estudo mais denso do âmbito cinematográfico exige que o investigador esteja atento à capacidade de influência, persuasão e encantamento do público através do cinema, ao uso de filmes como veículos de difusão de determinadas políticas, valores e culturas, à análise das suas condições de produção, exibição e distribuição, além da complexa rede de sociabilidades e relações de poder envolvidas na sua realização. Todas essas questões estão presentes no texto de Alexandre Valim, que situa a análise da propaganda estadunidense por meio do cinema atrelada a uma contraofensiva de guerra na qual estava em jogo, para os Estados Unidos, a conquista de parceiros econômicos e aliados políticos na América Latina.

Criado em 1940, por determinação do presidente Franklin Roosevelt, para coordenar as relações comerciais e culturais entre os Estados Unidos e os países latino-americanos, o Office representou, de maneira emblemática, o notável esforço de mobilização da nascente indústria cultural em favor da manutenção da posição hegemônica dos Estados Unidos na América Latina durante a II Guerra Mundial. Dentre os múltiplos âmbitos de atuação do Office, Valim se debruça sobre as atividades de propaganda difundidas através do cinema, um empreendimento posto em marcha pela Divisão de Cinema do Office e pela primeira unidade do Office na América Latina, a Brazilian Division.

Os atores envolvidos nessa trama não pertencem somente ao quadro de funcionários da agência governamental estadunidense; ao longo das páginas, nos deparamos com sujeitos de alta performance como Walt Disney, Nelson Rockefeller, Carmen Miranda, Orson Welles, empresários dos grandes estúdios de cinema de Hollywood, embaixadores dos Estados Unidos e agentes do Departamento de Imprensa e Propaganda do presidente Getúlio Vargas. No entanto, é fundamental recordar: a propaganda possui um alvo privilegiado; nesse caso específico, a plateia. Essa é a audiência que deve ser persuadida.

Um dos plot points da obra é justamente o capítulo intitulado O Show Precisa Continuar: o cinema da boa vizinhança adentra o país. Nesta parte do texto são retratadas as diversas dificuldades e obstáculos enfrentados pelas equipes da Brazilian Division para realizar exibições de filmes nas pequenas cidades do interior do país. As incursões consistiam em verdadeiras sagas, e envolviam o deslocamento dos projetistas e seus pesados equipamentos através de estradas precárias, muitas vezes empregando o transporte de tração animal ou mesmo em lombos de mula, além de pequenos barcos e canoas. Às dificuldades de transporte em um país com as dimensões territoriais do Brasil somavam-se a falta de energia elétrica em muitas localidades, a inutilização dos filmes e projetores devido aos danos causados durante o transporte, às elevadas temperaturas ou à alta umidade, à impossibilidade de reposição de peças eventualmente danificadas durante as exibições, como lâmpadas, cabos, válvulas, transformadores. Todas essas adversidades de logística e transporte enfrentadas pela equipe da Brazilian Division nos ajudam a vislumbrar a dimensão da importância do projeto de disseminação em larga escala da propaganda estadunidense por meio do cinema.

A linguagem visual explorada neste capítulo é evocada de maneira recorrente: a partir de um dos projetos mais ousados experimentados no Brasil, as sessões de cinema realizadas em vagões de trens ou mesmo através dos Unit Mobiles, uma parceria com empresas do ramo farmacêutico que proporcionava automóveis adaptados com telas para exibir filmes, cinejornais e desenhos animados selecionados pela Brazilian Division e, ao mesmo tempo, comercializava, para o público, medicamentos como Leite de Magnésia, Melhoral e Pílulas de Vida do Dr. Ross. As impressionantes imagens fotográficas que acompanham o livro eternizaram as sessões de cinema a céu aberto realizadas em praças públicas de cidades do interior, penitenciárias, escolas, quartéis e até mesmo hospitais psiquiátricos. As exibições — sempre gratuitas — atingiam um amplo público espectador, proveniente não apenas da elite e da classe média, mas também das classes populares, composta muitas vezes por indivíduos que nunca haviam experimentado uma sessão de cinema e que permaneciam encantados por verem pela primeira vez um bombardeio de imagens em movimento.

E se o alvorecer do século XX foi iluminado por uma nova forma de linguagem visual, imagens em movimento difundidas pelos cinematográfos em escala mundial, é necessário refletir sobre o poder desse novo suporte e artefato cultural de gerar imaginários sociais e práticas representacionais. A pesquisa de Alexandre Valim não se debruça diretamente sobre o campo de recepção das películas estadunidenses entre o público brasileiro, entretanto, revela importantes aspectos: o primeiro, a existência de um pesado investimento em propaganda e na produção cinematográfica por parte do governo dos EUA; a grande capilaridade atingida no interior do Brasil através do projeto de popularização das exibições e a larga audiência alcançada, em grande medida formada por um público analfabeto. Certamente, não se deve tomar a esfera de influência do público, provocada pelos filmes de propaganda, de maneira mecânica e em via de mão única, afinal, a consciência não é uma tela em branco, e o campo da cultura é um campo de batalha, permeado por lutas e resistências. No entanto, como afirma Stuart Hall (2003, p. 240), as operações culturais estão ligadas aos mecanismos de hegemonia cultural em jogo, e há sempre posições estratégicas a serem conquistadas ou perdidas. E, como adverte Alexandre Valim (2017, p. 313), embora uma avaliação precisa sobre o cinema de propaganda no Brasil seja uma tarefa extremamente difícil de ser realizada, “o imenso v.de fontes produzidas pelas agências governamentais estadunidenses atuando em território brasileiro sugerem fortemente que esse impacto foi profundo e duradouro”.

Vale ressaltar: o cinema “não é somente um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens”1. O sucesso de público nas exibições e o grande alcance do projeto propagandístico era fruto de um intenso esforço por parte do pessoal da Brazilian Division, que envolvia a mobilização de uma complexa rede de contatos, negociações e acordos entre autoridades locais, políticos, militares, funcionários do DIP e mesmo entre a alta cúpula do Office, uma vez que “o intenso contato com a realidade brasileira por estadunidenses que estiveram no país fez com que, frequentemente, estes flexibilizassem diretrizes elaboradas em Washington em prol de perspectivas mais humanistas e solidárias” (VALIM, 2017, p. 312).

Se, por um lado, o autor destaca a importância de compreender a diversidade dessas relações, representações e práticas estabelecidas entre os segmentos estadunidenses e latino-americanos, por vezes contraditórias e divergentes, por outro, não hesita em ratificar o imperialismo midiático presente no programa de propaganda estadunidense para a América Latina que perpassa os vários circuitos de relações de poder, reproduzindo e atualizando antigos métodos de controle e dominação. uso do cinema como recurso de aproximação entre os Estados Unidos e o Brasil durante a II Guerra Mundial teve um impacto sem precedentes, e não serviu apenas como instrumento de convencimento e persuasão no campo político-ideológico ou no controle de um estratégico mercado fornecedor de matérias-primas. O American Way of Life difundido através da propaganda no cinema vendia também novos hábitos, estilos, modas, costumes e comportamentos que transformaram de maneira decisiva a sociedade brasileira. Através de uma linguagem simples, o livro de Alexandre Valim traz uma análise sofisticada envolvendo propaganda, cinema e guerra, uma tríade de elementos importantes para a compreensão do poder de persuasão que serve de munição à indústria cinematográfica até os dias de hoje.

Referências

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. São Paulo: Contraponto, 1997.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, história visual. Balanço provisório, propostas cautelares. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 23, n. 45, 2003.

VALIM, Alexandre Busko. O Triunfo da persuasão: Brasil, Estados Unidos e a Política da Boa-Vizinhança durante a II Guerra Mundial. São Paulo: Ed. Alameda, 2017. 1 A associação cinema-espetáculo foi apropriada de Guy Debord, para quem o espetáculo “não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens”. Cf. DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. São Paulo: Contraponto, 1997, p. 12.

Ana Marília Carneiro – Doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, MG – BRASIL E-mail: [email protected].

História oral e história das mulheres: rompendo silenciamentos – ROVAL (RTA)

ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira (Org.). História oral e história das mulheres: rompendo silenciamentos. São Paulo: Letra e Voz, 2017. Resenha de: MOUSINHO, Amanda Arrais. Uma história oral narrada por vozes femininas na luta contra as hierarquias de gênero. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.11, n.26, p.630-634, jan./abr., 2019.

“História oral e história das mulheres: Rompendo silenciamentos” é um livro composto por estudos baseados nas vidas de mulheres de diferentes origens territoriais, sociais, culturais e políticas e suas relações com os homens, com o propósito de refletir sobre essas experiências femininas diante das mais diversas práticas culturais que perpassam o cotidiano. Segundo a organizadora da obra, Marta Gouveia de Oliveira Rovai, essas mulheres detêm a possibilidade de se manifestar, por intermédio da história oral, contra toda forma de opressão, indiferença e esquecimento com o objetivo de publicizar e enfrentar dores na luta contra o silenciamento.

O livro tem início com uma entrevista realizada com Rachel Soihet no intuito de contar a trajetória da estudiosa de gênero e história das mulheres. Realizada por Natália de Santanna Guerellus, a entrevista descreve o percurso pessoal e profissional de Rachel e narra como o fato de as mulheres ocuparem espaços separados nas festas e comporem rodas de conversa cujos temas eram casa e filhos – enquanto homens debatiam temas como política e negócios – acabou por despertar seu interesse sobre o estudo da divisão de papéis entre homens e mulheres.

Mais adiante, a pesquisadora tenta compreender de que forma a segregação e a opressão sofridas pelas mulheres prejudicavam suas potencialidades intelectuais e profissionais, e também defende a complementariedade dos estudos de gênero e da história das mulheres. A entrevistada se denomina feminista ao buscar direitos para as mulheres de modo a constituir uma sociedade igualitária com a qual contribui em termos intelectuais, por exemplo, fazendo uso da história oral para trazer à tona temas que não foram explorados nas décadas anteriores e resgatar, através de memórias, uma história até então não registrada.

O restante do livro é dividido em três partes, sendo cada parte composta por dois capítulos. A primeira parte, “Narrativa de militância feminina: Desvelando relações hierarquizadas de gênero”, debate a relação entre gênero, feminismo e ditadura buscando compreender de que forma as relações de gênero afetam a narrativa e a trajetórias de mulheres que participaram de algum tipo de militância. No primeiro capítulo, “Viver o gênero na clandestinidade”, Joana Maria Pedro aborda a experiência de mulheres militantes que vivenciaram a clandestinidade. A autora faz uso da história oral para entrevistar mulheres que, após se conectarem às organizações políticas, tiveram que utilizar a clandestinidade como recurso para fugir da repressão no período da ditadura no Brasil. Durante as entrevistas, as memórias foram utilizadas como fonte e, por mais que algumas mulheres tenham exercido protagonismo político ao desempenhar cargos de destaque, o que chama a atenção é o fato de algumas das mulheres entrevistadas se colocarem à sombra de seus parceiros ao desqualificarem a própria militância, o que reforça a hierarquia de gênero vigente e minimiza a atuação feminina nos espaços públicos e políticos que são tidos como naturalmente masculinos. Segundo Joana Pedro, essa autodesqualificação da mulher militante reitera que a memória é gendrada e, por consequência, a forma como histórias são narradas e rememoradas também o são, o que acaba por fazer com que o reconhecimento das mulheres na condição de sujeitos históricos e protagonistas seja atravessado por relações de gênero.

No segundo capítulo, intitulado “Ditadura civil-militar e relações de gênero: Uma análise das experiências de mulheres na guerrilha urbana no eixo Brasília-Goiânia”, Eloísa Pereira Barroso e Clerismar Aparecido Longo entrevistam mulheres que militaram na organização de guerrilheiras urbanas que se apresentou como resposta à repressão ditatorial. Nesse caso, a entrevista oral visou entender a condição gendrada da mulher nesse movimento, abarcando hierarquias e estratégias de poder, bem como compreender como os discursos dos sujeitos envolvidos em projetos políticos de esquerda estão condicionados a configurações de gênero.

Já a segunda parte do livro, “Experiências desviantes: a ousadia de ser mulher em contextos autoritários”, tem início com o capítulo “O herói e a deslocada: História oral, gênero, ditadura, emoções”. Escrito por Ana Maria Veiga, o estudo explora a vida de Valdir Alves e Elaine Borges: jornalistas que exerceram a profissão durante a censura da ditadura civil-militar. A autora frisa que apesar de ambos os sujeitos terem tido formação profissional semelhante, o gênero feminino e masculino – opostos e hierarquizados – foram definitivos na construção de uma experiência divergente separada por um abismo do binarismo, de forma que Valdir ficou conhecido como herói e mito, enquanto Elaine não ganhou o mesmo título, mas sim o de “incendiária do cenário político” (2017, p. 92), que poderia prejudicar a imagem dos jornalistas por gostar de criar confusão. E é por isso que Ana Maria Veiga nomeia Elaine como “deslocada”, pelo fato de a jornalista ter se destacado em um meio profissional predominantemente masculino e fugir do suposto papel tradicional da mulher.

No segundo capítulo, “Médica, resistente e condessa: A história da militante potiguar Laly Carneiro Meignan”, a autora Maria Cláudia Badan Ribeiro narra a vida da primeira mulher potiguar a ser presa por motivos políticos devido à sua militância ir de encontro com o coronelismo, as oligarquias rurais e a ala conservadora do Rio Grande do Norte. Laly, uma mulher nordestina, médica, militante, exilada e professora consagrada no exterior, faz parte de uma resistência construída coletivamente que utilizava como instrumento principal a educação popular.

Na terceira e última parte do livro, “O privado como dimensão pública: Rompendo territórios”, as autoras exploram temas que abarcam a naturalização das funções sociais das mulheres em uma sociedade patriarcal. No primeiro capítulo, “Ser mãe ou não ser: Afinal, qual é a questão? A história oral desvendando o mito do amor materno”, Marcela Boni Evangelista entrevista dois grupos de mulheres que vivenciaram a experiência da maternidade na adversidade. Primeiramente, a autora conversou com mulheres-mães de jovens envolvidos com atos infracionais que foram privados de liberdade; e em um segundo momento, Marcela conversou com mulheres que passaram pela experiência do aborto induzido, o que evidencia a maternidade enquanto uma escolha. Em ambas as situações, a história oral serviu como instrumento para dar voz a essas mulheres a fim de problematizar a ideia do mito do amor materno, bem como a imposição da obrigatoriedade da maternidade para que a mulher alcance a plenitude. Nesses dois casos, a história oral aproxima o leitor das realidades obscurecidas pelas quais passam essas mulheres diante de uma função social a elas atrelada e que é há muito tempo naturalizada.

No capítulo final, “Romper o silenciamento: Narrativas femininas sobre violência de gênero e desvitimização”, Marta Gouveia de Oliveira Rovai e Naira de Assis Castelo Branco relatam casos de mulheres piauienses, moradoras da Parnaíba, que sofreram violência de gênero no período de 1995 a 2014. Segundo as autoras, ouvir as vítimas de violência simboliza o incentivo a uma reflexão acerca das relações entre domínio público e privado e a tentativa de desconstruir a ideia de que a violação dos direitos no espaço privado é um assunto conjugal. Entretanto, é primordial ressaltar que, apesar da violência sofrida, as mulheres não podem ser reduzidas ao papel de vítima, logo, o papel da história oral, nesse caso, é justamente o de fazer com que esses testemunhos atinjam a esfera pública a fim de criar medidas protetivas e desnaturalizar violências e hierarquias de gênero.

No decorrer dos capítulos desse livro, o que se percebe é a necessidade de assegurar às mulheres o direito de contar suas próprias experiências de modo que suas histórias não sejam reduzidas a uma narrativa terceirizada contada sob a ótica masculina. Em vista disso, a história oral funciona como instrumento metodológico ao dialogar diretamente com essas mulheres e permitir que suas experiências sejam publicizadas sem a mediação de instituições atravessadas por uma cultura permeada por práticas e discursos androcêntricos.

Amanda Arrais Mousinho Mestranda em Estudos Culturais na Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP – BRASIL E-mail: [email protected].

Frozen empires: an environmental history of the Antarctic Peninsula – HOWKINS (RTA)

HOWKINS, Adrian. Frozen empires: an environmental history of the Antarctic Peninsula. New York, NY: Oxford University Press, 2017 7. Resenha de: ANDRADE JÚNIOR, Hermes. Frozen empires. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.11, n.26, p.616-622, jan./abr., 2019.

O continente da Antártida é desconhecido pelas pessoas comuns e pela maioria da comunidade científica. Apenas uma plêiade de pesquisadores, militares, exploradores e aventureiros que agem com objetivos muito específicos conhece as microrrealidades de somente parte do continente, notadamente as áreas de exploração, de comércio, dos pontos de parada e descanso e dos estudos continuados em um lugar onde a natureza é exigente e inóspita para os seres humanos. Esses contrastes trazem muita curiosidade, pois ainda parece ser uma região pouco conquistada, mas não pouco disputada, e essa é a versão deste livro.

O livro em si é um estudo de caso de confluência da macropolítica internacional, especialmente dotada em termos geopolíticos, e com nexos explicativos de fundo ambiental, ou seja, com uso da ciência ambiental. Assume características de um discurso ambiental e geofísico com aparato científico de suporte, sempre amparado por militares estrategistas de todas as nações interessadas na disputa por seu território. O autor, Adrian Howkins, é professor e pesquisador de História na Universidade Estadual do Colorado, EUA.

Mas, por que tanto interesse na região já que é perpetuamente coberta de gelo e neve e sem habitantes nativos? A montanhosa Península Antártica que se estende para o sul em direção ao Polo Sul e que se funde com a maior e mais fria massa de gelo do planeta é, mesmo assim, a região apontada pelo autor como a que tem a história política mais contestada de qualquer parte do Continente Antártico.

O lado ocidental da península provou ser a parte mais acessível da região, como resultado das correntes oceânicas e ventos que mantêm o mar relativamente livre de gelo durante os verões e onde confluem todas as reivindicações de soberania e de sobreposição. Para o leste, onde as reivindicações da Argentina e da Grã-Bretanha, mas não do Chile, se sobrepõem, a região politicamente definida da Península Antártica se estende pelo Mar de Weddell e inclui as plataformas de gelo e gelo ao sul. Para o norte, a região da Península Antártica inclui as Ilhas Shetland do Sul, que são reivindicadas pelos três países, com as Ilhas Órcades do Sul, Ilhas Sandwich do Sul e Geórgia do Sul, que são disputadas pela Grã-Bretanha e Argentina.

É importante salientar que o autor centrou seu estudo na Península Antártica e não no todo do continente da Antártida. Isso, metodologicamente sustenta seu estudo de caso na fluência do exame das evidências, mas também deixa claro que nações (que algumas o autor também categoriza como impérios) tinham a pretensão somente na Península Antártica ou no continente como um todo, afirmando seus interesses enquanto atores de forma explícita em um ou outro território ou na extensão de continuidade de seus territórios.

Howkins sinaliza que nas décadas de 1920 e 1930, por exemplo, os britânicos usaram as “investigações de descoberta” (p.8) biológicas marinhas para produzir informações sobre as baleias que poderiam ser usadas para regular a indústria baleeira de maneira sustentável e, nas décadas intermediárias do século XX, fizeram um uso cada vez mais sistemático de levantamentos e mapeamentos para afirmar seu controle sobre as dependências das Ilhas Falkland.

Assim, desde o início do século XX, Argentina, Grã-Bretanha e Chile fizeram reivindicações de soberania sobrepostas, enquanto os Estados Unidos (a Doutrina Hughes de 1924 se recusou a reconhecer quaisquer reivindicações de soberania à Antártida e, ao mesmo tempo, reservou os direitos dos EUA a qualquer parte do continente) e a Rússia reservaram direitos para todo o continente.

A ameaça de um confronto armado entre a Grã-Bretanha, a Argentina e o Chile era uma grande preocupação para os formuladores de políticas dos EUA, já que os três países eram importantes aliados da Guerra Fria e qualquer conflito entre eles seria bom para a União Soviética. Como consequência, os Estados Unidos assumiram a liderança na promoção de vários planos para trazer uma solução pacífica para a disputa de soberania na região da Península Antártica. Ao procurar equilibrar os objetivos conflitantes de promover seus próprios interesses e promover a paz, os Estados Unidos tentaram avaliar o valor econômico do continente.

No fenômeno deste caso, o tema do meio ambiente está no centro dessas disputas pela soberania, colocando a Península Antártica como cruzamento da história das relações internacionais e da história ambiental na região. Sobre a importância de estudá-lo, estações de exploração científica, segundo Howkins, serviram de fachada e de cobertura aos argumentos para as afirmações de soberania em várias cimeiras, com episódios de confrontações militares abertas, como no Caso das Malvinas/Falklands, que foram vividos diretamente pelo cenário de disputa construído com tais precedentes históricos.

A narrativa apresentada por Adrian Howkins é muito bem escrita e amparada em vigorosas fontes documentais e testemunhais, como um digno trabalho de campo aprofundado para obter um estudo de caso consistente. Munido de fartos documentos catalogados cuidadosamente, fatos e registros históricos bem interpretados, o autor afirma que tem havido uma continuidade fundamental nos modos pelos quais as potências imperiais usaram assuntos do meio ambiente para apoiar suas reivindicações políticas na região da Península Antártica e que essas múltiplas reivindicações e afirmações de direitos que se sobrepunham tornaram a Península Antártica uma das regiões mais disputadas em qualquer lugar do planeta.

Nos jogos de poder, os britânicos, pelo lado dos colonizadores, argumentaram que a produção de conhecimento científico útil sobre a Antártica os ajudou a justificar a sua posse e do outro lado, em tentativa de emancipação, a Argentina e o Chile argumentavam que a Península Antártica pertencia a eles como resultado da proximidade geográfica, da continuidade geológica e de um senso geral de conexão. No entanto, como resultado, apesar dos vários desafios e reivindicações, o autor afirma que nunca houve uma genuína descolonização da região da Península Antártica.

Em vez disso, as afirmações britânicas de que as respectivas entidades estavam conduzindo a ciência “para o bem da humanidade” (p. 8, 21) foram reformuladas pelos termos do Tratado Antártico de 1959 e os “impérios congelados” (p. 16-22) da Antártica, assim denominados pelo autor (o tratado “congelou” (p.21) todas as reivindicações de soberania e reservas de direitos à Antártida, nem as reconhecendo nem as rejeitando), permanecem até hoje no mesmo status.

Na justaposição da aparente hostilidade do ambiente material da Península Antártica com a disputada história política da região, são levantadas uma série de questões. Por que o ambiente aparentemente sem valor e hostil da região da Península Antártica se tornou tão contestado ao longo do século XX? Que papel o ambiente desempenhou na forma como esses conflitos políticos se desenvolveram? E quais foram os resultados e implicações deste conflito? pacífica” intensificou-se no curioso caso chamado de tentativa de descolonização, uma vez que as pretensões do Chile e da Argentina foram abertamente discutidas em ambiente de Guerra Fria, cercado pela mega influência bipolar do mundo EUA-URSS, que obviamente decidiram manter seus interesses no continente antártico e não somente na Península Antártica.

Confirma-se uma história ambiental da descolonização no gelo no continente (PYNE, 2003). No panorama da obra, verificam-se grandes categorias de reinvindicação históricas e historicizantes. Em primeiro lugar, a geopolítica do conhecimento para gerar soberania a ser usada como estratégia dos colonizadores (internacionalismo científico) e, em segundo lugar, o nacionalismo ambiental dos colonizados.

Exemplificando, o interesse argentino e chileno na região desafiava não apenas a posse britânica das dependências das Ilhas Malvinas, mas também a conexão imperial entre o conhecimento ambiental e o poder político. Por um tempo, pelo menos, esse “nacionalismo ambiental” sul-americano (p. 59-82) produziu visões do ambiente antártico que diferiam significativamente do foco da Grã-Bretanha na ciência. Apesar do seu afastamento, a história do conflito entre o imperialismo britânico e o nacionalismo sul-americano na região da Península Antártica conecta-se com a história mais ampla da descolonização de meados do século XX.

Em 1º de dezembro de 1959, doze nações – incluindo Grã-Bretanha, Argentina, Chile, Estados Unidos e União Soviética – assinaram o Tratado da Antártida, que suspendeu todas as reivindicações de soberania e reservas de direitos, e criou um continente dedicado à paz e à ciência. Interpretações tradicionais consideraram o tratado como um importante ponto de virada na história antártica, encerrando em grande parte as lutas políticas do continente e implementando uma nova era do internacionalismo científico, mas também há que se considerar outros focos interpretativos, uma vez que “a ausência de estruturas administrativas formais deixou a natureza jurídica do Tratado da Antártida deliberadamente vaga” (p. 161).

Howkins aplica uma perspectiva mais ampla da história ambiental da região da Península Antártica que sugere que a Antártida continua a ser um ambiente imperial, com a ciência continuando a ser usada para legitimar o poder político. Embora a assinatura do Tratado certamente tenha marcado o declínio do nacionalismo ambiental sul-americano, ele não mudou significativamente a política imperial subjacente do continente. E, embora o Chile e a Argentina nunca tenham desistido de proclamar seus direitos territoriais à região da Península Antártica, eles começaram a aceitar a conexão entre ciência e poder político e abandonaram em grande medida o nacionalismo ambiental das décadas de 1930, 1940 e 1950. Desde a sua ratificação em 1961, o envolvimento da Argentina e do Chile se mostrou importante na defesa do Tratado da Antártida de acusações de exclusividade. Fica a lembrança de que a conexão entre ciência e soberania usada pela Grã-Bretanha para justificar suas reivindicações às dependências das Ilhas Malvinas foi criticada pelo nacionalismo ambiental que, ao invés de competir com as mesmas armas que não estariam disponíveis, procurou outras formas não científicas de usar o ambiente antártico para promover a propriedade.

Na sua explanação, o autor prova que novas descobertas eram frequentemente feitas na península, sendo nomeadas e descritas por expedições imperiais, com poucas narrativas concorrentes. Com o tempo, com a construção de estações de pesquisa britânicas e através de vários esquemas para desenvolver o ambiente antártico, as percepções da região da Península Antártica como um ambiente imperial contribuíram para moldar sua realidade material. Certamente havia limitações às afirmações britânicas de autoridade ambiental e à construção da região da Península Antártica como um ambiente imperial. As pretensões britânicas de entender, simplificar e controlar a Antártida poderiam frequentemente parecer ridículas em face da vastidão da região e de sua hostilidade à presença de seres humanos e seus mares congelados, fendas, tempestades e maremotos. Nos dias de hoje, as afirmações britânicas de autoridade ambiental mostraram-se poderosas na construção da região da Península Antártica como um ambiente imperial. Nomes de lugares britânicos continuam a ser usados; a ciência tornou-se uma atividade normativa e é difícil pensar na região sem alguma referência às expedições científicas do início do século XX.

Em sua conclusão, o autor afirma que, infelizmente, para o nacionalismo ambiental chileno e argentino, os dois países sul-americanos nunca chegaram a um acordo sobre quem detinha o quê no continente sulista. Como consequência, o desafio ao imperialismo britânico foi significativamente enfraquecido. É interessante especular o que poderia ter acontecido com a história da região da Península Antártica se o Chile e a Argentina tivessem chegado a um acordo sobre suas respectivas reivindicações; isso, no mínimo, teria dado a outros países simpáticos à sua causa anti-imperial algo a reconhecer. No entanto, os diplomatas chilenos e argentinos se viram gastando quase tanto tempo competindo entre si em reivindicações, lutando contra o imperialismo britânico.

Mais amplamente ainda, traz uma reflexão final de que o argumento para a continuidade imperial na história ambiental da região da Península Antártica poderia ser usado como modelo para pensar sobre as políticas ambientais de outras partes do mundo, especialmente em lugares diretamente influenciados pelas histórias do imperialismo europeu e da descolonização.

Afirmações da autoridade ambiental podem ser vistas como uma poderosa ferramenta política em muitas questões importantes, em muitas partes do mundo, e este livro provou isso. É leitura recomendada para todos os que querem ter contato com parte pouco conhecida do Atlântico Sul e do continente antártico, em especial no que tange aos países latino-americanos do Mercosul como o Brasil, que viveu, mesmo na neutralidade da Guerra das Malvinas em 1982, o drama de ter mais uma guerra como dilema das relações internacionais de seus vizinhos, agora parceiros estratégicos.

Referências

HOWKINS, Adrian. Frozen empires: an environmental history of the Antarctic Peninsula. New York, NY: Oxford University Press, 2017.

PYNE, Stephen J. The Ice. London: Weidenfeld & Nicolson, 2003.

Hermes Andrade Júnior – Bacharel em Relações Internacionais. Doutor (D. Sc.) pela Escola Nacional de Saúde Pública (FIOCRUZ). – Pós-Doutorado na Universidade Católica Portuguesa (UC/FFCS/CEFH). Braga – PORTUGAL. E-mail:  [email protected].

Mulheres negras e museus de Salvador: Diálogos em branco e preto – SILVA (RTA)

SILVA, Joana Angélica Flores. Mulheres negras e museus de Salvador: Diálogos em branco e preto. Salvador: Edufba, 2017. Resenha de: SANTIAGO, Fernanda Lucas. Narrativas sobre mulheres negras: diálogos entre a História e a Museologia. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.10, n.5, p.509-514, jul./set., 2018.

Nós, historiadoras/es, partilhamos com nossas/os colegas museólogas/os alguns dilemas próprios do nosso ofício, como a responsabilidade com a narrativa que construímos, os desafios da análise crítica à fonte documental e o risco da fetichização e folclorização dos documentos. Para além disso, a função social de ambas as profissões, está intimamente ligada com a desconstrução de estereótipos e a necessidade constante de rever métodos e atualizar abordagens discursivas, entre outros aspectos. Desse modo, tanto na História como na Museologia, e em outras ciências humanas, a análise das fontes é o ponto-chave na construção da narrativa em que não se pode esperar que a fonte fale por si. Anterior à análise da fonte é necessário ter em vista o que pode ser considerado fonte. Quais sujeitos essa, ou aquela fonte nos permite acessar? Apesar dessas discussões não serem novidade na área da História, ainda determinados sujeitos ficam à margem das narrativas especialmente quanto à interseccionalidade de gênero, raça e classe. Qual o lugar destinado à mulher negra nas narrativas históricas? Qual o lugar destinado às mulheres negras nas exposições museológicas? Nesse sentido, Joana Flores Silva critica a “romantização da escravidão” nos museus de Salvador e o “não lugar” da mulher negra nos museus e em nossa sociedade. Foram essas questões, que motivaram a Museóloga a aprofundar sua análise e escrever sua dissertação de Mestrado em Museologia (2015) pela UFBA. Essa resenha refere-se ao texto de sua dissertação, cujo lançamento em formato de livro deu-se no dia 21 de julho de 2017 no Solar Ferrão1, Pelourinho, Salvador – BA. A pesquisadora possui profunda experiência na área da Museologia, assumiu diversos cargos de gestão e coordenação de museus em instituições governamentais, sendo responsável por diversos projetos com a finalidade de criar políticas públicas para atender a demanda social com relação às questões de acessibilidade, identidade e pertencimento do público soteropolitano. Sua militância segue lado a lado com sua sólida trajetória profissional. Atualmente, é museóloga da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Branco e Preto” é um marco na Museologia brasileira, pois inaugura2 a discussão de gênero e raça, além de ser um ato político extremamente simbólico a presença de uma museóloga negra discutindo racismo; representatividade; o lugar da população negra na narrativa oficial; acessibilidade aos museus; no mesmo lugar em que, há pouco mais de um século, pessoas negras estavam sendo vendidos em praça pública.

A pesquisadora analisou sete museus de tipologia histórica de Salvador contidos no Guia Brasileiro de Museus, buscando entender como são representadas as mulheres em exposições de longa duração, e o tratamento diferenciado dado às representações de mulheres negras e mulheres brancas. Para entender a composição dos cenários dos museus analisados, a museóloga considerou duas etapas do projeto expográfico: a primeira refere-se à preservação dos objetos, ou seja, o que é valorizado como documento digno de preservação? O que compõe uma coleção? E a segunda etapa refere-se à exibição. O que merece ser exibido ao público? Quem são os sujeitos representados nos lugares de maior ou menor destaque dentro dos museus? Como resultado da análise, a museóloga percebe que os acervos são pouco explorados e/ou distorcidos, no que tange a representação da mulher negra; há pouca ou ausência de referência sobre objetos que são atribuídos às mulheres negras. Caso parecido ocorre na História, quanto à invisibilidade das mulheres negras nas narrativas históricas. É necessário pensar qual a importância desse sujeito histórico (mulher negra) naquele contexto, e as experiências das mulheres negras na atualidade, e assim, questionar a intencionalidade de ligar o corpo negro ao passado de escravidão, promovendo seu silenciamento.

A museóloga explica que os recursos de luz e cor, conteúdo das legendas, a escolha dos objetos e espaços de maior ou menor destaque nos museus, evidenciam a intencionalidade expográfica de cristalizar hierarquias sociais. Assim como na narrativa histórica, escolhe-se apenas o que se deseja lembrar e o restante é esquecido, não há espaço para a pluralidade de experiências. A memória da mulher branca e pobre é Disponível em: <https://g1.globo.com/bahia/noticia/livro-mulheres-negras-e-museus-de-salvador-e-lancado-no-solar-ferrao-nesta-sexta-feira.ghtml>. Acesso em: 30 abr. 2018.  2 Disponível em: <https://dimusbahia.wordpress.com/2017/07/25/lancamento-do-livro-de-joana-flores-mulheres-negras-e-museus-de-salvador-lota-o-museu-abelardo-rodrigues/>. Acesso em: 30 abr. 2018.  apagada, assim como a memória de mulheres negras livres e com poder de influência são esquecidas. Cristalizar a imagem da mulher negra como escravizada impede-nos de perceber a história da mulher negra para além dessa imagem, invisibiliza suas ações enquanto sujeito histórico ativo na construção socioeconômica do país e sua atuação como líderes comunitárias, em clubes, coletivos e outros movimentos sociais. Segundo a museóloga, a memória da mulher branca da elite nos museus de Salvador é sustentada através da memória da mulher negra escravizada, ou seja, a memória de um grupo é reforçada pela subalternização da memória de um outro grupo .

Joana Silva faz um apelo no sentido de que as teorias e práticas museológicas devem ir além de pensar no acesso ao museu, mas devem repensar as formas de representar os sujeitos que não frequentam museus, por não se reconhecerem nos discursos ultrapassados exibidos nessas instituições. É necessário dar um tratamento digno aos objetos que pertenceram às mulheres negras e contextualizar os usos dos objetos, que são parte da história esquecida pela historiografia oficial. Trazer legendas com referências mais precisas sobre os objetos e sujeito que os possuíam, ou os utilizavam. Tornar visível a herança cultural desde tempos remotos dos grupos excluídos, para resgatar o sentimento de pertencimento e identidade racial e social dos sujeitos históricos no presente. A autora indica como possibilidade contrapor historiografia oficial com as produções artísticas que valorizam a mulher negra.

A pesquisadora apresenta alguns marcos de reflexões sobre a função social do museu que está na pauta da Museologia internacional dos últimos 40 anos: a Mesa Redonda de Santiago no Chile em 1972, segundo Silva (2017, p.51) “o desenvolvimento e o papel dos museus no mundo contemporâneo”; a Declaração de Caracas, de 1992, de acordo com Silva (2017, p. 51) “compreende os museus como um dos principais agentes de desenvolvimento integral”. O Código de ética do ICOM (Conselho Internacional de Museus) que assegura a autonomia dos museus no tratamento de suas coleções mas, atenta para o compromisso em tornar acessível e representativo para os diversos grupos sociais. Mesmo após esses avanços, a autora constata que a maioria dos museus de Salvador ainda não se alinharam a essas determinações internacionais. A museóloga também apresentou marcos nacionais de maior relevância para a renovação da museologia, como a Constituição de 1988, que instituiu o Plano Nacional de Cultura. As conquistas do movimento negro através das Políticas de Ações Afirmativas, como a criação da SEPPIR (Secretaria de Políticas de Promoção à Igualdade Racial) e SEPROMI (Secretaria de Promoção à Igualdade Racial), o Estatuto da Igualdade Racial. Esses marcos de Políticas Públicas sinalizam, de maneira geral, o respeito à diversidade cultural, a atualização da narrativa de maneira que promova a valorização dos sujeitos e grupos excluídos, resgatando o sentimento de pertença e identidade cultural.

A autora apresenta um breve histórico abordando a fundação de três instituições: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1838, o Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro em 1922 e o Instituto Feminino da Bahia fundado em 1923. Segundo a autora, essas três instituições foram responsáveis por construir os símbolos de identidade nacional, progresso, modernidade, o modelo de mulher burguesa e por cristalizar o continuísmo do espaço marginal destinado à população negra e indígena no estado da Bahia.

A narrativa oficial da História inseriu a mulher negra no papel de escravizada e da mesma forma operou o discurso Museológico durante anos. Tanto a historiografia quanto a museologia são beneficiadas quando as/os pesquisadoras/res consideram em suas abordagens o recorte racial, e suas interseccionalidades com gênero e classe. Faz-se urgente a difusão de trabalhos como de Silva (2017) para o combate ao racismo, machismo e sexismo. Esse trabalho de análise da museóloga deve servir de exemplo as/aos pesquisadoras/res brasileiros, assim como em todo mundo afro-diaspórico. Não se trata de tentar esconder o passado de escravidão mas, trata-se de evidenciar que a população afro-diaspórica tem uma história rica e plural em experiências, não sendo aceitável a reificação da imagem do escravizado. Silva (2017) traz nas últimas páginas de seu texto uma lista emblemática referenciando diversas mulheres negras que merecem ser lembradas por seu trabalho e atuação política, como Maria Beatriz Nascimento, Karol com K, Jovelina Pérola Negra, Olga de Alaketu, Tia Ciata, Djamila Ribeiro entre outras.

Entre as funções sociais do museu também podemos considerar a função didático-pedagógica, para que os museus possam servir aos propósitos da Lei 10.639/03, que instituiu a obrigatoriedade do Ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira no Ensino Básico, desde que os objetos representados dialoguem com o público visitante numa perspectiva de desconstruir estereótipos; dessa forma, os museus podem ser aliados na construção de uma Educação Intercultural.

Referências SILVA, Joana Angélica Flores. Mulheres negras e museus de Salvador: Diálogos em branco e preto. Salvador: Edufba, 2017.

Escritora Joana Flores lança livro ‘Mulheres Negras e Museus de Salvador’ no Solar Ferrão. G1 Bahia. Disponível em: <https://g1.globo.com/bahia/noticia/livro-mulheres-negras-e-museus-de-salvador-e-lancado-no-solar-ferrao-nesta-sexta-feira.ghtml> Acesso em: 30 abr. 2018.

Lançamento do livro de Joana Flores ‘Mulheres Negras e Museus de Salvador’ lota o Museu Abelardo Rodrigues. Dimus Bahia. Disponível em: <https://dimusbahia.wordpress.com/2017/07/25/lancamento-do-livro-de-joana-flores-mulheres-negras-e-museus-de-salvador-lota-o-museu-abelardo-rodrigues/> Acesso em: 30 de abr. 2018.

Fernanda Lucas Santiago Mestranda em História na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Florianópólis – SC – Brasil. E-mail: [email protected].

Protesto: uma introdução aos movimentos sociais – JASPER (RTA)

JASPER, James M. Protesto: uma introdução aos movimentos sociais. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2016. Resenha de: ZANGELMI, Arnaldo José. Um olhar sobre a dimensão cultural dos protestos e os dilemas da mobilização. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.10, n.25, p.502-508, jul/set., 2018.

Publicada originalmente pela editora Polity em 2014, com o título Protest: a cultural Introduction to social movements, a obra aqui apresentada foi disponibilizada em português pela Zahar no ano de 2016, em edição que conta com prefácio e posfácio dedicados especialmente ao contexto brasileiro. James Macdonald Jasper, professor da City University of New York, busca compreender as dinâmicas de mobilização em diversos contextos, dando especial atenção à dimensão cultural dos protestos. Apesar do reconhecimento sobre a relevância das forças estruturais, a atenção do autor está direcionada principalmente para as significações, emoções, valores morais e estratégias de ação dos atores em interação nas diversas arenas.

O livro é formado por oito capítulos, cada um baseado na articulação entre as mobilizações de um determinado movimento e um dos aspectos centrais nas dinâmicas dos movimentos em geral. Ao longo da obra, o autor também relaciona reflexões sobre os movimentos mais recentes e processos históricos mais antigos, como o caso de John Wilkes, ator que desencadeou uma série de movimentos na Inglaterra do século XVIII.

O primeiro capítulo é voltado principalmente para as definições e abordagens sobre os movimentos sociais. Jasper traça um breve panorama das principais perspectivas, delimitando entre as teorias psicológicas (ressentimento, multidões, escolha racional etc.), estruturalistas (oportunidades políticas, mobilização de recursos etc.) e históricas (Marx, Touraine, Tilly etc.). O autor busca, então, demonstrar como essas várias tendências, quando isoladas, se mostraram incapazes de compreender a realidade social, problema que tem levado algumas delas a incorporar a dimensão cultural em suas análises. Um exemplo é o sociólogo estadunidense Charles Tilly, que incorporou a persuasão como elemento relevante em seus últimos trabalhos. Jasper embasa parte significativa de suas reflexões nas concepções conceituais e históricas de Tilly, especialmente sobre as mudanças nos repertórios de ação dos movimentos nos séculos XVIII e XIX, em países como França e Grã-Bretanha.

O segundo capítulo trata da construção e projeção de significados, utilizando o movimento feminista como principal referencial empírico. Jasper salienta como a feminilidade é uma construção cultural, não um imperativo biológico, sendo assim foco das mobilizações de diversos movimentos ao longo da história. O movimento feminista, por diversos meios físicos e figurativos, buscou transformar as significações vigentes, influenciar a sociedade e conquistar novos direitos.

No terceiro capítulo, o autor trata das infraestruturas (comunicações, transporte, redes sociais, organizações, profissionais etc.) nas quais os atores se mobilizam, espaços que influenciam no processo de criação e transmissão de significados culturais pelos movimentos. Tratando especialmente das mobilizações da direita cristã nos Estados Unidos, Jasper deixa entrever que sua perspectiva tem um forte caráter relacional, na medida em que argumenta que o surgimento e desenvolvimento dos movimentos se dão nas interações com outros atores em diversas arenas. Assim, o autor demonstra como as ações de religiosos conservadores tiveram como principais contrapontos o feminismo e o movimento LGBTQ, se constituindo, em grande medida, pelo contraste em seus enfrentamentos.

As análises de Jasper também têm um enfoque processual, pois abordam as continuidades e transformações nas formas de enfrentamento, demonstrando como antigos movimentos deram base para novas mobilizações. Nesse sentido, o autor explica como os conservadores da direita cristã tiveram influência do anticomunismo dos anos de 1950, assim como os movimentos de homossexuais se valeram das linguagens de direitos praticadas pelos movimentos de afro-americanos, mulheres, indígenas etc. da década de 1960.

A partir dessas análises, o autor critica o uso de diferentes teorias para explicar movimentos de esquerda e direita, uma das tendências entre os estudiosos dos movimentos sociais. Assim, Jasper enfatiza a necessidade de superarmos os relatos que apontam motivações psicológicas e patológicas para os movimentos de direita, sendo mais proveitoso buscar compreender as formas como esses atores significam suas ações.

A dinâmica de recrutamento de novos membros nos movimentos é discutida no quarto capítulo, que analisa o movimento LGBTQ. O autor destaca o relevante papel dos contatos pessoais, em redes formais e informais, como incentivos para o ingresso e permanência nas mobilizações. Assim, as relações de confiança pré-existentes, orientações afetivas e intuições morais são elementos fundamentais para a adesão aos movimentos. O desenvolvimento das mobilizações dos homossexuais nos EUA é um bom exemplo também para o que o autor denomina como “dilema da desobediência ou cordialidade”, no qual os atores se deparam com escolhas entre táticas aceitas, que geram simpatia de outros atores, ou ações temidas que podem alcançar maior orgulho pelo grupo e recuo dos adversários, porém com maior risco de repulsa e repressão. Quando surgiu a epidemia de AIDS no início dos anos de 1980, assim como sua conotação depreciativa pela direita cristã, a ascendente mobilização das comunidades gays se direcionou para cuidados com os moribundos e a busca por aparência de normalidade e amorosidade. No entanto, os crescentes avanços conservadores sobre as políticas públicas, ocasionaram duras formas de discriminação, causaram um “choque moral” e um crescente sentimento de indignação entre os gays a partir da segunda metade da década de 1980, atraindo milhares de militantes, muitos deles jovens.

O “choque moral” é uma reação emocional que gera sentido de urgência, ameaça, indignação e medo. Desencadeado por eventos dramáticos que quebram a rotina, ele abala o senso de realidade e normalidade, sendo forte motivador para a ação. Assim, houve uma guinada no sentido da desobediência, inconformidade, enfrentamento no movimento LGBTQ, que canalizou a culpa e a vergonha para o Estado, sistematicamente homofóbico, assim como para outras instituições conservadoras da sociedade.

A questão da manutenção dos membros em um movimento é discutida no quinto capítulo, que destaca as diversas satisfações e incentivos promovidos nos movimentos, como a identificação com o grupo, o sentimento de estar fazendo história, o senso de pertencimento etc. Jasper buscou demonstrar como as mobilizações dos dalits, na busca por direitos contra o hinduísmo bramânico dominante, caminharam no sentido da transformação da vergonha em orgulho para o grupo.

O sexto capítulo é voltado para a análise dos processos decisórios nos movimentos, tendo como base o movimento por justiça global. Mobilizando-se principalmente através de fóruns, entre os quais o Fórum Social Mundial tem maior expressão, esses atores têm formulado fortes críticas às políticas neoliberais de diversos países. Jasper analisa diversos mecanismos de tomada de decisão, como a formação de consensos, disputas pelo voto etc. O autor salienta as tensões entre as discussões horizontais, que demandam mais tempo, e as necessidades de tomada de decisão mais rápida e incisiva. Jasper demonstra como as rotinas organizacionais, ao cristalizarem certos procedimentos, diminuem a necessidade de muitas discussões, porém com prejuízo da criatividade e flexibilidade no processo decisório. O autor destaca também que as discordâncias entre facções, a respeito dos objetivos, estratégias etc., podem caminhar para a conciliação ou cismas nos grupos. Assim, mostra como as alianças são dinâmicas, influenciadas por uma multiplicidade de fatores, gerando grande incerteza nessas interações.

O sétimo capítulo trata da revolução egípcia, principalmente quanto às interações dos diversos grupos, entre os anos de 2011 e 2013. Jasper discute como outros atores se envolvem nas mobilizações, em complexas teias de alianças e disputas nas várias arenas. Assim, busca demonstrar como exército, governo norte-americano, grupos religiosos, partidos políticos etc. interagiram nesse processo, influenciando seus rumos. Dessa forma, o autor argumenta que os diversos grupos, cada qual com métodos e objetivos próprios, se envolvem numa mistura de cálculo e emoção, coerção e persuasão. A eficácia dos movimentos, em grande medida, depende de sua capacidade de envolver outros atores numa mesma causa.

No oitavo capítulo, Jasper discute as vitórias, derrotas e demais impactos dos movimentos sociais no mundo contemporâneo, tendo como referencial empírico central o movimento pelos direitos dos animais, principalmente na Grã-Bretanha e nos EUA. Esse movimento obteve várias conquistas, como leis que reduziram consideravelmente o sofrimento dos animas, mas enfrenta fortes obstáculos relacionados a hábitos arraigados, mercado, pesquisas científicas etc. Jasper argumenta que, além das conquistas concretas, vale atentar para os impactos nas visões de mundo, nas sensibilidades morais e interpretações históricas das sociedades. Os movimentos sociais transformam as maneiras de sentir e pensar, conduzindo, mesmo indiretamente, para novas práticas. Os integrantes dos movimentos sociais mudam também a si mesmos, desenvolvendo pensamento crítico, confiança e hábitos que os acompanham em suas trajetórias. Antigos movimentos inspiram os novos e também abrem espaços ao transformarem as regras das diversas arenas, potencializando as lutas futuras.

Jasper procura tecer algumas considerações sobre os movimentos no Brasil, principalmente no prefácio e posfácio à edição brasileira. O autor reflete sobre os protestos desencadeados a partir de 2013, enfatizando como as mobilizações contra o aumento das passagens, com proeminência do movimento Passe Livre, envolveram outros atores e catalisaram demandas mais amplas. Numa guinada para novos rumos, destoantes dos originais, esse processo culminou com a contundente queda presidencial, algo ainda efervescente em nossa sociedade. Retrocedendo um pouco mais em nossa história recente, Jasper também discute a importância do choque moral causado pelos massacres de Corumbiara e Eldorado dos Carajás que, ao gerarem indignação, impulsionaram o governo FHC no sentido das reivindicações do MST no final da década de 1990. Por fim, enfatiza como a tática das ocupações ajudou a inspirar outros movimentos pelo mundo, como se pode ver em vários movimentos da atualidade.

Apesar de parte significativa dos problemas tratados por Jasper nesse livro já terem sido discutidos por outros estudos1, sua abordagem traz contribuições relevantes, na medida em que enfatiza as dimensões mais subjetivas dos movimentos, como a produção de significados, estratégias, sentimentos, efeitos morais etc. Essa ênfase é concretizada principalmente na sua exposição de certas questões como “dilemas”2, delimitação original que direciona a atenção para a perspectiva dos atores em suas interações concretas e suas escolhas diante dos universos de possibilidades que vislumbram.

O livro apresenta tanto uma visão introdutória e abrangente quanto profundidade analítica sobre os movimentos sociais, o que o torna interessante para os estudos de iniciantes e especialistas no tema, assim como para que militantes possam revisitar e reinventar suas práticas. Também se trata de uma obra profundamente atual, dado o crescente impacto dos protestos na dinâmica política recente. Entender os movimentos sociais e os protestos é, cada vez mais, algo imprescindível e estimulante para aqueles que se dispõem a conhecer e buscar transformar o mundo de hoje. É sugestiva a aproximação entre o que Jasper denomina como “dilema de Jano” e a “lógica dual” retratada por Cohen & Arato (2000), assim como os dilemas da “mídia” e “da cordialidade e desobediência” encontram em Champagne (1996) questões comuns. Algumas discussões sobre as dinâmicas das organizações de movimentos sociais (Cefai, 2009. Neveu, 2005) também abordam problemas similares ao “dilema da organização” de Jasper que, no entanto, coloca essas questões noutras perspectivas. 2 Os principais dilemas analisados são: dilema de Jano, dilema das mãos sujas, dilema da caracterização dos personagens, dilema da inovação, dilema da mídia, dilema da organização, dilema da expansão, dilema da desobediência e cordialidade, dilema da identidade, dilema dos irmãos de sangue, dilema dos aliados poderosos, dilema da segregação do público e dilema da articulação.

Arnaldo José Zangelmi – Doutor em Ciências Sociais, Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Professor na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Mariana – MG – Brasil. E-mail: [email protected].

Com Som, Sem Som – Liberdade políticas, liberdades poéticas – VALENTE; PEREIRA (RTA)

VALENTE, Heloísa de A. Duarte; PEREIRA, Simone Luci. Com Som, Sem Som – Liberdades políticas, liberdades poéticas. São Paulo: Letra e Voz/FAPESP, 2016. Resenha de: MOREIRA, Lemos Moreira. Canções, Projetos e Expressões Políticas. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.10, n.24, p.621-627, abr./jun., 2018.

Capaz de produzir sensações, presenças e despertar sentimentos, a música, entre suas várias possibilidades, é capaz de mobilizar indivíduos e grupos sociais. No Brasil, uma série de pesquisadores, como Marcos Napolitano (2002), Miriam Hermeto (2012) e Márcia Ramos de Oliveira (2002), pontuam a capacidade da música e da canção de não apenas representarem um período vivido, mas também como um caminho de reflexão sobre a opinião pública, a circulação de ideias e seu caráter de mobilização social. É nesse sentido que as pesquisadoras Heloísa de Araújo Duarte Valente1 e Simone Luci Pereira2 propuseram a organização da obra “Com Som! Sem som… Liberdade políticas, liberdade poéticas”, publicada em 2016, pela editora Letra e Voz e dividida em quatro partes.

Fruto de parte das reflexões do 10º Encontro Internacional de Música e Mídia (2014)3, o livro é a oitava publicação do Centro de Estudos em Música e Mídia (MusiMid), o qual as organizadoras integram. Articulando pesquisas acadêmicas e relatos de experiência, a coletânea reúne pesquisadores/as que fizeram parte da programação do evento com outros/as convidados/as posteriormente, através de um objetivo em comum: refletir acerca das redes de produção e circulação de músicas ibero-americanas entre os séculos XX e XXI através de discussões que gravitassem em torno das relações entre música, mídia, repressão e liberdade.

A primeira parte do livro, Educação dos sentidos. O sentido de liberdade…, reune dois textos em torno da noção de liberdade. O primeiro deles, intitulado Arte, criatividade e vida do espírito: O que a liberdade de expressão tem a ver com isso?, é assinado pela pesquisadora Daphne Patai, conhecida principalmente por seus estudos na área de História Oral. Em seu texto, a autora faz uma breve reflexão sobre o status da 1 Doutora em Comunicação e Semiótica, Heloísa de Araújo Valente é especialista nas relações entre música, cultura e mídia em perspectiva interdisciplinar, articulando principalmente campos como a comunicação social, a semiótica da cultura e a música. Atualmente, é professora da UNIP, atuando no Programa de Pós-Graduação em Cultura Midiática, e é fundadora do Centro de Estudos em Música e Mídia.

2 Doutora em Ciências Sociais, com formação também na área de História, é especialista na área de música, comunicação e antropologia voltada especialmente aos estudos sobre práticas musicais-midiáticas. Atualmente é professora da UNIP, ligada ao Programa de Pós-Graduação em Cultura Midiática, e vice-coordenadora do Centro de estudos em Música e Mídia.

3 Os Encontros Internacionais de Música e Mídia são promovidos pelo MusiMid anualmente, reunindo pesquisadores e estudiosos dedicados às interfaces entre música e mídia nas mais distintas áreas do conhecimento. Para saber mais: <http://musimid.blogspot.com.br>.  liberdade de expressão na atualidade, tomando como base sua experiência docente. Defendendo a liberdade de expressão, a autora aponta novos grupos e modos de silenciamento desta questão a partir de estudantes que se sentem desconfortáveis em tratar de determinados assuntos. Na visão da autora, a liberdade de expressão teria passado por uma mudança de sentido. Se antes fora alvo de repressão, hoje seria alvo de vigilância por movimentos étnicos e de gênero, especialmente o feminismo, do qual a autora é estudiosa. Já o segundo texto, Tempo de tocar, tempo de cantar, tempo de calar, tempo de inventar: Notas a respeito do percurso da Educação Musical no Brasil, de Marisa Trench de Oliveira Fonterrada, propõe uma análise da história da educação musical no país partindo das relações entre múltiplos tempos e focos do ensino de música nas escolas. Sua abordagem visa, para além de relatar como o ensino foi sendo moldado e, em alguns casos, censurado, destacar a confluência de várias temporalidades no modo de ensinar música no final do século XX e início do XXI.

Intitulada Liberdades políticas e poéticas: A música brasileira, a segunda parte do livro reune três artigos que discutem não apenas a música nacional, mas que dialogam com o plano internacional e/ou global, tomando como fio condutor o universo das linguagens. Lina Noronha, autora de A música como linguagem e os conceitos de música universal e música nacional, discute as relações entre o conceito de música universal e música nacional partindo do pressuposto que a música, enquanto linguagem, não se limitaria apenas ao seu caráter linguístico, mesmo sendo constituída por determinados elementos deste. O foco principal da autora está em analisar a maneira como, no período do “culturalismo”, as representações simbólicas da música seriam fundamentais para compreensão de projetos nacionalistas desde romantismo alemão no século XIX.

Em O papel do compositor em debate na imprensa escrita: Brasil, décadas de 1920 a 1960, André Egg dá seguimento à discussão da linguagem musical relacionada a projetos nacionais, porém focando no caso dos compositores. Partindo da imprensa escrita, o autor afirma que mais do que debater a função do compositor, os veículos levantavam a problemática do que isso significava no cruzamento entre as expectativas políticas e as próprias demandas de construção de identidades nacionais em diferentes contextos. Egg parte da preocupação com a utilização de veículos midiáticos na compreensão das redes de sociabilidades do ramo musical brasileiro a partir do que poderíamos considerar como um estudo voltado à nova história política (SIRINELLI, 2003). Laan Barros segue as mesmas discussões sobre fontes “impressas” em Sambas de Adoniran em HQ: Narrativas transversais na cultura midiatizada, dando atenção especialmente às Histórias em Quadrinhos impressas e/ou digitais. Partindo da análise de discurso e das representações narrativas, este capítulo foca as questões estéticas de tais obras e seus desdobramentos na percepção inserida no contexto das apropriações e da elaboração de novas representações.

A terceira seção do livro, Liberdades políticas e poéticas ibero-americanas, pode ser considerada como a sua parte mais volumosa em número de textos – um total de cinco. Heloísa Valente abre a seção debatendo uma das principais abordagens da obra: O viés político da música, dando atenção ao gênero da canção de protesto. Em Grândola, Vila Morena, o povo unido jamais será vencido! A canção de protesto como memória midiática da cultura, Valente se propõe a pensar, a partir de canções dos compositores Sergio Ortega e José Afonso, a importância da música nos períodos de repressão de direitos e de tomada do poder no cenário das ditaduras Chilena e Portuguesa. A análise objetiva pensar de que maneira a canção de protesto, dotada por um forte poder evocativo, é incorporada à memória auxiliando na compreensão de emoções e sentimentos vividos em cada contexto em que ocorreria sua performance. Com foco semelhante, a etnomusicóloga Susana Sardo e o compositor José Mário Branco discutem a canção como dispositivo de militância ideológica em casos brasileiros e portugueses. Intitulado Canções mensageiras: A cumplicidade entre Brasil e Portugal na construção das democracias, o texto versa sobre diferentes composições que circularam, em ambos os países, em seus períodos ditatoriais e também durante sua redemocratização a partir de figuras como Chico Buarque, José Afonso e o próprio José Mário Branco. A especificidade deste texto, que o difere da abordagem de Valente, é centrar a análise em cantores que são compositores de suas canções, o que permitiria investigar uma intencionalidade própria manifestada na criação e articulação entre palavra e sonoridade.

Os três artigos seguintes abordam a música popular especialmente no Uruguai e na Argentina. Marita Bordolli, em seu texto Música Popular, migración, exilio, diáspora: uruguay en los siglos XX y XXI, discute as relações entre a música popular uruguaia e os movimentos migratórios, dando foco aos trânsitos culturais frutos dos processos migratórios e da diáspora. Propondo-se a pensar entre múltiplos marcos, pontuando questões desde o século XX, a autora chega até o contexto dos meios digitais, especialmente da web para pensar as músicas uruguaias e latino-americanas em grupos diaspóricos. Mercedes Liska, autora do capítulo Un comunista atípico: Osvaldo Pugliese, um caso paradigmático de censura musical en la Argentina del siglo XX, analisa a trajetória de Osvaldo Pugliese, um dos principais nomes do tango argentino, levantando os processos de censura ao compositor, que foi filiado ao Partido Comunista. Uma das principais contribuições do trabalho é pensar a repressão ao artista, não apenas durante a ditadura militar argentina (1960 e 1970), mas igualmente nas décadas de 1940 e 1950 – no governo populista conhecido como Peronismo.

O último texto da seção, Tecnologías del sonido más allá de la urbe, assinado por Miguel García, alia as temáticas dos dois artigos anteriores. Ao analisar as práticas musicais do povo Pilagá, desde a década de 1950 até a atualidade, o autor transita por conceitos como cena musical e performance, chegando a debater, por exemplo, o contexto da década de 1970 com o crescimento do chamado folklore evangelico. Além disso, García, ao aproximar seu recorte temporal da atualidade propõe que, para o povo Pilagá, a tecnologia tem sido vista como uma extensão da sua música e um espaço de experimentação.

Com som! Sem som… Memórias musicais, em primeira pessoa, última parte da obra, reune dois textos que aliam produção científica e relatos testemunhais. Alfonso Padilha narra sua trajetória durante a ditadura Chilena em La música en una cárcel de la dictadura chilena, especialmente refletindo sobre de que maneira o contexto ditatorial vivido por ele contribuiu para sua visão do potencial político da música. Participante de movimentos comunistas no Chile desde a juventude, e exilado na Finlândia em 1975, Padilla destaca, entre vários pontos, a presença da música dentro dos campos de concentração de presos políticos, criados muitas vezes em estádios de futebol chilenos. Segundo o autor, espaços desse tipo, diferentemente do que se poderia pensar, foram permeados de canções e expressões artísticas inclusive unindo as pessoas ali presas. O professor de composição Paulo C. Chagas, apresenta no texto Observar o inobservável: Música e tortura no oratório digital A geladeira um projeto encomendado pelo Centro Cultural de São Paulo e do Núcleo Hespérides em função dos 50 anos do golpe militar de 1965. Seu foco foi o de expressar a memória e experiência do próprio Paulo Chagas que, aos 17 anos, foi torturado no contexto da ditadura civil-militar brasileira. Em seu texto, o autor faz uma análise que busca demonstrar as relações semióticas entre música e denúncias de tortura ao apresentar a sua obra afirmando que a música tem o poder de tornar visível o invisível. De acordo com o autor, a intenção, com A geladeira, foi de dar visibilidade à tortura, porém reconhecendo que a mesma seja impossível de se observar.

De modo geral, os textos reunidos no livro Com som! Sem som…- Liberdade políticas, liberdades poéticas buscam trazer um panorama geral da música ibero-americana no final do século XX e início do XXI sob o viés político. Alguns de seus textos observam a canção de protesto, a música dentro dos movimentos sociais e denúncias contra regimes de opressão. Outros adotam perspectivas mais gerais, pensam a função política e social dos indivíduos e da música em sociedade, dando especialmente destaque aos papéis sociais de alguns grupos, como os compositores. Contudo, o que permeia a totalidade deste trabalho é sua contribuição polifônica entre música e mídia, especialmente na compreensão desta última como parte da própria construção de ritmos, carreiras e sujeitos artísticos. Deste modo, a canção não é interpretada na obra apenas como uma expressão de arte por ela mesma, mas que cantar/tocar/compor significa estar permeado por sujeitos, projetos e contextos que são também políticos.

Referências

HERMETO, M. Canção popular brasileira e ensino de história: palavras, sons e tantos sentidos. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

NAPOLITANO, Marcos. História & música: história cultural da música popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

OLIVEIRA, Márcia Ramos de. Uma Leitura Histórica da Produção de Lupcínio Rodrigues. Tese de Doutorado – UFRGS, 2002.

SIRINELLI, Jean-François. Os Intelectuais. RÉMOND, René,. Por uma história política. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2003.

Igor Lemos Moreira – Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Bolsista CAPES-DS. Florianópolis – SC – BRASIL. E-mail: [email protected].

Teoria e Formação do Historiador – BARROS (RTA)

BARROS, José D’Assunção. Teoria e Formação do Historiador. Petrópolis: Editora Vozes, 2017, 95p. Resenha de: FERREIRA, Breno Ferraz Leal. A formação do historiador e a especificidade de seu ofício. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.10, n.25, p.497-501, abr./jun., 2018.

Derivado de um artigo publicado na Revista Teias (v. 11, n. 23, 2010), Teoria e Formação do Historiador visa fornecer subsídios para futuros historiadores recém-egressos dos bancos escolares. Parte da constatação de que há um fosso entre o conhecimento senso comum sobre a história, partilhado por profissionais de outras áreas e curiosos em geral, e o que é ensinado nos cursos de graduação voltados a esse específico campo do saber. Nesse sentido, a obra pretende justamente auxiliar os novos estudantes a tomarem consciência dessa diferença, trabalhada normalmente no primeiro ano dos cursos de História em disciplinas iniciais muitas vezes denominadas por Introdução aos Estudos Históricos. É justamente nesse momento da formação, quando o jovem futuro historiador começa a compreender as discussões teóricas e metodológicas, que são próprias à produção do conhecimento histórico, que se inicia a transição de um mero interessado em história para um historiador profissional.

De autoria do historiador José D’Assunção Barros, professor do programa de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Teoria e formação do historiador é composto por sete capítulos curtos, nos quais sintetizam-se discussões anteriormente desenvolvidas nos três volumes iniciais, dos cinco que compõem, até o momento, a coleção do mesmo autor denominada Teoria da História, também publicada pela Vozes. Sempre ressaltando ser uma obra de caráter introdutório, o autor opta apenas por, numa linguagem didática e simplificada, apresentar as linhas-mestras do conteúdo da obra anterior, propondo-se a servir também como estímulo para a leitura daquela. A intenção é assinalar as principais diretrizes das que considera serem os três principais (não únicos) paradigmas da historiografia do século XIX: Positivismo, Historicismo e Materialismo Histórico. A escolha por essas correntes da historiografia se dá pelo fato de se constituírem, segundo o autor, como discursos historiográficos que almejam o estatuto de ciência, formando-se como as primeiras Teorias da História.

Estes paradigmas são desenvolvidos nos capítulos 5 e 6, enquanto que, no capítulo 7, são feitas as últimas considerações. Nos capítulos iniciais, todavia, o autor centra seus esforços para apresentar questões conceituais que serão depois necessárias para um adequado entendimento dos paradigmas historiográficos. Inicia-se (capítulo 1) com uma discussão em que assinala o momento histórico em que foram concebidas as primeiras Teorias da História (o que é bem diferente das Filosofias da História e, mais ainda, do pensamento histórico em geral), isto é, entre o final do século XVIII e o início do XIX. O autor examina em seguida o que é teoria (capítulo 2), as diferenças entre teoria e metodologia (capítulo 3) e o que é Teoria da História (capítulo 4).

O autor entende as teorias (em geral, não apenas as da História) como modos de se ver o mundo. O conhecimento é, assim, produzido a partir de pontos de vista. Em outras palavras, não há uma via única para a produção do saber. Porém, uma visão de mundo não configura necessariamente uma teoria (as religiões são um exemplo). O autor aponta que a constituição de uma teoria depende também do estabelecimento de conceitos e categorias que são empregados para a leitura de um determinado campo de fenômenos. Nesse sentido, qualquer Teoria da História necessariamente implica na existência de conceitos e noções próprios.

Contudo, antes de analisar propriamente o que é uma Teoria da História, Barros opta por desenvolver uma diferenciação entre teoria e método. Se a teoria se relaciona a um “modo de ver”, uma metodologia implica num “modo de fazer”. O trabalho do historiador compreende também a seleção e o estabelecimento dos materiais com os quais lidará (no caso, chamados de fontes). A escolha do método variará de acordo com a perspectiva teórica a ser adotada e, dependendo do objeto de estudos e dos dados que tiver em mãos, o pesquisador poderá propor entrevistas, construir gráficos, comparar discursos… E deverá também saber interpretar esse material.

Somente a partir do século XIX é que podemos, todavia, falar em Teorias da História, como destaca o autor. Almejando reconfigurar a História dotando-a de um estatuto científico, os historiadores passaram a abandonar o entendimento de que constituía um gênero literário. Essa mudança foi acompanhada da profissionalização do trabalho do historiador, assegurando-se um lugar específico para a História nas universidades. A partir de então, a expressão Teoria da História foi utilizada em diferentes sentidos, referindo-se ao “conjunto global de artefatos teóricos (conceitos, princípios, perspectivas) disponíveis aos historiadores”, aos “grandes paradigmas teóricos” e também a “objetos historiográficos específicos” (como à Revolução Francesa) (p. 44-45).

Os dois capítulos seguintes tratarão justamente dos grandes paradigmas teóricos constituídos no século XIX, todos pensando-se – por diferentes concepções – como ciência: Historicismo e Positivismo (capítulo 5) e Marxismo (capítulo 6). Os positivistas, como ele diz, procuravam se aproximar do modelo das ciências naturais, aspirando à neutralização da subjetividade do pesquisador. A proposta era enxergar as regularidades, leis gerais que operariam por trás das ações humanas, as quais poderiam ser derivadas inteiramente por meio da documentação. Caberia ao historiador “imparcial” deixar os documentos falarem, não havendo qualquer tipo de problematização na produção do conhecimento histórico. Essa pretensão de objetividade, embora não explicitamente rechaçada por Barros, é indiretamente afastada. Já na Introdução, o autor havia argumentado que o pensamento senso comum entende ser a função do historiador narrar “os fatos tal como aconteceram”, isto é, uma história neutra em que se baseiam, por exemplo, os proponentes do “escola sem partido”. Contrapondo-se a esse tipo de pensamento, Barros parte do pressuposto do inescapável relativismo do sujeito. Sobre a velha questão da utilidade da História, sentencia que “a missão essencial do historiador é (…) fornecer à sociedade diversas interpretações problematizadas sobre o que aconteceu” (p. 8). Os fatos são importantes também, mas desde que interpretados pelo historiador. Subjaz o entendimento de que essa é uma resposta possível, não única nem definitiva.

Já os demais paradigmas descartam, como deixa claro, a pretensão à neutralidade. Os historicistas recusam por completo o modelo das ciências naturais. Não veem a subjetividade do sujeito como um problema: pelo contrário, entendem residir nisso exatamente a especificidade da história. A pretensão de se explicar os fenômenos é substituída pela tarefa da compreensão. A grande contribuição do Historicismo para a historiografia é, segundo Barros, a atenção dada à questão da historicidade de todas as coisas. Esse paradigma, como afirma, deu origem a correntes da historiografia que chegaram até os dias atuais e, pode-se dizer, isso não se deu por acaso. O relativismo do sujeito é praticamente um consenso entre historiadores profissionais da atualidade, enquanto que as noções positivistas não frutificaram depois das críticas por parte da historiografia do século XX (especialmente dos Annales), ficando relegadas ao senso comum.

O Materialismo Histórico, por sua vez, também tem na ideia de consciência histórica um ancoradouro, aponta Barros. A partir de Marx e Engels, desenvolveu fundamentos (Dialética, Materialismo e Historicidade) e conceitos (práxis, luta de classes, modo de produção, determinismo, revolução, ideologia) que lhes são inerentes. Algumas das noções nas quais o marxismo é baseado foram, como o autor deixa claro, resultado de ressignificações e reelaborações de ideias e conceitos preexistentes, mas que formaram uma teoria inteiramente nova para a compreensão da realidade. Diferentemente do Positivismo, por exemplo, que atentou principalmente para a política, o marxismo voltou-se principalmente para as bases socioeconômicas das sociedades, e aí reside uma de suas principais contribuições, conforme aponta o autor. As correntes historiográficas marxistas figuram entre as mais importantes até a atualidade, destacando-se a Escola Inglesa, que, reavaliando a teoria marxista precedente, trouxe a cultura para primeiro plano.

Sempre deixando claro que esses paradigmas não são os únicos, a obra pouco avança sobre as mudanças da historiografia nos séculos XX e XXI (pensamos aqui particularmente nas principais críticas feitas à corrente historiográfica positivista pelos historiadores que vieram a fundar a revista dos Annales em 1929 – Marc Bloch e Lucien Febvre – e pelas gerações subsequentes, que, condenando a ideia da neutralidade do historiador, aproximaram a história das ciências sociais e propuseram novos objetos e perspectivas teóricas), nem retroage sobre o pensamento histórico anterior ao XIX. Todavia, cumpre bem o papel a que se propõe, isto é, o de fornecer uma discussão introdutória aos alunos de graduação sobre Teoria e Metodologia da História.

Breno Ferraz Leal Ferreira – Doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Estágio Pós-Doutoral na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Bolsista FAPESP. São Paulo – SP – Brasil. E-mail: [email protected].

Vozes de Tchernóbil – ALEKSIÉVITCH (RTA)

ALEKSIÉVITCH, Svetlana. Vozes de Tchernóbil. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. 383p. Resenha de: LOPES, Alfredo Ricardo Silva. As Batalhas Perdidas. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.10, n.24, p.611-615, abr./jun., 2018.

O livro da escritora e jornalista bielorrussa Svetlana Aleksiévitch ficou quase dois anos na estante esperando para ser lido. Comprei logo que foi lançado no Brasil, em 2016, mas ele esperou algum tempo para ser lido porque eu imaginava que sabia do que travava a jornalista e precisava me preparar. Não foram os prazos acadêmicos ou a preparação de aulas que me mantiveram longe da obra, sentia apenas que não estava pronto para lê-la.

O problema das narrativas quantitativas sobre desastres está na impessoalidade da leitura. Parece que os números não traduzem pessoas ou acontecimentos. Isentos de empatia ou sentimento, vamos passando os olhos por números astronômicos que oferecem pouco significado. Sabia que não encontraria isso no livro de Aleksiévitch, que reuniu uma série de entrevistas com sobreviventes e vítimas do Desastre Nuclear de Tchernóbil, na atual Ucrânia.

No dia 26 de abril de 1986, à 1h23min58, uma série de explosões destruiu o reator e o prédio do quarto bloco da Central Elétrica Atômica (CEA) de Tchernóbil, situado bem próximo à fronteira da Bielorrússia. A Catástrofe se converteu no mais grave desastre tecnológico do século XX.

A obra Vozes de Tchernóbil, que foi lançada mundialmente em 2013 e publicada no Brasil pela Companhia das Letras, venceria o Prêmio Nobel de Literatura em 2015. Na edição brasileira, indicando os possíveis rumos metodológicos da autora, como subtítulo na capa traz: “a história oral do desastre nuclear”. O livro é composto por doze capítulos separados em três partes. Inicialmente, uma “Nota Histórica” é oferecida com recortes de jornais, sites da internet e livros, para dar a magnitude da catástrofe. “Uma voz solitária” é a narrativa da esposa de um bombeiro que acompanhou seu marido em seus últimos dias de vida, no retorno à casa logo após o desastre. A autora também se entrevista no início da obra, por se considerar uma testemunha de Tchernóbil e por, ainda, não conseguir compreender plenamente as consequências do acontecimento para a história da humanidade.

Vozes de Tchernóbil realiza um flerte entre realidade e ficção, sobrepondo e costurando narrativas para estruturar uma dinâmica de leitura semelhante aos roteiros dos vídeo-documentários. Nas três partes centrais da obra – Coro de Soldados, Coro do Povo e Coro das Crianças – são trazidos depoimentos sobre as experiências das mais diversas pessoas sobre o desastre e a vida depois do acidente. No tocante ao aparato metodológico, a autora em momento algum explicita os procedimentos utilizados nas entrevistas, fazendo o aviso na capa da edição brasileira parecer muito mais uma estratégia editorial do que sua metodologia de trabalho. Inicialmente, são colocados os nomes dos entrevistados e depois, sem definir autoria, os dramas pessoais são conectados. A autora raramente explicita as perguntas que geravam as respostas, o que leva a entender que os dramas pessoais e as histórias de sobrevivência surgem espontaneamente. Antes de cada capítulo dos coros são apresentados monólogos com indicação de autoria logo após o depoimento. Contudo, o que se percebe ao longo de todo o livro é uma homogeneização da narrativa pela autora que escolhe, seleciona e monta o seu texto literário.

No final da obra, uma outra “Solitária voz humana” é trazida. Novamente uma mulher, esposa de um liquidador voluntário conta como foi a transformação do homem que amava em um monstro que se liquefazia. “A título de epílogo” destaca como a vida e o capital se rearranjam depois do desastre, quando o turismo atômico passa a ser atração de um país que tem um quinto de sua população vivendo em áreas contaminadas pela radiação. “A batalha perdida” é o título do discurso conferido por Svetlana Aleksiévitch na Academia Sueca de Literatura em 2015, que compõe a edição brasileira lançada após o recebimento do prêmio, em que a autora relaciona o desastre de Tchernóbil à decadência da URSS e defende a desocupação da Ucrânia pelas tropas russas.

Vozes de Tchernóbil é um monumento à memória do desastre. O livro pode ser entendido como sintomático para exemplificar o caminho que a sociedade industrial tomou nos últimos duzentos anos. Svetlana Aleksiévitch dá sentido a uma série de depoimentos que tentam dar conta do inenarrável. No começo do trabalho, a alusão ao Holocausto Nazista e o Gulag Stalinista ditam a dinâmica da composição das memórias que tateiam entre a vontade de lembrar e a necessidade de esquecer.

O sarcófago criado para conter a radiação é entendido pela autora como um monumento da modernidade. Seguindo os passos de Pierre Nora (1993), Aleksiévitch define o sarcófago como um monumento à impotência, um lugar para memória, onde as intencionalidades na criação da obra dão o tom da incapacidade humana de lidar com os riscos da sua criação. A qualquer momento um desastre pior do que o de 1986 pode surgir, caso o mausoléu atômico sucumba.

O questionamento da centralidade da ciência na contemporaneidade é constante nas narrativas dos sobreviventes. As incertezas sobre os riscos da radiação e a incapacidade de tratar os sobreviventes são trazidas a todo o momento nas narrativas. Seja pela perda dos maridos nos relatos femininos ou pelo sofrimento das crianças que nascem deformadas e têm pouco tempo de vida. A Sociedade de Risco (BECK, 2010) se materializa através das histórias de vida, uma sociedade permeada pelos riscos do desenvolvimento tecnológico. A capacidade da jornalista em acessar depoimentos dramáticos se sobressai ao longo de toda obra, contudo a própria dinâmica narrativa nas exposições das entrevistas busca esconder Svetlana, no intuito de colocar o leitor em contato “direto” com os depoimentos.

Uma nova relação da vida humana no planeta também se inscreve a partir do desastre. Tchernóbil é também uma catástrofe do tempo, em que os radionuclídeos espalhados sobre o solo durarão cinquenta, cem, duzentos mil anos. Seguindo os passos de François Hartog (2013), um novo regime de historicidade foi produzido com o desastre. A eternidade surge em comparação com a brevidade da vida humana. A aceleração do tempo que levou ao desenvolvimento da humanidade também conduziu à incerteza e ao medo.

Um dos pontos centrais da montagem das narrativas está na relação do desastre com o desmoronamento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Trezentos e quarenta mil militares, em sua maioria voluntários, foram deslocados para atuar na contenção do desastre. Nenhuma máquina conseguia funcionar nas proximidades do reator, somente homens munidos apenas de pás evitaram que Europa e Ásia sofressem os efeitos da explosão do reator. Estes homens viviam na cultura particular das proezas e da defesa do comunismo, a qual conteve a fumaça tóxica que se espalharia pelo continente.

A falta de uma compreensão mais apurada sobre o que aconteceu é uma marca nas entrevistas. A incapacidade de se produzir uma narrativa que dê conta do horror se confunde com o controle das informações realizado pela antiga URSS. O livro produzido em 2013 terminaria como um redundante ponto de interrogação, marca de uma era de incertezas. Contudo, no discurso à Academia Sueca, incorporado ao livro em 2015, Svetlana Aleksiévitch compara a batalha perdida em 1986 à ocupação russa na Ucrânia e ressalta a ameaça do novo “homem vermelho”.

Ao comparar o perigo vermelho ao imperialismo da Era Putin, a autora perdeu a oportunidade de relacionar Tchernóbil (1986) a Fukushima (2011) e, assim, abriu mão da defesa de uma nova matriz energética para o século XXI, o que pôde garantir a aceitação da obra no Ocidente. Apesar do discurso ao final da edição brasileira, Vozes de Tchernóbil continua sendo uma leitura obrigatória para uma compreensão mais apurada da contemporaneidade.

Referências

BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Tradução de. Sebastião Nascimento. São Paulo: Ed. 34, 2010.

HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Tradução de Andréa S. de Menezes, Bruna Breffart, Camila R. Moraes, Maria Cristina de A. Silva e Maria Helena Martins. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

NORA, Pierre. “Entre memória e história: a problemática dos lugares”. Projeto História. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP, n. 10. São Paulo, dez.-199.

Alfredo Ricardo Silva Lopes – Doutor em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UFSC). Pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul – Campus Três Lagoas (UFMS). Professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul – Campus do Pantanal (UFMS). Corumbá – MS – BRASIL. E-mail: [email protected].

Narrativas sobre loucuras, sofrimentos e traumas – WADI (RTA)

WADI, Yonissa Marmitt (org). Narrativas sobre loucuras, sofrimentos e traumas. Curitiba: Máquina de Escrever, 2016. Resenha de: BATISTA, Gabriela Lopes. Descentrando lugares de enunciação: narrativas sobre loucuras, sofrimentos e traumas. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.10, n.24, p.605-610, abr./jun., 2018.

Refletir sobre narrativas de instituições e de pessoas consideradas loucas, ou outras nomenclaturas como “doentes mentais”, “portadores de transtornos mentais” ou “pessoas com sofrimento psíquico” configura-se como intuito principal do livro lançado no ano de 2016, sob o título “Narrativas sobre loucuras, sofrimentos e traumas”. A obra reúne artigos que são resultado dos encontros do projeto “Gênero, Instituições e Saber Psiquiátrico em Narrativas de Loucura”, que contou com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e teve seu desenvolvimento na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).

Yonissa Marmitt Wadi, organizadora do livro, é docente do curso de graduação em Ciências Sociais e dos programas de pós-graduação em História, Poder e Práticas Sociais e Ciências Sociais da UNIOESTE. Sua atuação abrange a História Cultural e a História das Ciências, destacando a história da loucura e psiquiatria.

De acordo com a organizadora da obra, os artigos desenvolvem reflexões acerca de narrativas que surgiram em situações que poderiam ser consideradas limítrofes da existência humana, ou que escapariam do que seria instituído no que se nomeia normalidade cotidiana. Tais situações limítrofes, por serem consideradas pertencentes a uma população que se encontra à margem da sociedade, estariam condenadas ao esquecimento, bem como “gestadas em meio a relações complexas que envolvem políticas, poderes e saberes em temporalidades distintas” (p. 16). Dessa forma, os sujeitos dessas experiências trazem à tona categorias como trauma e sofrimento, a partir das condições impostas em instituições de isolamento como manicômios e leprosários, ou de eventos como guerras.

O livro está dividido em oito capítulos que envolvem tais categorias e que concernem à experiência de sujeitos, ou às políticas das instituições que atuam com esses sujeitos, além do prefácio escrito por Rafael Huertas, doutor em Medicina e Cirurgia pela Universidade Complutense de Madri e professor de investigação no Instituto de História, do Centro de Ciências Humanas e Sociais, do Conselho Superior de Investigações Científicas (CSIC-Madri). A disposição dos oito capítulos foi organizada de forma que temáticas de abordagem similares ficassem próximas. institucionais. O primeiro, intitulado “Assistência psiquiátrica nacional: narrativas para uma política pública no contexto brasileiro (1940 a 1970)” tem como autores Ana Teresa Acatauassú Venancio e André Luiz de Carvalho Braga, ambos historiadores, no qual discutem a forma como diferentes setores do governo brasileiro ofereceram narrativas para consolidar a implementação de um órgão específico, o Serviço Nacional de Doenças Mentais (SNDM), que pudesse desenvolver ações para um projeto de assistência psiquiátrica, que os autores classificam como “indubitavelmente nacional”. Tais narrativas seriam oferecidas em documentos como relatórios governamentais do acervo da Divisão Nacional de Doenças Mentais (DINSAM), e em textos publicados em órgãos de divulgação mantidos pelo SNDM como os “Arquivos do Serviço Nacional de Doenças Mentais” e a “Revista Brasileira de Saúde Mental”. Já no segundo capítulo, a socióloga Teresa Ordorika Sacristán, no texto “Las historias clínicas: narraciones útiles para el análisis de la psiquiatrización de la sociedad”, reflete sobre reverberações de políticas criadas e suas aplicações nas instituições, utilizando, para tal, documentos clínicos. Em ambos os textos é possível perceber que o discurso médico-psiquiátrico possui códigos próprios e que se legitima por meio da propagação de ideias higienistas e eugênicas.

O terceiro e quarto capítulos direcionam-se às discussões de gênero nos discursos e nas instituições do Brasil e de Portugal. No caso brasileiro, Yonissa Marmitt Wadi e Telma Beiser de Melo Zara apresentam um pouco da trajetória de Stela do Patrocínio em “Problematizando o mundo: vida institucional e subjetivação no “falatório” de Stela do Patrocínio”. Como sugere o título, Stela ficou conhecida nas instituições manicomiais pelas quais passou ao longo de trinta anos pelo seu “falatório”, em que falava poeticamente sobre suas experiências e percepções do universo que a cercava, inclusive das instituições pelas quais passou. Diagnosticada como esquizofrênica, teve seu falatório gravado e, deste, originaram-se pesquisas que as autoras citam e utilizam ao longo do texto, principalmente os trechos em que Stela questionava, por meio de seu falatório, o casamento, papéis desempenhados por homens e mulheres na sociedade, ou mesmo a sua fala invisibilizada devido ao fato de ser mulher e interna. Já no caso português, Tiago Pires Marques em “Intimações do êxtase feminino: dois momentos da cultura da histeria em Portugal” analisa significados atribuídos ao êxtase nos âmbitos da religião e da ciência, e quais são os alargamentos ou alterações dos significados quando concernem à expressão do êxtase de mulheres, conferindo, na ciência, o encaminhamento de um diagnóstico do que por algum tempo fora uma patologia atribuída às mulheres: a histeria.

Em “Rastros de vidas: loucura e interdição civil na Comarca de Guarapuava-PR (1940-1950)”, a historiadora Abigail Duarte Petrini utiliza como fontes quatro processos de interdição, de forma que o objetivo descrito pela autora é “dar densidade às vidas das pessoas ditas loucas e aos conflitos e percalços de sua existência” (p. 121), percebendo, neste processo, como se configuraram as redes de relações sociais que operaram valores na Comarca de Guarapuava. A análise dos processos discute a forma que a vida dos sujeitos se transformou a partir de sua interdição, principalmente quando envolveram bens como propriedades, por exemplo, sejam urbanas ou rurais.

Os três capítulos que encerram a obra partem de discussões que utilizam o sofrimento como categoria de análise e privilegiam o uso de narrativas orais em contextos traumáticos. No sexto capítulo, “Lepra e narrativas de sofrimento na Argentina: considerações sobre o livro Dolor y Humanidad”, José Augusto Leandro e Silvana Oliveira analisam a referida obra escrita e publicada em Buenos Aires no ano de 1937. O livro fora uma iniciativa da instituição filantrópica Patronato de Leprosos e conta com 47 textos que foram selecionados através de um concurso literário. Os autores buscam ao longo do artigo estabelecer que a publicação do livro constituiu-se como um evento político de interesse que julgam imediato, que seria a aderência a um discurso em defesa da implementação de uma lei de isolamento compulsório para hansenianos no país. Além disso, buscam nas narrativas analisar “as dores da vida vislumbrada à margem de um mundo sadio na Argentina da década de 1930” (p. 149). Um ponto a ser destacado no trabalho consiste na afirmação de que a consciência da dor e/ou das motivações que a desencadearam colocaram a pessoa portadora de hanseníase em uma condição ativa, que seria de resistência.

O sofrimento e narrativas orais, relacionados à Segunda Guerra Mundial, estão presentes nos capítulos que encerram o livro. Méri Frotscher e Marcos Nestor Stein analisam o testemunho de uma mulher em “E estava tudo bem até começar a guerra: sofrimentos e ressentimentos em narrativas orais de uma refugiada da Segunda Guerra Mundial no Brasil”. Katharina H. fora deportada ainda na adolescência da Iugoslávia e enviada à Ucrânia, onde foi submetida a trabalhos forçados, assim como muitos outros que foram enviados para a URSS com o objetivo de reconstruir o país ainda durante a guerra, como parte de um acordo entre Stalin e os aliados. Debilitada e doente, dois anos e meio depois, fora dispensada, reencontrara seus familiares com os quais migrou para o Brasil, estabelecendo-se na colônia Entre Rios, localizada no município de Guarapuava-PR. Os autores analisam três entrevistas feitas com Katharina, realizadas nos anos de 1984, 2010 e 2012. Concluem que é possível perceber a reivindicação do estatuto de vítima, por conta de suas experiências que narram o sofrimento e trauma que remetem à deportação, expatriação e imigração.

Já no último capítulo, intitulado “Narrativas de sofrimento, narrativas de formação: reflexões sobre a autobiografia de uma refugiada da Segunda Guerra Mundial”, Beatriz Anselmo Olinto e Méri Frotsher analisam a autobiografia de Úrsula B., que, assim como Katharina, veio ao Brasil como refugiada da Segunda Guerra Mundial e estabelecera-se na colônia de Entre Rios. Salienta-se que a narrativa do trauma teria um efeito terapêutico de cura individual, lembrando às gerações futuras dos percalços pelos quais passara. A trajetória descrita por Úrsula perpassa não apenas sua vivência de guerra, mas também situa o leitor do cotidiano de sua família antes da guerra, abordando temas como casamento e maternidade. Relata também a experiência de êxodo e de estabelecimento no país que a abrigaria. As autoras finalizam ressaltando a importância contemporânea dos testemunhos, que emitem narrativas públicas de seus sofrimentos e que se relacionam à constituição de identidades que possuem o ressentimento e a melancolia como características.

O conjunto de artigos presente neste livro compreende uma importante diversidade de pesquisas que se dedicam a analisar narrativas de sujeitos que tiveram suas vozes relegadas ao esquecimento devido a fatores como institucionalização, gênero e guerras. Além disso, é pertinente ressaltar a discussão de políticas e implementação de instituições, como forma de compreender as práticas de marginalização e eugenia que Res estigmatizaram sujeitos a quem atribuíram patologias relacionadas à loucura, como a esquizofrenia, a histeria, entre outras. São experiências e emoções que podem ser ouvidas por meio das pesquisas.

Gabriela Lopes Batista – Doutoranda em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina. – Florianópolis – SC – BRASIL E-mail: [email protected].

Diagonais do afeto: teorias do intercâmbio cultural nos estudos da diáspora africana – MARCUSSI (RTA)

MARCUSSI, Alexandre Almeida. Diagonais do afeto: teorias do intercâmbio cultural nos estudos da diáspora africana. São Paulo: Intermeios/Fapesp, 2016. 258p. Resenha de: PINHEIRO, Bruno. Caminhos e descaminhos do pensamento cultural na historiografia da diáspora africana. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.9, n.22, p.487-493, set./dez., 2017.

O livro Diagonais do Afeto: teorias do intercâmbio cultural nos estudos da diáspora africana, de 2016, é resultado da dissertação de mestrado defendida em 2010 por Alexandre Almeida Marcussi, hoje professor de História da África na Universidade Federal de Minas Gerais. Nessa pesquisa, ele toma como objeto de análise os modelos interpretativos da Antropologia Cultural acerca do contato entre diferentes populações que se tornaram definidores dos debates sobre a ideia de cultura afro-americana na historiografia da diáspora. Nos quatro capítulos, Marcussi realiza, a partir de uma seleção de textos-chave publicados ao longo do século XX, uma genealogia dos conceitos popularizados nessa literatura, localizando os processos de continuidade e descontinuidade de suas operações lógicas e as contradições em seus usos.

No primeiro capítulo, As armadilhas da cultura, são apresentados os enunciados propostos por Franz Boas que permitiram a formação de uma concepção culturalista de intercâmbio cultural. É também avaliada a reelaboração desses argumentos nos estudos afro-americanos de Melville J. Herskovits, a partir da análise do ensaio O mito do passado negro (1941), e os limites de seus pressupostos, evidenciados a partir de seus debates com o sociólogo negro Edward Franklin Frazier. Para tal fim, Marcussi parte de um esquema produzido por Boas acerca das relações de contato nas quais elementos da cultura nativa passariam por processos simultâneos de permanência e mudança. Nessa relação, seria estável o “espírito” de cada povo, ideia associada a um sentido indivisível e imanente às culturas. Essa noção, frente à experiência histórica de cada contato, definiria o que seria passível de ser transformado, mediando a operação entendida por Boas como aculturação. Essa postura, ao mesmo tempo essencialista e historicizante, se apresenta na leitura de Marcussi como um importante alicerce das interpretações da cultura afro-americana, de modo que sua longa permanência se configura como um problema central do livro.

Na busca por entender os usos dos termos boasianos no estabelecimento dos Estudos Afro-Americanos, Marcussi analisa o livro O mito do passado negro de Herskovits. Esse texto foi uma resposta direta à ideologia dominante no debate acadêmico norte-americano daquele período, que sugeria que os negros dos Estados Unidos haviam abandonado sua herança cultural africana e se tornado, assim, sujeitos sem passado. O autor refuta essa hipótese, produzindo uma escala das diferentes relações das culturas afro-americanas com sua herança cultural, cujas balizas seriam a aculturação e a africanização. Um dado fundamental para classificar uma comunidade nessa gradação seria o contato entre negros e brancos em seu interior, de modo que, quanto mais concentrados os indivíduos de ascendência africana, mais africanizada seria a comunidade. Enquanto essa razão numérica era produzida por circunstâncias históricas, as transformações determinadas pelo “espírito” ocorreriam ora na “aparência exterior” de sua manifestação, ora em suas “qualidades imanentes”. Marcussi entende esse esquema como uma reelaboração daquele produzido por Boas, sendo que, em Herskovits, permanência e mudança poderiam ser entendidas como imbricadas em um mesmo processo cultural, compondo formas intermediárias de aculturação.

A ideologia que O mito do passado negro buscava desarticular tinha adesão de intelectuais negros norte-americanos em sua época, sendo utilizada como forma de defesa frente a retórica ainda popular do evolucionismo, que associava esse passado à ideia de barbárie. Marcussi identifica o problema da assimilação das populações negras à sociedade estadunidense como questão central da disputa entre Frazier e Herskovits na década de 1940. Ao localizar as culturas afro-americanas como autóctones, resultantes da total desagregação das formas básicas de organização social reconhecidas pelas populações escravizadas, Frazier as opõe à ideia herskovitsiana de que um “espírito” africano guiaria as ações das comunidades negras americanas. A concepção culturalista de Herskovits, levada a seu limite, permitiria interpretar as ações dessas populações como guiadas por valores estranhos à cultura euroamericana, inviabilizando qualquer debate sobre integração.

Em seu segundo capítulo, Ambiguidades da crioulização, Marcussi avança três décadas para, a partir do ensaio O nascimento da cultura afro-americana (1973) dos antropólogos Sidney Mintz e Richard Price, analisar a incorporação do conceito de crioulização à tradição boasiana. Em sua retórica culturalista, a crioulização assume o lugar que era ocupado pela ideia de aculturação, ainda que ela não seja uma categoria expressa textualmente, apresentando-se apenas como uma operação lógica. Na medida em que, numa primeira leitura, essa substituição sugira uma descontinuidade, Marcussi a entende como uma tentativa de resolver determinadas limitações e contradições presentes nessa vertente teórica. Desse modo, os conceitos herskovitsianos são rearranjados, numa perspectiva a partir da qual as culturas afro-americanas possam ser entendidas como, simultaneamente, africanas e americanas, ainda que, em seu “espírito”, se mantenham essencialmente associadas à primeira filiação.

Na interpretação das culturas afro-americanas de Mintz e Price, sobrepoem-se dois modelos apresentados como complementares: o argumento demográfico, de origem culturalista, e o sociorrelacional, de matriz sociológica. No primeiro, os autores retomam a leitura de Herskovits sobre a proporção entre negros e brancos na determinação do nível de aculturação de uma comunidade, deslocando o foco para o grau de concentração de sujeitos de cada grupo étnico africano. No segundo, os autores propõem que os contextos institucionais, sejam eles sociais, políticos ou de parentesco, devam ser tomados como modeladores dos processos culturais. A presença dos conceitos culturalistas e sociológicos produz contradições internas no texto que são assumidas por Mintz e Price como necessárias frente à natureza dinâmica dos fenômenos culturais. Esse fato é identificado por Marcussi como um dos motivos centrais das polêmicas em torno da publicação.

No terceiro capítulo, O retorno à cultura, o autor trata da recepção de O nascimento da cultura afro-americana na historiografia da diáspora africana produzida a partir da década de 1980. Nas críticas realizadas a Mintz e Price por pesquisadores como John Thornthon (1992), Douglas Chambers (2001), Paul Lovejoy e David Trotman (2002) e James Sweet (2003), Marcussi evidencia um padrão no qual a interlocução é realizada a partir do vocabulário culturalista, ao passo que o argumento sociológico é minimizado ou desconsiderado. O antagonismo desses autores revela-se especialmente na ênfase dada aos processos de continuidade e descontinuidade no interior das culturas afro-americanas. Enquanto os dois antropólogos ressaltavam a criatividade dos africanos da diáspora em reinventar seus universos simbólicos em ambientes adversos, seus críticos valorizavam os modos de resistência que levaram os sujeitos à manutenção de suas culturas. Essas diferentes posturas são assinaladas por Marcussi como diretamente ligadas às filiações de cada um com os debates públicos em torno do racismo e dos movimentos negros. Em um texto publicado em 1999, Price respondeu a muitas das polêmicas geradas pelo ensaio de 1973, privilegiando a retórica culturalista. Marcussi interpreta essa como uma tendência da historiografia da diáspora africana, ressaltando o predomínio de concepções essencialistas de cultura em sua literatura recente.

No último capítulo, Afeto e ambivalência, Marcussi recua no tempo e retoma duas publicações de matriz boasiana, Contraponto cubano do tabaco e do açúcar (1940) de Fernando Ortiz e Casa grande e senzala (1933) de Gilberto Freyre. Neles, ele evidencia os usos da retórica culturalista pelos dois autores, e, a partir da aproximação com textos ligados ao pensamento pós-colonial, sintetiza soluções para as contradições dessa tradição teórica presentes nos estudos sobre a diáspora. Do primeiro, Marcussi examina o conceito de transculturação, proposto como alternativo a aculturação. Ela se diferencia ao prever, nas relações de contato, transformações nos dois sentidos, que Ortiz exemplifica numa narrativa pouco ortodoxa sobre a introdução do tabaco na Europa. Para o autor cubano, os sentidos da planta, ligados num primeiro momento à religiosidade ameríndia, teriam sido reimaginados frente ao julgo eclesiástico e, em seguida, ao desejo de intelectuais humanistas em transgredir a ordem cristã. Para Marcussi, a transculturação de Ortiz é guiada por relações de afeto identificadas como desejo e tentação. Ao abordar Casa Grande & Senzala, o argumento da mestiçagem realizado por Freyre é apresentado a partir da posição central assumida pelas relações sociais no interior do latifúndio escravista, que aproximariam os elementos antagônicos do Brasil colonial de modo que os potenciais conflitos originados pelas relações de desigualdade étnico-racial seriam apaziguados. No cerne dessa interpretação, estaria o intercurso sexual entre homens brancos e mulheres indígenas e negras, realizado muitas vezes de modo forçado. Esse seria definidor de uma estrutura de afetos que aproximam prazer e violência.

A partir do debate sobre os afetos em Ortiz e Freyre, Marcussi realiza aproximações improváveis com outros textos de autores ligados ao pensamento pós-colonial. Ao desejo violento descrito por Freyre, Marcussi aproxima as estruturas afetivas delineadas por Franz Fanon em Pele negra, máscaras brancas (1952), no qual são descritas as violências decorrentes das hierarquias raciais socialmente naturalizadas, presentes em relações interpessoais. Apesar de os dois autores assumirem atitudes diametralmente opostas frente ao fenômeno – Freyre o interpretando como a pedra de toque de um projeto nacional, e Fanon como um obstáculo para a emancipação de negros e brancos – ambos operam uma transposição dessa relação do foro íntimo ao plano da política. Marcussi associa essa lógica, entendida como metonímia de uma relação histórica de interdependência entre Europa e África, à análise dos processos coloniais realizada por Homi Bhabha em O Lugar da Cultura (1994). Em Bhabha, a cultura nesses contextos resultaria em um espaço comum em que as partes se redefiniriam mutuamente e constantemente, invalidando a ideia essencialista de cultura presente na tradição boasiana. Marcussi finaliza o capítulo conectando as pontas entre esses autores utilizando o trabalho de Robert Young, Desejo Colonial (1995). Young localiza nos debates públicos acerca das empreitadas coloniais europeias da segunda metade do século XIX uma centralidade dos atos sexuais compulsórios como mediadores de sua efetivação, prática defendida por Joseph Arthur de Gobineau, um dos principais teóricos do racialismo, em seu Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (1853). Desse modo, Marcussi insere ao debate das trocas culturais as especificidades próprias à condição de colonialidade.

Ao concentrar-se nas operações lógicas presentes nos textos, localizando-as apenas pontualmente acerca de seus contextos de produção e circulação, a análise de Marcussi é por vezes lacunar. Esse tipo de aproximação traria contribuições para se entenderem as assimetrias em relação aos contextos institucionais em que as publicações analisadas foram lidas, desvendando particularidades da produção de conhecimento sobre a diáspora africana. Apesar disso, Diagonais do Afeto: teorias do intercâmbio cultural nos estudos da diáspora africana apresenta uma leitura bastante acurada da orientação culturalista nos estudos sobre o tema. Ao propor uma integração do pensamento pós-colonial a essas interpretações, ele apresenta um deslocamento salutar para as práticas historiográficas associadas às populações negras e as relações raciais.

Bruno Pinheiro – Doutorando em História na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Brasil. E-mail: [email protected].

Esperança Equilibrista. Resistência feminina à ditadura militar no Brasil – JOFFILY (RTA)

JOFFILY, Olivia Rangel. Esperança Equilibrista. Resistência feminina à ditadura militar no Brasil. Florianópolis: Insular, 2016. Resenha de: SARAIVA, Daniel Lopes. Mulheres do Brasil: as diversas formas da resistência feminina durante a ditadura militar no Brasil. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.9, n.22, p.494-500, set./dez., 2017.

Nos últimos anos, temos visto um aumento considerável de trabalhos a respeito do período ditatorial no Brasil (1964-1985). Entretanto, a maioria deles é centrada em figuras com destaque político ou lideranças da época – poucos são focados na participação feminina na resistência. Portanto, o livro da jornalista, mestra e doutora em Sociologia pela PUC Olivia Rangel Joffily, Esperança Equilibrista, ajuda a preencher uma lacuna nas pesquisas da área.

A autora aborda a trajetória de 18 mulheres que, de diversas formas, participaram da resistência ao governo. Olivia Rangel Joffily atuou contra o regime militar e se exilou na Albânia, onde trabalhou na Rádio Tirana, redigindo e apresentando um programa sobre as notícias do Brasil. Mesmo com a proximidade com as entrevistadas e com o tema, a jornalista destaca o esforço metodológico para se distanciar do objeto e ser aquela que realiza a pesquisa. A autora faz esse movimento a partir da epistemologia feminista, como observa Saffioti (1991, 1992), não desprezando a emoção como via de conhecimento. Ao mesmo tempo deixa claro que não sobrepõe a emoção à razão, mas busca uma alternativa epistemológica que reflita a interação e entre a maneira pela qual as pessoas entendem o mundo e se situam nele (p. 17).

O livro, dividido em cinco capítulos, desenvolve uma narrativa que faz o leitor questionar privilégios e repensar a história por meio de trajetórias consideradas por alguns como secundárias. No primeiro capítulo, a autora abordou a busca de uma história pelo ângulo do oprimido. Questões como ética e história do termo são desenvolvidas de forma que o leitor perceba que há de se buscar uma história além da oficial ou além da história de um grupo com privilégios. O personagem referencial na história é o homem branco, heterossexual, de classe média ou alta, central na maioria das narrativas e pesquisas. Nas palavras da autora, ela buscou amplificar a fala das mulheres, já que estão quase sempre ausentes nos relatos da história, incluindo-se a história da resistência militar (p. 26).

Seguindo a narrativa, a pesquisadora trabalhou com as ferramentas metodológicas e teóricas da pesquisa. Ela trata o gênero como categoria histórica de análise e sua abordagem em relação aos relatos de vida. Ao elogiar as pesquisas sobre as origens da exploração-dominação, no sentido de buscar fundamento no biológico, a autora já mostrava o que iria abordar mais adiante: a forma pela qual os militantes do sexo masculino, em sua maioria, lidavam com as companheiras mulheres – muitas vezes relegando suas funções aos bastidores ou mostrando resistência ao poder das mulheres quando essas assumiam posições de destaque (p. 43). Outro ponto central no trabalho foram os relatos de vida que possibilitaram que as mulheres rompessem um bloqueio que muitas vezes parecia invisível e transformava a experiência em realidade (p. 57).

O terceiro capítulo contextualiza o leitor sobre o período em que a ditadura militar esteve vigente no Brasil, de forma sucinta, objetiva e usando pesquisas sobre a época como referência. Esta parte do livro possibilita entender como o golpe foi aplicado no país, seus antecedentes, suas ondas de repressão, o momento de maior recrudescimento do regime militar e de que forma isso afetou a sociedade. Além disso, mostra de que maneira os ditadores militares foram “abrindo” os caminhos para o retorno da democracia ao Brasil. Esta parte é essencial para que, mais adiante, seja possível compreender a trajetória das 18 entrevistadas.

Na quarta parte do livro, os movimentos que promoviam a resistência contra o governo ditatorial são o mote central: o movimento estudantil; o movimento operário e sindical; e a luta armada. Joffily destaca de que forma esses movimentos atuaram na resistência. Um aspecto central é que a autora não focaliza sua obra no eixo Rio-São Paulo. Em diversos momentos foram citados outros estados da federação e suas ações, além de acontecimentos em relação à resistência. Ao abordar a luta armada, a socióloga nomeia as principais organizações guerrilheiras: ALN, MN-8, VPR, VAR-Palmares, entre outras. Essas organizações realizaram ações armadas, como sequestros e assaltos, atraindo uma reação maior da repressão. O objetivo dessas ações era financiar a resistência e conseguir a liberdade de combatentes presos em troca dos sequestrados. A guerrilha urbana, entretanto, entrou em declínio conforme suas lideranças foram presas, torturadas e assassinadas pela repressão, principalmente no governo do general Médici. Foi um momento dramático para a esquerda armada, pois as organizações políticas, fragmentadas e divididas, não conseguiam recrutar novos militantes (p. 92). Ao fim do capítulo foi ressaltada a participação das mulheres nessas ações de resistência. Destacando as diversas mulheres que foram assassinadas durante este período, e a porcentagem de mulheres que participaram da resistência no Araguaia, no total de 20%, fica evidente que mesmo que a guerrilha tenha sido predominantemente masculina, houve um número considerável de mulheres presentes em todos os grupos.

A última parte do livro é, talvez, a de maior destaque. Ao revisitar a memória dessas mulheres, a pesquisadora possibilitou que elas repensassem suas trajetórias e percebessem a importância que tiveram em suas caminhadas contra o governo imposto. Os depoimentos, além de fornecerem sua forma de resistência, ofereceram algumas contradições que essas mulheres enfrentaram em sua militância, tanto no interior das organizações quanto em todos os outros aspectos de sua participação política (p. 98).

A autora enumera cinco formas de resistência e, como frisado por ela, muitas vezes essas formas se entrecruzavam e uma só resistente participava de várias delas. A primeira era de mães, filhas e esposas que entraram na luta pelos caminhos do coração, apoiando seus familiares. A segunda, de militantes que decidiram atuar nos partidos e entidades, introduzindo a duras penas o feminino na estrutura das organizações clandestinas. O terceiro tipo, das exiladas que foram obrigadas a deixar o país pra garantir sua integridade física e mental – seja pela perseguição, seja por acompanharem os companheiros. A quarta forma é das mulheres que foram presas e torturadas, tendo seus corpos transformados em campos de batalhas. E, por último, das guerrilheiras urbanas e rurais que ousaram pegar em armas e desafiar a ira dos poderosos (p. 100).

Dessa forma, a autora consegue englobar as diferentes trajetórias das 18 entrevistadas. Como a de Carmela, que tinha filhos que participavam do Comando de Libertação Nacional (Colina), que começou a ler e lutar pela liberdade por influência deles e foi torturada na mesma época que seus filhos. Ou a de Nice, que participou da resistência em função de amor e preocupação com a filha, militante estudantil (p. 106-107).

Há também as mulheres que chegaram a presidir partidos e organizações, como Eleonora Menicucci, que foi presa e torturada. Mesmo com uma porcentagem feminina considerável em seus quadros, as organizações de esquerda tiveram dificuldade em assimilar as mudanças que aconteciam na época, especificamente no que se refere às relações entre homens e mulheres. Mesmo pregando o inverso, muitas vezes as mulheres eram relegadas a posições secundárias e, quando no poder, enfrentavam a resistência masculina ao darem ordens (p. 120).

As mulheres que eram levadas presas sofriam não apenas com a tortura, mas também com o medo do abuso sexual. Os torturadores, em sua maioria homens, aproveitavam por vezes a situação de vulnerabilidade delas naquele momento. Muitas relataram que tinham as roupas rasgadas, levavam choques em suas partes íntimas, tinham sua moral questionada, eram sempre ligadas à proximidade de um homem e, dificilmente, consideradas líderes. Também tinham seus entes queridos usados nas torturas: diversos foram os relatos das presas cuja família era ameaçada durante os interrogatórios ou cujos filhos e pais eram levados para assistir às sessões de tortura.

Os relatos se aproximam à medida que as ex-presas falavam sobre o sofrimento. Gilse Cosenza afirma que “com a gente que é mulher, eles usam, além da tortura normal para os homens, a afetividade e a questão sexual”. Eleonora Menicucci diz que “fui torturada setenta dias, não fui violentada sexualmente, não fui estuprada, mas fui violentada porque colocaram um pau de vassoura com fio amarrado na minha vagina e deram choque”. Amelinha conta que “toda mulher ali na tortura era puta, amante de todas pessoas da organização. Nunca fui torturada com roupa”(pp. 128-135). Esses três depoimentos são alguns dos que mostram de que maneira os torturadores usavam a questão do gênero nas torturas contra as presas. Seja ameaçando com o abuso e praticando, seja ameaçando os familiares ou levando-os para as sessões de tortura. Essas mulheres foram brutalmente torturadas em sessões que destruíam não apenas seu físico, mas também o psicológico. Porém, mesmo com a vulnerabilidade do corpo feminino, as presas resistiam bravamente aos interrogatórios e chegavam a surpreender inclusive os torturadores com tamanha força e resistência.

As mulheres, mesmo que não fossem maioria em cargos de destaque na resistência, estiveram presentes na luta: tanto na luta armada quanto na resistência em partidos ou em passeatas, sendo ativas no combate contra a ditadura militar impingida no Brasil. A luta feminina acontecia não apenas contra o governo ditatorial, mas, muitas vezes, dentro dos movimentos e partidos, já que a ocupação da mulher em locais de destaque não era bem vista por parte dos setores da esquerda.

Fica perceptível que o livro traça de forma objetiva um panorama do contexto histórico que o Brasil viveu entre 1964 e 1985. A obra possibilita, desse modo, que o leitor entenda por que a figura dessas mulheres é tantas vezes deixada em segundo plano, explicando didaticamente que a história tem seus personagens centrais, e as mulheres, os negros e os gays dificilmente fazem parte desse centro.

Para terminar, cito o nome das 18 entrevistadas: Dulce Maia, Edira Amazonas, Eleonora Menicucci, Eunice Gitahy, Guiomar Lopes, Leda Gitahy, Loreta Valadares, Maria Amélia Teles (Amelinha), Maria Auxiliadora Arantes, Maria Liège dos Santos Rocha, Sandra de Negraes Brisolla, Telma Lucena, Tereza Costa Rego, Gilse Consenza, Criméia Alice Schimidt de Almeida, Vera Silvia Magalhaes, Carmela Pezzuti e Clarice Hezog. Essas mulheres ousaram não apenas enfrentar a ditadura, mas também enfrentar e vasculhar suas memórias, expor suas dores, angústias e lembranças mais íntimas para que possamos lembrar sempre do que aconteceu durante a ditadura no Brasil.

Referências

SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Novas Perspectivas Metodológicas de Investigação nas Relações de Gênero. In: MORAES SILVA, Maria Aparecida de (Org.). Mulher em seis tempos. Araraquara: Unesp, 1991.

SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. O Poder do Macho. São Paulo: Moderna, 1992.

JOFFILY, Olivia Rangel. Esperança Equilibrista. Resistência feminina à ditadura militar no Brasil. Florianópolis: Insular, 2016.

Daniel Lopes Saraiva – Doutorando em História na Universidade do Estado de Santa Catariana (UDESC). Brasil. E-mail: [email protected].

Crer e destruir: os intelectuais na máquina de guerra da SS nazista – INGRÃO (RTA)

INGRAO, Christian. Crer e destruir: os intelectuais na máquina de guerra da SS nazista. Rio de Janeiro: Zahar, 2015. Resenha de: BECHER, Franciele. Por uma antropologia das emoções do nazismo. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.9, n.21, p.482‐487, maio/ago., 2017.

A proposta de fazer uma “história das emoções” do nazismo pode parecer, em um primeiro momento, desconfortável. E isso ocorre, sobretudo, porque a representação mais recorrente do nacional‐socialismo sempre liga os seus atores a ações brutais, cegas e fanáticas. A imagem cristalizada do nazismo enquanto um caso de violência definitiva muitas vezes leva os historiadores a definirem categorias conceituais imprecisas ou genéricas, já adaptadas ao discurso que normalmente é utilizado no estudo dos regimes autoritários.

O livro de Christian Ingrao, historiador francês ligado ao Centre national de la recherche scientifique (CNRS) e antigo diretor do Institut d’Histoire du Temps Présent (IHTP), procura traçar os itinerários profissionais e militantes de cerca de 80 intelectuais e acadêmicos que fizeram suas carreiras em órgãos de repressão ligados à Ordem Negra, a SS, ao Serviço de Segurança (SD), ou ao Gabinete Central de Segurança do Reich (RSHA).

Em comum, todos os sujeitos analisados têm a participação nas missões de repressão, combate e ocupação do Leste europeu, seja nas campanhas da Polônia ou da União Soviética, ao longo da Segunda Guerra Mundial. Muitos deles estiveram implicados diretamente nas matanças efetuadas pelas forças‐tarefa dos Einsatzgruppen, e nas medidas implantadas na organização do genocídio de milhões de judeus e outras vítimas eslavas.

Através dos pressupostos teóricos da antropologia social das emoções e da história cultural, e utilizando uma vasta gama de fontes e arquivos, que inclui narrativas de vida dos akademiker, suas trajetórias profissionais, documentações dos órgãos dos quais faziam parte e seus depoimentos nos julgamentos do pós‐guerra, o autor consegue traçar um panorama competente sobre as representações de mundo desses intelectuais.

Fugindo de uma análise funcionalista das instituições e de sua incidência sobre os comportamentos, Ingrao tece o esboço sobre a forma como esses sujeitos conseguiram aliar seu rigor científico às exigências da militância nazista, criando grades de leitura do mundo e discursos de legitimação que deram suporte aos massacres e ao genocídio.

Fruto da tese de doutorado do autor, escrita entre 1997 e 2001, na Universidade de Amiens (« Les intellectuels du service de renseignement de la S.S, 1900‐1945 »), o livro toma como ponto de partida a apreensão do nazismo enquanto um sistema de crenças que combina práticas e discursos frutos de políticas públicas e institucionais, mas que também são percorridos por uma gama de emoções que vão da angústia à utopia, passando pelo ódio, crueldade e desespero, e que não podem ser apreendidas dentro dos paradigmas clássicos da política e da sociologia. Ingrao procura compreender em que medida as experiências vividas por esses intelectuais foram capazes de modelar seu sistema de representações, criando eixos de consentimento que os levariam, no futuro, a legitimar a violência extrema.

Partindo da herança de historiadores da Primeira Guerra Mundial, sobretudo do seu orientador de tese, Stéphane Audoin‐Rouzeau, que trabalhou com as experiências infantis ligadas ao conflito, o autor procura apreender a militância nazista desses intelectuais como uma reação à experiência matricial de 1914‐1918, cuja coerência entre discursos e práticas se encarnou em suas trajetórias e carreiras. Em suma, procura compreender como esses homens fizeram para crer e, por consequência, destruir. Sujeito de pesquisa inquietante, sobretudo porque confronta o fato de que setores da alta excelência acadêmica alemã atuaram diretamente em um dos mais atrozes regimes autoritários, servindo‐se, inclusive, das Ciências Humanas e, em particular, da História, como legitimadoras desses processos.

O livro é organizado em três partes: na primeira delas, Ingrao traz três capítulos sobre a experiência matricial da Primeira Guerra Mundial, e de como toda a cultura do “mundo de inimigos” e da crença no papel defensivo da Alemanha no conflito, mesmo que silenciada pelos akademiker, influenciou suas trajetórias e seus imaginários. Além disso, estabelece um panorama das instituições e dos saberes acadêmicos e militantes construídos pelos futuros oficiais entre os anos 1920 e 1930, quando turbulentas disputas políticas influenciaram nos seus sentimentos de angústia, e interferiram em suas escolhas e ambições científicas e, claro, nos seus engajamentos políticos dos anos seguintes.

Formando‐se como advogados, economistas, geógrafos, historiadores ou linguistas no pós‐guerra, muitos deles com formações universitárias multidisciplinares com alto desempenho acadêmico, esses jovens, vindos em sua maior parte das classes médias alemãs, encontraram na SS um organismo elitista que se distanciava das “hordas” do partido de massa, ou da atuação pragmática das tropas de assalto (SA). Através de diversos ritmos e itinerários de militância, entraram no jogo dos mecanismos institucionais da burocracia nazista, contribuindo para sua justificação científica e ideológica e, ao mesmo tempo, reforçando suas próprias leituras de mundo, profundamente marcadas por suas experiências de vida.

A segunda parte do livro, consagrada à internalização das crenças, à adesão ao nazismo e ao engajamento intelectual e ideológico dos jovens acadêmicos, analisa as fundamentações do dogma nacional‐socialista em sua profunda inspiração de refundação da Alemanha no aspecto sociobiológico e racial. Estudando a grade da leitura sociológica dos discursos dos intelectuais SS, Ingrao demonstra como a ideologia racial incidiu na própria reformulação da história alemã, transformando‐a em uma série de lutas, confrontos e combates identitários, todos marcados pelo selo da etnicidade.

Problematiza como a História e outras disciplinas se tornaram ciências combatentes de legitimação das crenças nazistas, justificando a guerra que estava por vir como um último combate pela salvação providencial do Império Alemão.

Ingrao foge constantemente da armadilha fácil de usar conceitos genéricos e imprecisos como o do “oportunismo” da ascensão hierárquica dentro da estrutura do Reich. Demonstra, no caso dos intelectuais SS, que havia inclusive uma tentativa institucional de frear esses interesses para proteger o ativismo e a militância. O processo de politização dos saberes dos akademiker aconteceu paralelamente à sua própria construção, e foi fortalecido com a criação de instituições como o SD e o RSHA, quando puderam aliar seu rigor científico às exigências da militância, imprimindo suas marcas nos serviços em que atuaram e participando de forma determinante na organização da repressão.

Por fim, na terceira parte da obra, Ingrao volta seus olhos à experiência de guerra no Leste europeu, onde as crenças e o fervor nazista foram empregados na legitimação da violência extrema e do genocídio. Os últimos cinco capítulos dão conta do imaginário construído em torno do novo “mundo de inimigos” eslavos, analisando a ritualística da violência, e as estratégias empregadas para colocar em prática os massacres. Além disso, finaliza avaliando as posturas dos intelectuais SS frente à derrota iminente, assim como suas estratégias de negação e reelaboração da memória nos julgamentos do pós‐guerra.

Para os nazistas, o “Leste” simbolizava uma tábula rasa na qual a germanidade poderia se modelar, ocupando o espaço de povos vistos como bárbaros e inferiores.

Dentro da retórica do “sangue e solo”, a experiência de guerra inaugurada com a invasão da Polônia em 1939, e intensificada com o ataque à União Soviética em 1941, se transformou em uma luta total contra o inimigo “judeu‐bolchevique”. O “imaginário de cruzada”, uma mescla entre fervor, utopia e guerra, forneceu a moldura justificativa para a violência que os soldados deveriam empregar, dentro de um discurso ansiogênico que instilava os comportamentos coletivos à matança.

Nesse contexto, a prática genocida se tornou uma condição da germanização, o fim último da utopia milenarista do nazismo. Representado como uma ação defensiva (pois era legítimo se defender dos agentes de destruição da germanidade, argumento semelhante ao usado pelas elites alemãs para justificar o conflito de 1914.), e visto sob a ótica da deploração (matar é um trabalho asqueroso, mas necessário), o genocídio ocorreu em meio a um investimento afetivo real dos intelectuais SS. A leitura nazista dos acontecimentos, elaborada, interiorizada e difundida pelos akademiker, constituiu então o cerne do mecanismo de radicalização e de consentimento aos massacres.

Por trás dos imperativos de produtividade e exaustividade que foram usados para colocar em prática os assassinatos em massa, estavam preocupações com um imaginário asséptico que pouparia psicologicamente os atores do massacre, limitando o seu efeito desestruturante e traumático. O estabelecimento de hierarquias na matança, e o próprio gestual da violência, refletiam o sistema cultural em que essas práticas foram forjadas.

Angústia, deploração, repulsa, ódio e gozo se confundiram nos discursos e atitudes dos que atuaram no Leste, experiência que funcionava como um “rito iniciático” para que os oficiais provassem seu grau de interiorização da crença nazista. Porém, apesar da dimensão traumática exteriorizada nos comportamentos de vários oficiais, nunca houve ruptura com o consentimento à matança, e isso se deu em função do acompanhamento do discursivo legitimador, da sistematização dos gestos e dos processos de adaptação empregados.

Face à derrota iminente, os intelectuais SS apresentaram diversas estratégias de escape, em uma distorção crescente entre os comportamentos e a realidade do front, mesmo que possam ser detectados indícios da escalada de suas angústias. Após 1945, boa parte dos akademiker passou por tribunais e comissões de “desnazificação”, em que procuraram realizar uma gestão da memória de guerra e da sua militância, usando diferentes estratégias de negação dos seus crimes ao longo dos julgamentos. A própria tese da “obediência incondicional” dentro da hierarquia nazista, utilizada pelos historiadores durante muito tempo para analisar os comportamentos dos atores do genocídio, é decodificada enquanto um desses artifícios de despistamento utilizados intencionalmente pelos intelectuais julgados.

Publicado originalmente em 2010, pela Arthème Fayard, sob o título Croire et détruire. Les intellectuels dans la machine de guerre SS, a obra de Christian Ingrao demonstra que a interiorização do sistema de crenças nazista era muito mais um caso de fervor do que de cálculo político e militante. Mesmo que o livro não seja de fácil leitura (em função, sobretudo, da temática delicada, mas também em razão de certos aspectos da tradução brasileira), o autor guia habilmente o leitor pela intrincada burocracia dos órgãos nazistas, tecendo uma narrativa que foge de armadilhas conceituais psicologizantes ou abstratas. Apoiado por uma extensa bibliografia sobre o assunto em várias línguas, e por indicações de fontes impressas e de fundos arquivísticos, sua obra traz possibilidades teóricas de problematizar os diferentes níveis de instrumentalização dos saberes, o papel dos intelectuais, da educação e, particularmente, da ciência histórica na legitimação da violência e dos regimes políticos autoritários.

Franciele Becher – Mestra em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Brasil. [email protected].

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Ensaios sobre Michel Foucault no Brasil: Presença, efeitos, ressonâncias – RODRIGUES (RTA)

RODRIGUES, Heliana de Barros Conde. Ensaios sobre Michel Foucault no Brasil: Presença, efeitos, ressonâncias.Rio de Janeiro: Lamparina, 2016. Resenha de: BIAVA, Fernanda. Michel Foucault e os diferentes impactos nas vindas para o Brasil. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.9, n.21, p.488‐493, maio/ago., 2017.

Passados 32 anos da morte de Michel Foucault, podemos perceber como sua vida e obra ainda têm uma grande relevância em diversas áreas de pesquisa. Foucault foi um intelectual que realizou trabalhos em diferentes espaços, como o da história da loucura, envolvendo saberes psiquiátricos e dialogando com profissionais destas instituições; estudou e se envolveu com estudos sobre prisões, como sua participação no GIP (Groupe d’information sur les prisons) e como resultado deste trabalho publicou o livro “Vigiar e Punir” no ano de 1975, sem contar com seus estudos sobre discurso, arqueologia, genealogia, biopolítica, que reverberam até os dias atuais. As diferentes direções que Foucault tomou durante sua vida, seus estudos, acabaram chamando atenção não só da comunidade acadêmica, mas envolvendo outros setores sociais, o que resultou em uma vigilância constante nas suas viagens para o Brasil por parte dos militares, já que o país, durante o período das cinco vindas de Foucault ao país, estava sob um período de regime militar. A obra Ensaios sobre Michel Foucault no Brasil: Presença, efeitos, ressonâncias, da autora Heliana de Barros Conde Rodrigues acaba por tratar sobre esses casos, sendo publicada em 2016, pela editora Lamparina.

Heliana de Barros Conde Rodrigues é doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (USP). Sua experiência principal é na área de Psicologia Social, com ênfase em História da Psicologia. Dedica‐se especialmente aos seguintes temas: práticas grupais, análise institucional, desinstitucionalização psiquiátrica, história oral, genealogia foucaultiana e estudos sobre produção de subjetividade. Atualmente é professora do Programa de Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), vinculada ao Programa de Políticas Públicas e Formação Humana na UFRJ.

O título do livro refere‐se, de forma simples e direta, ao que pode se esperar da obra. Este trabalho é a reunião de nove ensaios, anteriormente já publicados, mas que foram ligeiramente modificados, para evitar repetições excessivas. De forma simples, o livro aborda as cinco vindas de Michel Foucault ao Brasil (1965, 1973, 1974, 1975 e 1976), e o impacto, efeito e ressonâncias da sua presença no país. É prefaciado por Enrnani Chavis e traz a assinatura de Edson Passetti no posfácio.

A organização do texto segue uma ordem cronológica, mas que em alguns momentos acabam por dar um panorama geral de todas as estadas de Foucault no Brasil para facilitar a compreensão de alguns comentários feitos em colóquios recentemente.

Uma metodologia interessante utilizada por Rodrigues foi utilizar palavras‐chave nos títulos dos capítulos, estabelecendo uma relação entre o título e o conteúdo.

No primeiro capítulo “Michel Foucault no Brasil: esboços de história do presente”, a autora inicia o texto traçando um panorama geral sobre as viagens de Foucault pelo Brasil, desta forma nos auxiliando para as leituras conseguintes.

“Um (bom?) departamento francês de ultramar: Michel Foucault na USP, 1965” é o título do segundo capítulo, no qual a autora vai destrinchando, com mais detalhes e informações, essas viagens. No ano de 1965, Foucault era convidado para vir ao Brasil pela Universidade de São Paulo (USP), onderealizaria suas conferências na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), que durante um longo período,iniciado na década de 1930 (com a abertura da universidade) até as vindas de Foucault, foi responsável por um “intercâmbio cultural com a França” (2016, p. 30). Michel Foucault se deparou com um cenário político conturbado, e com a recente mudança na política brasileira. Suas palestras seriam realizadas na FFCL‐USP “onde o movimento estudantil era forte e contava com o apoio de inúmeros professores” (2016, p. 37).

No terceiro ensaio, “Da importância de não ser filósofo: um certo Clima e a docência de Jean Maugüé”, Rodrigues foca principalmente no Grupo Clima (1930‐1940), que era formado por jovens, muitos da FFLCH‐USP, que, reunidos, começaram a publicar a revista Clima, que tratava sobre temas do “cotidiano, livros, filmes, peças de teatrais, inovações científicas” (RODRIGUES, 2016, p. 50). Esse grupo teve grande influência dentro da USP, como a expansão do curso de Letras, implementação de pós‐graduação nessas áreas, entre outros pontos positivos. Um ponto interessante a citar é que não existe registro de conversas e/ou convívio entre Foucault e os participantes do grupo.

Esse ensaio foca também na figura de Jean Maugué, que teve grande influência na expansão da FFCL‐USP, assim como o Clima. Quando Michel Foucault chegou no Brasil, o grupo não existia mais, mas as consequências positivas na USP permaneciam.

Provavelmente Foucault e Maugué nunca tenham se visto, mas a hipótese da autora é de que teriam muito em comum. “Cromos, Kairós, aión: temporalidade de uma visita de Michel Foucault a Belo Horizonte” trata sobre a segunda vinda de Foucault, que ficou em Belo Horizonte, no ano de 1973. Rodrigues disserta sobre a postura do intelectual nas suas palestras, que surpreendia a todos que iam vê‐lo falar, pois, “ao invés de proferir uma conferência, convida a todos a formular perguntas ou a comunicar suas experiências” (RODRIGUES, 2016, p. 61). Durante sua visita, ocorreram problemas com uma imprensa, a qual a autora nomeia de “imprensa complicada”, e que seria formada por jornalistas invasivos, que incomodavam Foucault com flashes e comentários sobre o intelectual ser grosseiro.

O quinto capítulo, “Uma medicina sempre social? Efeitos foucaultianos no Rio de Janeiro, 1974” marca a sua terceira visita ao Brasil, na cidade do Rio de Janeiro, onde ocorreram seis conferências no Instituto de Medicina Social (IMS). Foucault esteve ligado a grupos de saúde no Brasil e “tudo isso nos leva a pensar que os temas discutidos com os profissionais da medicina social constituíam, à época, problematizações cruciais” (2016, p. 79), e convida a pensar na medicina como um corpo social, “o corpo é uma realidade biopolítica. A medicina é uma estratégia biopolítica” (FOUCAULT, 2014), dialogando com o conceitos que o autor utiliza.

O sexto ensaio, “Michel Foucault na imprensa brasileira: ‘cães de guarda’, ‘nanicos’ e o jornalismo radical”, é marcado pela discussão sobre a imprensa brasileira, momento em que a autora se apropria de expressões de Foucault como “práticas divisórias” para tratar a respeito de uma cisão na imprensa brasileira, que estava dividida entre os “cães de guarda” que apoiavam a ditadura, e os “nanicos” que seriam a imprensa alternativa, e que eram oposição ao governo militar. Neste texto, ela fala da quarta vinda de Foucault, que “na segunda‐feira, 27 de outubro, após o funeral de Vlado, irrompe uma greve na USP. Foucault suspende seus cursos” (2016, p. 93), lançando mais atenção sobre o posicionamento político de Foucault, estando a polícia a vigiá‐lo, e mesmo ele tendo essa suspeita permaneceu no país, participou da manifestação na Praça da Sé (São Paulo) e se uniu a milhares de pessoas pelo assassinato do jornalista Vladimir Herzog.

O sétimo texto, “Um Foucault desconhecido? Viagem no Norte‐Nordeste em tempos (ainda) sombrios”, falará da última visita de Foucault, que foi ao norte e ao nordeste do Brasil. Nesta vinda, sua “última estada em nosso país, entretanto, prossegue praticamente ignorada” (2016, p. 106), a autora apresenta o receio que o pesquisador tinha de voltar ao Brasil, por se sentir vigiado pelas autoridades e pelo país ainda viver em um regime militar. Nessa visita, Foucault acabou não gerando muito impacto ou comentário pela imprensa, levando então o título de “Foucault desconhecido” .

No oitavo ensaio, “Para além das categorias sociológicas: ressonâncias do pensamento foucaultiano no Brasil”, Rodrigues vai finalizando seu pensamento e falando sobre as ressonâncias do pensamento de Foucault no Brasil.

Por último, “Anarqueologizando Foucault”, encerra o livro com a relação entre Foucault e o anarquismo.

Minhas críticas ao livro são exíguas, mas necessárias de serem pontuadas. Primeiramente, a obra é de uma leitura acessível e tranquila, com um conteúdo único, mostrando Michel Foucault além de suas obras, como uma pessoa sensível a diversas causas. Entretanto, compreendo que Rodrigues acabou sendo muito repetitiva nas informações; muitos fatos são contados repetidas vezes, mesmo que na primeira parte do texto a autora tenha colocado que evitaria isso, entendo que ainda houve um excesso, como o fato de citar diversas vezes a impressão que Foucault tinha de estar se sentindo vigiado ou sobre o filósofo não se relacionar bem com a imprensa. De toda forma, o livro surpreende pelo seu conteúdo factual e pelo uso de diferentes fontes sobre as visitas de Michel Foucault ao Brasil, como revistas, jornais, fontes orais.

Por fim, o livro parece importante e bastante relevante para os trabalhos contemporâneos. Percebi nesta obra as posições políticas do intelectual Michel Foucault, com o aprofundamento das suas pesquisas e expansão de campos de estudo, como também as suas publicações e as atuações nas visitas ao país. Concluo meu texto com uma fala muito pertinente de Foucault sobre o poder das ideias que “são mais ativas, mais fortes, mais resistentes e mais apaixonadas do que pensam os políticos. É preciso assistir ao nascimento das ideias e à explosão de sua força” (1994, p. 707). Michel Foucault fez diversos questionamentos na sua época, mas cabe a nós, críticos do nosso presente, intensificar esses estudos frente aos novos problemas.

Referências

FOUCAULT, Michel. Les reportages d´idées, Dits et écrits III, Paris: Gillimard, 1994.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.

RODRIGUES, Heliana de Barros Conde. Ensaios sobre Michel Foucault no Brasil: Presença, efeitos, ressonâncias. I edição ‐ Rio de Janeiro: Lamparina, 2016.

Fernanda Biava – Mestranda no Programa de Pós‐Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Brasil [email protected]

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As estórias a favor da História: as Efemérides Mineiras, de José Pedro Xavier da Veiga – FAGUNDES (RTA)

FAGUNDES, Bruno Flávio Lontra. As estórias a favor da História: as Efemérides Mineiras, de José Pedro Xavier da Veiga. Belo Horizonte: Fino Traço, 2014. Resenha de: GIANELLI, Carlos Gregório dos Santos> Um inventário histórico de estórias inventadas. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.9, n.20, p.339‐343. jan./abr., 2017.

A diferenciação entre o que é uma história verídica e o que seria uma ficção muitas vezes já é sinalizada no uso da palavra. Para citar o exemplo na língua inglesa, o story (estória) se apresenta quase sempre que uma ficção quer se fazer explícita em oposição à palavra history (história), que se trata do estudo, análise ou até mesmo relato de algum fato ocorrido. Na língua portuguesa praticada no Brasil essa diferenciação existe em nosso vocabulário, mas, vem sendo cada vez menos utilizada. Ao se checarem livros ou coleções mais antigas, as estórias em contraposição às histórias estão presentes. No entanto, a palavra estória vem caindo em desuso sendo que a história tem servido tanto para a dita ficção como para a realidade. Não é à toa que o título do livro de Bruno Flávio Lontra Fagundes faz uso desse jogo de palavras ao tratar do tema proposto. “As estórias a favor da História: As Efemérides Mineiras de José Pedro Xavier da Veiga” tem como um de seus objetivos e fio condutor refletir sobre essa tensão presente entre a ficção e realidade na tessitura das narrativas históricas. Historiador de formação, Fagundes buscou nesse trabalho, que resultou em sua dissertação de Mestrado defendida junto ao Programa de Pós‐Graduação em Letras (Estudos Literários), da Faculdade de Letras da UFMG, aproximar duas áreas que muitas vezes foram consideradas totalmente opostas no campo da escrita: as estórias e as histórias.

Como indicado no título, o livro analisa a obra “As Efemérides Mineiras”, de José Pedro Xavier da Veiga, publicada em Minas Gerais no ano de 1897. Trata‐se de um livromonumento com mais de mil e oitocentas páginas, dividas em quatro volumes, que busca fazer um levantamento da história da província de Minas Gerais de 1733 a 1892. Torna‐se válido ressaltar que o próprio termo efeméride é pouco utilizado hoje, e cabe a breve explicação de que se trata do registro de algo importante que aconteceu em um dia específico. Levando‐se isso em consideração, fica um pouco mais clara a organização proposta por Xavier da Veiga em seu livro‐monumento. As efemérides não estão organizadas ano após ano, mas dia após dia. Essa primeira característica a ser observada logo no índice do livro já abre um espaço interessante de reflexão a respeito da organização cronológica e temporal que é proposta nessa obra do final do século XIX.

Fagundes ressalta que essa característica não era comum de outras efemérides realizadas na mesma época. Sendo assim, Xavier da Veiga propõe uma organização da história diferente deseus contemporâneos, tendo os anos como esteira condutora dos acontecimentos históricos. Nas “Efemérides Mineiras”, temos um calendário que parte de 1º de janeiro a 31 de dezembro, cobrindo não somente um ano, mas quase três séculos.

Nesse sentido, teríamos a organização mais ou menos desta maneira, como indica Fagundes: “1 de janeiro 1733 (…) 1740 (…) […] 2 de janeiro 1807 (…) 1811 (…).” O livro de Bruno Fagundes, a respeito da obra de Xavier da Veiga, se organiza da seguinte maneira: antes de fazer a sua análise das Efemérides, Fagundes mostra a apresentação que o próprio José Pedro Xavier da Veiga faz de sua obra monumental. O prefácio da obra de Xavier da Veiga contém desde instruções de como realizar a leitura, até uma espécie de pedido de desculpas pelas lacunas temporais presentes. Por se tratar de uma obra datada do ano de 1897, está inserida no contexto pós‐republicano em que se buscava de todo modo “re‐fundar” um novo país sob a égide dos novos ideais positivistas, materializados no lema ordem e progresso. Não se tratava apenas de buscar uma brasilidade moderna que fundamentasse as aspirações republicanas, mas de organizar a história do país muito mais por inventários documentais, como as efemérides, do que por outro tipo de produção historiográfica ou memorialística. Xavier da Veiga além de ser o autor das Efemérides foi o primeiro diretor do Arquivo Histórico Mineiro, o que denota o caráter depositário que a obra possuía para ele. Para Xavier da Veiga não se tratava apenas de contar estórias, mas de se guardar e, até mesmo, preservar a história.

Após a apresentação do livro, “Por ele mesmo”, Bruno Flávio Lontra Fagundes adentra a obra sempre mostrando algo que lhe sobressai e uma possível análise a ser realizada. Nos próximos três capítulos após a apresentação do livro pelo próprio Xavier da Veiga, Fagundes analisa três questões em que dedica um capítulo para cada: temporalidades; memória; e a própria noção de invenção da História que acaba suscitando das Efemérides.

Adiante, no livro, Fagundes analisa em seu quinto capítulo como Xavier da Veiga lidava com a carga documental que recebia de várias partes do estado de Minas Gerais para a realização da obra; é neste momento que o título dado por Fagundes faz‐se presente: “As estórias a favor da História”. Este que poderia até mesmo ser um lema adotado por Xavier da Veiga na compilação de documentos e testemunhos. O arquivista mineiro considerava importante desde os documentos oficiais, como decretos‐lei, até relatos de casos estranhos como alguns títulos indicam: “diamante achado por um preto; grandioso meteoro; um esqueleto monstro, etc.” Como já foi dito, o cargo de administrador do Arquivo Histórico Mineiro vai conferir a Xavier da Veiga a responsabilidade de salvaguardar todos os retalhos de história que lhe são enviados.

Anexos aos documentos que chegam para ele estão presentes, muitas vezes, bilhetes pedindo para que o pacote seja preservado, ressaltando a preciosidade daquele documento em questão. Tal cuidado que o arquivista e escritor mineiro possuía com os documentos que aos quais tinha acesso permeia toda a obra das Efemérides, assim como a função social do devir histórico que lhe é incumbido.

É dentro dessa questão que Fagundes, em seu sexto capítulo, lança a reflexão voltada à autoria das Efemérides. Seria apenas José Pedro Xavier da Veiga o autor de um livro que conta com tantas páginas resultantes de dezoito anos de trabalho? Qual a parcela de contribuição das centenas de anônimos que enviaram seus relatos e documentos para a realização desta empreitada? Tais reflexões cabem tanto para Fagundes, ao analisar as Efemérides, como para qualquer historiador que tenha contato com obras grandiosas, ou que no momento de tecer a sua própria narrativa histórica reflita sobre o lugar dos documentos e testemunhos em sua produção.

Em seu sétimo capítulo, é feita uma análise a respeito da figura do próprio José Pedro Xavier da Veiga, que além de ter ocupado o cargo de primeiro diretor do Arquivo Histórico Mineiro, também foi deputado, vinha de uma família de letrados que chegaram a ser proprietários de livrarias e possuía grande respeito justamente por ser apontado como um dos guardiões da história de Minas Gerais. No oitavo e último capítulo, Fagundes trabalha a relação entre Xavier da Veiga e o seu livro, mostrando como determinadas obras além de monumentalizar os personagens retratados nela podem enaltecer seus autores. Xavier da Veiga é destacado no imaginário social pela grande empreitada de memória e identidade mineira que constituiu suas Efemérides.

Por fim, cabe ressaltar a importância que o livro “As Estórias a favor da História: As Efemérides Mineiras de José Pedro Xavier da Veiga”, de Bruno Flávio Lontra Fagundes tem para o campo da História. As questões que o autor levanta, aproximando os campos dos estudos literários e da teoria da história são de grande relevância para aquele pesquisador que busca uma perspectiva interdisciplinar para o seu trabalho que acaba, em muitos casos, levando a uma reflexão mais profunda acerca do tema pesquisado.

Poderíamos, por fim, elencar os seguintes temas como muito importantes para o fazer historiográfico que são problematizados pelo autor: a questão da memória de um povo; o desafio da delimitação das temporalidades (tendo em vista a característica peculiar de organização temporal das efemérides que reverbera em sua narrativa histórica); o tratamento dado para um grande acervo documental; a função social exercida por Xavier da Veiga enquanto historiador mineiro; reflexões a respeito da autoria das efemérides (como podemos afirmar que Xavier da Veiga é o único autor de um livro composto por centenas de contribuições e relatos? Como podemos pensar nessa mesma problemática na tessitura de nossos trabalhos historiográficos?) e, por fim, a relação entre autor e obra.

Fagundes analisa com bastante seriedade um livro que se porta como monumento histórico e não apenas como uma narrativa histórica.

Carlos Gregório dos Santos Gianelli – Doutorando no Programa de Pós‐Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Brasil [email protected].

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A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo – ROUSSO (RTA)

ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo. Trad. Fernando Coelho e Fabrício Coelho. Rio de Janeiro: FGV, 2016. Resenha de: MAYNARD, Dilton Cândido Santos. Rumo à catástrofe. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.9, n.20, p.333‐338. jan./abr., 2017.

A história do tempo presente está na moda. De uma abordagem comparada em curioso tom pejorativo ao jornalismo e à sociologia, nos últimos anos ela passou a receber tratamento atencioso no mercado editorial e obteve demonstrações de prestígio na Academia. Da rarefação passamos à oferta ampla. Este movimento, que levou a HTP da periferia para o cerne dos debates historiográficos, pôde ser observado no número crescente de congressos, workshops, simpósios temáticos, grupos de pesquisa e publicações dedicadas à rubrica.

Porém este avanço inspira cuidados. Como lembrou Robert Darnton ao tratar do Iluminismo, quando algo “está começando a ser tudo”, pode findar sendo nada (DARNTON, 2005:18). É preciso, então, buscar uma definição mais acertada das fronteiras, dos procedimentos e das especificidades da história do tempo presente. É este o desafio assumido no livro A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo, do historiador francês Henry Rousso, publicado no Brasil pela Editora da Fundação Getúlio Vargas em 2016.

Nos quatro e densos capítulos – além da introdução e da conclusão –, a obra originalmente publicada em francês com o título La dernière catastrophe : L’histoire, le présent, le contemporain (Paris, Gallimard, 2013) propõe questionamentos e apresenta respostas possíveis com desenvoltura e coragem. Com o objetivo de “retraçar a evolução, compreender os móbiles, explicar os paradigmas e os pressupostos dessa parte da disciplina histórica que passou, em algumas décadas, da margem ao centro” (18), Rousso toma a metáfora da catástrofe como “revolvimento” e “desenlace teatral”(28) para, no desenrolar dos ensaios, oferecer uma leitura que parece colocar ordem no caos de abordagens sobre a história do tempo presente.

Os ensaios escritos pelo pesquisador nascido no Cairo, em 1954, são distribuídos através dos capítulos: 1. A Contemporaneidade no passado (31‐98), 2. A guerra e o tempo posterior (99‐164), 3. A contemporaneidade no cerne da historicidade (165‐218) e 4. O nosso tempo (219‐280). Os dois primeiros ensaios percorrem a trajetória da história do tempo presente, enquanto nos seguintes, sobretudo no último, Rousso encara o desafio de pensar respostas aos problemas que levanta na obra.

Assim, após demonstrar a persistência da ideia de uma história do tempo presente na longa duração, o autor evidencia uma forma “particular” de HTP a partir dos anos 1970. O olhar de Rousso percorre a historiografia produzida na Inglaterra, Alemanha e América do Norte, mas é na França, a sua base acadêmica – lembramos que ele é pesquisador do renomado Institut d’histoire du temps present, além de possuir atuação frequente no universo acadêmico dos EUA – o espaço de maior atenção, justamente por ver ali algumas das manifestações centrais ao desenvolvimento do campo.

De modo geral, na argumentação de Rousso, temos dois vetores importantes, dois “momentos inaugurais” fundamentais: a I Guerra Mundial – na qual emergem a testemunha, a busca por coleções e a figura do expert, e a II Guerra Mundial – que reforça a importância do passado recente enquanto objeto.

Mas se as duas guerras mundiais foram elementos fundamentais para uma mudança na prática e na percepção histórica, é nos anos 1950‐1970, que a HTP amplia a sua inserção como disciplina e obtém considerável apoio da mídia. A ideia de acontecimento e “acontecimento‐monstro”, como chamou Pierre Nora (1976), ganha contornos mais evidentes com episódios como o caso dos reféns nas Olimpíadas de Munique (1972) ou a Guerra do Vietnã (1955‐1975), eventos televisionados que ampliaram a demanda social por explicações “históricas”. Um sintoma deste avanço pode ser percebido na ocupação pelos historiadores de importantes espaços midiáticos na Europa (Georges Duby foi, provavelmente, o caso mais emblemático).

Mas quais as fronteiras do presente? Onde ele começa? Para Henry Rousso, na última catástrofe. O autor nos lembra do anjo pintado por Paul Klee (1879‐1940), o Angelus Novus (1920), o mesmo mencionado por Walter Benjamin (1892‐1940) em suas Teses sobre o conceito de História, de 1940. Ali, na nona tese lê‐se que “O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés” (BENJAMIN, 1994:226).

Portanto, são os historiadores a definir a última catástrofe. Tais eventos catastróficos exigem das gerações a reflexão e a consequente síntese da sua história recente, implicam em muitas vezes reposicionar elementos da memória, transformam as identidades e acabam por reordenar as interpretações do passado. E quais os eventos “inaugurais” possíveis? Anos emblemáticos como 1789, 1917, 1940 (ao menos para a França), 1945, 1989 e 2001? Para além dos anos inaugurais, conforme o autor, a história contemporânea enquanto um conhecimento constituído a partir da mediação é caracterizada pelo peso dos eventos catastróficos, pela demanda social em torno do historiador, pelo quase inevitável envolvimento judicial e pela importância dada à memória e à testemunha. A propósito, a presença da testemunha é marca deste tipo de pesquisa e é necessário considerar os influxos da emergência da “testemunha que vê, a testemunha que fala, a testemunha que escreve, seja o próprio historiador, desempenha claramente um papel essencial, uma vez que é um mediador primário, para não dizer único” (282), como adverte Rousso.

Uma coisa importante é que o autor não apenas provoca questionamentos, mas demonstra coragem em respondê‐los no decorrer das 341 páginas do livro. A obra nos convida a refletir sobre o ofício do historiador e suas tarefas no século 20. Rousso aponta a relevância do debate sobre o problema fundamental da periodização. A proximidade com os eventos e os desdobramentos disto. Em que medida o historiador deve estar afastado? “A queda do Muro de Berlim ou os atentados de 11 de setembro podem por sua vez constituir fronteiras para um novo período contemporâneo? É… cedo demais para dizê‐lo” (279). Não há resposta fácil quando se trabalha com história do tempo presente.

O livro demonstra que a ideia de contemporaneidade sofreu profunda evolução.

Se “toda história é história contemporânea”, como afirmou Benedetto Croce (1866‐1952), Rousso adverte, no entanto, que: “Isso não significa, contudo, que existe uma concepção contínua e imutável através de vários milênios na maneira de escrever sobre o seu próprio tempo: as modalidades, os métodos, as finalidades de escrita da história mudaram consideravelmente de uma civilização para a outra” (281).

Mas, sim, toda história é contemporânea na medida em que “a história do passado encerrado que seria distinto, e até mesmo cortado em relação ao tempo presente, não tem sentido realmente” (41). Diferente de outros momentos, não se trata de obter o conhecimento a partir de uma ação da Providência ou de uma revelação, é importante considerar a história como conhecimento mediado como uma mudança crucial no sentido atribuído ao tempo presente.

Por sua vez, a ideia de memória é fundamental à história do tempo presente, pois ela descola a HTP do presentismo, da ideia de uma história imediata. A memória confere duração. Deste modo, Henry Rousso ressalta que se configura como um antídoto ao presentismo, não de um sintoma deste fenômeno. A desconstrução de uma leitura linear da história e a valorização das idas e vindas, da presença do passado no presente e do presente no passado exige o trabalho em duas frentes, como lembra o autor: “a da história e a da memória, a de um presente que não quer passar, a de um passado que volta para assombrar o presente, sendo a distinção entre as duas por vezes indisfarçável” (302).

A publicação da obra em português ocorre em momento bastante adequado, em tempos de ampla demanda por reflexões dos historiadores, dias de tensão nos rumos do Brasil, do Mundo, mas também em momento de duros questionamentos acerca do papel social do historiador, da sua necessidade nas salas de aula e da sua validade na orientação das políticas públicas. Neste aspecto, a obra contempla a situação de inúmeros intelectuais que, em diferentes países e contextos, foram chamados a colaborar em processos judiciais, foram interpelados pelas vítimas e pressionados pelos agressores.

Neste sentido, Henry Rousso nos lembra que “o historiador do presente mantém relações conflituosas com o poder, seja religioso, seja político” (282). Em tempos de Donald Trump acelerando o relógio do Armagedon na Casa Branca, Marine Le Pen tocando o tambor da xenofobia na França e quando, no Brasil, assistimos, atônitos, alguém democraticamente eleito ser afastado do cargo com votos dos que celebram eufóricos, cheios de ódio e preconceito, os piores momentos da ditadura e seus torturadores mais temidos, ler A Última Catástrofe é convite irrecusável.

Referências

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. Obras Escolhidas: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. v. I.p.222‐234 DARNTON, Robert. Os dentes falsos de George Washington: um guia não convencional para o século XVIII. Trad. José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

NORA, Pierre. O Retorno do Fato. in NORA, Pierre, LE GOFF. Novos Problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.p.179‐193 ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo. Trad. Fernando Coelho e Fabrício Coelho. Rio de Janeiro: FGV, 2016.

Dilton Cândido Santos Maynard – Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor do Mestrado Profissional em Ensino de História da Universidade Federal de Sergipe, e do Programa de Pós‐Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro do Grupo de Estudos do Tempo Presente da Universidade Federal de Sergipe. Bolsista Produtividade CNPq. Brasil [email protected].

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Intelectuais Mediadores: práticas culturais e ação política – GOMES; HANSEN (RTA)

GOMES, Angela de Castro; HANSEN, Patricia Santos (Orgs.). Intelectuais Mediadores: práticas culturais e ação política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. 488p. Resenha de: SANTOS, Márcia Regina dos. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.8, n.19, p.374-379, set./dez., 2016.

A obra Intelectuais Mediadores: práticas culturais e ação política, organizada pelas historiadoras Angela de Castro Gomes e Patricia Santos Hansen reuniu um total de quatorze autores, os quais se dedicaram a ampliar o debate sobre as questões que tratam das práticas culturais protagonizadas por sujeitos históricos identificados como intelectuais. Angela de Castro Gomes, graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (1969), Mestra e Doutora em Ciência Política (Ciência Política e Sociologia) pela Sociedade Brasileira de Instrução (SBI/IUPERJ-1987), constituiu-se uma importante referência com pesquisas nos temas de história política do Brasil República, história de intelectuais, cidadania e direitos do trabalho, Justiça do Trabalho, historiografia, memória e ensino de história. É o seu quinquagésimo livro entre publicações, organizações e edições e, foi organizado em parceria com a também historiadora Patricia Santos Hansen, graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio, 1998), Mestra em História Social da Cultura pela mesma instituição (2000) e Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (FFLCH-USP, 2007). O livro apresenta uma proposta de refinamento teórico, o qual visa a debater as operações culturais que foram multiplicando e diversificando as formas de disseminar conhecimentos e a mediação cultural que ocorre por diversos meios, sujeitos e escalas. Num movimento de ampliar a significação do intelectual contemporâneo, a autora denomina-os como “homens da produção de conhecimento e comunicação de ideias, direta ou indiretamente vinculados à intervenção político-social” (p. 10). Dessa forma, oferece estudos desenvolvidos na mesma direção, a qual problematiza e debate a ação de alguns homens e mulheres como mediadores culturais.

Os artigos que compõem a obra estão organizados em três partes. A primeira parte do livro, nomeada de Trajetórias e projetos, agrupou textos sob a perspectiva da ação de intelectuais no âmbito da tradução e edição, bem como, os percursos por eles realizados num processo de disseminação de livros e textos. O artigo de Kaomi Kodama delineia o campo de atuação do ator social, o qual compreendeu como “vulgarizador” (p. 42), a partir das traduções da obra de Louis Figuier que circularam no Brasil. A ideia de mediação estava focada em apresentar as novidades científicas para um público não especializado com objetivo de educar pela ciência. A autora Patrícia Tavares Raffaini  utilizou dois livros franceses para crianças no intuito de abordar a questão das traduções e a dimensão das escolhas editoriais. Nesse sentido, editores e tradutores atuam na construção de imaginários sociais oferecendo aos leitores as suas escolhas, projetando produções de sentidos. O artigo de Ângela de Castro Gomes apresenta a mediação entrecruzada por um projeto literário de intercâmbio luso-brasileiro infantil promovido pela autora/editora lusa Ana de Castro Osório. Por meio de obras que têm personagens viajantes que vivenciam a cultura do outro, a autora/editora investe seus esforços em projetos que poderiam ser nomeados de mediação cultural transnacional.

No âmbito educacional, evidenciando uma dimensão política na mediação cultural, a autora Gabriela Pellegrino Soares debate a atuação de professores em diferentes regiões do Vice-Reino da Nova Espanha (hoje, região do México), no sentido de que disseminaram ferramentas culturais – e também políticas – as quais contribuíram nos sentidos e práticas da participação camponesa na Revolução Mexicana, deflagrada em 1910. Diferentemente do olhar coletivo sobre uma classe de intelectuais, o autor Joaquim Pintassilgo estudou o percurso biográfico de Orbelino Geraldes Ferreira e a sua relação com o estabelecimento de uma vertente pedagógica chamada “escola ativa” (p. 148), em Portugal, durante o regime salazarista. Os dois últimos artigos dialogam no sentido de discutirem diferentes escalas de mediação, em diferentes lugares sociais. No primeiro caso, a mediação promovida na região rural, com materiais distribuídos para o letramento de populações com dificuldades de recursos e, no segundo caso, a mediação promovida a partir de cargos docentes que possibilitaram a produção de livros e a disseminação de ideias. No entanto, ambos ocorrem em situações adversas, nas quais os mediadores oscilaram entre promover a ilustração e não se expor às austeridades políticas do período.

A segunda parte da obra nomeada Lugares e mídias aborda a ação dos intelectuais mediadores por meio dos suportes de divulgação utilizados. O artigo de Ana Paula Sampaio Caldeira discutiu a atuação de Benjamin Franklin Ramiz, quando esteve à frente da Biblioteca Nacional, na concretização do projeto editorial dos Anais da Biblioteca Nacional. Num esforço de inserir a Biblioteca nas práticas internacionais de circulação e divulgação cultural, Ramiz mobilizou outros intelectuais da época para contribuir nas diversas edições dos Anais durante a sua gestão. A autora chama a atenção para a ausência de Capistrano de Abreu – funcionário da Biblioteca Nacional à época – nas edições organizadas por Ramiz, uma vez que, Capistrano de Abreu se tornaria uma referência como intelectual de sua geração. O artigo de Eliana Dutra discutiu os contextos de mediação intelectual. Nesse sentido, abordou o caráter transnacional e transcultural da mediação por meio da circulação das revistas elaboradas para disseminar entre os países o que era produzido. Foram analisadas revistas do Brasil, Argentina e França para pensar uma possível triangulação de produções literárias que, por conseguinte, divulgavam concepções identitárias. O artigo de Francisco Palomanes Martinho tratou da mediação na questão dos discursos disseminados pela revista antiliberal e antidemocrática intitulada “Ordem Nova”. Os redatores da revista, em especial Marcello Caetano apoiavam um retorno monárquico às vésperas do golpe de Estado que mergulharia Portugal num período ditatorial. Revisitando teorias e acontecimentos históricos que se reportavam aos primórdios do liberalismo, os redatores elaboravam uma mediação político-cultural, com vistas a fortalecer sua ideologia antidemocrática. Sob a perspectiva da mediação pela oralidade, o artigo de Giovane José da Silva analisa os scripts dos programas de “Metodologia da História do Brasil” do projeto “Universidade no Ar”, escritos e narrados por Jonathas Serrano. Nesse contexto, ainda que a mediação ocorresse pela oralidade transmitida pelo rádio, foi privilegiada a perenidade do suporte escrito utilizando o envio de materiais aos inscritos na formação por meio do sistema de correios, configurando assim, um aprendizado específico, mesclado por narrativas orais e escritas.

Na terceira e última parte da obra, nomeada Leituras e ressonâncias, o conjunto de textos tem como foco as apropriações, releituras e aproximações feitas acerca de obras, autores e veículos de comunicação em relação às conjunturas vigentes em tempos e espaços demarcados. O artigo de Mara Cristina de Matos Rodrigues problematiza a noção de intelectual mediador a partir da articulação entre criação e mediação intelectual na trajetória de Érico Veríssimo. A autora discute os múltiplos tempos e lugares experienciados pelo autor, os quais lhe conferiram atuação tanto na mediação de conhecimentos históricos para um público infantil escolar, no diálogo cultural transnacional a partir de sua estada nos EUA, quanto na criação de uma literatura com “uma sofisticada arquitetura temporal” (p. 347) como a obra de sua maturidade O tempo e o vento. A autora elucida o trânsito possível inscrito na condição de intelectual e infere sobre a ampliação do entendimento de mediação. O artigo de Luciano Mendes de Faria Filho aborda a problemática da elaboração dos prefácios para obras já escritas e como as redes de sociabilidades podem interferir na produção de sentidos. O projeto em questão se refere à publicação das obras completas de Rui Barbosa. A sociabilidade do responsável pelo projeto editorial – Gustavo Capanema – mobilizou intelectuais que corroborassem com a política da publicação, incidindo sobre a forma como a obra foi prefaciada e os direcionamentos da leitura. Esse tipo de mediação intelectual tem, inclusive, argumentos para descaracterizar o próprio conteúdo da obra, uma vez que, os prefácios funcionam como protocolos de leitura. Nessa mesma clave, o artigo de Patricia Santos Hansen aborda a edição da obra A defesa nacional em comemoração ao centenário de seu autor, Olavo Bilac. A autora debate a problemática da apropriação dos escritos numa perspectiva de atender demandas políticas posteriores à publicação em, pelo menos, meio século. Da mesma forma, é possível perceber uma subversão narrativa na mediação entre diferentes culturas políticas.

Os dois últimos artigos são convergentes na questão da identificação de sujeitos históricos como intelectuais. O artigo de Giselle Martins Venâncio destaca as tensões da “fundação de uma prática historiográfica dita moderna” (p. 437) por meio da análise da mediação intelectual elaborada no âmbito das publicações de coleções e revistas científicas que se mobilizaram em notabilizar uma historiografia nacional. Nesse sentido, a autora aponta a emergência de nomes e grupos que estabilizaram como referenciais ao passo que outros, permaneceram invisibilizados. Por fim, a historiadora Libânia Nacif Xavier propõe em seu artigo a construção de “interfaces entre a história da educação e a história social e política dos intelectuais” (p. 464). Num diálogo acerca dos conceitos de redes de sociabilidade, trajetórias intelectuais e geração, a autora problematiza o lugar dos sujeitos classificados como intelectuais e a sua atuação na mediação. Num esforço teórico de ampliar o entendimento do conceito de intelectuais mediadores como categoria de análise nas pesquisas, a autora infere sobre a necessidade de construir uma sensibilidade para que o historiador, ao munir-se de fontes, conceitos e pesquisas, priorize as escolhas que melhor contribuam para os seus objetivos. E, nesse sentido, compreender e visibilizar os homens e mulheres que atuaram na produção e disseminação cultural do país e do mundo.

Márcia Regina dos Santos – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Brasil. E-mail: [email protected]

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História pública no Brasil: Sentidos e itinerários – MAUAD et al (RTA)

MAUAD, Ana Maria; ALMEIDA, Juniele Rabêlo de; SANTHIAGO, Ricardo (orgs.). História pública no Brasil: Sentidos e itinerários. São Paulo: Letra e Voz, 2016, 348p. Resenha de: FRAZÃO, Samira Moratti. História pública no Brasil: espaço de apropriações e disputas. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.8, n.19, p.374-379. set./dez., 2016.

Na contemporaneidade, momento em que a história é vista midiaticamente como uma bússola para questões políticas, sociais, religiosas e culturais que emergem no presente, como refletir a necessidade de revisitar o passado com abordagens que fogem às práticas históricas institucionalizadas? Como pode ser traduzida fora do ambiente acadêmico essa produção ou intenção de propor um conhecimento histórico que se encontra em circulação em diversos suportes e tecnologias? A história pública pode ser uma das respostas a essas e outras questões abordadas no livro “História Pública no Brasil: Sentidos e itinerários”, lançado em 2016 pela editora Letra e Voz.

Para além de novas reflexões, a obra é uma continuidade ao trabalho empreendido em 2011, ano em que foi lançado o livro “Introdução à História Pública”, organizado por Juniele Rabêlo de Almeida e Marta Gouveia de Oliveira Rovai. Posteriormente os pesquisadores, entre historiadores, comunicólogos e especialistas de diversas áreas das Ciências Humanas e Sociais, formaram a Rede Brasileira de História Pública (RBHP), cujos membros – dos quais se destacam Ana Maria Mauad, Juniele Rabêlo de Almeida e Ricardo Santhiago, organizadores deste livro – propõem com “História pública no Brasil” conectar percepções atualizadas sobre a prática, considerada uma produção histórica “feita para, com e pelo público” (MAUAD, ALMEIDA & SANTHIAGO, 2016, p. 12, grifo dos autores). Leia Mais

“Proletarios de todos los países…’perdonadnos!” El humor político clandestino en los regímenes de tipo siviético y el papel deslegitimador del chiste em Europa central y oriental (1917-1991) – VÁRNAGY (RTA)

VÁRNAGY, Tomás. “Proletarios de todos los países…’perdonadnos!” El humor político clandestino en los regímenes de tipo siviético y el papel deslegitimador del chiste em Europa central y oriental (1917-1991). Buenos Aires: Editorial Universitaria de Buenos Aires, 2016. 372p. Resenha de: GÓMEZ, Diego Hernando. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.8, n.18, p.445‐450, maio/ago., 2016.

Este libro es una mordaz y corrosiva crítica de los “socialismos realmente existentes” en Europa. El autor, de izquierdas y admirador del pensamiento de Karl Marx, aclara en el Prólogo (pp. 7 a 11) su postura en contra del capitalismo depredador, el imperialismo y la política exterior de los Estados Unidos. Su hipótesis central, “exagerando y a la manera de un chiste” (p. 359), es que la caída del Muro de Berlín y la implosión de la Unión Soviética no fueron provocados por la política del Papa Wojtyla, ni los muyahidines de Afganistán, ni la Guerra de las Galaxias de Ronald Reagan, tampoco Gorbachov o la ineficiencia del sistema soviético, sino que fueron incitados por los chistes y el humor clandestino.

En la Introducción (pp. 13 a 24), cita a Bertolt Brecht: “No se debe combatir a los dictadores, hay que ridiculizarlos”, y cuenta que comenzó a coleccionar chistes sistemáticamente luego de leer un libro de Agnes Heller, Ferenc Fehér y György Márkus (discípulos de György [Georg] Lukács de la Escuela de Budapest) en el cual se narra el siguiente: Un día Stalin hizo comparecer a Radek, que era bien conocido por su cinismo y dado a decir cosas que otros ni siquiera se atrevían a pensar.

Stalin le dijo: Me han informado, camarada Radek, que te expresas de mí de un modo irónico. ¿Has olvidado que soy el líder del proletariado del mundo? Discúlpame, camarada Stalin – replicó Radek –, ese chiste en particular no lo inventé yo.

Existe un debate sobre la naturaleza paradojal del humor, y la pregunta que trata de responder el autor es si los chistes políticos clandestinos (prohibidos) en los regímenes de tipo soviético fueron efectivamente un factor de deslegitimación o tuvieron un papel inoperante y nulo. Su hipótesis es que los chistes efectivamente pesaron en el proceso de deslegitimación política de estos regímenes, desestructurando y poniendo “patas arriba” el orden establecido.

Los chistes hacían constante referencia a la brecha entre la propaganda y la realidad concreta, reflejando una doble vida que diferenciaba claramente lo público de lo doméstico. Con esos chistes, se pretendía mostrar las incongruencias y distorsiones en un mundo dicotómico entre la ideología oficial dominante y las circunstancias materiales reales, produciendo una risa liberadora de las constricciones, pues se revelaban las contradicciones entre ambas esferas.

En el primer capítulo, “Teorías del humor” (pp. 25 a 69), se hace un análisis acerca de las teorías del humor, la risa y el chiste, mostrando las diferentes perspectivas que resultan en casi un centenar de teorías documentadas con respecto al tema. El autor aborda la historia del pensamiento occidental, desde el Antiguo Testamento y los Evangelios, pasando por la risa homérica, las comedias de Aristófanes y la filosofía griega, tanto Platón como Aristóteles. También analiza la “seriedad oficial” medieval, el pensamiento de Tomás de Aquino, la interpretación de Humberto Eco en El nombre de la rosa y el Carnaval del Medioevo, que producía un “mundo al revés” en donde la risa de los campesinos era una revuelta en contra de todo lo establecido.

Thomas Hobbes desarrolló la teoría de la superioridad, comenzada por Platón, afirmando que la risa es de los poderosos. Con Immanuel Kant, apareció la teoría de la incongruencia, pues lo que provoca risa tiene que ver con una expectativa que queda en la nada. Herbert Spencer consideró a la risa como un desahogo de energía y Sigmund Freud retomó esta teoría de la descarga, discurriendo que el humor y los chistes son un alivio que permite la expresión de tensiones sexuales y agresivas de una manera socialmente aceptable.

En el segundo capítulo, “Humor político” (pp.71 a 111), Várnagy, desde una perspectiva general, considera que los chistes expresan concentradamente eventos sociales y políticos, dando cuenta del humor político en la Antigüedad y el Medioevo y, con la invención de la imprenta y la lucha entre católicos y protestantes, muestra el surgimiento de toda una corriente de chistes anticlericales. El humor político podía ser peligroso – Daniel Defoe fue a la picota por su parodia de los Tories – y cuestionador – Jonathan Swift escribió un ensayo crítico de las condiciones paupérrimas de Irlanda debido al colonialismo inglés.

Hubo chistes políticos durante la Revolución Francesa, sobre Napoleón y muchos otros temas candentes. Así que, en el siglo XIX, debido a la vigilancia y la censura, se produjo la aparición de la prensa clandestina en muchos países. El cabaret se convirtió en un eficiente medio de crítica, extendiéndose por toda Europa y, en la Alemania nazi, el humor fue empujado a la clandestinidad. Además, se destaca que el humor patibulario de los chistes (anti) nazis fue una importante forma de resistencia.

El tercer capítulo, “Humor político ‘comunista’” (pp. 113 a 173), trata específicamente sobre el humor “comunista”. En ese punto, el autor hace notar que los chistes políticos clandestinos eran vitales en esos países porque eran un instrumento para expresar quejas y críticas. Menciona también que la persecución por contar chistes se remonta a la Antigüedad y ya está registrada en la Grecia clásica; en la Unión Soviética era considerado como una “actividad contrarrevolucionaria”.

Anekdot es la palabra rusa para “chiste político clandestino” y era una forma de desmentir la política oficial. Su tremenda popularidad, de acuerdo a Várnagy, socavó y deslegitimó al régimen soviético. Se hace referencia a la influencia del humor judío, armenio y georgiano, las diferencias entre la esfera pública y la doméstica, los chistes sobre la estupidez, y se realiza una periodización del humor político “comunista” desde la década de 1920, pasando por el estalinismo, el deshielo, la década de 1960, el centenario del nacimiento de Lenin, el estancamiento brezhneviano y los cambios producidos por Gorbachov, con ejemplos concretos de una recopilación de chistes tanto en la Unión Soviética como en todos los países de los socialismos realmente existentes en Europa.

El capítulo cuatro, “Chistes en la Unión Soviética” (pp. 175 a 273), es una colección de humor clandestino desde 1917 hasta 1991. Se cita a Karl Marx cuando éste dice que “La última fase de una forma histórica mundial es su comedia” (Introducción a la Contribución de la crítica de la Filosofía del Derecho de Hegel de 1844). Se presenta aquí una síntesis de la vida en la URSS: ¿Cómo es la vida en la Unión Soviética? Con Lenin era como estar en un túnel: rodeados de oscuridad pero con una luz adelante que nos guiaba. Con Stalin era como andar en autobús: uno conduce, algunos están sentados [“estar sentado” en ruso es sinónimo de “estar en prisión”], el resto temblando. Con Jrushchov era como estar en un circo: un hombre habla y todos los demás se ríen. Con Brezhnev era como estar en el cine con una mala película: todos están esperando que el espectáculo termine y, finalmente, Gorbachov es quien descorre las cortinas para que la gente salga.

El capítulo quinto, “Chistes en Europa central y oriental” (pp. 275 a 335), selecciona y recopila el humor prohibido de Alemania, Bulgaria, Checoslovaquia, Hungría, Polonia, Rumania y Yugoslavia. La migración del humor fue una característica de todos esos países, y el mismo chiste podía contarse sobre Ulbricht, Ceaucescu o Rákosi: En Bucarest hay una larga fila de más de dos kilómetros para comprar pan. Uno de los posibles clientes, furioso, grita: “¡Voy a matar a Ceaucescu!”, y se va corriendo. Regresa una hora después y le preguntan: “¿Lo mataste?” “No, la cola allí era más larga…”.

Otro chiste, más específicamente nacional, referido a la fuerte religiosidad de los polacos y claramente subversivo, es el siguiente: Un político francés visita Polonia. El domingo expresa su deseo de ir a misa y se le asigna un alto funcionario para que lo acompañe.

“¿Es usted católico?”, le pregunta el francés.

“Creyente, pero no practicante”.

“Por supuesto, ya que usted es un comunista”.

“Practicante, pero no creyente”.

El último capítulo, “Humor y deslegitimación” (pp. 337 a 359), se discurre el tema de la legitimidad en la URSS y los países del bloque en Europa, donde el autor considera que los chistes reflejaban la crisis de los valores socialistas y el quebranto de su legitimidad, pues atacaban las bases y fundamentos mismos de la ideología, subvirtiendo al sistema y produciendo una inversión del mundo. Introduce aquí el pensamiento del ruso Mijaíl Bajtín, en La cultura popular en la Edad Media y en el Renacimiento. El contexto de Francois Rabelais, en que analizó el carnaval medieval y la conciencia popular, el divorcio entre el lenguaje oficial y la realidad concreta. Várnagy afirma que la incongruencia entre ambos se daba tanto en el Medioevo como en la Unión Soviética, y la naturaleza rebelde del carnaval y la risa fueron una fuerza liberadora y revolucionaria. El humor carnavalesco produjo la desestructuración de la cultura oficial y la deslegitimación del orden existente.

En síntesis, el autor tiene en cuenta que las tendencias centrales de los chistes apuntaban a los mismos fundamentos del sistema, abarcando un rango excepcionalmente amplio, desde aspectos de la vida cotidiana hasta los eventos políticos más importantes. Los chistes fueron una respuesta integral a todo el cuerpo doctrinario, desacreditando el carácter científico de la teoría y la práctica, y revelando la traición al pensamiento de los fundadores, lo que produjo una pérdida de legitimidad que subvirtió todo el esquema del bloque soviético.

El libro es un trabajo sumamente original, exhaustivo en el análisis del tema, con recopilación de materiales inexistentes en lengua española y, por momentos, tan divertido que resulta imposible no soltar una risa franca. Además, contiene una importante bibliografía (pp. 361 a 372) en varios idiomas y más de 80 ilustraciones poco conocidas (fotos, afiches y caricaturas).

Tomás Várnagy, húngaro‐argentino, es profesor de Filosofía, doctor en Ciencias Sociales y enseña Teoría Política en la Universidad de Buenos Aires.

Diego Hernando Gómez – Sociologo e historiador de la Universidad de Buenos Aires (UBA). Trabajo en la Universidad del Salvador y ETER. Argentina [email protected]

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Tempos diferentes, discursos iguais: a construção do corpo feminino na história – COLLING (RTA)

COLLING, Ana Maria. Tempos diferentes, discursos iguais: a construção do corpo feminino na história. Dourados: Editora da UFGD, 2014. 114p. LIMA, Nicolle Taner de. Questões que atravessam os tempos: os discursos e a construção do corpo feminino. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.8, n.18, p.451-456. maio/abr. 2016.

Alguns discursos atravessam os tempos. Podem mudar um pouco seus trejeitos, assumir uma nova roupagem, modificar seus termos, mas ainda impactam a vida das pessoas, seus valores, suas práticas cotidianas. “Tempos diferentes, discursos iguais: a construção do corpo feminino na história” trata desses discursos e nos leva a refletir sobre estas permanências, sobre a historiografia, acerca dos corpos femininos – nossos corpos – na História.

Em pouco mais de cem páginas, introdução e dois capítulos, poucas notas de rodapé e um texto leve e forte para ser lido em uma tarde, Ana Maria Colling1 demonstra que o corpo feminino não é apenas uma construção histórica, é uma confluência dos discursos religioso, médico, psiquiátrico, filosófico, pedagógico, psicológico, jurídico que, juntos, constroem o que é o feminino.

A autora inicia seu texto discutindo o silenciamento das mulheres na História, o fazer historiográfico como algo escrito por homens, sobre homens, para ser lido por homens: o “nós” do discurso universal é sempre masculino. Enfatiza, pois, a importância de se analisar a história sob a perspectiva de gênero e afirma que esta categoria pode nos ajudar a repensar a centralidade do discurso, reconhecendo o androcentrismo da história e questionando os modelos existentes.

Não só a história marginalizou durante muito tempo as mulheres como, junto a outras ciências, se entrelaçou nas tramas dos discursos que “(…) receitam o que é ser homem, o que é ser mulher, e os papéis sociais designados a ambos: descreve como se fazem as mulheres em determinada cultura; como se faz um corpo sexuado feminino” (p. 17).

Pensar a construção deste corpo feminino através das representações das mulheres que colaboraram para se estabelecer o pensamento simbólico que distingue os sexos, definindo os embasamentos teóricos do livro é o tema do primeiro capítulo intitulado “O lastro cultural do feminino”. Recorrendo as/aos autoras/es Linda Hutcheon, Guacira Lopes Louro, Joan Scott e Carole Paterman, Michel Foucault e Jaques Derrida, Colling faz uma defesa da História enquanto construção e da ideia de gênero enquanto diferença de sexos não ditada pela natureza, mas sim pela cultura e pela história.

No segundo tópico desse capítulo, “Michel Foucault, o discurso e as mulheres”, a autora elenca diversas contribuições do pensamento foucaultiano às teorias feministas. Entendendo o discurso como prática social, permeado pelas relações de poder, instalado nas práticas cotidianas, aparatos jurídicos, gestos e costumes, é possível se criticar essa produção discursiva, desnaturalizá-la, problematizá-la, enfim, descontruí-la. Para a autora, a crítica de Foucault ao universalismo e ao essencialismo ofereceu embasamento teórico para que se descontruam práticas, palavras e coisas…

“Tempos diferentes, discursos iguais” é o título do segundo capítulo. Nele, a autora demonstra que a “natureza feminina”, apesar de muitas vezes ser tratada como uma evidência dada, também foi forjada a partir de discursos que relacionavam as mulheres com a irracionalidade, a indiscrição, a histeria, a perversão, ao passo que este forjar também nos associou à fragilidade, moralidade, docilidade, intuição, sensibilidade. Seríamos muito indisciplinadas e irracionais demais, o que nos tornaria incapazes para governar, mas também muito frágeis, moral e emocionalmente; precisaríamos, portanto, por natureza, de sujeição.

A autora questiona essa “natureza feminina” lançando mão de diversos autores que contribuíram para a construção desse discurso e que legitimaram todo tipo de imposição de subordinação às mulheres. Inicia com o discurso filosófico, primeiramente com Platão e sua tese de que as mulheres não deveriam ter o mesmo estatuto dos homens, visto que pariam pessoas, e não ideias (p. 50); depois, Hipócrates e a hierarquização dos corpos a partir da geração, do homem como produtor e da mulher como reprodutora, ele como semente e ela como campo (p. 53); Aristóteles e a menoridade e debilidade das mulheres, visto que a natureza distinguia quem manda e que obedece (p. 55); passa para Jean-Jaques Rousseau e suas ideias sobre a educação pudica e moral que as mulheres precisariam receber (p. 61); e finaliza com Immanuel Kant, para quem nós, mulheres, seríamos memoráveis apenas pela beleza (p. 62).

O catolicismo e o protestantismo, os textos bíblicos e de seus representantes norteiam a discussão do tópico “Discurso Religioso”. A partir de uma discussão bibliográfica que põe em diálogo Padre Antonio Vieira, Calvino e Lutero, Tomás de Aquino e os papas João Paulo II e Bento XVI, a autora reflete sobre as ambiguidades com que estes discursos tratam as mulheres: a condenação bíblica do pecado, a censura da luxúria, a condenação à fogueira em oposição ao ideal mariano de bondade, ternura, maternidade.

Para “Discurso Médico”, a autora recorre a autores de diversas temporalidades, dos gregos ao Brasil Colônia, que utilizavam seus conhecimentos médicos através de experiências com mulheres, para legitimar seu papel na sociedade – o que compete à geração e criação dos filhos, à inferioridade e à sujeição. A curiosidade pelo útero e a aversão à menstruação também possuem espaço nessa discussão, bem como no tópico seguinte, que aborda os discursos psiquiátrico e psicanalítico.

Retomando textos produzidos por médicos a partir do século XVIII sobre a histeria, maternidade e sexo, além dos textos freudianos e sua descrição do feminino como passivo, atrofiado e invejoso do falo, Colling discute a histerização e a normatização do corpo feminino.

Conclui seu livro recuperando algumas ideias articuladas nos capítulos, reafirmando o caráter transgeográfico e transcultural da subordinação das mulheres, que se manteve – e ainda se mantém, mesmo que com outras vestes – através de discursos das mais variadas ciências e religiões. Incita que se escreva uma história que reconheça o processo histórico de exclusão de sujeitos e ao fim, questiona: o que se fará da história para transformá-la e superar a desqualificação do feminino?

Minhas críticas ao livro são escassas, porém há a necessidade de mencioná-las. Uma relação maior entre as permanências e rupturas desses discursos poderia ser interessante para verificarmos esses “discursos iguais” aos quais a autora se refere. Outra questão a se problematizar é a sentença “(…) Foucault libertou as mulheres da sua natureza, permitindo que pudessem tomar para si sua história” (p. 34). Apesar de sua preocupação e do caráter militante de sua obra, estudos feministas ocorriam concomitantemente à produção do filósofo; com todo respeito à autora e à contribuição de Foucault para repensar os discursos de subordinação das mulheres, o termo “libertar” causa o estranhamento e o incômodo – apesar deste ter fornecido as ferramentas para reflexão, esta libertação tem sido conquistada no embate das penas, canetas e teclados, nas universidades, fábricas e ruas, a duros saques e cotidianamente.

Por fim, e mais importante, talvez, seja a definição de qual é o corpo do qual se fala. Se questionamos o universalismo que pretensamente nos inclui à humanidade – os homens, no caso –, precisamos repensar que a categoria mulher também não é universal. Com o advento dos estudos pós-coloniais, decoloniais e, principalmente, das teorias do feminismo interseccional, é necessário pontuar: de que corpo se fala? Uma ponderação seria necessária para se explicar que, acredito, se refira ao corpo da mulher branca e ocidental.

O livro surpreende por seu denso conteúdo em um número tão pequeno de páginas – e tudo em uma linguagem bastante acessível e de leitura prazerosa. Faz-nos refletir sobre a história enquanto construção, sobre a pretensão de universalidade da história e seu sujeito universal, sobre o corpo feminino enquanto construção histórica, filosófica, jurídica, psiquiátrica, etc. Deixa ainda a provocação: o que faremos nós, mulheres, historiadoras, para desconstruir discursos que atravessam os tempos? 1 Ana Maria Colling é graduada em Estudos Sociais (1978) e Geografia pela UNIJUI (1980), possui Especialização em História da América Latina pela UFRGS (1982), Mestrado em História do Brasil pela UFRGS (1994) e Doutorado em História pela PUCRS (2000), com estágio na Universidade de Coimbra, Portugal. Atualmente, é professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Grande autora e pesquisadora, é reconhecida no campo de estudos de gênero por seus trabalhos que versam sobre mulheres e ditadura militar no Brasil, a construção histórica do corpo feminino e masculino e acerca das relações de poder e gênero na História, além de pensar as contribuições de Michel Foucault para o campo historiográfico.

Nicolle Taner de Lima – Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Bolsista CAPES. Brasil. E-mail: [email protected]

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Cena cosplay: comunicação, consumo, memória nas culturas juvenis – NUNES (RTA)

NUNES, Mônica Rebeca Ferrari (Org.). Cena cosplay: comunicação, consumo, memória nas culturas juvenis. Porto Alegre: Sulina, 2015. Resenha de: CUBA, Rosana da Silva. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.8, n.18, p.457-462, maio/abr., 2016.

O último Estado da Arte sobre a temática da(s) juventude(s) na produção da pós-graduação brasileira, nas áreas de Educação, Ciências Sociais e Serviço Social foi publicado em 2009 e coordenado por Marília Sposito. Na época, a autora celebra o aumento das pesquisas sobre as juventudes, mas ressalta a necessidade de abarcar os jovens em suas múltiplas inserções: para além dos seus itinerários formativos escolares é possível empreender investigações numa perspectiva mais transversal e compreender como se dão as sociabilidades juvenis na rua, em suas intersecções e atuações em grupos religiosos e família, enfim, abarcar os diversos aspectos que compõem a vida cotidiana juvenil. Neste sentido, o livro organizado por Mônica Rebecca Ferrari Nunes, intitulado “Cena Cosplay: comunicação, consumo, memórias nas culturas juvenis” contribui para enriquecer o mosaico das pesquisas sobre jovens ao conjugar, em diferentes espaços e tempos, as categorias empíricas para uma compreensão dos jovens e a sua inserção no espaço urbano nas grandes cidades do sudeste do Brasil.

Mônica Rebecca Ferrari Nunes é docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo, da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), na cidade de São Paulo. Sua área de atuação envolve as áreas de comunicação, nas interfaces de produção midiática, cultura do consumo, processos de memória e cenas da cultura contemporânea.

O livro, segundo a autora, é uma proposta de cartografia, ainda que incompleta, sobre a prática cosplay entendida na tríade prática comunicativa, cultura e consumo. O livro é resultado de trabalho desenvolvido em grupo de estudos (Grupo de Pesquisa, Comunicação, Consumo e Entretenimento) da ESPM e vinculado ao CNPQ, e é organizado em seis partes: Cosplayers e poetas; Percepção, cognição e pertencimento; Moda e estilo urbano; Matérias sonoras; Games e colecionismo; Flânerie. Os textos que compõem a obra são de pesquisadores vinculados ao Grupo de Pesquisa e situados em diversos percursos acadêmicos, desde mestrandos a pós-doutores, imbuídos de um olhar comum: entender as relações dos jovens do Sudeste do Brasil com o cosplay, suas escolhas pelas representações, a relação com o consumo e a memória que se deseja construir.

A primeira parte é composta por dois trabalhos, de autoria da organizadora – Mônica Rebecca Ferrari Nunes – e de Marco Antônio Bin. Os dois textos versam sobre a compreensão da cena cosplay e da poesia marginal como formas de resistência ao cotidiano, materializadas em performances, sejam elas constituídas pelo prazer de encenar e pela captura dos ídolos para se fazerem ver e ouvir – caso dos cosplayers – ou pela ruptura com as mídias tradicionais e busca de uma visibilidade coletiva – caso dos poetas marginais. Os dois textos denotam para a necessidade de uma compreensão do cosplay juvenil como uma manifestação processual e cultural híbrida, entrelaçando formas de sociabilidades e constituição de identidades e fugindo de um olhar maniqueísta, segundo o qual os jovens cosplayers seriam meros consumidores e/ou reprodutores de ídolos midiáticos.

A segunda parte apresenta dois trabalhos que buscam se debruçar sobre as escolhas dos jovens que desejam e optam por serem cosplayers e a consciência que têm de si mesmos e de seus corpos. Ana Maria Guimarães Jorge e Gabriel Theodoro Soares assinalam o quanto o cosplay deve ser como interpretado não só como prática social, mas também como manifestação social, na medida em que o processo de constituição das identidades na contemporaneidade é marcado pela liquidez (Bauman, 2004). Assim o cosplay é uma possibilidade de constituir grupos para compartilhar vivências e, ainda, escolher representar um personagem que corresponda a determinados valores e significados com os quais há afinidade. Os dois textos constatam a relação entre o cosplay e a busca por um sentido à vida, numa espécie de jogo que propicia um tipo de fuga à vida cotidiana e promove o encontro consigo mesmo e com os seus pares. Essa fuga, contudo, não seria simplesmente fugir à ordem social vivida, mas a construção de outro espaço-tempo com uma ordem própria e condições de pertencimento.

A terceira parte compõe-se de dois textos que tratam sobre moda e sobre como o estilo cosplay influencia e se expande para outros campos. O texto de Tatiana Amendola Sanches aponta vários exemplos de apropriação, por parte de grandes marcas, de estratégias similares aos cosplayers, com modelos vestidos de determinados personagens. Michiko Okano, por sua vez, apresenta as características da “Lolita”, prática que é definida pelos participantes muito mais como um estilo de vida do que como uma subcultura ou cosplayers, seja no Japão ou no Brasil. São analisadas as particularidades e o que há de comum em Lolitas nos dois países e salienta-se que há processos ambíguos que conjugam espetacularização, contestação e a procura de lugar e identificação em uma sociedade que se mostra hostil. As autoras destacam a articulação de consumo e ludicidade que parece constituir-se numa resistência ao mundo adulto e moderno desencantado.

A quarta parte, intitulada Matérias sonoras traz as contribuições de Luiz Fukushiro e Heloísa de Araújo Duarte Valente, em texto que discute a presença da música no universo cosplay: muitos dos cosplayers, ao se apresentarem, adquirem, não apenas as vestimentas, mas, também, as vozes dos seus personagens. Além das vozes, a música constitui-se num elemento chave dos eventos cosplay, e, embora o mercado, de forma geral, não aceite o j-pop (uma apropriação japonesa do pop do Ocidente), ele é abarcado pelos cosplayers. Vera da Cunha Pasqualin, no texto seguinte, destaca o quanto é importante atentar-se para as onomatopéias maciçamente presentes nos mangás e tão importantes quanto as imagens para a compreensão do texto. A autora também analisa as performances de “vocaloides”: pessoas que utilizam um programa para computadores denominado Vocaloid, com vozes gravadas e que podem ser recombinadas, para se apresentarem e cantarem em uma língua que não conseguiriam falar, por exemplo.

A penúltima parte é formada pelos textos de Davi Naraya Basto de Sá e Wagner Alexandre Silva, em torno da temática dos games e do colecionismo. Sá analisa o quanto os games redefinem a memória da mitologia, atualizando estereótipos em um processo constante de reedição. O autor também faz referência à constituição identitária daqueles cosplayers que escolhem determinados personagens: as pessoas são aquilo que desejam consumir. Silva irá mostrar como o colecionismo ligado aos cosplayers difere, em certa medida, da tradição das coleções já estudada pelo filósofo Benjamin. A aquisição dos objetos ocorre também por seus usos e aproximações com determinado personagem, pavimentando a relação de transição de cosplayer a colecionador, relação esta que pode tornar-se mais estreita quando se aumentam os cosplayers que se deseja assumir.

A sexta parte, Flânerie, propõe um passeio por fotografias feitas pelos pesquisadores ao longo de suas pesquisas.

O livro pode ser comparado, imageticamente, a um caleidoscópio que fornece combinações diversificadas à luz do cosplay. Além de proporcionar um aprofundamento ao universo cosplay juvenil presente na região Sudeste do Brasil, contribui para pensar também nas metodologias para se estudar as juventudes. A organizadora cita, por exemplo, a experiência de ter entrevistado duas pessoas que fazem cosplayers via Facebook. Ainda, apresenta uma alternativa à Antropologia, área na qual não tem formação, combinando uma flanêrie e um “engajamento narrativo” com origem em Benjamin e, posteriormente, McLaren.

Por fim, a obra também contribui para debater o consumo na contemporaneidade e o quanto é preciso calibrar o olhar ao debruçar-se sobre a semiosfera cosplay: em tempos modernos – ou pós-modernos – já não é possível compreender as culturas juvenis e a sua relação com o consumo buscando uma motivação linear e unívoca. Temos sujeitos de habitus (Bourdieu) híbridos e, portanto, com identidades que se mesclam e metamorfoseiam, confundindo olhares mais aligeirados.

Referências

NUNES, Mônica Rebecca Ferrari (org.). Cena cosplay: comunicação, consumo, memória nas culturas juvenis. Porto Alegre: Sulina, 2015.

SPOSITO, Marilia Pontes (coord.) Estado da arte sobre juventude na pós-graduação brasileira: educação, ciências sociais e serviço social (1999-2006), volume 1. Belo Horizonte, MG: Argvmentvm, 2009.

Rosana da Silva Cuba – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. Brasil. E-mail: [email protected]

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Dos braços do povo à espada dos militares: os anos de chumbo na Froneira Sul (1964-1970) – SILVA (RTA)

SILVA, Claito. Marcio da. Dos braços do povo à espada dos militares: os anos de chumbo na Fronteira Sul (1964-1970). Forianópolis: Pandion, 2014. Resenha de: SIQUEIRA, Gustavo Henrique. Ditadura civil-militar, cassações políticas e História em Chapecó. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.8, n.17, p.403-408. Jan./abr. 2016.

Passados dois anos do cinquentenário do golpe militar de 1º de abril de 1964 no Brasil, as pesquisas em torno do tema sob variadas perspectivas tomam conta da academia na forma de realização de eventos, publicação de dossiês em revistas e livros. Muito embora o golpe e a ditadura civil‐militar que o sucedeu tenham sido debatidos na academia – e fora dela – desde antes do término do período autoritário, foi no distanciamento temporal do acontecimento que se multiplicaram os estudos e se pluralizaram as vertentes explicativas. Se até pouco tempo atrás a ditadura civil‐militar era pesquisada enfocando‐se quase que exclusivamente os grandes centros urbanos brasileiros, relegando a história do interior nesse período ao segundo plano da historiografia, nos últimos anos ela tem sido levantada por pesquisadores que demonstram a complexidade e a existência de operações repressivas também nas cidades menores do país. Esse é o caso do livro Dos Braços do povo à Espada dos Militares, de autoria de Claiton Marcio da Silva, publicado em 2014 pela editora Pandion.

Claiton Marcio da Silva é natural do oeste do Estado de Santa Catarina e doutor em História pela Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). Sua área de pesquisa inclui os temas da ditadura civil‐militar em Santa Catarina, a formação de jovens rurais nos Clubes 4‐S e a cooperação de órgãos internacionais na modernização da agricultura. Atualmente, Silva é professor do Departamento de História da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Chapecó, e vinculado aos Programas de Pós‐Graduação em História da UFFS e da Universidade Estadual do Centro‐Oeste (UNICENTRO), no Paraná.

O título do livro refere‐se a uma fala do ex‐prefeito de Chapecó, Sadi de Marco, cassado em 1969: “subi nos braços do povo e desci tangido pela espada dos militares”. A obra, segundo o autor, foi pensada com base em dois artigos produzidos em 1997 sobre o período que vai do golpe de 1964 à cassação de Sadi José de Marco, e sobre as eleições para o executivo municipal de 1969, revisitados e reestruturados por Silva para a produção do livro. Os dois artigos se tornaram duas partes da obra, a primeira relativa ao contexto político local que envolve as relações entre os atores e partidos políticos a partir do golpe de Estado, contemplando as cassações de Sadi de Marco (PTB) e Genir Destri (MDB), e a segunda relativa às eleições de 1969 que discute os “ecos das cassações” e o processo conturbado pelo qual passou a realização do pleito.

Os primeiros capítulos da primeira parte são reservados à análise do anticomunismo e da legitimação dos Atos Institucionais baixados pelo governo autoritário, passando pelo período em que a Aliança Social Trabalhista (PTB e PSD) esteve vigente e elegeu dois prefeitos petebistas em Chapecó, demonstrando que as relações entre a situação e a oposição consistiam em uma disputa pelo poder local e não em uma disputa de dois projetos de sociedade contraditórios. A partir dessa contextualização, o autor aborda a extinção dos partidos políticos com o Ato Institucional nº 2 (AI‐2) de 1966 e o processo de formação da Aliança Renovadora Nacional (ARENA) e do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) no município, tocando, ainda, a composição da Câmara de Vereadores de Chapecó em 1962 e 1965 e a violência ocorrida no município logo após o golpe, deflagrada na forma de prisões temporárias de petebistas e onde alguns políticos relataram sofrer tortura física e psicológica.

Em seguida são reservados três capítulos para a análise do tema que se destaca no livro de Silva: a gestão e a cassação do prefeito de Chapecó, Sadi José de Marco (PTB). Após expor as principais características da administração do prefeito – embelezamento da cidade, a realização da primeira Exposição Feira Agropecuária e Industrial (EFAPI), as impressões do jornal Folha d’Oeste sobre de Marco e a eleição dele pela Associação Oestina de Imprensa e Radiodifusão como “administrador do ano” por dois anos consecutivos –, o autor parte para a análise dos ataques que o prefeito recebeu da oposição representada por Ivo Patussi (PSD e ARENA) e Rivadávia Scheffer (UDN e ARENA) na gestão do executivo municipal, na qual Silva apresenta a “trama” dessa disputa utilizando como fontes o referido jornal Folha d’Oeste, atas de sessões da Câmara de Vereadores de Chapecó e depoimentos de ex‐políticos como Rodolfo Hirsch (ARENA), Rivadávia Scheffer, Ferdinando Damo (PTB e MDB), Odilon Serrano (PTB e ARENA), Félix Trentin (PSD e ARENA) e o próprio Sadi de Marco, realizados na década de 1990 pelo autor e pela socióloga Monica Hass.

Os sucessivos ataques recebidos pelo ex‐prefeito, segundo o autor, se explicam pelo crescimento que Sadi de Marco, com 27 anos na ocasião, apresentava no âmbito municipal e pelas projeções políticas que se faziam do petebista para Santa Catarina, quando era tido como provável deputado estadual. As seguidas derrotas do grupo udenista e arenista (cabe afirmar que os dois últimos prefeitos eleitos pela Aliança Social Trabalhista, João Destri e Sadi de Marco, eram petebistas) ocasionaram uma ofensiva do partido dos militares contra os trabalhistas em Chapecó, atingindo principalmente Sadi e o também petebista e emedebista Genir Destri (deputado estadual e filho de João Destri) na forma de cassação dos seus mandatos. Antes de ser cassado por força do Ato Institucional nº 5, em abril de 1969, Sadi José de Marco enfrentou duas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI), uma solicitada, que não chegou a ser aberta, e outra que obteve prosseguimento e foi arquivada graças ao voto de vereadores arenistas que se dividiram dentro do partido, um acontecimento pelo qual que Silva evidencia para o leitor as relações complexas que permeavam a política local independentemente das determinações das agremiações partidárias, esclarecendo, assim, que a política chapecoense naquele contexto esteve diretamente influenciada por relações e interesses pessoais, além da constante disputa pelo poder no âmbito partidário presente na antiga dicotomia PSD x UDN e conservada dentro da ARENA (formada majoritariamente, no país todo, por antigos pessedistas e udenistas).

Encerrando a primeira parte do livro, o autor discute a cassação do deputado estadual Genir Destri, também em 1969. Nesse capítulo é apresentada a trajetória de Genir e as relações que cultivou no meio comercial e político através de seu pai, João Destri1, além da experiência estudantil e acadêmica, que o influenciaram no início da carreira política. Com um crescimento notável no cenário estadual, Genir Destri foi fundador e presidente do Movimento Democrático Brasileiro de Santa Catarina, popularidade e exposição que também lhe renderam a cassação do mandato. Silva evidencia que as cassações locais tiveram relação mais clara com a ação de opositores que gravavam discursos de petebistas e emedebistas para “denunciá‐los” a instâncias do poder federal em Brasília. Além disso, a presença de informantes da ditadura civil‐militar no município através do Serviço Nacional de Informações (SNI) teve uma considerável parcela de responsabilidade no caso. no mesmo ano, o clima político local era de que o pleito não aconteceria e seria nomeado um interventor para o cargo. A iniciativa emedebista e a confiança arenista na vitória eleitoral terminaram por confirmar a realização da votação. A ARENA, que até então não havia elegido nenhum prefeito em Chapecó, apostou em João Valvite Paganella e Arcizo Barbieri em suas sublegendas, enquanto o MDB apostou em Nelson Testa e João Destri. Para o autor, os cassados Genir Destri e Sadi de Marco tiveram grande reponsabilidade pela vitória do MDB neste pleito, criando em torno de si uma aura de injustiçados pela ditadura, relembrando das atuações positivas que tiveram e da arbitrariedade pela qual tiveram seus direitos políticos suspensos. A vitória do industrialista/comerciante João Destri em 1969, todavia, não representou um projeto de cidade diferente daquela difundida pelos arenistas locais, consistindo na aposta do desenvolvimento local, no comércio e na infraestrutura que visavam facilitar a instalação e consolidação das agroindústrias nascentes do município. Esse aspecto indica, portanto, que a disputa pela prefeitura nesse contexto girava em torno do poder e não por outra concepção de governo. Nem sequer Sadi de Marco representava uma vertente radical do PTB, sendo cassado por causa de uma carreira promissora na política e não pelos seus atos como prefeito.

Por fim, Silva destaca que a participação da sociedade civil nas denúncias contra os emedebistas moderados, acusando‐os de “comunistas”, foi fundamental na concretização das cassações e perseguições políticas. Mesmo sem maiores divergências na práxis institucional, as lideranças do MDB representavam um obstáculo para a ARENA, que até 1973 não conseguiria ascender ao executivo municipal, inclusive durante o período do dito “milagre econômico” (1968‐1973) e com o conjunto de legislações arbitrárias promulgadas pelo governo federal para facilitar a vitória arenista (como, por exemplo, o voto em sublegenda que pretendia apaziguar as rivalidades entre PSD e UDN dentro da ARENA e canalizar os votos para o partido).

Este livro é publicado em boa hora nacional e local. Apresenta claramente as consequências que o país pode enfrentar em momentos de exceção do ponto de vista legislativo e coercitivo, além de lembrar os episódios violentos pelos quais Chapecó já passou (o linchamento de 1950 e o “suicídio” à moda Herzog do vereador petista Marcelino Chiarello em 2011, por exemplo), fazendo‐nos contrariar José Murilo de Carvalho e colocando frequentemente o questionamento sobre a permanência de uma prática coronelista na região. A obra de Silva, portanto, não oferece meras curiosidades de figuras conhecidas da política local, oferece conhecimentos indispensáveis a quem procura entender a lógica política local e identificar, na atualidade, suas continuidades.

Gustavo Henrique de Sigueira – Mestra em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. Brasil. E-mail: [email protected].

L’incendie planétaire. Que fait l’ONU? – DEJAMMET (RTA)

DEJAMMET, Alain. L’incendie planétaire. Que fait l’ONU? Paris: Cerf, 2015. Resenha de: SILVA, Daniel Afonso. Da Organização das Nações. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 7, n.16, p. 299 ‐ 303, set./dez. 2015.

O fim do conflito Leste‐Oeste modificou a densidade e a qualidade de todas as ações no meio internacional. Os Estados Unidos acreditaram ter ganhado a guerra fria e decretaram o fim da história. Doravante o mundo inteiro serviria pretensamente aos seus preceitos liberais marinados no american way of life. Mas as fraturas no modelo não tardaram a aparecer. Os europeus estavam em vias de consolidar uma nova Europa. Iugoslávia e Iraque demandavam atenção especial dos defensores da nova ordem mundial. Ruanda e Sérvia mostravam a impotência das potências. Os sul‐americanos iam‐se acomodando no Mercosul e em suas novas repúblicas ávidas por democracia. Os russos iam aprendendo a viver depois da URSS. Os chineses e indianos planificavam o seu novo lugar ao sol. Os africanos iam amargando o choque da descolonização. De súbito, veio o 11 de setembro de 2001 e com ele a revanche de todos aqueles, especialmente muçulmanos, retirados, anteriormente, da história. Seria o choque de civilizações? Não demorou a demonização do Oriente Médio e o apelo à perseguição sem fim do inimigo sem rosto nem nome encarnado no terror. Iraque e Afeganistão voltam às páginas dos jornais. Estados Unidos e seus aliados investiram contra eles. E eis que surgem os BRICs, a quintessência dos países emergentes. Mas Egito, Turquia, Líbia continuavam às voltas com suas tensões por não serem países ricos nem emergentes. Da Eurásia, georgianos e ucranianos reivindicam a soberania nacional de sua integridade territorial enquanto no Cáucaso a demanda segue pelo direito de autodeterminação. Em meio a isso irromperia a crise financeira de 2007‐2009. A recomposição de forças vai‐se impondo. Os 99% começariam a bradar mais forte contra os do 1%; e da ocupação de Wall Street insuflaram a ocupação da praça Tahrir e de outras praças. A primavera dos povos árabe estava, assim, em marcha. Da Tunísia ao Egito, ao Barein, ao Mali, à Líbia, à Síria, a palavra de ordem era modificar seus mandatários. Alguns conseguiram; outros não. Mesmo aos observadores acostumados com as turbulências do mundo contemporâneo, a aceleração dos fenômenos e das crises aflige e constrange.

Haja agonia e haja história.

Mas mais pela agonia que pela história, justamente após o conflito Leste‐Oeste, a instituição que surgiu após o conflito 1939‐1945, de nome Nações Unidas, voltou a protagonizar a resolução de conflitos e a promoção da paz. Teria ela conseguido? Essa pergunta nada ingênua e muito consequente representa a discussão central de L’incendie planétaire de Alain Dejammet.

Às voltas com as comemorações dos setenta anos das Nações Unidas em 2015, esse experiente diplomata francês e profundo conhecedor da estrutura onusiana põe em perspectiva a atuação da Organização e evoca suas profundas contradições internas de 1991 aos nossos dias, mostrando como ela vem atuando nessa reconfiguração do mundo após o fim do conflito Leste‐Oeste.

Ele ressalta que desde a gestão de Boutros Boutros‐Ghali (1992‐1996) a obsessão por reforma tomou conta das Nações Unidas. Após a paralisação de grande parte de suas atividades durante o conflito Leste‐Oeste, os anos de 1990 assistiram a sua hiperatividade. Grandes conferências em torno de temas como clima, população, racismo, direitos humanos, direitos das mulheres, habitação deram mostra de sua performance, mas não resolveram seus problemas internos. Desde seus inícios, os membros das Nações Unidas preferiram cooperar mais em pequenos grupos que com o conjunto dos participantes que hoje correspondem a 194. Isso denota desconfiança entre todos, o que acaba por impedir reformas. O caso do Conselho de Segurança talvez seja dos mais emblemáticos.

Ele avalia que, desde a fundação das Nações Unidas em 1945, os autoproclamados vencedores da segunda guerra mundial – Estados Unidos, Reino Unido, Rússia, China e França – concorrem para a manutenção da paz com seu direito a vetar ou liberar a atuação da organização na gestão de crises internacionais. O passar dos anos foi permitindo a ampliação dos membros consultivos, mas engajados como não‐permanentes. Ao menos a partir de 1994, foi‐se fazendo algum consenso pela inclusão de mais membros como permanentes. Do lado europeu, a Alemanha estaria na frente da disputa. Mas sua entrada imporia a discussão do ingresso de outros pretendentes de importância como a Itália e a Espanha. Do lado latinoamericano, o Chile e a Argentina manifestam dificuldades em apoiar as intenções brasileiras em ser membro permanente. Na Ásia cabe ao Paquistão desconfiar das manobras dos indianos. Na África inexiste consenso diante da possível candidatura da África do Sul. O caso japonês segue dos mais complexos por causar constrangimento entre norte‐americanos, russos e chineses

Em sua perspectiva, o Conselho Econômico e Social, menos conhecido e pouco difundido pela imprensa, possui importância decisiva e suscita o mesmo debate. Ao menos desde os anos de 1975 ele gravita sobre o G7, tornado G8 nos anos de 1990 e ampliado, em ocasiões, em G20 nos anos 2000. Esses grupos acabam por imprimir seus interesses no Banco Mundial, no Fundo Monetário Internacional e na Organização Mundial do Comércio. Mas como aceitar – pergunta‐se Dejammet – que, entre os africanos, somente a África do Sul faça parte do grupo e, entre os países árabes, somente a Arábia Saudita?

Além da “imperfeição” dos Conselhos, ele ainda chama a atenção para o desprezo dirigido à Secretaria Geral das Nações Unidas. Mostra que existe pouco consenso diante da atuação dos secretários gerais, mas todos vêm exercendo suas funções sob o imperativo da discrição sugerido pela Carta das Nações Unidas. Lembra que Dag Hammarskjöld (1953‐1961) foi enfático na defesa de saídas para as crises em Suez e no Congo. Maha Thray Sithu U Thant (1962‐1971) pediu mais atenção à Ásia. Kurt Waldheim (1972‐1981), ao Oriente Médio. Javier Pérez de Cuellar (1982‐1991), diante dos conflitos no Iraque, no Irã e na América Central. Boutros Boutros‐Ghali (1992‐1996), pelas operações na Iugoslávia e no mar vermelho. Koffi Annan (1997‐2007), contra os norte‐americanos em sua investida no Iraque. Ban Ki‐Moon (2008 ao presente), pelas crises humanitárias.

Dejammet ainda lembra que, às voltas com seus setenta anos de existência, as Nações Unidas organizam entre trezentas e quatrocentas reuniões anuais dispondo de um orçamento de 3 bilhões de dólares para despesas ordinárias e 8 bilhões de dólares para operações de manutenção da paz. Os Estados Unidos são os que mais contribuem, 22%, seguidos de Japão, 14%, Alemanha, 8%, França e Reino Unido, 6%, China, 5%, Rússia, 3% e todos os demais menos de 1,5%. Isso indica que a máquina burocrática onusiana ficou deveras pesada e custosa. Entretanto, reformá‐la, advoga Dejammet, continua sendo um desafio mais e mais distante mesmo diante desse torvelinho de transformações internacionais que suscitam cada vez mais o reforço das estruturas estabelecidas. Uma efetiva reforma dependeria, segundo ele, “da parte de todos, mais escrúpulos, humildade, consideração pelos motivos coletivos, ou seja, um pouco mais de conhecimento de história e geografia”. Essa franqueza permeada de clareza absoluta no domínio dos meandros das Nações Unidas, que está presente em todo o livro, é que faz de L’incendie planétaire de Dejammet uma leitura indispensável.

Daniel Afonso da Silva – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e professor‐pesquisador no Ceri‐Sciences Po de Paris. França. E-mail: [email protected].

Les présents de l’historien – GARCIA (RTA)

GARCIA, Patrick. Les présents de l’historien. Paris: Publications de la Sorbonne, 2014, 221 p. (Collection “Itinéraires”, 6). Resenha de: CARVALHO, Raphael Guilherme de. Escrita de si e história da historiografia. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 7, n.15, p. 243 – 248, maio/ago. 2015.

A contar dos anos 1980, observa-se uma viva articulação dos campos científico e social, com a memória ocupando a centralidade das preocupações da disciplina histórica. Enquanto “historiador do tempo presente” (p. 140), Patrick Garcia dedica-se ao exame das comemorações e utilizações públicas da história, vista como saber privilegiado na construção de identidades sociais e políticas.1 A emergência e afirmação da história do tempo presente contribuiu para esta agenda de pesquisas em torno dos usos públicos do passado, à qual considera “necessidade imperiosa em uma sociedade democrática” (p. 178). Outro canteiro de pesquisas para o qual concorre efetivamente a história do tempo presente é o da epistemologia da história, que liga os regimes de historicidade e historiográfico contemporâneos. Agora, quando os historiadores se lançam a publicar sua própria trajetória, escrita por eles mesmos, estamos diante de uma valorização extrema da postura reflexiva. O autor alude mesmo a certa democratização do gênero ego-história (p. 20), que teve em Pierre Nora (1987) seu ponto de partida.

Les présents de l’historien integra a coleção “Itinéraires” (v. 6), dirigida por Patrick Boucheron nas “Publications de la Sorbonne”. O objetivo da coleção é a publicação de uma peça do dossiê de defesa da “Habilitation à diriger des recherches” (HDR)2, a parte relativa à “Memória de síntese das atividades científicas” dos candidatos ao diploma. A HDR, que desde 1984 veio substituir a antiga “thèse d’État”, é atualmente o mais alto título do sistema universitário francês, o qual permite ao seu portador candidatar-se ao cargo de professor universitário e diretor de tese. Este memorial, contudo, não possui maior precisão normativa (p. 14), o que acaba por favorecer o debate em torno de sua constituição e possíveis usos. Boucheron, por exemplo, deplora as tentativas de ego-história. Refere-se aos memoriais como “literatura cinzenta”,3 pois que destinados originalmente à leitura de um júri – de certa forma, em contradição com a iniciativa de dirigir a coleção. Patrick Garcia sustentou sua HDR em 2011, diante de P. Ory, C. Grataloup, F. Hartog, B. Jewsiewicki, H. Rousso e J-F. Sirinelli. O dossiê era composto, além do memorial, de um ensaio inédito, “Grammaires de l’incarnation: les présidents de la République et l’histoire (1958-2007)”, e uma coletânea dos artigos produzidos ao longo da carreira. Seu “memorial” vem a público, portanto, com o título Les présents de l’historien, que exprime uma trajetória assumidamente posta em coerência a posteriori, mas não por isso incontingente. O título denota, então, a inteligibilidade de sua trajetória em presentes entrelaçados (p. 166). Esta estratégia é evidenciada também na divisão do livro em três partes principais, que, embora comportem algum sentido sempre necessário, quase nada possuem de estritamente retilíneas.

Em “Da política à história do político”, primeiro capítulo, o autor aponta que lhe parece indiscutível o gosto pela história ter sido contraído através das atividades políticas, ainda que presentemente a escreva não para servir às suas convicções, antes para interrogá-las (p. 22). Em 1986, foi aceito no doutorado por Michel Vovelle – de quem se aproxima também em razão de afinidades políticas –, para trabalhar, curiosamente, a respeito de “um evento que não tinha ainda acontecido”, as comemorações do bicentenário da Revolução Francesa (p. 38). Seria o doutorado, concluído em 1994, o momento de definição integral pela disciplina histórica e ruptura com o Partido Comunista francês (p. 39). Assume, então, outra forma de militância, intelectual (p. 45).

O segundo capítulo, “Lugares de História”, concentra-se na pluralidade de seus “lugares institucionais”, seguindo a fórmula de Michel de Certeau. Refere-se primeiramente a um trabalho coletivo em torno da revista EspacesTemps. Seria o “polo historiador” da revista o local de nascimento de uma associação intelectual, à qual se refere pelo acrônimo “DDG”. Trata-se da parceria com C. Delacroix e F. Dosse (p. 55). Em 1998, eles investem em uma aproximação com o “Institut d’Histoire de Temps Présent” (IHTP/CNRS), que passa a alocar o seminário “Figuras contemporâneas da epistemologia da história” – em atividade permanente; este seminário deu origem a publicações relevantes.4 A partir da experiência e das necessidades do ensino constatadas no “Institut Universitaire de Formation des Maîtres” (IUFM) de Versailles – mais tarde incorporado à Université de Cergy-Pontoise – veio a público (1999) o trabalho coletivo “Correntes Históricas na França” (trad. Ed. FGV, 2012). O grupo, mais Nicolas Offenstadt, também coordenou significativa obra de referência: “Historiographies: concepts et débats” (2011, 2 vols.). Esta se pretende uma atualização do único dicionário historiográfico até então disponível em língua francesa, ademais, “dicionário de uma escola [dos Annales]” (p. 61), de André Burguière (1986). Garcia, enfim, define seus “lugares de história” (EspacesTemps, “DDG”, IUFM, IHTP) como frágeis ou mesmo marginais. Por exemplo, associado ao IHTP, mas não pesquisador efetivo do organismo financiador, o CNRS, tem aí uma participação estritamente intelectual (p. 66). Diz apreciar, contudo, a liberdade proporcionada por esta “institucionalização fraca” (p. 87).

“Campos, posições e desafios” é o terceiro capítulo, consagrado aos temas e objetos de pesquisa. Simultâneos, e não sucessivos, derivam dos lugares e projetos que correm ao largo, ora se cruzando, ora em paralelo (p. 90). São eles, principalmente, a epistemologia da história, em processo atual de plena inscrição da historiografia em primeiro plano no conjunto maior da disciplina histórica (p. 125-6). Igualmente, a evolução da comemoração aos usos públicos do passado, desde a sua tese, passando pelo estudo das cerimônias recentes de “panteonização”, até o seu dossiê de HDR sobre o uso da história em discursos oficiais pelos presidentes da Va. República. Neste ponto, constata o abismo entre as interpretações de historiadores profissionais e as leituras da história para uso político, o que, mesmo descartando o monopólio do passado pelos historiadores, suscita diversas problematizações (p. 136). Enfim, e especialmente, a história do tempo presente, noção com a qual identifica a coerência de seu trabalho e sua posição como historiador. Empenha-se em um ensaio de genealogia da noção, no fito de refutar algumas críticas – notadamente de Antoine Prost, que lhe recusa qualquer particularidade epistemológica. Garcia, porém, depende bastante das teses de Henry Rousso (La hantise du passé, 1998), para quem a história do tempo presente é a dos usos presentes do passado, sobretudo de um passado que, na palavra e experiência dos indivíduos viventes, permanece atuante sobre a memória coletiva (p. 147). Neste sentido, é notável a sua difusão global, no desafio de historicizar passados traumáticos recentes, como é o caso da América Latina (p. 158). Embora não apresente uma definição própria, sublinha que se trata da forma de escrita da história que, inscrita em campo de tensões, além de privilegiar a postura reflexiva, mais efetivamente contabiliza as relações passado/ presente (p. 171).

A obrigação de produzir estes memoriais pelos candidatos à HDR, o autor a vê como oportunidade de confrontação com a chamada ego-história5. Além disso, e sobremaneira, a análise do conjunto destes memoriais é considerada fonte incomparável para uma cartografia da comunidade historiadora, “precioso aporte à sociologia do métier de historiador” (p. 20). Reside nessa consciência, a meu ver, o valor central do livro. O seminário “escrita de si dos historiadores”, no IHTP,6 procura atualmente realizar esta ambição. Problematiza-se aí a inscrição das evoluções historiográficas desde os anos 1980; a estruturação da profissão em termos de posições institucionais e redes de sociabilidade; ou, ainda, a memória disciplinar mobilizada nos memoriais.

Privilegiei aqui, em lugar de resumo exaustivo, compreender o lugar do livro e a estratégia de entrelaçamento de presentes, coerente com a démarche científica e a identidade profissional específica reivindicada pelo autor. O leitor depara-se frequentemente com o inusitado, os acasos. Também com a autojustificativa das razões intelectuais que presidiram suas obras, engajamentos e sociabilidades. Um bom roteiro, enfim, aos jovens pesquisadores em formação e a todo aquele interessado em melhor conhecer algumas particularidades da disciplina no sistema universitário francês.

Dada a vazão da subjetividade proporcionada pela escrita de si, estamos distantes de uma “literatura cinzenta”. É indisfarçável, por exemplo, a comoção com que o autor relembra as participações de R. Koselleck e P. Ricoeur no seminário do IHTP (p. 57). A proposta de servir à sociologia da profissão, ou à história da historiografia (p. 17), desmancha qualquer suposição de mero intento narcísico. Não desfaz, contudo, a necessidade de inscrição em prática e tradição específica, nem certa projeção subentendida, expedientes que parecem quase incontornáveis na historiografia. 1 A ilustração da capa é, neste sentido, bastante expressiva. Trata-se da reprodução de uma aquarela, “Transfert des cendres d’André Malraux” (Patrick Legrand, 1996), que representa a cerimônia de “panteonização” do escritor e ministro de Estado em matéria cultural, André Malraux (1901-1976). O autor publicou estudo a respeito: GARCIA, P. Jacques Chirac au Panthéon. Le transfert des cendres d’André Malraux (23 novembre 1996). Sociétés & Représentations, n° 12, 2001, p. 205-223.

2 As traduções, pelo autor desta resenha, são livres. Em alguns casos, dos títulos, designativos e expressões, optou-se por manter os termos originais –postos entre aspas –, em razão da especificidade de seu contexto.

3 BOUCHERON, P. Faire profession d’historien. Paris: Publications de la Sorbonne, 2010 (Collection Itinéraires), p.

4 É o caso das obras Michel de Certeau, les chemins d’histoire (Éditions Complexe, 2002), com Michel

5 F. Dosse sugere a ideia de um desenvolvimento involuntário do gênero a partir dos memoriais de HDR. DOSSE, F. Pierre Nora:homo historicus. Paris: Perrin, 2011, p. 389.

6 Entre 2013 e 2015 o seminário “Figuras contemporâneas da epistemologia da história” abriga o programa “Histinéraires: la fabrique de l’histoire telle qu’elle se raconte” (ANR), que associa o Centre Georges Chevrier (Dijon), o IHTP (Paris), o LARHRA (Grenoble-Lyon) e TELEMME (Aix-Marseille)” em ampla investigação sobre a “escrita de si dos historiadores”. Cf. http://crheh.hypotheses.org/290.

Raphael Guilherme de Carvalho Doutorando no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Paraná (PGHIS/UFPR). Brasil. E-mail: [email protected].

Sobre o estado: cursos no Collège de France (1989-1992) – BOURDIEU (RTA)

BOURDIEU, Pierre. Sobre o estado: cursos no Collège de France (1989-1992). Tradução Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, 573 p. Resenha de: SILVA CARDOZO, José Carlos da. Por uma concepção mais ampla de Estado. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 7, n.15, p. 249 – 255, maio/ago. 2015.

Mais presente do que nunca, a leitura da obra de Pierre Bourdieu (1930-2002) se torna cada vez mais relevante, principalmente nos dias de hoje quando os Estados europeus aceitam a submissão do campo político pelo econômico. No final da década de 90 do século passado, não foi diferente na França que presenciou, por vários dias, a greve de trabalhadores ligados aos setores público e privado (juntos com os estudantes) que fizeram frente à reforma nas aposentadorias defendidas pelo primeiro ministro à época.

Bourdieu é autor de uma vasta obra1 na área de ciências humanas, com destaque para as ligadas à Sociologia; atualmente é o segundo intelectual francês mais citado no mundo2 e o sociólogo contemporâneo mais citado no mundo3. Mesmo sendo filho de pais camponeses, conseguiu galgar posições no campo educacional francês, se graduando em Filosofia na renomada Escola Normal Superior4, chegando a ocupar a função de professor no Collège de France – ponto máximo na carreira acadêmica – e fundando um dos periódicos de maior prestígio no campo científico Actes de la Recherche en Sciences Sociales. Seus conceitos como campo, habitus, reprodução social, capital(is) e violência simbólica são atualmente apropriados pelas várias áreas das ciências humanas.

Após dez anos de sua morte, a Editora Seuil, em parceira com a Editora Raisons d’Agir, criada pelo próprio Pierre Bourdieu, deram início à publicação dos cursos e seminários ministrados pelo sociólogo no Collège de France com o lançamento do livro que reúne as aulas do período 1989-1992, intitulado Sur l’Etat, que foi publicado recentemente no Brasil com o título de Sobre o Estado: Cursos no Collège de France (1989-1992), que congrega, nesses anos, temas ministrados sobre a questão do Estado. Aqueles que estudam seus escritos reconhecem que os mesmos possuem um alto grau de erudição e exigem, ao mesmo tempo, um elevado grau de maturidade intelectual. Talvez pela necessidade de afirmação da área de Sociologia no campo acadêmico francês, Pierre Bourdieu escreveu com alto grau de erudição, advindo do estilo retórico da Filosofia, para que sua disciplina obtivesse o reconhecimento e prestígio dentro da academia, local visto por ele como reduto, por excelência, do intelectual.

Mas o livro Sobre o Estado nos brinda com um “outro Pierre Bourdieu”, não aquele autor dos escritos, mas sim o professor que ensinou e formou gerações de investigadores por mais de 40 anos5. Neste novo livro, podemos conferir o sociólogo pedagogo, atencioso ao seu público, explicando e reexplicando muitas vezes. Após a leitura dessas aulas, ficará complicando para seus críticos persistirem no rótulo de “pensador dogmático” dentro de um “sistema fechado de interpretação”. Pierre Bourdieu apresenta a dificuldade de comunicar suas análises a um público variado, composto tanto de sociólogos quanto por aqueles não formados em seu métier; dessa forma, esses cursos são um esforço pedagógico de explicar, não unicamente por meio de argumentos e teses, mas, sobretudo, pelas suas pesquisas e programas de pesquisas.

No livro, há várias referências à história, antropologia, literatura e direito, bem como à sociologia, na qual o autor nos conduz sobre a questão “o que é o Estado”, para analisar qual o papel do Estado e do indivíduo na sociedade, permitindo ao leitor perceber a gênese do Estado e as formas de estados peculiares de cada sociedade que são analisadas para esclarecer as indagações.

Essa questão é recorrente na obra de Bourdieu, mas não chegou a compor um livro, sendo assim, a reunião dos cursos proferidos pelo autor possibilita avaliar e investigar o tema que, em última análise, é a fonte da legitimidade de todos os poderes. Para ele, o Estado é uma “ficção coletiva” que tem efeitos reais sobre os indivíduos e ao mesmo tempo se constitui como um produto e resultado de uma imbricada luta de interesses.

Em Sobre o Estado, podemos verificar a posição do autor que aos seus ouvintes tenta demonstrar a superação da oposição entre o Estado considerado opressor (teoria defendida pelo marxismo) e o Estado considerado social ou do bem-estar (ideia do grupo social-democrata), para refletir sobre suas imbricações. Sua análise concentra-se na passagem do Estado Absolutista para o Estado Moderno, em que há a separação entre o campo político e religioso e a delimitação dos poderes, no qual está presente uma progressiva formação de campos (parlamentar, administrativo, jurídico e intelectual) nos quais há lutas internas e externas pela legitimidade e poder.

Avançando na obra, e para o melhor entendimento do leitor, dividimos a análise não por capítulo, mas sim pelos três períodos letivos universitários do Collège de France (Dezembro de 1989-Fevereiro de 1990; Janeiro-Março de 1991; Outubro-Dezembro de 1991), respeitando os programas de curso de Bourdieu.

No primeiro período, Bourdieu analisa a história social (ou como denomina “sociologia genética”) das instituições do Estado, com o foco na investigação da estrutura estatal; para tanto, se vale de autores como Shmuel Noah Eisenstadt, Perry Anderson, Barrington Moore, Reinhart Bendix, Theda Skocpol e Marc Bloch para, se valendo do método comparativo, tecer apreciações sobre o estudo da gênese do Estado na Inglaterra e na França, dois casos particulares estudados dentro de um universo de casos possíveis. Ao recorrer a esses dois casos, o autor está preocupado em investigar a gêneses do “campo burocrático”, assim como a forma como os diferentes recursos burocráticos são instrumentalizados e geram implicações nas lutas dento e pelo campo (com destaque para o campo político). Analisa ainda as representações do Estado e a propriedade de que o mesmo existe, sobretudo, por meio das representações; estuda a lógica da oficialização que produz um ponto de vista oficial, particular, legítimo, i.e., universal.

No segundo período, investiga o modelo de gênese do Estado derivado do acúmulo de diferentes espécies de capitais (econômico, cultural e simbólico) que permitem a emergência de um “metacapital”, possibilitando o exercício de poder sobre os outros capitais. Além do mais, o autor aponta que é no próprio Estado que se desenvolvem lutas que objetivam a obtenção do poder sobre os outros campos, principalmente naqueles em que há a regulamentação de concepções de legitimidade universais. Finaliza apontando que esse processo de concentração é um processo de universalização e monopolização, sendo a integração uma condição que evidencia uma forma de dominação efetivada na “monopolização do monopólio do Estado”. Para chegar a essas conclusões, Pierre Bourdieu inicia seu curso analisando três tentativas (com o mesmo se refere) de análise da gênese do Estado elaboradas por: Norbert Elias, Charles Tilly e Philip Corrigan e Derek Sayer. As duas primeiras estão ligadas à herança weberiana e à concepção economicista; já a última, ultrapassa e refina a abordagem para evidenciar o aspecto cultural no princípio do Estado moderno, a elaboração de concepções legítimas (e codificadas) que regulariam a vida social (língua nacional, tribunais etc.). Bourdieu apresenta os três “modelos parciais” para, logo em seguida, articulá-los expondo que uma das consequências do Estado é a imposição do princípio de “visão”, pois o Estado é o primordial construtor de instrumentos da realidade social e de concepções universais, produtor de um “código comum”, que está em relação com a sua estrutura e, consequentemente, com aqueles que o dominam.

Por fim, no último período, o autor apresenta uma tentativa de se construir um modelo de gênese do Estado; para tanto, se vale da análise, em longa duração, da construção do Estado para compreender o esforço coletivo pelo qual o Estado se faz Nação, ou seja, a construção e imposição do princípio de visão, no qual o exército e a escola possuem papel destacado, reforçando que o campo burocrático é o local e o objeto das lutas e que a Nação e o cidadão são construções ligadas ao Estado. Para alcançar tal compreensão, Pierre Bourdieu analisa o Estado dinástico e o personalismo que a casa real possui para avançar na constituição que leva a “casa do rei à razão de Estado”, com o foco na ruptura das sinuosidades da apropriação pessoal de instituições estatais (e dos benefícios que delas advêm); ao final do processo é possível verificar a lógica da divisão das funções burocráticas de dominação, que possibilitam a mudança da autoridade dinástica para a autoridade burocrática por meio do corpo de agentes que se garantem e se controlam mutuamente, implicando numa divisão de trabalho de dominação que induz à formação de um campo burocrático com relativa autonomia. Essa ascensão do princípio burocrático ganha rapidez, no caso francês, com a Revolução Francesa, pela qual se unem os princípios da nova burocracia e o direito daqueles que possuem capital cultural.

A relevância do livro, como podemos acompanhar, repousa na dedicação sociológica que Bourdieu deu a todas as formas de dominação, tanto na sua gênese como em seu funcionamento, nas quais o Estado está presente. Dessa forma, o Estado não pode ser considerado apenas um aparelho de poder nas mãos dos dominantes e nem um espaço neutro de operacionalização dos conflitos, mas sim um “metacampo” pelo qual se constrói a representação coletiva que estrutura a vida social.

1 Mesmo depois de sua morte, ainda não é possível saber ao certo o número de livros e artigos que escreveu, calcula-se que, aproximadamente, 37 livros e 400 artigos.

2 Informações disponíveis no Instituto de Informação Científica da Thomson Reuters, instituição que acompanha o número de citações em publicações acadêmicas. Ver: http://ip-science.thomsonreuters.com/

3 Segundo informações disponíveis no Social Sciences Citation Index do Instituto de Informação Científica da Thomson Reuters. Ver: http://ip-science.thomsonreuters.com/cgi-bin/jrnlst/jloptions.cgi?PC=SS

4 Na época, eram o curso e a instituição de maior prestígio na área de humanidades e ciências na França, país em que o sistema de ensino superior se diferencia dos demais países pela convivência entre as universidades e as grandes escolas; estas últimas com ingresso limitado, formando a elite do mundo intelectual, político, empresarial e da administração pública. Obtiveram grau na mesma instituição os filósofos Jean Paul Sartre, Jacques Derrida, Michel Foucault e Louis Althusser; os políticos Georges Pompidou, Léon Blum e Jean Jaurés; os cientistas Louis Pasteur e Laurent Lafforgue; e os sociólogos Emile Durkheim, Raymond Aron e Pierre Bourdieu. O sistema de grandes escolas foi tema analisado por Pierre Bourdieu em La noblesse d´État:grandes écoles et esprit de corps. Paris/FR: Minuit, 1989.

5 Partes significativas dos sociólogos mais destacados da França se formaram com ele: Patrick Champagne, Loic Wacquant, Louis Pinto e Gisele Sapiro, entre outros.

José Carlos da Silva Cardozo – Doutor em História Latino-Americana pela UNISINOS. Bolsista Capes/MEC e Editor da Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Brasil. E-mail: [email protected].

A construção do mito Mário Palmério: um estudo sobre a ascensão social e política do autor de Vila dos Confins FONSECA (RTA)

FONSECA, André Azevedo da. A construção do mito Mário Palmério: um estudo sobre a ascensão social e política do autor de Vila dos Confins. São Paulo: Editora UNESP, 2012. Resenha de: PEREIRA, Adgélzira Capeloti. A jornada mitológica de Mário Palmério. Revista Tempo e Argumento, v. 07 n.4, 2015.

No livro “A construção do mito Mário Palmério: Um estudo sobre a ascensão social e política do autor de Vila dos Confins”, André Azevedo da Fonseca reconstrói parte da história de Uberaba e, até mesmo, traça um panorama histórico, cultural e político do Triângulo Mineiro entre as décadas de 1940 e 1950. A obra, com 306 páginas, publicada pela Editora Unesp, em 2012, analisa as estratégias simbólicas utilizadas por Palmério na busca de prestígio pessoal, profissional e político e tem seus caminhos iluminados pela história cultural. A publicação é resultado da tese de doutorado em do autor História, defendida na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp). Pós-doutor em Estu­dos Cul­tur­ais no Pro­grama Avançado de Cul­tura Con­tem­porânea (PACC/UFRJ), Fonseca é espe­cial­ista em História do Brasil pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais e grad­u­ado em Comu­ni­cação Social (Jor­nal­ismo), pela Uni­ver­si­dade de Uberaba (Uniube).

Seu currículo, cuja ênfase se encontra na interdisciplinaridade, especialmente na tétrade história, comunicação, cCultura e política, certamente contribuiu para esmiuçar e apresentar aspectos mitológicos da vida do professor e político Mário Palmério, mais conhecido como autor dos livros Vila dos Confins (1956) e Chapadão do Bugre (1965), ambas relevantes para a literatura brasileira. Vale ressaltar que Palmério foi sucessor de Guimarães Rosa na Academia Brasileira de Letras, em que foi o quarto ocupante da Cadeira 2, da qual tomou posse em 1968. No romance Vila dos Confins, com o qual alcançou o auge da celebridade, trata de fraudes eleitorais, área por ele muito conhecida. Já a segunda obra, Chapadão do Bugre, também romance, apresenta costumes regionais e uma narrativa mitológica que conduz ao seu universo particular. Fonseca, no entanto, deixa claro que não é a contribuição literária de Palmério seu foco de pesquisa, mas as ferramentas que o político utilizou com maestria na área simbólica, conseguindo, dessa forma, atingir o imaginário da população do interior de Minas Gerais, sagrando-se como bom filho, educador dedicado, empreendedor bem-sucedido e político preparado para entender os anseios do povo e a eles atender. Considerado por Fonseca um significativo exemplar de “ator político”. Sua pesquisa mostra que Palmério teatralizou uma imagem pública, conquistou distinção social e se legitimou como portador das aspirações populares da época, até consagrar-se como “verdadeiro mito da cultura política regional”. Para apresentar toda a trajetória mitológica enfrentada pelo herói mineiro, Fonseca divide o livro em dois atos, mais uma conclusão. No primeiro – Mário Palmério na escalada do reconhecimento social –, são abordados temas como o prestígio que sua família gozava na sociedade uberabense, sua socialização, sua incrível ascensão profissional e sua consagração pública. Ao mostrar o destaque conquistado pela família de Palmério em Minas Gerais, mais especificamente na sociedade uberabense, Fonseca situa o ambiente em que o escritor, caçula de uma grande família, “numerosa e tradicional”, nasceu e cresceu, atento aos costumes e meandros de uma sociedade cujos membros sempre se empenharam em conquistar o poder e nele permanecer. O segundo ato – A consagração do mito –, compreende uma revisita do autor à trajetória profissional de Palmério, com análise metodológica que demonstra que, mudando a forma de indagar, novos dados são revelados ao leitor. Neste momento da pesquisa, apresenta um estudo sobre o contexto local no período pós-guerra, no qual situa a ascensão política de Palmério na sociedade. Ainda sobre o pós-guerra, são abordadas, amarradas e bem situadas a crise social, econômica, política, identitária, alémdo ideal do separatismo do Triângulo Mineiro do estado de Minas Gerais. Nesse ato, apresenta também o anúncio do herói e sua saga, composta pela jornada do mito Mário Palmério, a conspiração que enfrentou, e seu triunfo. As ideias de Fonseca vão se desencadeando de forma latente e agradável e mostram um Palmério que mais se parece com um personagem de seus livros literários. Como pesquisador, é possível perceber a preocupação de Fonseca em comprovar os fatos que apresenta. A utilização de imagens cedidas pela família, assim como de impressos da época e de outras diferentes fontes documentais são recorrentes na obra. A busca por materiais visa a embasar a tese de que Palmério soube manejar com grande habilidade sua propaganda pessoal e os códigos de prestígio em circulação na cidade, de forma a traçar e encaminhar sua trajetória, conscientemente, rumo aos seus objetivos e ao êxito. Para tanto, Fonseca utiliza conceitos da imaginação social de Bronislaw Baczko e da teatrocracia, proposta por George Balandier, para defender que, para atribuir sentido ao mundo, de maneira que os favoreça, os atores políticos fundam uma sociedade política organizada a partir das regras do teatro. Segundo o autor, é preciso dominar as ideias sobre o teatro para entender a política, tendo em vista que, ao se dizer que os políticos dramatizam e encenam, não se estão utilizando metáforas.

Outro referencial teórico sobre o qual Fonseca se apoia é a pesquisa com a qual Erving Goffman esmiuça o papel dos atores sociais e defende que a representação social e a disputa por aplausos não ocorrem apenas no campo da vaidade. Também evoca a obra de Pierre Bordier no tocante ao poder simbólico, que faz com que a integração social seja real para quem está “por cima” e fictícia para os demais, que obedecem às regras. É a legitimação da dominação, de forma consciente e inconsciente, de maneira reproduzida, repetida, copiada. Por último, Fonseca cita Jean Starobinski para tratar da construção literária da realidade, com a qual se substitui a virtude pela ‘máscara da virtude’. A autor mostra que a situação vivida em Uberaba era uma ficção consentida. No teatro encenado, a elite era respeitada e teve em Palmério um dos maiores e principais atores sociais e políticos de sua época. Enfim, ao procurar preencher uma lacuna pela ausência de trabalhos que analisassem as condições históricas regionais que favoreceram a emergência de um líder político com as características reunidas por Mário Palmério, Fonseca mergulha em águas mitológicas. No entanto, apesar de todo caráter científico, com forte embasamento teórico, que demonstra a construção consciente de um mito, a obra é agradável, beirando a ficção; aliás, uma invenção fabulosa que bem se assemelha à vida de Palmério ou à de um de seus personagens.

Referências

FONSECA, André Azevedo da. A construção do mito Mário Palmério: um estudo sobre a ascensão social e política do autor de Vila dos Confins. São Paulo: Editora Unesp, 2012.

Adgélzira Capeloti Pereira – Mestranda em Comunicação Visual pela Universidade Estadual de Londrina – UEL. Especialista em Docência no Ensino Superior, pela Universidade de Maringá – Cesumar e especialista em Semiótica e Produção de Textos, pela Universidade do Oeste Paulista. Graduada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Unoeste de Presidente Prudente
Brasil. E-mail: [email protected].

Depois da utopia: A história oral em seu tempo – SANHIAGO (RTA)

SANHIAGO, Ricardo; BARBOSA, Valéria (Org.) Depois da utopia: A história oral em seu tempo. São Paulo: Letra e Voz, 2013. Resenha de: SCHÜTZ, Karla Simone Willemann. Um campo em (constante) reflexão. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 6, n.13, p. 240 ‐ 245, set./dez. 2014.

O campo da História oral chegou de maneira efetiva ao Brasil em meados da década de 1970, e desde este momento até a contemporaneidade muitas transformações podem ser visualizadas nele como frutos de recorrentes discussões epistemológicas e metodológicas entre seus adeptos, que buscaram através delas afirmar este campo e combater as críticas oriundas de muitos historiadores céticos em relação à utilização de fontes orais nos trabalhos historiográficos.

Advindo de mais um destes momentos de auto‐reflexão aos quais o campo da História oral se lança, o livro Depois da utopia: A história oral em seu tempo pretende, nas próprias palavras de seus autores, “pesar o que o tempo filtrou” (MAGALHÃES; SANTHIAGO, 2013, p.10). Seus organizadores, juntos, são responsáveis pela fundação, em 2009, do Grupo de Estudo e Pesquisa em História Oral e Memória – Gephom –, situado na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP), responsável pelo desenvolvimento de pesquisas que lançam mão da História oral e que se dedica a pensar questões pertinentes a teoria a metodologia deste campo e seus encontros com a memória.

Ainda vale lembrar que ambos foram orientados em suas teses de doutorado defendidas na USP pelo historiador José Carlos Bom Meihy, nome de destaque dentro da História oral brasileira e um dos idealizadores do livro intitulado (Re)introduzindo a história oral no Brasil, lançado há quase uma década, em 1996, e que tem uma perspectiva que se assemelha muito a que guia Depois da utopia. A publicação da década de 1990 é resultado do I Encontro Regional de História Oral Sudeste/Sul (1995), entendido como um marco importante nos rumos que haviam tomado os pesquisadores da História oral no Brasil. Como está colocado no próprio título da obra, estes percursos se pautaram numa espécie de “reinvenção” daquele campo que havia se instalado em terras brasileiras durante a década de 1970. Naquele momento – a década de 1990 ‐ foram percebidas mudanças na inspiração destas pesquisas, que se desgarraram da exclusividade temática norte‐americana e voltaram‐se para as relações entre memória e História, para os modelos biográficos, para o desenvolvimento de uma história dos “vencidos”, da História do Tempo Presente, e para o caráter transdisciplinar da História oral.

Muitos destes tópicos ainda podem ser encontrados no livro de Magalhães e Santhiago (2013), além de alguns dos autores participantes daquela primeira publicação ‐ inclusive a organizadora Valéria Magalhães, que figura com um artigo escrito em conjunto com outros quatro pesquisadores. Olga Rodrigues de Moraes von Simson e Alice Beatriz da Silva Gordo Lang, sociólogas articulistas de (Re)introduzindo a história oral no Brasil, reaparecem na publicação de 2013 com capítulos que pretendem fazer um balanço do campo e de seus trabalhos desde 1990 até a contemporaneidade. Nesse sentido, vale mencionar que Depois da utopia está organizado em 5 temáticas – Matéria: Memória; O método em seu tempo; Auto‐olhares; As histórias e seus usos; Memória é cultura ‐, e no total conta com 15 artigos que ressaltam a índole transdisciplinar vinculada à História oral e quem vem, nas ultimas décadas, estabelecendo um diálogo profícuo com outros campos das ciências sociais: jornalistas, sociólogos e historiadores brasileiros e estrangeiros, reunidos para pensar a “história oral em seu tempo”.

Como mencionado anteriormente, muitos dos assuntos em voga na década de 1990 ainda estão presentes na obra objeto desta resenha, como é o caso do lugar que ocupa e das formas que assume a memória nas pesquisas que lançam mão da História oral, tópico que toma toda a parte inicial do livro, com destaque para o artigo da italiana Luisa Passerini, nomeado Memória e utopia em um mundo global. Nele, a autora apresenta a relação entre memória e utopia como chave para entender os processos de formação de subjetividades e identidades no mundo contemporâneo marcado pelo trânsito de pessoas, que migram e transitam ao redor do globo em função de motivações tanto econômicas quanto culturais. Passerini caracteriza a memória como algo que se direciona ao passado, enquanto a utopia se direcionaria para o futuro, estando o segredo da relação entre elas no encontro que estas efetuam na dimensão do presente. De maneira geral, a sugestão que Passerini oferece, não só aos oralistas, mas também àqueles que são adeptos da História do Tempo Presente, é ampliar a atenção dedicada às subjetividades presentes na memória, problematizando o papel das utopias individuais não universalizantes no presente. Passerini (2013), acerca destas multiplas temporalidades, assim afirma: “Estou convencida que hoje, além de explorar o passado para olhar para as formas de memórias esquecidas, precisamos também explorar o presente, a fim de encontrar traços do futuro” (p.24).

As outras principais questões que saltam aos olhos nessa publicação de 2013 estão relacionadas sobretudo as temáticas e problemáticas que surgiram no campo desde a primeira “virada” na década de 1990. Dentre elas estão a utilização crescente das chamadas “novas mídias” em trabalhos de História oral; dos testimonios e o cuidado com os usos políticos de entrevistas orais; e da História Pública, que no cenário historiográfico brasileiro dos últimos anos vem sendo tema de inúmeros eventos e publicações.

O papel das “novas mídias”, sobretudo no formato audiovisual – blogs, redes sociais, Youtube ‐ na conjuntura historiográfica atual, aparece pontuado em diversos artigos do livro. Entretanto, dois deles – de autoria de Mônica Rebecca Ferrari Nunes e Ana Maria Mauad ‐ se propõem a discutir com maior detalhamento os limites e possibilidades que se fecham e se abrem tanto em relação a função de mediadoras que estas estabelecem entre a memória e os pesquisadores, quanto no que tange à utilização destas na própria produção da narrativa histórica – tema candente que possibilita aos historiadores lançar novos olhares sobre estes “suportes da memória” e também difundir o conhecimento histórico por meio de diferentes formatos. Vale lembrar ainda que a disseminação da tecnologia audiovisual aparece nesse contexto como fator essencial para entender esse novo horizonte de possibilidades, num cenário muito parecido com aquele que se refere ao momento inicial da História oral e a popularização do gravador de voz portátil: novos suportes fomentam novas discussões.

O segundo tema aqui relevante se refere à noção de testimonio, tema de discussão da historiadora Daphne Patai e termo que remete aos depoimentos cedidos por pessoas consideradas à margem de determinada sociedade e que tenham vivenciado experiências traumáticas de sofrimento. Apesar de seu formato originalmente de “entrevista oral”, os testimonios são divulgados em forma impressa por iniciativa de algum intelectual, normalmente engajado politicamente mais “à esquerda” (de acordo com Patai). Tais depoimentos trazem consigo traços marcantes da ação política. Nesse sentido, Daphne alerta para seus usos por parte dos historiadores e, principalmente, para a transformação destes no próprio discurso histórico, sem que estes tenham passado pela mediação de um historiador, ou problematizados levando‐se em conta seu contexto de produção e difusão. Este tema está intimamente relacionado ao crescimento do espaço que a “testemunha” ganhou nos trabalhos historiográficos e na própria sociedade, a ponto da historiadora Annette Wieviorka caracterizar a segunda metade do século passado como a “era da testemunha”. Como exemplos desse fenômeno aparecem, com destaque, os sobreviventes do holocausto, em contexto europeu, e na América do Sul, as vítimas das ditaduras militares vigentes no século XX. Portanto, a partir do que expõe Patai, pode‐se ponderar acerca do próprio ofício historiador e o imperativo de observar estas falas “à distância”.

A história pública, por sua vez, pode ser considerada um “velho tema novo” que ganha espaço na cena historiográfica brasileira dos últimos anos, mas que, na verdade, já podia ser visualizado em iniciativas que aludem ao próprio momento em que a História oral aqui dava os seus primeiros passos. Ricardo Santhiago dedica um capítulo inteiro à tentativa de traçar em linhas gerais um pouco da trajetória deste campo, buscando pontuar iniciativas de recolhimento de entrevistas orais que escapavam ao circuito universitário, considerado, por excelência, o espaço onde a História oral floresceu no Brasil. Dentre estas iniciativas se destacam o Museu da Imagem e do Som, com várias unidades ao longo do país e que já no início dos anos 1970 se dedicava a constituir um acervo com entrevistas visando à consulta de pesquisadores futuros; e o Museu da Pessoa, fundado no início de 1990 e voltado a coleta de histórias de vida de pessoas dos mais variados segmentos sociais. No atual contexto, onde estas iniciativas são cada vez mais recorrentes, percebe‐se que a discussão sobre o crescimento dos debates acerca da história pública estão interligados a temas como a divulgação do conhecimento histórico produzido academicamente, a história popular e aos usos do passado – debates já, de certa forma, estabelecidos, mas ainda muito pertinentes.

Como nota‐se, o campo da História oral ainda dedica muito espaço ao debate acerca da sua natureza e de seus métodos. O livro (Re) Introduzindo a História Oral no Brasil, da década de 1990, aqui colocado como objeto de comparação, e Depois da utopia, mostram que o caminho percorrido por este campo conservou muitos pontos de debate, mas, naturalmente, ao incorporar novas temáticas, sentiu a necessidade de também problematizar os limites e possibilidades ligados à estes novos métodos e objetos, sendo as “novas mídias”, os testimonios e a história pública apenas alguns deles. Enfim, a auto‐reflexão parece ser característica intrínseca ao campo, que apesar de plenamente estabelecido ‐ dado o números de trabalhos historiográficos que lançam mão das fontes orais atualmente ‐ permanece se “reinventando”.

Referências

MEIHY, José Carlos Sebe Bom (Org.). (Re) Introduzindo a História Oral no Brasil. São Paulo: USP, 1996.

SANHIAGO, Ricardo; BARBOSA, Valéria (Org.) Depois da utopia: A história oral em seu tempo. Letra e Voz: São Paulo: Letra e Voz, 2013.

Karla Simone Willemann Schütz – Mestranda do Programa de Pós‐Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Brasil. E-mail: [email protected].

Amérique Latine – Political Outlook – OPALC (RTA)

Amérique Latine – Political Outlook (Observatoire politique de l’Amerique latine et des Caraïbes). Paris: Les Études du CERI, n. 198‐199, décembre 2013. Resenha de: SILVA, Daniel Afonso da. Visões Boreais. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 6, n.13, p. 246 ‐ 252, set./dez. 2014.

Acaba de sair o mais recente Political Outlook sobre a América Latina, do Observatoire politique de l’Amerique latine et des Caraïbes do Centre d’études et de recherchers internationales (CERI), da Sciences Po de Paris. Muito bem informado e formidavelmente apresentado, o relatório procura pôr em evidência os pontos fortes das mais variadas dimensões da vida política e social dos países latino‐americanos durante o ano de 2013. Orientado, coordenado e organizado pelo professor Olivier Dabène, esse Political Outlook vem se impondo como leitura obrigatória aos interessados em América Latina.

Onze textos, distribuídos em três seções, somados a uma esclarecedora introdução, compõem o Outlook. Seu ponto de partida, de não pouca importância, contempla o desaparecimento de Albert Hirschman (1915‐2012), com uma ode ao que foi um dos mais importantes latino‐americanistas de todos os tempos. Na sequência, são apresentados diversos temas e reflexões muitíssimo estimulantes: a presença chinesa na região; a visita do presidente Xi Jinping a Trinidad e Tobago, Costa Rica e México e seu crescente interesse pelo setor petroleiro local; o impacto da morte de Hugo Chaves (1954‐2013) sobre o imaginário venezuelano; o balanço do primeiro ano de Enrique Peña Nieto e o regresso do Partido Revolucionário Institucional à frente do México; a “justiça transicional” na Colômbia; a designação do argentino Jorge Bergoglio à condição de Sua Santidade o Papa; a situação da Guatemala após o julgamento do ditador Efraín Ríos Montt, acusado de assassinar mais de 200 mil pessoas entre 1960 e 1996, junto com o questionamento da possibilidade de alguma reconciliação; a situação, na Colômbia, das FARC, que sugeria avançar sobre o caminho de negociação de paz; a celebração dos 40 anos do 11 de setembro de 1973 no Chile, que depôs do poder e da vida Salvador Allende (1908‐1973); dos 40 anos do golpe de estado no Uruguai – pouco lembrado na região, mas que continua vivo na memória dos uruguaios –; dos 30 anos da iniciativa Contadora para a América Central, que auxiliou na superação do espírito de “década perdida” na região e dos dez anos de governos petistas na presidência do Brasil.

Muitas impressões podem ser registradas, ora para ressaltar momentos inegavelmente ricos ‐ como a feliz lembrança do marcante desaparecimento de Albert Hirschman e de Hugo Chaves ‐, ora para mencionar momentos não tão ricos, com certo menosprezo que recobre praticamente todos os textos, pelo contexto mais global da organização internacional ao longo de 2013, ano que registrou fortes movimentos de superação definitiva da crise financeira de 2008 nos países centrais, avanços e retrocessos nos conflitos do mundo árabe, a aproximação entre americanos e russos na gestão do caso sírio, o acordo prévio com o Irã, entre outros. Toda a América Latina tem a ver, de alguma maneira, com esses movimentos.

Excluída qualquer avaliação, a impressão mais diretamente justa e honesta deve estar no sentido de saudar e reconhecer o imenso esforço de criação e formação de expertise – muito competente, por sinal – sobre essa parte do continente americano. Impressionam a capacidade de síntese e a profundidade de algumas avaliações. Uma delas, demonstrada no estudo de Frédéric Louault sobre o Brasil.

Louault avalia o ano brasileiro de 2013 pelo prisma dos dez anos de PT no poder. Reconhece a densidade do projeto de governo que permite à presidente Dilma Rousseff ter 79% de aprovação popular e seu governo, 63% de opinião positiva. Da mesma forma, põe em questão as qualidades que os protestos de junho de 2013 impõem. Ressalta que milhões de pessoas nas ruas, reivindicando o saneamento da classe política, poderia expressar a vitalidade da democracia. Tendo em conta a sombra do passado ditatorial brasileiro, as vozes das ruas precisariam ser saudadas. Acentua que essa demonstração de insatisfação representaria a fragilidade da democracia brasileira e dos governos petistas que, ao não avançar sobre reformas para a melhoria da vida, especialmente dos segmentos médios, frustram os anseios gerais.

Argumenta que a estabilidade dos indicadores macroeconômicos e sociais (sujeito), apresentados ao longo dos governos do presidente Lula (2003‐2010) e da presidente Dilma (2011‐2014), vai invertendo os sinais.

O entusiasmo dos tempos do presidente Lula dá lugar a inquietações. Daí questionar:

S’agit‐il d’un simple ralentissement conjoncturel ou bien est‐ce la fin d’un cycle économique, l’épuisement d’une formulede développement qui s’est appuyée durant dix ans sur un environnement international favorable aux économies exportatrices d’Amérique Latine (en raison notamment des cours élèves des matières premières)?” (p. 55). (TRADUÇÃO EM NOTA DE RODAPÉ).1

Uma excelente questão, para um excelente problema.

Louault demonstra ser um pouco de cada. Mostra a importância da estratégia do presidente Lula da Silva na diversificação de parceiros comerciais e no estímulo às relações ditas Sul‐Sul. Acentua a importância da China, que em 2009 superou os Estados Unidos como parceiro de exportação‐importação. Mas analisa, neste sentido, o caráter desequilibrado da relação, uma vez que: 85% das exportações brasileiras para a China se compõem de matérias primas (45,5% de minerais, 24,7% de soja e 11% de petróleo). Já as importações chinesas ‐ 97% ‐ são de produtos manufaturados. Depois de 2010, os ventos econômicos foram mudando. Mas ganhos sociais permaneceram. As políticas de distribuição de renda, alocadas no programa Bolsa Família, beneficiaram mais de 10 milhões de famílias de baixa, baixíssima ou nenhuma renda. Isso permitiu não apenas a melhoria dos meios de subsistência, mas também favoreceu a escolarização e vacinação, seguida de acompanhamento médico, de mais de 14 milhões de crianças. Com isso, a real diminuição da desigualdade social referendada pelo coeficiente de Gini passou de 0,59 em 2003 para 0,49 em 2012. Tudo isso, interpreta Louault, explica o sucesso eleitoral do PT. Mesmo que a contemporização com os demais segmentos políticos – “Lula sans cesse a cherché à éviter toute confrontation avec les elites politiques traditionnelles” (p. 61) – tenha sido permanente, o “mensalão” deixa marca profunda na trajetória do partido, sobretudo pela prisão dos principais acusados, entre eles José Dirceu e José Genuíno, líderes históricos do PT.

Não resta dúvida que Frédéric Louault – como, de resto, Olivier Dabène, Gaspard Estrada, Damien Larrouqué, Nordin Lazreg, Delphine Lecombe, Antoine Maillet, Frédéric Massé, Kevin Parthenay, Eduardo Rios, Darío Rodrígues e Constantino Urcuyo‐Fournier, demais colaboradores do Political Outlook 2013 – continua muito bem postado nas discussões gerais de seu objeto de análise. Entretanto, algumas impressões, para além das evidências estampadas nos dados oficiais que sustentam o artigo, podem auxiliar na melhor qualificação e sofisticação da abordagem.

O sucesso eleitoral do presidente Lula e do PT nesses anos vem ganhando uma classificação inapelável: lulismo. Criação do cientista político André Singer, porta‐voz da Presidência da República de 2003 a 2006, a classificação indica elementos tangíveis para se compreender a reeleição do presidente Lula da Silva em 2006. Tem razão Louault ao sugerir que camadas sociais, especialmente localizadas nas Regiões Norte e Nordeste do Brasil, beneficiadas pelos programas de distribuição de renda a partir de 2003, votaram massivamente nele em 2006. Entretanto, vale lembrar que menos de um ano antes da eleição de 2006, o presidente Lula e o PT estavam praticamente em vias de desaparecimento político em função das denúncias do deputado Roberto Jefferson que revelaram o “escândalo do mensalão”. A imprensa e os segmentos políticos de oposição, ato contínuo e sem pudor, envolviam o presidente e seu partido no escândalo. Muitos diziam que era o fim da linha, sobretudo por ser o PT o partido que mais reivindicara, em tempos recentes, os atributos da ética e da não‐corrupção na política. Em meio ao alvoroço, peças centrais do governo – como o ministro fazenda, Antonio Pallocci, e o ministro‐chefe da Casa Civil, José Dirceu – tiveram de deixar os cargos. O presidente Lula e toda equipe político‐partidária ficaram amplamente fragilizados. Muitos simpatizantes históricos deixaram o partido. Os fundadores do PSOL, dissidentes avessos à postura majoritária do PT que conduzira a vitória de Lula da Silva nas eleições de 2002, festejavam. Exaltados da oposição, como o senador Jorge Bornhausen, diziam, alto e bom som, o que diversos outros pensavam, mas não diziam, que era o momento de se livrar dessa “raça”. Outros pediam o imediato impeachment do presidente. Enfim, só a pessoa do presidente Lula pode dimensionar com precisão a intensidade da pressão. E tudo isso ocorria no segundo semestre de 2005. As eleições de 2006 já estavam sendo programadas. A participação do presidente Lula era, para muitos, incerta. Sua vitória, improvável. A compreensão da reversão dessas tenebrosas expectativas ganha muito com o arranjo de André Singer sobre o lulismo, entendido como a base de sustentação eleitoral do PT. Louault acentua o fato da ampliação do número de eleitores de Lula em 2006, mas não avança sobre algumas constatações fundamentais. Desde 1980, a bandeira do PT era de diminuir as desigualdades sociais e melhorar as condições de vida dos menos favorecidos. No entanto, nas quatro primeiras apresentações de Lula ao sufrágio universal (1989, 1994, 1998 e 2002), esses desfavorecidos jamais lhe conferiram o voto. Isso ocorreu porque, enquanto a imprensa e a oposição massacravam o presidente Lula e o PT no âmbito do escândalo do mensalão, o governo ia ampliando os programas sociais. Essa ampliação e manutenção da melhoria da vida de milhões de pessoas, somada ao caráter pedagógico de identificar o presidente Lula como responsável direto, proporcionou uma evidente alteração à sua base eleitoral e à do PT.

Reeleito, Lula foi reconduzido ao poder em janeiro de 2007. Em poucos meses, aparecem os sinais de alerta mundiais sobre a possibilidade de uma crise econômica nos países centrais. Esse assunto – suposto, mas não frontalmente abordado por Louault – vai se mostrando essencial para a compreensão do Brasil atual. O segundo mandato do presidente Lula foi o momento de gestão da crise financeira.

Dotado de inegável tino político, o presidente Lula percebeu que era imperativo administrar as emoções de sua nova base eleitoral, que corria o risco de perder seus benefícios em função do tsunami das finanças que atingia o Brasil. Passou, de início, a responsabilizar os países ricos, afirmando que os países pobres não deveriam ser responsabilizados pela insanidade dos “brancos de olhos azuis”. Na sequência, aumentou políticas de crédito bancário e incentivou os brasileiros dos segmentos médios a consumir. Essas duas medidas, somadas a um sem‐fim de estratégias econômicas anticíclicas, permitiram a efetivação da percepção de suave “marolinha” econômica no Brasil, enquanto o resto do mundo vivia o inferno. Mas essa sagacidade do presidente e de sua inquestionável retórica presidencial, somadas a muitas doses de sorte e esperteza não foram transferidas a Dilma Rousseff, como os votos de credibilidade do povo brasileiro em 2010. Isso ajuda a explicar vários dos episódios de insatisfação vividos no Brasil desde junho de 2013.

Daniel Afonso da Silva – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba e chercheur invité do CERI‐Sciences Po de Paris. Brasil [email protected].

Cypherpunks: liberdade e o futuro da internet – ASSANGE (RTA)

ASSANGE, Julian. Cypherpunks: liberdade e o futuro da internet. Trad. Cristina Yamagami. São Paulo: Boitempo, 2013. Resenha de: PELLEGRINI, Ramon Trindade; PELLEGRINI, Rafael Trindade. Marco Civil: Liberdade e o Futuro da Internet. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 6, n.12, p. 265 ‐ 270, mai./ago. 2014.

Cypherpunks: liberdade e futuro da internet, publicado pela Editora Boitempo, no ano de 2013, é uma obra criada a partir das reflexões de Julian Assange, em parceria com Jacob Appelbaum, Andy Müller‐Maguhn e Jérémie Zimmermann, fruto dos debates registrados no programa The World Tomorrow1, apresentado pelo próprio Assange. Um livro que suscita a reflexão sobre a vigilância de informações pela internet por parte dos governos, principalmente o estadunidense. Nas palavras do autor, este exemplar “não é um manifesto, não há tempo para isso [trata‐se de] um alerta” (ASSSANGE, 2013, p. 25), pois o futuro do mundo, para ele, é o futuro da internet: As únicas pessoas que serão capazes de manter a liberdade que tínhamos, digamos, vinte anos atrás […] são aquelas que conhecem intimamente o funcionamento do sistema. Então só uma elite high‐tech rebelde é que será livre (ASSANGE, 2013, p. 157). Esta mensagem é um aviso imediato ao que está acontecendo na rede, mas quem é o personagem que a emite? Julian Assange é um ativista e hacker australiano que se autointitula cypherpunk, ou seja, um militante político que opera através do ciberespaço. Ficou mundialmente conhecido em 2010, quando divulgou, pela WikiLeaks, em parceria com jornais como The Guardian (Grã‐Bretanha), Der Spiegel (Alemanha), The New York Times (Estados Unidos), Le Monde (França) e El Pais (Espanha), mais de 70 mil relatórios militares secretos sobre a guerra do Afeganistão – os Diários da Guerra do Afeganistão –; mais de 400 mil relatos de campo na guerra do Iraque – os Registros de Guerra do Iraque – e mais de 250 mil relatórios diplomáticos das embaixadas dos Estados Unidos ao redor do mundo – o Cablegate. Foi o maior vazamento de documentos oficiais da história. Mas o que vem a ser a WikiLeaks? A WikiLeaks é uma organização com características de jornalismo investigativo. Possui uma robusta criptografia para dar anonimato a suas fontes, além de uma incrível base de dados que permite ao leitor ter acesso a milhões de documentos confidenciais em tempo integral, de sua nação e do mundo. São chamadas informações classified (confidenciais), isto é, documentos oficiais arquivados na internet, que podem interferir diretamente no plano material, dado o conteúdo explicitado. São exemplos: o vídeo do helicóptero “Apache” assassinando indivíduos ditos terroristas; os diários das guerras do Afeganistão e Iraque na “luta contra o terror”, bem como a opinião de diplomatas estadunidenses acerca de inúmeros governantes mundiais e suas formas de governo. É acerca destas complexidades na rede virtual que Assange discorre nessa obra. Como o livro acompanha o diálogo sobre inúmeros assuntos relacionados à internet e seu controle, propomos não dividi‐lo em capítulos, mas examiná‐lo segundo suas características principais, traçando um paralelo com o marco civil no Brasil. Inicialmente, Assange (2013, p. 20) enfatiza que, “o mundo deve se conscientizar da ameaça da vigilância para a América Latina e para o antigo Terceiro Mundo. A vigilância não constitui um problema apenas para a democracia e para a governança, mas também representa um problema geopolítico”. Neste sentido, são os serviços de segurança do Estado os beneficiários diretos do exercício do poder de controle e repressão. É neste cenário que o projeto de lei marco civil da internet está inserido. Mas do que se trata? A Lei 12.965/14, conhecida como marco civil da internet, foi analisada e votada pelo Congresso; depois, pelo Senado e, por fim, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff, dia 24 de abril de 2014, entrando em vigor dois meses depois, marcando significativamente os direitos à internet no Brasil. Sucintamente, trata‐se de uma espécie de constituição de sítio virtual, estabelecendo direitos e deveres para usuários e provedores de internet no País, tais como: neutralidade na rede, ou seja, garantia de que o tráfego terá a mesma qualidade e velocidade, independente do tipo de navegação; não‐suspensão da conexão à internet, salvo por débito e sua manutenção da qualidade contratada; privacidade, significando que informações pessoais e registros de acesso só poderão ser vendidos mediante autorização do usuário; segurança dos registros de conexão dos usuários, propondo que os dados sejam guardados pelos provedores durante um ano sob sigilo completo, podendo ser acessados exclusivamente por ordem judicial. Segundo a coordenadora do Intervozes, Beatriz Barbosa, o principal problema enfrentado pelo marco civil diz respeito ao artigo 15, que obriga as empresas de telecomunicações a guardar, por um ano, todos os dados de tráfego na rede. Segundo a pesquisadora, a lei prevê que estas informações só possam ser acessadas por decisão judicial. Mesmo assim, a obrigação: viola a privacidade do usuário [e] acaba levando ao risco de uma vigilância em massa e é uma limitação à própria liberdade de expressão (que é uma base fundamental do projeto). O fato de saber que toda sua movimentação na internet está sendo armazenada para eventuais investigações faz com que a pessoa se comporte de forma diferente2. Já o coordenador‐geral do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal, Jonas Valente, afirma veementemente que, “motivado pela vigilância institucionalizada de um evento internacional, o governo aprova uma lei avançada, mas em que o simples fato de guardar os dados viola a minha privacidade”3. Desses vieses, entendemos que o ponto nevrálgico do marco civil está no artigo 15 da Constituição, ou seja, no armazenamento de dados pessoais que poderiam favorecer a vigilância maciça da internet pelo governo. A obra de Assange é significativa para tal análise, pois observa que, apesar de estarem constantemente vigiados quando na rede, são os próprios usuários que, muitas vezes, fornecem suas informações particulares. É nesse contexto, permeado de inovações tecnológicas, sobretudo na área informativa, que ocorre a vigilância por parte dos governos e corporações. Uma simbiose de controle e poder que revela o cenário sombrio e orwelliano em que vivemos. Segundos os cibermilitantes, “o Facebook e a Google podem ser considerados extensões dessas agências, [Uma vez que] têm acesso a todos os dados armazenados” (ASSANGE, 2013, p. 72). Isto significa que, se o sujeito for usuário dessas empresas, as agências de monitoramento, possivelmente, captarão informações como: com quem se comunica, seus interesses e objetivos, até preferência sexual, religiosa e crenças filosóficas. Demodé, o alerta observado por Beatriz Barbosa e Jonas Valente, no que tange ao marco civil, se coaduna com esta análise. Para os cypherpunks, a rede virtual, que há pelo menos 25 anos foi apresentada aos civis como instrumento essencial de dinamização produtiva/reprodutiva das relações capitalistas, se transformou, paulatinamente, em zona de guerra. Para o autor, as mudanças na internet ao longo dos anos modificaram não apenas os relacionamentos interpessoais, mas as formas de ação dos Estados. Consequentemente, as forças governamentais “e seus aliados (corporações) se adiantaram para tomar o controle do nosso novo mundo, se [agarrando] como uma sanguessuga às veias e artérias das nossas novas sociedades” (ASSANGE, 2013, p. 26‐27). A interceptação dessas informações provenientes de todos os rincões do planeta evidencia que todos, indistintamente, são vigiados e o medo é um elemento fundamental para a sustentação desse controle. Desse modo, “é necessário instilar medo nas pessoas para que elas compreendam o problema antes de uma demanda suficiente ser criada para solucioná‐lo” (ASSANGE, 2013, p. 83). Noutras palavras, o medo gera lucro, principalmente com o aumento da sofisticação e a redução do custo da vigilância em massa, ou seja, enquanto o crescimento populacional dobra, aproximadamente, a cada 25 anos, a vigilância duplica a cada 18 meses (ASSANGE, 2013, p. 55). O último viés de discussão é acerca da criptografia, que consiste na prática de se comunicar em código. Esta é uma ferramenta que, segundo os ativistas, pode ser uma arma eficaz de combate à tirania do Estado. Para Sérgio Amadeu, estamos entrando na era da “resistência criptopolítica [onde] a criptografia torna‐se instrumento político a ser amplamente incorporado pelos movimentos de resistência ao poder da análise e à biopolítica de modulação executada pelas grandes corporações, de tecnologia e de rede”4. Para Assange (2013, p. 27‐28), com esse mecanismo: as pessoas podem se fundir para criar regiões livres das forças repressoras do Estado externo, […] porque a criptografia […] não se deixa abalar pela petulância dos Estados nem pelas distopias da vigilância transnacional. […] A criptografia é a derradeira forma de ação direta não violenta, [pois] é mais fácil criptografar informações do que descriptografá‐las. Há quem desconfie dos aplicativos criptografados, afirmando que os dados dos usuários já estão sob a tutela de corporações e governos. Esta é a grande polêmica em torno do marco civil da internet no Brasil. O artigo 15 fere o direito à liberdade de expressão? Este decreto limita nosso direito de navegar pela rede? É certo que estamos frente a uma grande encruzilhada, longe de um fim imediato. Diante das condições objetivas suscitadas, a obra de Assange fornece informações cruciais para nos posicionarmos neste cenário histórico, marcado por uma vigilância exacerbada dos meios de comunicação, sobretudo da internet.

Referências

ASSANGE, J. Cypherpunks: liberdade e o futuro da internet. Trad. Cristina Yamagami. São Paulo: Boitempo, 2013. BRASIL. Lei 12.965/14, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Disponível em: www.jusbrasil.com.br/legislacao/117197216/lei‐n‐12‐965‐de‐23‐de‐abril‐de‐2014. Acesso em: 23 jun. 2014.

2 Disponível em: http://www.folhapolitica.org/2014/04/apoiadores‐do‐marco‐civil‐admitem.html Acesso em: 18 jun. 2014.

3 Disponível em: http://www.folhapolitica.org/2014/04/apoiadores‐do‐marco‐civil‐admitem.html Acesso em: 18 jun. 2014.

4 Disponível em: http://www.revistaforum.com.br/digital/137/marco‐civil‐da‐internet‐liberdade‐na‐rede‐vai‐acabar/ Acesso em: 23 jun. 2014.

Ramon Trindade Pellegrini – Mestrando do Programa de Pós‐Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia; compõe o quadro de pesquisadores do Grupo de Estudos de Ideologia e Lutas de Classe (Geilc), bolsista da Capes/CNPq. Brasil [email protected].

Rafael Trindade Pellegrini – Graduando em História pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb); compõe o quadro de pesquisadores do Grupo de Pesquisa Natureza, Cultura e Complexidade, bolsista da Capes/CNPq. Brasil [email protected].

Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988 – REIS FILHO (RTA)

REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. Resenha de: CARDOSO, Luisa Rita; NEVES, Hudson Campos. Ditadura e democracia: entre memórias e história. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 6, n.11, p. 461-466, jan./abr. 2014.

Publicado pela editora Zahar quando o golpe civil-militar contra o governo constitucional de João Goulart completa 50 anos, o livro Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988, de Daniel Aarão Reis Filho, aborda o clima de tensão e polarização que levou ao golpe, a ditadura militar que é então tramada e a transição desta para a democracia. O historiador percorre, numa narrativa fluida, o governo de Jânio Quadros e as tensões que envolveram, a partir de sua renúncia, a posse de Jango e os principais processos históricos relacionados ao golpe: a consolidação do regime, seu apogeu e enfraquecimento com a gradativa perda de apoio de setores da sociedade que outrora lhe deram sustentação. A obra trata ainda de fatores que fizeram parte do lento processo de abertura política, que, segundo o autor, só se consolidou com a Constituição de 1988.

Professor titular de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor de importantes trabalhos como A revolução faltou ao encontro: os comunistas no Brasil, lançado em 1990 e Ditadura Militar, esquerdas e sociedade, de 2000, Aarão Reis, numa linguagem não academicista e com poucas notas explicativas, divide o livro em sete capítulos e uma reflexão final sobre ditadura e democracia no Brasil. Diante da impossibilidade de abordar todos os elementos discutidos nas 191 páginas de Ditadura e democracia no Brasil, optamos por, nesta resenha, tratar daqueles que a nosso ver mais contribuem para a construção de um olhar crítico sobre o período.

O capítulo de abertura do livro, Ditadura no Brasil: uma incômoda e contraditória memória, traz, já no título, a problemática da memória em torno do período. Parece-nos que a decisão de tratar primeiramente desta funciona como um alerta: é preciso que o leitor esteja atento às verdades mais recorrentes sobre o tema e disposto a entendê-las como construções sociais, para o autor mais ligadas à memória do que à empiria dos estudos históricos. Assim é problematizada a resistência à ditadura. Aarão Reis aponta que “versões memoriais apaziguadoras” (REIS FILHO, 2014, p. 8) foram elaboradas nos anos 1980 em nome da conciliação nacional, deixando de lado o debate acerca das bases sociais que sustentaram o regime. Diante do processo que levaria ao fim da ditadura, a sociedade brasileira apegou-se a valores democráticos, negando ter colaborado, apoiado ou até mesmo sido indiferente frente os acontecimentos do período ditatorial. Conforme o autor, “a ditadura no Brasil, até pelo longo período que durou, foi uma construção histórica. Impossível compreendê-la sem trazer à tona suas bases políticas e sociais – múltiplas e diferenciadas” (REIS FILHO, 2014, p. 128).

Desta forma, a formulação mais amplamente aceita passa a ser a de que “a sociedade fora silenciada pela força e pelo medo da repressão. Mas resistira” (REIS FILHO, 2014, p. 8). Ao longo do livro, as ambiguidades e ambivalências em torno da resistência aparecem em diferentes âmbitos: o dos intelectuais, da música, do cinema e, com mais ênfase, o da luta armada. Como o próprio historiador, destacaremos aqui as disputas em torno do último. Utilizando-se do termo esquerda revolucionária, Aarão Reis é enfático ao apontar as motivações da luta armada como partidária não só da superação da ditadura, mas do capitalismo no Brasil. Assim, tratar as organizações que pegaram em armas como “uma espécie de braço armado” (REIS FILHO, 2014, p. 133) da resistência democrática seria mais uma vitória das forças conciliadoras que, ao negar os conflitos de classe, criavam melhores condições para a reinstalação da democracia. É isso que o autor chama de o primeiro deslocamento de sentido promovido por aqueles que, em fins dos anos 1970, reuniam forças em torno de uma anistia ampla.

Outro deslocamento de sentido apontado emerge das forças de direita que, sustentando ter havido uma guerra revolucionária, entendiam ambos os lados como culpados que deveriam, portanto, ser anistiados. É o raciocínio que na Argentina, ao tratar também da última ditadura, sistematizou-se sob o nome de tese dos dois demônios. Haveria ainda um terceiro deslocamento de sentido, mais geral, em que a sociedade, passando a se perceber como democrática, coloca-se contra a ditadura, entendendo a mesma como um corpo estranho, que nunca encontrara apoio civil. Dessa forma, “redesenhou-se o quadro das relações complexas entre sociedade e ditadura, que apareceu como permanentemente hostilizada pelas gentes” (REIS FILHO, 2014, p. 135).

A ideia de que o golpe foi inevitável, como ainda hoje se menciona, inclusive na grande mídia nacional1, é questionada pelo autor, que articula o contexto nacional daquele período com processos mais amplos, em escala global, que teriam provocado a atitude golpista. Assim, afirma que o nacionalismo e o reformismo radicais assustavam, em virtude do exemplo da Revolução Cubana, cujo caráter nacional-democrático cedo se transmudara, desde 1961, numa proclamada revolução socialista. Outros movimentos de libertação nacional em curso aproximavam nacionalismo e socialismo, como na China, no mundo árabe (Argélia, Síria e Iraque), no Vietnã, e mesmo entre os pequenos grupos revolucionários que despontavam então nas ex-colônias portuguesas. (REIS FILHO, 2014, p. 47) Aarão também destaca a relativa autonomia das forças golpistas e assinala que é um equívoco superestimar a participação do governo dos Estados Unidos neste processo. Ou seja: Washington apoiou o golpe, mas o mesmo não ocorreu apenas porque havia uma esquadra norte-americana a caminho do litoral brasileiro.

É lugar comum compreender a duração da última ditadura militar ocorrida no Brasil como sendo de um período de 21 anos, tendo iniciado com o golpe civil-militar, em abril de 1964, e terminado com a eleição, ainda que indireta, de um civil para o cargo de Presidente da República, em 1985. Aarão contesta tal leitura. Nesta obra, defende a tese de que com a revogação dos Atos Institucionais, em 1979, tem início o período de transição democrática, que, por sua vez, termina com a aprovação da nova Constituição, em 1988. Para ele:

o País deixou de ser regido por uma ditadura – predomínio de um estado de exceção, quando prevalece a vontade, arbitrária, dos governantes, que podem fazer e desfazer leis – sem adotar de imediato, através de uma Assembleia eleita, uma Constituição democrática. Em outras palavras: no período de transição já não havia ditadura, mas ainda não existia uma democracia. (REIS FILHO, 2014, p. 125) Assim, 1979 marcaria o fim da ditadura militar e o início de um período de estado de direito autoritário, findo em 1988. Aarão Reis afirma que houve uma “ampla coligação de interesses e vontades” (REIS FILHO, 2014, p. 127) para que se consolidasse a ideia de que a ditadura encerrou com a posse de José Sarney e aponta que há, por trás disso, uma “ideia-força” que não tem respaldo nas evidências, a saber, a “de que a ditadura fora obra apenas dos militares, reconstruídos como bodes expiatórios” (REIS FILHO, 2014, p. 127) e responsáveis únicos pelo fim do governo constitucional. Só neste sentido a eleição de um civil seria o momento da mudança, quando o poder, finalmente, sairia das mãos dos militares. No tocante às questões econômicas, Aarão Reis elabora longas explanações, utilizando-se de dados do período e de revisão bibliográfica. Uma discussão, no entanto, merece aqui destaque por seu caráter inovador, a saber, aquilo que o autor chama de cultura política nacional-estatista2 (ou cultura política do nacional-estatismo). Inaugurada pelo Estado Novo e embasada no nacional-estatismo, que ambicionava construir uma única identidade nacional e entendia ser “o Estado o melhor instrumento histórico para articular a vontade nacional na direção de um processo autônomo de modernização” (REIS FILHO, 2014, p. 19), a cultura política nacional-estatista teria sido retomada por Costa e Silva e aprofundada por Médici. Se Castello Branco havia tentado minimizar o Estado perante a economia com seu “programa liberal-internacionalista” (REIS FILHO, 2014, p. 80), que alinhava o Brasil com os Estados Unidos e buscava atrair capital privado, seus sucessores retomam as bases Estado-novistas e “o Estado voltava a incentivar, regular, financiar e proteger, intervindo ativamente nos mais variados setores econômicos” (REIS FILHO, 2014, p. 80). Tal cultura política não é, para o autor, uma exclusividade de ditadores – de Vargas aos militares – mas permeia diferentes setores da sociedade brasileira, à direita e à esquerda, estendendo-se até nossos dias.

2 Daniel Aarão Reis, por fim, alerta-nos para uma questão fundamental para o tempo presente: “não há como se libertar da ditadura sem pensar nela” (REIS FILHO, 2014, p. 171), fazendo, desta obra, um esforço democrático de um pensador que acredita que a melhor defesa da democracia é o pensamento crítico, “à maneira de um antídoto às tentações autoritárias” (REIS FILHO, 2014, p. 171).

1 Ver editorial do periódico “Folha de São Paulo”, publicado no dia 03 de março de 2014. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2014/03/1433004-editorial-1964.shtml> Acessado em: 15 de maio de 2014.

2 A ideia é mais amplamente discutida em: AARÃO Reis, Daniel. A ditadura faz cinquenta anos: história e cultura política nacional-estatista. In: AARÃO REIS, Daniel; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964. 2014. p. 11-29.

Luisa Rita Cardoso – Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. E-mail: [email protected].

Hudson Campos Neves – Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. E-mail: [email protected].

Loucos nem sempre mansos – BORGES (RTA)

BORGES, Viviane Trindade. Loucos nem sempre mansos. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2012. 197 p. Resenha de: ESPINDOLA, Tássila Sant’Anna. Por uma história da loucura no Sul do País. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 5, n.10, jul./dez. 2013. p. 453 – 457.

Dissertação de mestrado transformada em livro, o texto da professora Viviane Borges nos leva ao mundo da Colônia Itapuã, centro agrícola de reabilitação localizado no município de Viamão, no estado do Rio Grande do Sul. O texto é dividido em três capítulos. Apresenta uma introdução bem alentada, na qual a autora não só apresenta como se deu a criação da colônia, como igualmente expõe e discute os documentos usados para a elaboração do trabalho e como têm sido analisados em base a uma bibliografia específica.

O trabalho se estrutura a partir das seguintes problematizações: “Em que contexto atuavam esses personagens? Quais suas possibilidades e limites? Que experiências anteriores eles precisavam levar em conta?” (BORGES, 2012. p. 46).

O primeiro capítulo é dividido em quatro partes; cada uma delas trabalha um aspecto do contexto da criação do centro agrícola de reabilitação. No primeiro subcapítulo, intitulado “‘Aqui não é uma colônia de férias, e sim um hospital’, trata do surgimento das colônias agrícolas na Europa e no Brasil e dos conflitos por elas suscitados”. A autora discorre sobre o surgimento desse novo modelo de hospital. Sua narrativa nos levará à Europa do século XIX, quando surgiram as primeiras colônias agrícolas, assim como nos transportará ao Brasil do início do XX, para mostrar a versão brasileira deste modelo europeu. Esta proposta é perceptível a partir do trecho da pagina 48, onde se lê: “A psiquiatria no final do século XIX e início do XX abre-se a novas modalidades asilares que já não se concentravam apenas no manicômio tradicional” (BORGES, 2012, p. 48).

Já nos subcapítulos seguintes, reconhecem-se aspectos de colônias agrícolas no Rio Grande do Sul, anteriores à de Viamão, assim como também leva a entender os objetivos e as propostas da equipe da Colônia de Itapuã, que se autodenomina “anti-São Pedro” (uma referência ao tradicional hospital psiquiátrico de Porto Alegre). O texto, a partir desta parte, trabalhará principalmente sobre a década de 1970 e colocará a colônia dentro do modelo de assistência à saúde da América Latina.

No segundo capítulo do livro “Tornar os loucos mansos: as estratégias institucionais”, a autora adota o conceito de estratégia de Michel De Certau para analisar o cotidiano da Colônia Itapuã. De igual maneira, divide o texto em subcapítulos, trabalhando, em cada um deles, um aspecto desse cotidiano. Num primeiro momento, analisa o sistema de controle do tempo dentro da instituição. O controle será tema recorrente nesse capítulo, já que no segundo subcapítulo a discussão considera a instituição como um panóptico. É nesse momento que mostra o primeiro contato com relato dos internos. Dando prosseguimento ao estudo, o texto trabalha como foi legitimado este centro perante os pacientes e os funcionários de lá, e as razões que motivaram o saber psiquiátrico à criação desse modelo.

Na construção do trabalho, a autora utilizou-se de referenciais teóricos para explicar a questão da sujeição psicológica a que eram submetidos os pacientes, pois, mesmo não havendo grades, a vigilância era ao menos sentida. Ela busca nas propostas de Michel Foucault a explicação para o conceito de panóptico de Bentham, que explica como a sujeição originária do poder disciplinar não necessitava de força para coagir. Conclui esta parte afirmando que “tal fato resulta em instituições com arquiteturas leves, sem grades nem correntes, pois o próprio internado sabe e impõe automaticamente, a si mesmo, os seus limites” (BORGES, 2012, p. 103).

No terceiro e último capítulo, intitulado “Nem tão mansos assim: o cotidiano e as táticas de resistência”, discorre sobre as táticas de resistência utilizadas pelos internados, analisando os “pormenores normalmente considerados sem importância, ou até triviais, baixos” (BORGES, 2012, p. 137) que, pela perspectiva de Michel De Certeau (2003, p. 47), se manifestam na “própria decisão, ato, maneira de aproveitar a ocasião”. Neste sentido, pode-se pensar que a produção dos registros de suas vidas foi permitida pelo choque entre as normas e o cotidiano dos internados, interpretação possível já que alguns destes registros foram preservados até hoje.

Neste último capítulo, trabalha diversas entrevistas com pacientes, repletas de informações sobre as formas de resistência adotadas pelos sujeitos lá confinados, destacando as reclamações dos pacientes sobre as proibições existentes na Colônia Itapuã. Alguns excertos são bastante esclarecedores dessa situação, como o caso do senhor A. J. S., que, em 1973, declarou “não possuir condições de ir a uma reunião devido ao desejo de estar com uma mulher, não tendo, assim, ‘condições de tratar outros assuntos’” (BORGES, 2012, p. 142). A obra registra casos de relações homossexuais, proibidas na instituição. A autora relata, por exemplo, que no livro de ocorrências, com data 23 de novembro de 1977, é evidente a preocupação da equipe médica com esse comportamento, já que está escrito que se deve orientar e proteger um paciente para que este não tenha relações homossexuais (BORGES, 2012, p. 143). Mesmo assim, há o registro de um paciente que relata: “não se reprimia o homossexualismo; o que não se admitia, conforme mencionado anteriormente, era o abuso sexual dos mais fracos pelos mais fortes” (BORGES, 2012, p. 143).

O texto da professora Viviane é muito significativo, primeiramente pela forma didática com que é exposto; depois, pela excelente narrativa e, a meu ver, por um dos aspectos mais relevantes, que é o próprio tema, interessante e intrigante por si só. O livro “Loucos mas nem sempre mansos” é uma obra única, que retrata de forma abrangente e criteriosa a vida no Centro Agrícola de Reabilitação de Viamão – Rio Grande do Sul. Com forte referencial teórico em De Certeau, a obra traça um grande paralelo de análise, sem abdicar de um estilo lúdico e agradável.

A autora de “Loucos nem sempre Mansos” é atualmente professora do Departamento de História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Sua trajetória acadêmica está ligada a instituições universitárias gaúchas. Passou um período em Paris, França, onde pôde aprofundar seus conhecimentos na École des Hautes Études en Sciences Sociales – EHESS (2008 2009) e onde também se tornou membro da Association pour la Recherche sur le Brèsil en Europe (ARBRE). Atualmente, membro do Laboratório de Patrimônio Cultural (LabPac), ligado ao Centro de Ciências da Educação (Faed – UDESC), tem como foco de pesquisa temas relativos ao patrimônio cultural, à história da loucura e da psiquiatria, da saúde e doença, do sofrimento, da história oral, da memória e da escrita de si.

Sant’Anna Espindola – Graduanda em História na Universidade do Estado de Santa Catarina. E-mail: [email protected].

Memórias de uma guerra suja – GUERRA (RTA)

GUERRA, Cláudio. Memórias de uma guerra suja. Rio de Janeiro: Topbooks, 2012. Em depoimento a Marcelo Netto e Rogério Medeiros. Resenha de: RUBERET, Silvania. Para além da “guerra suja”: as revelações de Claudio Guerra. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 5, n.10, jul./dez. 2013. p. 458 – 463.

Segundo um dos jornalistas que fez as entrevistas, Rogério Medeiros, “ninguém suplantou, em qualquer tempo, o delegado Cláudio Guerra, da Polícia Civil do Espírito Santo, na arte de matar” (GUERRA, 2012, p.13). Cláudio Guerra, um dos mais sanguinários policiais da ditadura civil-militar brasileira, hoje pastor da religião Evangélica, cumpre pena de prisão recolhido em uma instituição para idosos, e desenvolve algumas atividades sociais sob a supervisão da Justiça. Atuou no DOI-CODI, órgão subordinado ao Exército, de inteligência e repressão do governo brasileiro durante o regime militar, que visava o combate direto contra os chamados “inimigos internos” que representavam uma ameaça à segurança nacional.

Para Rogério Medeiros, Guerra é “um ardiloso e implacável matador” (p.13), atributos estes que fizeram o regime militar logo recrutá-lo para ser o autor de muitos de seus crimes. Dentro deste jogo, ele foi importante peça, matou sem deixar rastros, impôs maior perícia aos crimes, fato desejável pela ditadura que não queria deixar rastros, pois tinha de legitimar-se no poder, e a imprensa, mesmo sob censura, ainda encontrava pequenas aberturas para denunciar os crimes. Segundo consta no livro, “Guerra e Fleury foram recrutados pelos desempenhos à frente dos esquadrões da morte do Espírito Santo e de São Paulo nos 1970, e já por aquela época eram tidos como os mais sanguinários matadores para os que se encontraram em atividades política de esquerda no Brasil.” (GUERRA, 2012, p. 25).

Impôs racionalidade ao processo de execuções. Diferentemente do delegado Sérgio Paranhos Fleury que não agia com tanta discrição, trouxe a ideia de que os agentes da repressão atuassem em regiões diferentes das suas de origem, a fim de eliminar ou diminuir bastante o risco de serem identificados.

De todas as informações trazias pode-se dizer que a de maior impacto foi sobre as incinerações de combatentes assassinados pela ditadura. O ex-delegado deu uma lista de dez presos políticos mortos pela tortura e incinerados na Usina Cambahyba, na cidade de Campos, estado do Rio de Janeiro. Muitos foram mortos no centro de tortura e assassinatos conhecido como ‘Casa da Morte’, situado na cidade Petrópolis, RJ. Algumas das vítimas, segundo o relato, foram Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira, David Capistrano, Ana Rosa Kucinski, João Batista Rita, Joaquim Pires Cerveira, Wilson Silva, João Massena Melo, Eduardo Coleia Filho, José Roman e Luiz Ignácio Maranhão Filho. Porém, ele não sabe precisar quantas pessoas tiveram seus corpos lá incinerados. A usina, à época, era do ex-deputado federal e ex-vice-governador do Rio de Janeiro, Heli Ribeiro Gomes, que faleceu em 1992.

Dentre os eventos violentos produzidos pela ditadura recebe destaque no livro a Chacina da Lapa. Diz ele: “foi realmente uma chacina. Eles estavam desarmados. Pejota matou Arroyo e Fleury, Pomar” (GUERRA, 2012, p.66). “Pejota” seria Paulo Jorge, tenente da Polícia Militar do Espírito Santo, atirador de elite. Na página seguinte, o autor também comenta sobre as brigas que existiam entre os órgãos repressores e pessoas ligadas a eles. “Nessa época, havia uma desavença entre o delgado Fleury, o Exército e o SNI. Fleury era municiado de informações pelo Cenimar, órgão da Marinha ao qual era mais ligado”. Ainda sobre as disputas entre os integrantes da repressão, Guerra (2012, p.94) diz: “A meu ver, não havia uma força dominante na comunidade. Na verdade, existiam muitas redes de informação dentro dela, e os ciúmes e a disputa pelo poder dificultavam muitas vezes a comunicação entre essas redes”.

Além da repressão institucionalizada, grupos paraestatais foram criados. Os esquadrões da morte (nome dado aos grupos que agiam ilegalmente no combate aos opositores ao regime, e formados, em sua maioria, por civis) criavam suas próprias leis no combate aos militantes de esquerda no Brasil. Esse tipo de atitude era, inclusive, indicada pelos militares. Exemplo disso foi a Política de Segurança Interna, criada pelo então presidente ditador Arthur da Costa e Silva. Segundo Guerra (2012 p.114), “o documento estabeleceu, entre outras coisas, que caberia aos comandantes militares de área do Exército a responsabilidade pelo planejamento e execução das medidas para conter a subversão e o terrorismo”. Não tardou para ficar visível que os repressores agiam fora da lei e também fora da cadeia de comando militar, ganhando cada vez mais autonomia e poder. As teses criadas pelos órgãos estatais sempre objetivavam justificar os crimes políticos, mostrando que as ações não deveriam ter limites, a fim de que se banisse totalmente a ameaça comunista do território brasileiro.

Somava-se a estrutura acima citada o apoio financeiro de alguns empresários brasileiros. O ex-delegado Cláudio Guerra cita, inclusive, um restaurante chamado Angu do Gomes, que chama de “restaurante da conspiração”: “o restaurante, inaugurado em 1977 pelo português Basílio Pinto Moreira e por João Gomes, era associado a uma sauna e foi fachada para as nossas atividades, misturando agentes da comunidade de informações, a Irmandade Santa Cruz dos Militares, a Scuderie Le Cocp, o jogo do bicho, artistas, coronéis e prostitutas. “Essa relação mascarou vários crimes e ações violentas contra a redemocratização do Brasil” (GUERRA, 2012, p.118). Já a sauna que existia junto ao restaurante, funcionava como um meio de justificar a movimentação dos recursos financeiros arrecadados e utilizados nas ações clandestinas, e também como depósito de armas. Esclarece que “os recursos que viabilizavam o pagamento da equipe de operações clandestinas vinham dos empresários que, em troca, eram beneficiados pelo regime militar. Dinheiro nunca faltava. Religiosamente, todo dia primeiro, o pagamento estava na conta” (GUERRA, 2012, p.143).

Cita dois bancos que patrocinavam as ações de seu grupo: o Mercantil (um dos maiores banco da década de 1960) de São Paulo e o Sudameris (fruto da fusão entre dois bancos europeus). Nestes bancos havia a movimentação oficial, por onde recebiam seus soldos, e a extraoficial, usada para o dinheiro recebido para e pelas operações ilícitas, sob nome falso. Guerra afirma que circulava muito dinheiro pela conta extraoficial: “pela conta de Stanislaw Meireles passava muito dinheiro. Eu poderia comprar um carro todo mês. Havia um fixo garantido, o correspondente a 5 mil reais hoje, mas entrava 100 mil, 200 mil, tudo dependia do que estava sendo planejado para minhas missões” (GUERRA, 2012, p.142). O autor cita políticos, empresas, contraventores do jogo do bicho e, inclusive, o jornal A Folha de São Paulo, que teria emprestado os carros que distribuíam jornais para serem utilizados pela Operação Bandeirantes – OBAN, para a prisão de perseguidos políticos.

O episódio do Atentado ao Riocentro foi resultado de um frustrado ataque a bomba, que deveria ter ocorrido no Pavilhão Riocentro, no Rio de Janeiro, em 30 de abril de 1981, onde acontecia um show em comemoração ao Dia do Trabalhador. O plano era para que uma bomba explodisse durante o evento, que reunia milhares de pessoas para que muitos dos presentes morressem, justamente para criar uma comoção que direcionasse todos a aceitarem que a abertura política seria uma opção negativa e inviável.

As bombas seriam plantadas pelo sargento Guilherme Pereira do Rosário e pelo então capitão Wilson Dias Machado, porém, uma das bombas explodiu dentro do carro onde ambos estavam, no estacionamento do Riocentro. Como resultado o sargento morreu e o capitão feriu-se gravemente. Segundo Guerra (2012, p.79), “um erro primário dos militares que carregavam o explosivo detonou-o antes da hora prevista”. Até o cuidado de utilizar os mesmos tipos de explosivos que os cubanos usavam eles tiveram.

O objetivo era convencer os adeptos da abertura de que se fazia necessária uma nova onda de repressão, a fim de paralisar o processo de abertura política que havia se iniciado em 1974 quando o general Geisel entregou o governo a seu sucessor: um presidente civil. Em 1999 foi reaberto o inquérito policial sobre o caso, e se concluiu que havia provas para incriminar Freddie Perdigão, mas ele morreu em 1997.

Segundo o depoimento de Guerra, a bomba explodiu antes por imperícia do capitão Wilson, que não era especialista em explosivos, e estacionou o carro embaixo de fios de alta tensão, cuja carga elétrica provocou a explosão da bomba. O acontecido não só atrapalhou os planos de seus organizadores, como também representou um retrocesso nas pretensões de formar uma opinião contrária à abertura política. Para concluir esta parte, cita-se a fala de Guerra (2012, p.171): “Existia um sentimento de impunidade entre nós, porque fizemos a coisa ostensivamente, sem preocupações com eventuais testemunhas”.

Sem dúvida o tema das incinerações merece destaque, um negativo destaque, diga-se. Ao mesmo tempo em que Cláudio Guerra assume vários crimes, exime-se de outros, dizendo, por exemplo, que apenas levou os corpos para serem incinerados na usina, mas não os matou. Afirma, também, que os fornos eram usados por outros agentes da repressão, o que torna imprecisos os dados sobre o número de incinerações, bem como a identificação dos mortos.

Outra questão que surge no decorrer da leitura é de para onde foram todas essas pessoas envolvidas com tantos crimes? O autor cria uma ponte entre o fim (ou pelo menos grande diminuição) das perseguições e o advento de organizações criminosas, mas não necessariamente de cunho político, como ocorria durante a ditadura civil-militar no Brasil, ao dizer que: “a decadência dos aparelhos de combate ao comunismo coincide com o crescimento de organizações criminosas ligadas ao tráfico de drogas, à formação de milícias e principalmente o jogo do bicho. O know-how conquistado com o aparato do Estado agora serviria ao submundo do crime organizado” (GUERRA, 2012, p.194). O próprio Cláudio Guerra trabalhou como chefe de segurança de muitos contraventores do jogo do bicho no Rio de Janeiro, e diz que ganhava muito bem. Sendo assim, vemos aí mais uma, dentre tantas, sequela do regime ditatorial no Brasil: a criação de grupos e facções criminosas, que podem estar atuando, ainda hoje, em outras frentes, embebidas no ideal de impunidade.

Silvania Rubert – Doutoranda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected].

O desafio historiográfico – REIS (RTA)

REIS, José Carlos. O desafio historiográfico. Rio de Janeiro: FGV, 2010, 160 p. Resenha de: SILVA, Vicentônio Regis do Nascimento. Desafios. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 5, n.9, jan./jun. 2013. p. 472 – 476.

A história é um conhecimento possível? Seria possível fazer afirmações com significado lógico sobre o passado? significado lógico sobre o passado? Seria possível fazer uma descrição objetiva do passado, referindo-se de fato a ele? Se isto for possível, quais os limites dessa possibilidade? O que faz efetivamente o historiador? Qual é o seu real interesse, a sua sensibilidade profunda? Qual seria a relevância intelectual de uma pesquisa histórica? Enfim, qual seria a identidade epistemológica da história? (p. 11).

Em linguagem melíflua, informal, acessível, repleta de paixão e, ao mesmo tempo, densa, acadêmica e erudita, O desafio historiográfico é, em poucas palavras, declaração de amor à História (com H maiúsculo), defesa do ofício dos historiadores e, principalmente, esclarecimentos didáticos de quem, nas últimas décadas, se empenhou nos estudos e na divulgação das filosofias e das teorias dessa manifestação do conhecimento. Seria ela disciplina? Matéria? Ciência? Arte? Os primeiros três capítulos são inéditos. Discutem a utilidade, o status e a responsabilidade dos historiadores, os papéis da História, da Memória, do Esquecimento, as relações entre História e Literatura. Os últimos três retomam reflexões anteriores, devendo, tanto uns quanto outros, ser acompanhados de Carr, Schaff, Aron, Rusen, Marc Bloch e, entre os brasileiros, Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas.

Conforme o autor, a análise das dificuldades e o confronto de objetos são pressupostos da reflexão do profissional. A alta complexidade de teorias, metodologias e análises instigam pesquisadores a defender a inviabilidade do conhecimento histórico argumentando, entre outros, o fato de 1) apresentar-se indireto e inconsistente, recorrendo a testemunhos (intermediários suspeitos) que podem controlar a imagem construída para o futuro; 2) inventar conceitos que não explicitam os objetos estudados, mas criam intrincados sistemas de dados a fim de fomentar a “verdade”; 3) atribuir caráter anedótico à História, incapaz de previsões, articuladas após a ocorrência dos eventos, respaldando obviedades e falácias; 4) evidenciar o anacronismo: o conhecimento do passado perdura uma geração do presente, ao fim da qual novas interpretações surgem, sendo a História permanentemente reescrita; 5) fomentar reconstrução fantasmagórica em que, sem objeto, não se produziriam erros, mas confusões. Objetivando inicialmente a queda da imaginação e do discurso ficcional por meio da pesquisa e da investigação de fatos provenientes de testemunhos oculares, a História esforça-se para:

representar adequadamente o real, realizando as seguintes operações cognitivas: registro, memorização, revivência, reconstituição, reconstrução, interpretação, compreensão, descrição, quantificação, narração, análise, síntese. Como busca da verdade, como conhecimento adequado da realidade dos fatos humanos, ela reivindica o estatuto de “ciência” e quer ser considerada “antípoda da ficção” (p. 17).

Segundo José Carlos Reis, a História recorre a mecanismos e sistemas científicos a fim de se sobressair e se sobrepor; contudo, pondera, seguindo as perspectivas de Nietzsche, que deveria alojar-se contígua à ficção, alçando-se mais a arte do que a ciência. Já Comte a vislumbra de maneira mais pragmática e menos estética, considerando sua finalidade o registro de descobertas, de anais, da linguagem e da memória. Desde seu surgimento, entra em crise, muda de estratégias, influencia instituições e afasta-se de teorias heterodoxas para, na primeira década do século XXI, estreitar diálogos com a literatura, a psicanálise, o cinema e a publicidade. As gerações de novos historiadores desejam implantar “novas histórias” e, para atingir suas finalidades, desvalorizam teses precedentes, ignoram a história da historiografia, incitam ou agravam as tensões nas relações com filósofos, antropólogos, sociólogos, economistas e religiosos.

Depois de esmiuçar as diferenças e as preocupações com a ficção, o autor aborda Memória e Esquecimento na perspectiva de Paul Ricoeur – adepto da fenomenologia de Husserl –, cujo método “(…) pode ser definido como uma ‘hermenêutica fenomenológica’: o fenômeno é o que aparece e não se mostra (fenomenologia) e exige interpretação (hermenêutica)” (p. 31).

Ressalvando-se a impossibilidade de afastar Memória de Imaginação – geralmente contrapostas –, algumas características fazem com que uma se diferencie da outra. Fantástico, ficção, utópico, tempo e lugar indeterminados ou indetermináveis e universo da fantasia são elementos da Imaginação. Na Memória, preponderam a realidade anterior (fenômeno da coisa ausente, mas que existiu), a distância temporal determinável, a ligação ao passado (nunca ao presente ou ao futuro, distinguindo-se percepção/sensação de expectativa), passagem e experiência real do tempo (acompanhadas das lembranças deixadas por elas). Na Memória, conclui o autor, destaca-se o mundo da experiência, em que ações ou eventos são comuns e compartilhados. Ricoeur atribui à Imaginação a condição de requisito para ajudar a Memória a tornar o passado visível, produzindo o reconhecimento. Alicerçada no mundo da experiência, a Memória é vulnerável, comete abusos, joga – consciente ou inconscientemente – algumas situações ao Esquecimento, fomenta relação conflituosa com a historiografia, busca a objetividade em suas explicações ou compreensões exteriorizadas na escrita e na leitura. Evocando Ricouer, “memória feliz” é a que é capaz de operar o “milagre do reconhecimento”.

Retomando os questionamentos de História/Realidade e Ficção/Invenção, o terceiro capítulo analisa as nuances historiográficas e ficcionais da narrativa. Inicialmente, o autor examina Hayden White – conhecido entre os estudiosos das relações entre História e Literatura –, para quem a narrativa histórica constitui desdobramento literário a partir do qual se aventa: história é quase ficção, ficção é quase história.

O capítulo seguinte salienta as problemáticas dos Annales, aprofunda percepções sobre o fato histórico como “construção” – o fato histórico interessa quando da passagem de fato histórico “bruto” a fato histórico “construído” –, redimensiona os conceitos de fonte histórica e de história global ou total, impulsiona a interdisciplinaridade, afastada da filosofia e aproximada das ciências sociais.

O que faria a união da história e das ciências sociais estava além do método, era o “objeto comum”: o homem social. É esse objeto comum, em seu ser social e empírico, que exige uma análise interdisciplinar. Para a análise desse objeto, que lhes é comum, história e ciências sociais “trocariam serviços”: conceitos, técnicas, dados, problemas, hipóteses. No início, a historiografia dos Annales se associou à economia, à sociologia e à geografia. Dessas associações, apareceram ciências compostas: história econômica, história social, geo-história; depois, história demográfica, história antropológica etc. (p. 102-103).

O quinto capítulo aborda relações e confrontos entre os Annales e o Marxismo. Revela as dificuldades de situá-las em decorrência das heterogeneidades tanto no interior da primeira quanto no da segunda. Os argumentos condensam-se em três dimensões explicativas: complementares (pontos em comum aproximam ambas as escolas, minimizando divergências, respaldando a reciprocidade na pesquisa histórica), antagônicas (ao diálogo se sobrepõe, nas palavras do autor, enfrentamento em ritmo de “bate-boca”) e diferenciadas:

Nessa terceira abordagem, a diferença entre as duas escolas se mantém e se intensifica e os níveis ideológico e epistemológico não se fundem. O debate se torna teórico, conceitual. A divergência torna-se profundamente fecunda. Na nossa perspectiva, não seria interessante para a teoria da história nem que as duas escolas se tornassem “complementares” (colaboradoras e indiferenciadas), nem “apaixonadamente diferentes” (surdas-mudas teoricamente entre si). Teoricamente, a sua divergência é extremamente enriquecedora dos estudos históricos e das opções de ação históricas e não deve ser atenuada, mas intensificada. São duas “hipóteses históricas”, dois instrumentos de trabalho, sem nenhum compromisso com a colaboração.

[…] Marxismo e Annales são holofotes parciais que iluminam de algum modo a realidade social. São “ângulos de iluminação”, “pontos de vista”, “instrumentos teóricos”, “hipóteses”, que só são fecundos enquanto são nitidamente “opções teóricas”. Os historiadores se servem de tais hipóteses e não poderiam ser vítimas delas (p. 132-133).

O desafio historiográfico chega ao fim com breves considerações sobre Gilberto Freyre. Em jogo de palavras no elogio ao intelectual e à Casa Grande & Senzala, sua obra mais conhecida, José Carlos Reis adjetiva-o de interlocutor “eterno”, “incontornável”, “indecifrável”, “genial” e “impreciso”, “revolucionário” e “conservador”.

Como explicitado no parágrafo de abertura, O desafio historiográfico é um livro apaixonante e apaixonado. Em linguagem informal, acessível, densa, acadêmica e erudita, reaviva o amor à História e convoca os historiadores – e demais adeptos – a lutarem por ela. Seja pelo desfile de convergências e distanciamentos teóricos, seja pelo didatismo facilitado pela inclusão de subtópicos, estudiosos e iniciantes possuem em mãos texto de alta qualidade que, além da relevante análise de temas e problemas historiográficos, atinge magistralmente assunto crucial na rotina acadêmica e no dia-a-dia docente: as relações entre História e Literatura. Portanto, já se sabe onde buscar explicação consistente e clara quando o aluno questionar: – Mas, aconteceu de “verdade”? É “real”? Como posso saber que, mesmo existindo, alguém não “inventou” mais nada sobre isso?

Vicentônio Regis do Nascimento Silva – Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP – Assis/SP). E-mail: [email protected].

Ver História: O Ensino Vai aos Filmes – SILVA; RAMOS (RTA)

SILVA, Marcos; RAMOS; Alcides Freire (org.). Ver História: O Ensino Vai aos Filmes. São Paulo: HUCITEC, 2011. Resenha de: PEREIRA, Lara Rodrigues; ALAMINO, Caroline Antunes Martins. Entender história: os filmes e o ensino. Tempo e Argumento. Florianópolis, v. 4, n. 2, pp. 205 – 208, jul/dez 2012.

 “Ver História: O Ensino Vai aos Filmes”, editado pela HUCITEC em 2011, é uma composição de vários artigos escritos por diferentes autores, cujo tema central é a linguagem cinematográfica na História. Organizado pelos pesquisadores Marcos Silva, professor titular de Metodologia da História da FFLCH – USP, e Alcides Freire Ramos, professor do programa de pós-graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia, o livro tenta abordar as possibilidades metodológicas existentes nos filmes para a construção do processo de ensino/aprendizagem. Ao analisar o título da obra, é possível perceber a leitura visual da História proporcionada pelo cinema através de suas narrativas, sejam elas baseadas em ficções ou não. Essa propriedade fica evidenciada no texto de apresentação da obra, através do qual seus organizadores partem do princípio de que “todo o filme ensina algo”. Tal premissa acompanhará a narrativa construída por cada articulador, pois através das leituras sistematizadas de seus objetos, vão apresentando para o leitor as tramas, conflitos, rupturas e permanências históricas retratadas pelo cinema.

O livro foi estruturado em dois blocos, sendo que no primeiro e mais extenso, composto por dezessete artigos, a abordagem do objeto cinema foi concebida através de Vai ao Cinema”, o tema ensino não é abordado de forma direta, há apenas uma análise precisa de um ou mais filmes, sendo que seu caráter didático fica a cargo da imaginação do leitor. Isso representa certa incoerência entre o título, que teoricamente guardaria as intenções do livro, e seu conteúdo, pois a palavra ensino (que está no título do livro) teria a propriedade de delimitar um campo de conhecimento voltado para a educação.

Em outros artigos fica evidente a preocupação com a apropriação de narrativas cinematográficas pelos professores em sua prática docente. Esta perspectiva está presente no texto de abertura do livro escrito pelo pesquisador Airton Cavenaghi, que recoloca em cena o filme de Humberto Mauro, “O Descobrimento do Brasil”, clássico do cinema educativo brasileiro da década de 30, e suas possibilidades para o ensino de História na contemporaneidade. O artigo subsequente relata experiência em sala de aula decorrente do uso de dois filmes produzidos nos EUA, que têm como mote a guerra fria. Neste texto o autor/professor Igor Carastan Noboa indica suas escolhas metodológicas para lidar com duas narrativas diferentes, que abordam o mesmo tema, buscando nelas um contraponto necessário ao entendimento do período que enfocam.

Temas como memória e disputas por poder são recorrentes nos artigos deste livro, mostrando que essas também são preocupações inerentes ao ensino, sobretudo de História. Os textos “Desvendando Glauber Rocha: Uma Interpretação de Terra em Transe” e “A Estratégia da Aranha: O Mito do Traidor e do Herói”, escritos por Maurício Cardoso e José de Sousa Miguel Lopes, são os exemplos mais contundentes dos usos, manipulações e disputas pela memória, pois esta seria a matriz dos mitos e ordenamentos políticos existentes tanto em Terra em Transe quanto em A Estratégia da Aranha. Estes dois textos representam trabalhos de pesquisa muito significativos, nos quais os objetos de estudo foram minuciosamente analisados pelos articulistas. Mas as possibilidades pedagógicas destas duas narrativas cinematográficas, que poderiam promover grandes discussões em sala de aula, não são aprofundadas pelos autores. Ainda no campo da memória, o livro nos traz três artigos sobre o mesmo filme: Narradores de Javé. Apesar do objeto comum, cada autor/a procurou enfatizar questões diferentes. Mas algumas leituras repetidas nos artigos sobre a patrimonialização da memória nos levam a identificar certas semelhanças entre os textos. O fato de existirem três artigos sobre Narradores de Javé no mesmo livro, nos faz perceber que o referido filme se tornou uma espécie de Blockbuster dos cursos vinculados às Ciências Humanas, sobretudo da História (do qual é praticamente impossível sair sem assisti-lo). Embora seja compreensível tamanha utilização deste filme, pois trata-se de rica obra artística, que propõe leituras multifacetadas sobre as disputas entre memória e a escrita da História. Mas sendo a indústria cinematográfica tão prolífica em criar e recriar narrativas cujo vetor é a memória, talvez devêssemos atentar para outros filmes além de Narradores de Javé, pois é dever dos pesquisadores do cinema trazer luz a novos objetos oriundos desta indústria, que possibilitem outras leituras sobre a História e a memória.

Outras temáticas de grande relevância para o ensino são abordadas no livro. No artigo intitulado “O Espetáculo Transformador” sobre Para Wong Foo, Obrigada por Tudo Julie Newmar, o autor Marcos Silva enxerga no filme a caracterização de circunstâncias de intolerância recorrentes no quotidiano da sociedade. Baseado em uma visita acidental de três drag queens a uma cidade pequena localizada no interior dos EUA, o filme aponta para a resistência na aceitação de indivíduos que expressam sua sexualidade de maneira a fugir dos padrões sociais vigentes. Tal obra cinematográfica representa uma grande oportunidade de trazer o debate sobre a diversidade e as relações de gênero para a sala de aula, conforme aponta o autor.

A diversidade de autores e objetos de estudo existentes no livro aponta para a grande gama de possibilidades metodológicas envolvendo a utilização de recursos audiovisuais em sala de aula, para além da simples ilustração de acontecimentos e caracterização de personagens históricos. O artigo “A História no Anfiteatro”, sobre Gladiador, foi um texto inteiramente construído com o intuito de afirmar as possibilidades de utilização de um filme baseado em fatos históricos em sala de aula. Através de suas representações sobre o império romano, o filme insere uma trama fictícia em uma história real, pautada por disputas políticas entre pai, imperador Marco Aurélio, e seu filho Cômodo. A autora Maria Luiza Corassin desenvolve eficiente análise do filme não tratando seus desvios históricos como grandes fragilidades da obra, trazendo inclusive discussões muito densas sobre como tratar a falta de fidedignidade histórica das narrativas cinematográficas em sala de aula. Corassim destrinchou o documento fílmico e utilizou outras fontes históricas como contraponto a ele, mostrando o quão consistente pode ser um trabalho em sala de aula baseado em um filme. O artigo “Opinião Pública e Imprensa”,sobre o filme de Costa Gavras O Quarto Poder, traz importantes considerações sobre a utilização da imprensa, seja escrita ou audiovisual, como fonte para o ensino. As disputas existentes entre as emissoras representadas no filme, por um furo de notícia, ajudam a levantar questionamentos a respeito dos telejornais e programas de TV sensacionalistas que existem no Brasil, dos quais a comunidade escolar em geral é expectadora.

Há no livro apenas um texto referente ao gênero documentário e sua linguagem cinematográfica. No documentário Pro Dia Nascer Feliz, a pesquisadora Regina Ilka Vieira Vasconcelos analisa a caracterização da Instituição pública escolar. Embates entre alunos, professores, comunidade, escola e governo perpassam a narrativa construída pelo diretor João Jardim, dando ênfase para a falta de perspectiva da educação pública brasileira. A autora optou por analisar o filme com o auxílio de outras fontes, sendo a principal delas uma entrevista feita com o diretor do documentário. A articulista, ao promover análise da entrevista, conseguiu identificar o lugar social do autor, entendendo assim seus pontos de vista impressos no filme.

Na última parte do livro há um artigo escrito por Jorge Nóvoa que destina-se a identificar as características artísticas e políticas dos filmes do cineasta soviético Sergei Eisenstein. Para isso o autor baseou seu estudo em biografia do cineasta, mostrando que suas preferências artísticas em muitos momentos representaram embargos, por parte do Estado Soviético, a sua obra. Nóvoa traça um perfil psicológico de Eisenstein, no qual suas inseguranças emocionais se mesclam com a efervescência criativa de suas produções no cenário cinematográfico soviético. Nóvoa, assim como Regina Ilka Vieira, nos mostra que compreender um autor, o período no qual produziu sua obra e sua inserção na sociedade retratada permite um entendimento muito mais significativo a respeito de suas escolhas (ou até mesmo a falta delas, no caso de Eisenstein).

O livro “Ver História: O Ensino Vai aos Filmes pode ao mesmo tempo encantar e frustrar o leitor. O encantamento fica por conta das investigações precisas feitas por seus autores de filmes que, produzidos em lugares e tempos diferentes, ajudam a decifrar certos processos históricos. Já a frustração poderá advir da falta de identidade que grande parte dos artigos inseridos neste livro tem com o ensino, ensino este evocado no título da obra. Apesar disso cabe ao leitor, sobretudo ao profissional da educação, apropriar-se deste livro com o intuito de identificar nele suas aptidões didáticas, sejam elas evidentes ou não.

Lara Rodrigues Pereira – Mestranda em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina. E-mail: [email protected].

Caroline Antunes Martins Alamino – Mestranda em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina. E-mail: [email protected].

 

De los cacicazgos a la ciudadanía. Sistemas políticos en la frontera, Río de la Plata, siglos XVIII-XX – QUIJADA (RTA)

QUIJADA, Mónica (ed.). De los cacicazgos a la ciudadanía. Sistemas políticos en la frontera, Río de la Plata, siglos XVIII-XX, Gebr. Mann Verlag, Berlín, 2011. Resenha de: CABALLERO, Gabriela Dalla-Corte. “De los cacicazgos a la ciudadanía. Sistemas políticos en la frontera, Río de la Plata, siglos XVIII-XX” de Mónica Quijada. Revista Tempo e Argumento, v. 4, n. 1, 2012.

En esta obra editada por Mónica Quijada encontramos cuatro excelentes trabajos sobre la zona fronteriza rioplatense entre los siglos XVIII y XX. En primer lugar, Lidia Nacuzzi aborda los cacicazgos del siglo XVIII en el territorio fronterizo de Pampa-Patagonia y en el espacio definido como “Chaco” que en los últimos años afortunadamente ha gozado de un creciente interés académico. El segundo trabajo corresponde a Ingrid de Jong y se centra en las alianzas políticas indígenas de la Pampa y de la Patagonia durante la segunda mitad del siglo XIX, es decir en el periodo de la organización nacional argentina. El tercer trabajo incluido en esta obra pertenece a Mónica Quijada y trata sobre los “indios amigos” de Buenos Aires en su proceso de construcción de la “ciudadanía cívica” en la zona de frontera desde 1820 a 1880, es decir, hasta el triunfo del Estado Nacional argentino. Finalmente, el cuarto artículo es obra de María Argeri y trata la desestructuración de los cacicazgos de Pampa y Patagonia entre 1870 y el declive del gobierno de Juan Domingo Perón en el año 1955. Sobre esta base descriptiva, el primer señalamiento de esta reseña tiene que ver con el interés que produce la lectura de un libro que no pretende darnos historia argentina, sino historia de los indios en las zonas de frontera en momentos puntuales y cambiantes. Como señala la propia responsable de la obra, es resultado de dos antropólogas y de dos historiadoras reunidas en torno a la Red Temática sobre la construcción del pensamiento y método antropológicos en Europa y América Latina que es dirigida por Quijada y Nacuzzi desde el año 2003. Las autoras se centran en el cruzamiento y el mestizaje producido en la frontera indígena de la Provincia de Buenos Aires y de los Territorios Nacionales de la zona patagónica que, mucho antes de que la mirada argentina se dirigiese al Territorio Nacional del Gran Chaco, recibieron un gran interés del Estado Argentino. El rosarino Estanislao Severo Zeballos diseñó por entonces el proyecto de ocupación de las “quince mil leguas” que dio lugar en pleno año 1878 a la publicación del libro La conquista de quince mil leguas tal como aparece en la histórica obra publicada en la capital argentina. Esta frase guió recientemente a la publicación del libro Scribere est Agere, Estanislao Zeballos en la vorágine de la modernidad Argentina en manos de Sandra Fernández y Fernando Navarro (La Quinta Pata, Rosario, 2011), con el afán de describir la ocupación territorial y el sometimiento de los indios de frontera gracias al inteligente “ojo ocular” del personaje más importante que tuvo la Argentina en esas décadas, Zeballos.

El eje de los diversos estudios del libro que reseñamos se centra en el diseño de los sistemas políticos en la frontera rioplatense y la transformación de los Cacicazgos a la Ciudadanía producida entre los siglos XVIII y XX, es decir, durante la Monarquía y también durante el periodo Republicano. Más allá de las diferencias antes señaladas, interesa enunciar los temas centrales que otorgan interés a la obra. Me refiero al proceso de avance de los “blancos” (que en la documentación de la zona chaqueña controlada por la orden franciscana suelen aparecer como “criollos” y “extranjeros”) en las tierras de los indígenas que, como indica la propia Quijada, no tuvieron consciencia sobre el territorio sino sólo percepción ante el “espacio político-social”.

Uno de los ejes más importantes de esta obra es la utilización del término “Cacicazgo” que las autoras vinculan a la antigua “República de Indios” en la época hispánica colonial, y que también aplican en las zonas de frontera signadas por los “indios bravos” desde el proceso de independencia y durante la construcción de la nación argentina. Este concepto es verdaderamente central y por ello considero que la obra coordinada por Mónica Quijada otorga creatividad a la investigación histórica si las dirigimos a comprender el vínculo de los aborígenes con los inmigrantes que se expandieron en el Río de la Plata. Lidia R. Nacuzzi señala la presencia indígena y su relación con los misioneros, que primero fueron jesuitas y posteriormente básicamente franciscanos, así como con los funcionarios del que muy pronto, a inicios del siglo XIX, sería la provincia santafesina en la zona de frontera del Gran Chaco. Llamativamente en este trabajo se diferencia a los españoles de los europeos que ampliaron el control de tierras en el siglo XVIII cuando poco después, lograda la independencia, la condición de español fue identificada como europea. Ingrid de Jong sale de la etapa hispánica y se centra en la organización nacional y en el papel del comercio y de la entrega de raciones a los indígenas, así como la proliferación de tratados de paz para asegurar el poderío del gobierno argentino. En un caso concreto, el de la Confederación Indígena de Calfucurá, la autora observa el espíritu pacífico de los aborígenes en Pampa y Patagonia. En una línea similar se suma la propia Quijada que nos ofrece nueva información sobre los fortines que el gobierno argentino, y también los gobiernos provinciales, crearon en lo que históricamente se ha denominado como “desierto” argentino de la zona sur de Buenos Aires. Hay diversos temas tratados por la autora como el uso de los soldados del ejército que fueron contratados para la ocupación de tierras hasta entonces inexploradas; la donación de tierras que también se dio en otras provincias del área pampeana como fue la propia Provincia de Santa Fe; y especialmente la ampliación del espacio en el periodo histórico que va de Juan Manuel de Rosas a Bartolomé Mitre. Resulta significativo que el artículo de Quijada incluya las fotografías de los indígenas pampeanos que se conservan en el Archivo Nacional de la Nación (AGN) de Argentina, y que a mi juicio tienen diferencias notables con las imágenes que conservan los misioneros franciscanos en la zona chaqueña de la Diócesis de Santa Fe, en concreto en el Convento San Carlos Borromeo de San Lorenzo, para la misma época.

Finalmente, María Argerich cierra el libro con los conceptos guerra y paz en el espacio pampeano y patagónico en el inicio de la República Argentina (1870 aproximadamente) y el fin del gobierno del militar Juan Domingo Perón en pleno año 1955. La autora nos recuerda el uso del concepto “comunidades domésticas patriarcales” que no tuvo efecto en otras zonas, como por ejemplo en el propio espacio chaqueño de los aborígenes mocovíes. En este caso concreto la autora señala que la vida indígena sufrió una derrota a partir de aquella fecha, y que puede servirnos para estudiar los importantes territorios chaqueños que son los menos explorados hasta el día de hoy. Espero que este libro otorgue ideas para los futuros estudios del Gran Chaco que sigue siendo un digno territorio de los indígenas guaycurúes. Estos indígenas, también establecidos en las zonas de frontera, llegarán a tener tanta producción como la Pampa y la Patagonia que se expresa en esta obra coordinada por Mónica Quijada y titulada De los Cacicazgos a la Ciudadanía.

Gabriela Dalla-Corte Caballero – Doutora em História da América e também em Antropologia Social e Cultural. Professora da Universidade de Barcelona – Espanha. E-mail: [email protected].

“O Oitavo Dia”: produção de sentidos identitários na Colônia Entre Rios-PR (segunda metade do século XX) – STEIN (RTA)

STEIN, Marcos Nestor. “O Oitavo Dia”: produção de sentidos identitários na Colônia Entre Rios-PR (segunda metade do século XX). Guarapuava: UNICENTRO, 2011. Resenha de: MARQUES, Marilda. Suábios do Danúbio: “lembrar, escrever, esquecer. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 4, n. 2, p. 189 – 193, jan/jun. 2012.

“Lembrar, escrever, esquecer” são as palavras com as quais Waldemar Feller, doutor em filosofia e um dos “[…] trezentos e poucos dos denominados pioneiros, ainda vivos, da Colônia Entre Rios1[…],” (STEIN, 2011, p.15) termina o prefácio do livro de Marcos Nestor Stein. Feller apresenta suas memórias sobre a trajetória vivida por ele e seus familiares ao final da Segunda Guerra Mundial, desde Zemlin, Iugoslávia, passando pelos campos de refugiados, situados na Áustria, até chegar ao Brasil. É possível perceber, em sua narrativa, um questionamento acerca da identidade desse grupo de refugiados – os Suábios do Danúbio.

Marcos Nestor Stein 2, partindo de sua trajetória de pesquisa acerca da identidade étnica alemã, escolheu, para sua tese de doutorado3, refletir sobre a identidade do grupo suábios do Danúbio. Nas palavras do autor, a obra tem como tema principal:

[…] perceber como a identificação “suábios do Danúbio” é elaborada, imaginada e, por meio de quais marcos cristalizados nos discursos sobre a história do grupo é fomentado o sentimento de pertencimento, de (re)criação de um “eu” coletivo na colônia Entre Rios”.(STEIN, 2011, p.31) Stein fez uso de fontes escritas e imagéticas. Analisou jornais, livros, relatórios, atas, entrevistas. Pesquisou os arquivos do Museu (Heimatmuseum) da colônia de Entre Rios, da Biblioteca Pública do Paraná, Instituto Martius–Staden (SP) e órgãos de preservação da memória suábia, também na Alemanha4.

Na introdução, o autor apresenta, de forma detalhada, o referencial teórico e metodológico que fundamenta sua pesquisa. Discute, com precisão, questões como identidade, memória coletiva e sentidos identitários, a partir de autores como Le Goff, Pollak, Hall, Portelli, Rüsen, Todorov.

A obra está disposta em quatro capítulos, cada um deles trata de forma articulada as fontes analisadas, quais discursos sobre a identificação dos suábios elas revelam e em que momento foram criadas.

O primeiro capítulo é nomeado “Apátridas em busca de uma nova pátria”: deslocamentos, adaptações e encontros. Como o próprio nome sugere, trata-se dos refugiados, procedentes de diversas partes da Europa. Uma parte desses contingentes era composta pelo grupo Suábios do Danúbio, descendentes de alemães, à espera de uma “nova pátria”, mediante ajuda humanitária. A denominação do termo suábios do Danúbio, “Donauschwaben 5, decorre do desmembramento do Império Austro-Húngaro e as divisões onde povoavam os suábios entre Hungria, Iugoslávia e Romênia, no contexto da pós-Primeira Guerra. Porém, com a chegada da Segunda Guerra Mundial intensificaram-se os conflitos interétnicos. Segundo o autor, “[…] os partisans, apoiados pelo exército russo, acabaram por vencer as tropas alemãs, as quais também eram apoiadas […], [pelos] suábios do Danúbio”. (STEIN, 2011, p.51). Com a derrota da Alemanha, restou uma multidão de “deslocados de guerra”, dentre eles encontravam-se os suábios do Danúbio.

Segundo Stein (2011), a “Ajuda Suíça à Europa” responsabilizou-se pela execução do projeto da imigração, de parte dos refugiados para o Brasil, mediante contato com governos, somando-se 500 famílias, em torno de 2.500 pessoas, as quais, na sua maioria, eram descritas como “apátridas”. A escolha pelo Paraná, e especificamente Guarapuava, não se deu de forma aleatória. Foram realizadas análises minuciosas em torno da topografia do solo, pH, clima, tamanho do terreno e outros.

Os jornais, analisados pelo autor, tiveram papel preponderante na divulgação da chegada dos imigrantes e na formulação da identificação destes, a partir de 1951. As matérias divulgadas, por um lado, reforçavam aos imigrantes a importância do capital humano que representavam para o Brasil, por outro, tranquilizavam os brasileiros, afirmando que não se tratava de “nazistas”, e sim, pessoas especializadas na triticultura.

Os dois relatórios analisados pelo autor sobre a situação dos primeiros anos da Colônia revelam questões importantíssimas. O primeiro, intitulado Bericht über die Siedlungs-Aktion Brasilien (Relatório sobre a Ação da Colônia no Brasil), pautou a avaliação sobre questões geográficas, climáticas e econômicas. Porém, “os colonos” não foram mencionados neste. O segundo relatório, elaborado em 1951, por Walter Gossner à “Ajuda Suíça à Europa”, trouxe à tona a realidade e os problemas vividos no dia a dia da Colônia.

O segundo capítulo é nomeado “Aculturação e Identidade Étnica”. Stein pontua, a partir dos discursos do Governador Bento Munhoz da Rocha Neto, na ocasião das comemorações centenárias de emancipação política do Estado do Paraná, a necessidade de consolidar a identidade do povo paranaense, tendo em vista que, para o governador, o Estado ainda não a possuía. A ocupação do território exigia, além de alemães, agricultores ou operários que tivessem uma predisposição para a “aculturação”.

Neste cenário comemorativo de 1953, os imigrantes germânicos publicaram um “Memorial Histórico”, o qual resultou na publicação do livro “O Paraná e os Alemães”. Um fragmento da obra é dedicado aos suábios do Danúbio. Nele, o autor identifica um “discurso exemplificador” sobre o grupo, onde reforça sua imagem, sua importância no desenvolvimento do Estado e o esforço em “aculturar-se”, ao aprender a língua portuguesa. A Colônia Entre Rios é colocada como um exemplo a ser seguido pelos suábios.

Outro “discurso exemplificador” aparece na peça de teatro intitulada “O Oitavo Dia – Der Morgen des Achten Tages”, publicada por Helmut Abeck,6 em 1964. A peça, baseada em fatos históricos ocorridos nos dez primeiros anos da Colônia, apresenta uma fonte riquíssima de elementos, falas, posturas, sobre como interpretar a “aculturação” pelos suábios. Ao contrário da fala do Governador, a peça revela as dificuldades dos suábios em aceitar “o outro”, em “aculturar-se”, tendo em vista as denominações atribuídas a este “outro”, os brasileiros aqui estabelecidos: o caboclo, o inferior, o nativo, o preguiçoso o não autônomo, pois necessitava dos suábios, de sua sabedoria e conhecimento, para transformar aquela paisagem que estava ainda “adormecida” em um imenso celeiro agrícola. Dentro da mesma linha de análise, o autor apresenta reflexões sobre o relatório de Arpad Szilvassy7, intitulado Aspectos Gerais da Colonização Comunitária Europeia no Paraná. Nele, mostra que os suábios não se adaptaram ao ambiente como se esperava e propagavam os jornais, tampouco com as pessoas com as quais passaram a conviver: os brasileiros. Diferente da peça de teatro e do próprio discurso do Governo, onde a “aculturação proporcionaria benefícios para ambos, houve o inverso, o medo da mistura étnica”. Ou, como sabiamente apontou o autor, “é o acaboclar, a versão negativa do aculturamento”. (STEIN, 2011, p.155).

No terceiro capítulo, nomeado “Memória de Júbilo: elaboração de sentidos identitários em publicações comemorativas (1971 e 1976), o autor analisa duas produções, as quais visavam à construção identitária coletiva dos suábios. Em 1971, no vigésimo aniversário de Entre Rios, foi publicação o livro de Albert Elfes “Suábios no Paraná” e em 1976, nos 25 anos, o livro Entre Rios: documentário ilustrado da colonização suábio danubiana. A primeira traz mensagens de “pessoas importantes” congratulando a colônia pelo seu aniversário, seguidas de fotografias, acompanhadas de texto explicativo, reforçando a identificação suábia. A segunda é composta por fotografias que retratam a trajetória percorrida pelos antepassados desde a Europa até a chegada ao Brasil. Diante disso, o autor chama atenção quanto às duas obras, tendo em vista que se tratam de narrativas que visam construir uma identificação coletiva dos suábios. 7 Nascido na Hungria, em 1912, Szilvassy trabalhou em New York, Estados Unidos, como professor visitante da Fundação Kossutho. Em 1963, veio ao Brasil na qualidade de professor na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. (STEIN, 2011, p.148) No último capítulo, nomeado “Guardiões da Memória-Identidade” o autor analisa um lugar de memória, o Museu Histórico de Entre Rios – Heimatmuseum, criado em 1971, onde as mulheres, as “guardiãs da memória”, tiveram papel preponderante na montagem do Museu e na coleta dos materiais trazidos e conservados pelos suábios da Alemanha, com significações para o grupo. O autor, por imagens cuidadosamente selecionadas do interior do Museu, leva o leitor a uma viagem ao passado do grupo e a maneira que fragmentos desse passado são interpretados e preservados por eles, ainda hoje.

Outra fonte de análise são matérias do Jornal de Entre Rios, especialmente a série de entrevista intitulada “Um Povo Luta Pelo Seu Futuro” (Ein Volk Kämpft Um Seine Zukunft), publicada em 1994. Com relação à série, o autor apresenta o objetivo de sua publicação, a homogeneização de um discurso sobre a identificação suábia, tendo em vista que os relatos usados foram previamente escolhidos, recortados e as falas empregadas foram interpretadas de forma conclusiva. A história individual torna-se coletiva e os membros se identificam com este coletivo.

O autor, no decorrer da Obra, revela a habilidade de análise das fontes e a articulação destas, permeando toda a problemática não perdendo o foco da pesquisa, e, ainda, permite ao leitor, seus próprios posicionamentos e indagações.

De modo conclusivo, a leitura da Obra instiga novos olhares sobre a produção de sentidos identitários sobre os mais diversos grupos de imigrantes e migrantes presentes dentro e fora do País, prática que se faz urgente e necessária.

1 A Colônia Entre Rios, localizada no município de Guarapuava, Centro Sul do estado do Paraná.

2 Docente do Curso de História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Sua trajetória é permeada por questões que circundam a identidade étnica alemã, mais especificamente, o que se produz em nível de discursos sobre eles, tendo em vista que na dissertação de mestrado problematizou os discursos que norteavam a identificação da germanidade do Município de Marechal Candido Rondon no Extremo Oeste do Paraná.

3 A Obra resenhada é produto da tese de doutorado em História, apresentada ao Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina- UFSC, no ano de 2008.

4 Bibliothek der Ibero-Amerikanischen Instituts Preubischer Kulturbesits (Berlin- Alemanha), Biblioteca do Instituto Ibero-Americano Preubischer Kulturbesits (Berlim-Alemanha), Casa dos Suábios do Danúbio – Haus der Donauschwaben (Sindelfingen-Alemanha), Munich City Library (Munique – Alemanha) e outros.

5 Segundo Stein (2011) a denominação Suábios do Danúbio “Donauschwaben” sofreu variações ao longo da história e está relacionada a elementos geográficos e humanos. Foi criado em 1922, pelos geógrafos Robert Sieger, austríaco e Hermann Rüdiger, alemão e suábio.

6 Filho de imigrantes alemães, oriundos da Namíbia, África, Abeck nasceu em 24 de junho de 1916, em Itajaí, Santa Catarina. Graduou-se em Química pela Universidade Federal do Paraná. Publicou vários textos acerca da presença alemã no Paraná. (STEIN, 2011, p.118)

7 Nascido na Hungria, em 1912, Szilvassy trabalhou em New York, Estados Unidos, como professor visitante da Fundação Kossutho. Em 1963, veio ao Brasil na qualidade de professor na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. (STEIN, 2011, p.148).

Marilda Marques – Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História, com área de concentração em História, Poder e práticas Sociais da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. Orientador Marcos Nestor Stein. E-mail: [email protected].

Arcanos do verso: trajetórias da literatura de cordel – MELO (RTA)

MELO, Rosilene Alves de. Arcanos do verso: trajetórias da literatura de cordel. Rio de Janeiro: 7Letras, 2010. Resenha de: MENEZES NETO, Geraldo Magella de. O mundo do cordel a partir de uma tipografia. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 4, n. 2, pp. 212 – 215, jan/jun. 2012.

Arcanos do verso: trajetórias da literatura de cordel é fruto da dissertação de mestrado em História de Rosilene Alves de Melo pela Universidade Federal do Ceará. A autora, professora da Universidade Federal de Campina Grande, trata da trajetória da tipografia São Francisco, de propriedade de José Bernardo da Silva, na produção de folhetos de cordel entre os anos de 1939 e 1982. O estudo recebeu o prêmio “Sílvio Romero” de melhor monografia sobre cultura popular no âmbito nacional em 2003, sendo publicado pela editora 7Letras no ano de 2010.

O livro é estruturado a partir de uma interessante analogia proposta pela autora entre a trajetória da tipografia São Francisco, localizada em Juazeiro do Norte, e as cartas do tarô. Cada capítulo leva o nome de uma carta, que representa determinado momento da história da tipografia. A primeira carta, O Imperador, representa “o ímpeto inicial, a vitalidade e a força necessárias à realização de um projeto.” Remete ao percurso de José Bernardo da Silva em Juazeiro, “desde sua chegada à cidade em 1926 até o início de suas atividades como folheteiro-editor na década de trinta.” (p. 25). O segundo capítulo, A Roda da Fortuna, simboliza o sucesso, a supremacia, o triunfo, mas também a decadência, o declínio, a desagregação dos projetos. Trata do período de 1939, quando a Tipografia São Francisco é fundada, a 1956, “quando surgem os primeiros sinais da crise que afetaria a editora.” (p. 25). Já a carta da Casa da Morte “simboliza o movimento de criação versus destruição presentes na natureza”, abordando os acontecimentos que se sucederam entre 1957 e 1982, que “resultaram no fechamento da editora e na venda de seu patrimônio.” (pp. 25-26).

Percebe-se na obra uma influência da chamada história do livro e da leitura1, notadamente expressa na afirmação de que “este estudo não está restrito apenas à hermenêutica dos textos”, mas almeja “problematizar as condições históricas de sua produção, os saberes e práticas que transitam em torno desta literatura, bem como as estratégias forjadas para a circulação desta arte entre um número cada vez maior de pessoas.” (p. 24). De fato, Rosilene Melo não se limita a analisar somente os versos dos folhetos, tão comum em pesquisas sobre a literatura de cordel. A autora leva em consideração os aspectos tipográficos dos folhetos e o processo de produção e circulação dos cordéis da tipografia São Francisco, analisando, por exemplo, as capas e quartas-capas dos folhetos da tipografia cearense.2 Além dos folhetos de cordel, Rosilene Melo utiliza como fontes jornais, documentos de cartório, almanaques e entrevistas. Dentre elas, as entrevistas ganham um maior destaque, pois revelam aos leitores os bastidores da tipografia São Francisco, o que não seria possível apenas com as fontes impressas. As entrevistas de personagens como o poeta e editor Expedito Sebastião da Silva permitem conhecer o modo como os poetas elaboram as histórias em versos e o trabalho dos tipógrafos, o processo de produção na tipografia, desde a revisão dos versos e estrofes a composição do texto nas máquinas tipográficas, até a impressão e posterior venda. Desse modo, as entrevistas são importantes no sentido de se conhecer os personagens envolvidos no processo de produção dos folhetos e entender que os impressos vão muito além da relação entre autor e leitor.3 Rosilene Melo trabalha com a ideia de que uma análise da tipografia São Francisco não é possível sem associá-la com a figura de seu proprietário, José Bernardo da Silva, que recebe uma grande atenção por parte da autora. José Bernardo chegou em Juazeiro do Norte no ano de 1926, inicialmente vendendo nas ruas da cidade remédios caseiros, raízes e miçangas. Aos poucos, introduziu os folhetos, que se tornou um dos produtos com o qual obtinha mais lucros. O contato direto com os leitores-ouvintes permitiu a José Bernardo da Silva tornar-se um profundo conhecedor do gosto e das expectativas do público, ao observar os títulos que tinham maior saída. Essa experiência se revelou mais tarde como fundamental para o sucesso que a sua editora veio alcançar. (p. 56). A autora aponta que a escolha da poesia em verso como atividade comercial se justificava, “em primeiro lugar, pelo lucro obtido com a venda dos livros”, já que a venda dos folhetos era um meio de sobrevivência possível para aqueles que buscavam fugir da miséria. (p. 57).

Rosilene Melo investiga o contexto que levou a tipografia São Francisco a se tornar a mais importante editora de folhetos no Brasil a partir dos anos 1950, bem como a cidade de Juazeiro como a mais nova referência da literatura de cordel no país na época. A autora relaciona a ascensão da tipografia com a conjuntura econômica nacional favorável, com a relativa estabilidade monetária e o aumento do poder aquisitivo dos agricultores, principais compradores de folhetos. A autora acrescenta também que José Bernardo se beneficiou da crise das editoras concorrentes, como das editoras de Francisco das Chagas Batista, João Martins de Athayde, Francisco Rodrigues Lopes e Olegário Pereira Neto. (p. 78).

A aquisição das obras de propriedade de João Martins de Athayde em 1949 por José Bernardo contribuiu para o sucesso da tipografia cearense, já que o editor passou a ter os direitos autorais dos folhetos de Leandro Gomes de Barros, principal poeta de cordel e que tinha a preferência dos leitores, tendo assim garantida a “saída” de grande quantidade de folhetos. Somam-se a isso as estratégias utilizadas por José Bernardo para diminuir os custos de produção e acelerar a distribuição de folhetos, tais como: o uso da xilogravura nas capas do cordel, pois utilizava uma matéria-prima fartamente disponível na zona rural, a madeira, e poderia ser produzida em pouquíssimo tempo por artesãos contratados (p. 110); a exploração nas relações de trabalho, já que por volta de 1948 José Bernardo tinha cerca de 12 pessoas trabalhando dia e noite na confecção dos impressos, e nenhum dos trabalhadores estava em situação regular (p. 86), além do emprego da mão de obra de mulheres e de crianças, cuja remuneração é historicamente mais baixa. (p. 98); e a aquisição de novos equipamentos, com os quais era possível imprimir diariamente até 10.000 romances de 32 páginas. (p. 97).

Utilizando uma vasta documentação, Rosilene Melo também aponta as condições que levaram à crise da tipografia São Francisco, tais como: a concorrência com novas tipografias a partir dos anos 1960, o aumento nos custos de produção dos folhetos, inflação, modernização do setor gráfico e problemas administrativos entre os herdeiros da empresa. (p. 131). Tais fatores levantados por Rosilene Melo são importantes no sentido de revisar teses bastante disseminadas ainda hoje, que atribuem ao rádio e a televisão o motivo da crise da literatura de folhetos a partir da década de 1960. Segundo a autora, “foi mais fácil encontrar um álibi, um algoz, para responsabilizar pela crise da produção de folhetos” do que “analisar como condições históricas singulares possibilitaram a queda das vendas e a falência das principais tipografias brasileiras.” (p. 130).

Pode-se acusar a autora de por vezes adotar um tom panfletário na obra, notadamente quando ela trata do estado atual da tipografia, hoje com a denominação de Lira Nordestina, e sob a responsabilidade da Universidade Regional do Cariri (URCA). A autora critica, por exemplo, a “segregação” entre as instituições oficiais que se propõem a “proteger” a literatura de folhetos dos sujeitos que enfrentam, no cotidiano, a árdua tarefa de espalhar essas folhas volantes. Tal “segregação” foi observada pela autora na inauguração das novas instalações da Lira Nordestina em 1988, na qual aparecem nas fontes jornalistas, intelectuais, pró-reitores e representantes da Igreja Católica. Entretanto em nenhum dos registros fotográficos aparecem os trabalhadores da Lira Nordestina, sendo o mais ilustre ausente o poeta Expedito Sebastião da Silva. (p. 170).

Além disso, Rosilene Melo aponta que a “estatização” da tipografia tem se mostrado desastrosa, já que sucessivos problemas de administração, falta de projeto editorial, falta de uma política para a editora pela instituição dirigente, a Universidade Regional do Cariri são alguns dos problemas que impediram o bom funcionamento da editora desde a estatização (p. 175). Tal discurso panfletário expresso no final da obra não deixa de expressar o envolvimento da autora com o seu objeto de pesquisa, envolvimento este que se mostra positivo, já que demonstra uma preocupação com o futuro da editora e ressalta a sua importância histórica e cultural para a cidade de Juazeiro do Norte.

Desse modo, Arcanos do verso é uma excelente contribuição para os estudos dos livros e da literatura de cordel. Rosilene Melo demonstra estar bastante sintonizada com os debates historiográficos sobre o cordel e traz importantes perspectivas para esse campo de estudos. Ao mesmo tempo em que o caso da tipografia São Francisco é singular, a partir dela podemos estabelecer novas abordagens da produção e circulação dos folhetos de cordel no Brasil. Além disso, evidencia a possibilidade de múltiplas pesquisas sobre Juazeiro do Norte, cidade muitas vezes reduzida à figura do Padre Cícero, personagem tradicionalmente associado a essa localidade.

1 André Belo afirma que mais do que apenas o livro como objeto material, “essa história compreende a comunicação e todos os processos sociais, culturais e literários que os textos afetam e envolvem.” O autor acrescenta ainda que essa área é “fortemente interdisciplinar, reunindo contribuições de várias disciplinas e de várias tradições de estudo em diferentes países.” No Brasil, de acordo com André Belo, “onde é débil a tradição bibliográfica de estudos técnicos sobre o livro antigo, os estudos que se tem desenvolvido aparecem normalmente sob a designação de ‘história da leitura’, não tanto como ‘história do livro’.” BELO, André. História & livro e leitura. Belo Horizonte: Autêntica, 2002, pp. 39-40.

2 Roger Chartier chama a atenção para a questão da materialidade dos impressos ao afirmar que “não existe nenhum texto fora do suporte que o dá a ler, que não há compreensão de um escrito, qualquer que ele seja, que não dependa das formas através das quais ele chega ao seu leitor.” CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand, 1990, p. 127.

3 Nessa perspectiva, Robert Darnton sugeriu um “circuito de comunicação” dos livros. Esse circuito é um modelo proposto para analisar como os livros surgem e se difundem entre a sociedade. Este pode ser descrito como um circuito de comunicação que “vai do autor ao editor (se não é o livreiro que assume esse papel), ao impressor, ao distribuidor, ao vendedor, e chega ao leitor”. DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo: Cia. das Letras, 1990, p. 112.

Geraldo Magella de Menezes Neto – Mestre em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará. E-mail: [email protected].

Vargas e a crise dos anos 50 – GOMES (RTA)

GOMES, Ângela de Castro (org.). Vargas e a crise dos anos 50. 3. ed. Rio de Janeiro: Ponteio, 2011. Resenha de: VASCONCELOS, Felipe de Sousa Lima. “Vargas e sua herança: a importância de se discutir a década de 1950 e a obra de Ângela de Castro Gomes”. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 4, n. 1, 2012.

É por construir obras de referência como Vargas e a Crise dos anos 50, que Ângela de Castro Gomes é reconhecida como um dos principais nomes da historiografia nacional quando se trata do período getulista. A obra, composta por artigos escritos por estudiosos de várias áreas do conhecimento, trata dos anos 1950 por meio de uma perspectiva plural. Lançada pela primeira vez em 1994, chega a sua terceira edição, para a satisfação de quem busca abordagens diferenciadas acerca desse período conturbado e importante da História do nosso país.

Desde que lançado, Vargas e a crise dos anos 50 foi reverenciado com elogios de diferentes estudiosos da História do Brasil e do período varguista, em especial. Época de grandes realizações e transformações em diversos setores de nossa sociedade, a Era Vargas é comumentemente trazida à tona ao se discutir sobre temas centrais para os rumos do país. Em áreas como educação, saúde e economia ainda hoje vemos os reflexos dos quinze anos em que Getúlio Vargas esteve à frente do poder. Seu legado é um dos temas centrais do livro, cuja discussão é de grande importância para a conjuntura política atual. Pela abrangência e singularidade nas abordagens, o livro é capaz de despertar interesse de vários pesquisadores, quase vinte anos após seu lançamento.

O suicídio de Vargas é corriqueiramente interpretado como um dos acontecimentos mais traumáticos de nossa História. Podemos dizer que esse fato teve repercussões em todas as áreas da sociedade brasileira. E o livro organizado por Ângela de Castro Gomes faz uma abordagem tão diversa quanto os impactos deste acontecimento. Há contribuições de historiador, jornalista, economista, cientista político e arquivista, que lançam um olhar sobre a crise dos anos 50 sob diferentes ângulos, possibilitando aos leitores abarcar a complexidade do fato. As diversas fontes pesquisadas pelos autores dos artigos – jornais, revistas, arquivos de partidos políticos, minissérie e mesmo os arquivos pessoais do ex-presidente – fazem com que a obra seja uma das mais completas a respeito do assunto. Contudo, as abordagens não se restringem ao suicídio e à crise instaurada: lançada em 1994, a obra traz importantes discussões acerca de conceitos fundamentais para a construção democrática – nacionalismo, trabalhismo, imperialismo, populismo – num momento em que o impacto gerado pelo primeiro impeachment de um presidente no país era grande.

Ao discorrer sobre a cobertura da imprensa na crise instaurada no país após o atentado da Rua Toneleros, Alzira Alves de Abreu e Fernando Lattman-Weltman não se limitam a simples descrições das notícias veiculadas pelos principais jornais, mas abordam a imprensa como construtora do próprio fato histórico. Debruçando-se sobre aqueles dias conflituosos de nossa política com uma sensibilidade admirável, os autores trazem à tona uma questão fundamental para se pensar os dias atuais: a relação entre imprensa e poder.

Os motins populares que se seguiram ao suicídio de Vargas têm um lugar de destaque na obra. Jorge Ferreira é autor do capítulo “O Carnaval da Tristeza: os motins urbanos do 24 de agosto”. Esse especialista na temática do populismo demonstra que a morte do presidente foi um trauma ao mesmo tempo político, social e simbólico. Lança bases também para uma interpretação inovadora sobre a conjuntura política da época: diferentemente do comumente aceito, afirma que não foi Vargas – ou melhor, não apenas ele – que atrasou o golpe militar em dez anos, mas sim a reação popular à morte do presidente. Colocando as classes mais baixas de nossa sociedade como protagonistas políticos, Ferreira dá uma bela contribuição aos estudos sobre uma cultura política que ainda busca integrar toda a população ao cenário político. Os projetos de leis e as atuações de órgãos criados no segundo governo Vargas são utilizados por Maria Antonieta Leopoldi para discutir o posicionamento do presidente frente à polarização característica do período da Guerra Fria. Figura dúbia, visto por uns como entreguista e pelos mais conservadores como nacionalista extremo, Vargas sintetizava em sua figura as concepções econômicas daqueles tempos. Ao debater sobre o “caminho do meio”, almejado pelo presidente, Leopoldi fornece subsídios para que possamos pensar a herança desse que foi o governante do país por mais tempo, e que marcava as posições políticas e econômicas de sua época: era-se contra ou a favor do varguismo nos anos 1950.

À época do lançamento do livro, comemoravam-se 40 anos da criação da Petrobrás e da Eletrobrás. Não é sem motivos que a temática da soberania nacional na área energética tenha ganhado destaque nas páginas do livro. O livro fornece importantes subsídios para abordar as relações entre o governo, empresários e burguesia industrial ao debater sobre as dificuldades encontradas pelo presidente Vargas em colocar em prática sua política econômica. Não se eximindo de debater sobre os rumos da nossa política econômica, a obra possibilita inclusive que pensemos acerca do peso que o poder econômico tem nas decisões governamentais.

A organizadora da obra, Ângela de Castro Gomes, assina o artigo “Trabalhismo e democracia: o PTB sem Vargas”. O artigo apresenta uma pesquisa sobre um partido político permeada de abordagens sobre a cultura política de então, mas o foco é no significado do trabalhismo e do varguismo na política nacional. O artigo mostra também como o partido herdeiro da figura de Vargas teve que se reestruturar para poder manter-se, num jogo político onde o carisma pessoal é muitas vezes mais impactante aos eleitores do que projetos ou ideologias.

Outra questão presente no livro, no artigo de autoria de Suely Braga da Silva, diz respeito ao legado documental de Vargas. O período de seu governo constitui-se em um dos mais férteis de nossa história em termos de fontes disponíveis. O acervo pessoal de Vargas é preservado e colocado à disposição para pesquisas pelo CPDOC – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas. A trajetória desse acervo e a figura de Alzira Vargas, filha de Getúlio, são debatidas pela autora, que ainda denuncia um obstáculo a ser perpassado pelos especialistas: as dificuldades de se encontrar e estudar fontes sobre o período republicano do país.

São obras dessa profundidade que, mesmo não possuindo uma linguagem estritamente acadêmica, nos mostram que um acontecimento político pode modificar os rumos de toda uma sociedade, e mais que isso: permite mostrar mais uma vez aos historiadores que a política integra e marca de forma indelével todas as áreas do social, e não é a elas subordinada, como alguns insistem em afirmar. ∗

Felipe de Sousa Lima Vasconcellos – Mestrando em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina. E-mail: [email protected].

 

Archivos de Walter Benjamin. Fotografías, textos y dibujos – MARX et. al. (RTA)

MARX, Ursula; SCHWARZ, Gudrun; SCHWARZ, Michael; WIZISLA, Erdmut (eds.). Archivos de Walter Benjamin. Fotografías, textos y dibujos. Tradução de Joaquín Chamorro Mielke. Madrid, (Círculo de Bellas Artes/Sociedad Estatal de Conmemoraciones Culturales), 2010. Resenha de: PEREIRA, Chrystian Wilson. Manuscritos em sépia, imagens da miudeza: legados de Walter Benjamin. Florianópolis, v. 4, n. 1, p. 167 – 201, jan/jun. 2012.

Tecido em um tempo de crises, o pensamento de Walter Benjamin permanece como um caminho privilegiado de acesso a leituras críticas da modernidade. Até a morte prematura aos 48 anos, Benjamin (1892-1940) ambicionou a perpetuação de seus escritos e registros, levando consigo o desejo de que parte de sua contribuição conseguisse ser salvaguardada. Deixou rastros de sua estadia em um mundo que repensava seus paradigmas interpretativos, mergulhado na catástrofe. Benjamin não se resumiu, contudo, a um espírito inquieto na era dos grandes totalitarismos. Fez-se homem de admirável autoconsciência histórica, inadaptado a uma Europa hostil da qual se retirou em última instância, suicidando-se na fronteira entre França e Espanha.

A relação íntima e zelosa de Benjamin com os próprios arquivos, juntamente com a noção da volatilidade e do perigo que os circundava, originaram um profundo e paradoxal esforço conservacionista. Forçado a calar-se, foi um indivíduo impróprio à ditadura da crença no progresso. Por meio da batalha pela conservação de seus arquivos – e da própria vida –, encontrava um contraposto ao seu silêncio. A sensibilidade de Benjamin ao acelerado fluir do tempo permitiu a sobrevivência de grande parte de suas coleções à primeira metade do século XX. A constante luta contra o desaparecimento e a dispersão de seus materiais é uma das motivações de “Archivos de Walter Benjamin: fotografias, textos y dibujos”, publicado inicialmente na Alemanha em 2006 para acompanhar uma mostra da Academia de Artes de Berlim. Também divulgada juntamente com uma exibição de arquivos de Benjamin realizada pelo Círculo de Belas Artes de Madrid, a edição espanhola1 foi lançada em 2010 e traduzida por Joaquín Chamorro Mielke. Os autores da publicação, Ursula Marx, Gudrun Schwarz, Michael Schwarz e Erdmut Wizisla, organizaram 13 capítulos, cada um deles precedido por citações do próprio Benjamin e acompanhado de pequenos textos introdutórios ao material apresentado no original alemão. Destaca-se, na edição espanhola, a qualidade de reprodução das imagens e digitalizações dos manuscritos. Grande parte do material não ganhou tradução para o espanhol, salvo algumas legendas de fotografias, notas explicativas e bilhetes, além de listas de frases e palavras proferidas por Stefan, filho de Benjamin, e anotadas por este.

A organização do livro é temática: cada capítulo traz uma parte dos arquivos aqui reunidos do pensador alemão, originalmente espalhados ao redor do mundo nas mãos de familiares, amigos e conhecidos do próprio Benjamin. Foram realizadas classificações subjetivas: cada uma das treze seções tem o título de uma frase do próprio autor pesquisado. Estas compõem pequenas narrativas não somente da vida pública de um intelectual, mas de seus gostos e manias; intenções de escrita; maneiras de guardar e organizar papéis. Não obstante, essas narrativas se formam a partir de rastros das próprias estratégias de sobrevivência, em pleno Terceiro Reich, de um intelectual alemão judeu e de tendências marxistas.

É possível vislumbrar diferentes facetas de Benjamin: o viajante, o pai, o fotógrafo, o desenhista, o ensaísta. Cada seção apresenta um vetor biográfico acerca do autor e, ainda que os textos careçam de maior detalhamento e aprofundamento para um leitor mais interessado (nenhum ultrapassa as quatro páginas), cumprem a função de apresentar os inéditos arquivos ao grande público. Há muitas fotografias: passagens de Paris (SCHWARZ, 2010, p. 218); quadros de lugares pelos quais passou, alguns destes imprimidos em cartões postais (p. 151); e mesmo um retrato de Stefan, seu filho (p. 92). A paixão de Benjamin por viajar; a forma com que observava o vocabulário de Stefan; a incessante busca por inovações estilísticas na própria escrita e a fascinação por Paris são alguns inusitados contornos de uma personagem que o livro insiste em desenhar a partir de suas próprias criações.

Os registros manuscritos de Benjamin criam constelações heterogêneas e evidenciam um indivíduo perfeccionista; habituado a dar acabamentos estéticos a seus rascunhos, cartas e anotações. Nos arquivos apresentados no capítulo “De lo pequeño a lo minúsculo”, é possível visualizar um estilo minimalista de escrita, traduzido em uma “economia de expressão” (MARX, 2010, p. 56). Benjamin concebia a estética do pequeno como produto do ato reflexivo e da concentração adultas; do cuidado e da exatidão. Seus manuscritos, salvo raras exceções, anunciam uma escrita fina, precisa e delicada; quase nunca descuidada. Para Ursula Marx, a caligrafia benjaminiana possui, simultaneamente, um ar de mistério e uma aparência de fragilidade, configurando-se como um objeto de percepção sensorial; uma imagem a ser contemplada (2010, p. 57). O estilo lacônico de Benjamin se contrasta, em meio à sua predileção pelo diminuto, às cores cinzentas de sua própria contemporaneidade e, deste modo, revela uma intensa sensibilidade ao ritual que envolve a submersão de ideias no papel.

Benjamin possuía vários cadernos. Muitos destes se perderam com o tempo; no entanto a publicação traz digitalizadas algumas páginas de pequenos blocos remanescentes. Nestes instrumentos foram registrados dados e pensamentos de um intelectual ativo acerca de assuntos diversos, de formas muitas vezes desorganizadas (WIZISLA, 2010, p. 131). Benjamin tinha certo culto por estes blocos, motivo pelo qual lhes prestava atenção especial. Funcionavam como campos de experimentos multifuncionais; uma espécie de material intermediário no processo de suas criações, nos quais reunia pensamentos e frases inspiradoras. Serviam também como diários, suportes de cartas, índices bibliográficos. Alguns apontavam títulos de livros lidos; outros guardavam citações destas leituras, antecipando futuros trabalhos. Concentrava-se, nestes materiais, uma tensão criativa pela qual Benjamin repensava e refazia, de modo constante, o próprio trabalho.

É possível deparar-se, na observação destes “delicados alojiamentos” (WIZISLA, 2010, p. 128), com a face dinâmica de um intelectual. Walter Benjamin: um homem de letras que perfez seu caminho na transdisciplinaridade, mesmo quando isto lhe custava penosas dificuldades no meio acadêmico – afastando-o deste. Daí advém a ampla gama de seus objetos e temas de estudo, evidenciada nestes blocos de nota. Benjamin viveu em uma época na qual as especializações constituíam um pré-requisito para vinculações universitárias. Defendia, no entanto, a liberdade de opinião. Criticava, com isso, a associação do pensamento acadêmico ao Estado e a grupos particulares; rejeitava os fundamentalismos ideológicos.

Benjamin concebia o conhecimento como uma construção aberta, dinâmica e historicizada. Saboreava, mais do que as particularizações disciplinares, a inquietude do intelectual e o seu permanente questionar. Era filósofo da arte e teórico literário, mas também poeta e historiador. Cabe pensar: não seriam estes blocos de notas, anunciados como vestígios de seu apreço por um trânsito frenético de ideias, um emblema de sua conturbada vida intelectual; uma metáfora da vontade de sobreviver à tempestade da civilização industrial? Os textos e imagens apresentados no livro, aparentemente menores, podem surpreender o leitor. Tanto por trazerem manuscritos que remetem a notórios e conhecidos trabalhos de Benjamin quanto por revelarem facetas menos conhecidas de sua personalidade. Este é notavelmente um dos grandes méritos da publicação. A seção intitulada “Escritura dispersa” (WIZISLA, 2010, p. 40) reúne escritos acerca das relações entre linguagem, lógica e modos de saber; notas sobre os escritores Franz Kafka e Marcel Proust; registros bibliográficos e, ainda, uma anotação sobre a concepção de aura. A origem destes materiais remete às condições inadequadas de seu exílio na França.

Impossibilitado de permanecer em uma Alemanha Nazista, Benjamin viajou para Paris, cidade pela qual cultivava profunda admiração. O conteúdo notório destas reflexões contrasta com os suportes nos quais estão registradas: todas as anotações foram feitas em papéis reduzidos, muitos de menor qualidade, cujos espaços Benjamin aproveitou ao máximo, rascunhando-os compulsivamente em uma espécie de ânsia produtiva que o fez antecipar seu trágico final. Em uma reduzida folha de papel digitalizada (uma das únicas com tradução direta para o espanhol no livro) é possível se deparar com uma pequena reflexão cuja temática remete a uma das obras mais conhecidas de Benjamin e a última finalizada antes de sua morte, “Sobre o conceito de história”. A tradução em espanhol desta anotação consta no livro: “Marx dice que las revoluciones son las locomotoras de la historia universal. Pero quizá esto no sea así. Quizá sean las revoluciones el cable del freno de emergencia que el género humano que viaja en ese tren acciona”2 (BENJAMIN apud MARX, 1944, p. 44). Benjamin foi um crítico da noção de progresso. Para ele, a crença cega no desenvolvimento tecnológico e moral, fruto das revoluções liberais, impelia as sociedades ocidentais a um mito conformista, calcado na idealização de um porvir imaginado como necessariamente superior ao presente. Acreditava que esta ditadura da crença no progresso enlouquecia e envenenava a humanidade. Criava-se, assim, uma ilusão; uma miragem. A retórica da evolução civilizatória havia levado o mundo contemporâneo, na concepção de Benjamin, ao abismo; à aceleração catastrófica do tempo. Benjamin denunciava o domínio irreversível do ser humano sobre a natureza; a perda das sensibilidades pelas experiências coletivas; o desdém pelas tradições.

Há, em seus arquivos, seis fotografias de brinquedos russos, conservadas após a sua morte (SCHWARZ, 2010, p. 72). Viajara para a União Soviética e, deparando-se com estas raridades em um museu, passou a colecioná-las. Estas miudezas, construídas em casas relegadas à extinção, tornavam possível a rememoração. Benjamin, como seus arquivos denotam, foi um homem de obsessões. Admirou a fragilidade das tradições, com sabor pela lentidão. Para muitos, fora um espírito do século XX com predileção pelo ritmo da era pré-industrial. Pôde se contrapor às grandes catástrofes ao intensificar uma sensibilidade pelo diminuto, pelo evanescente; pelo periférico. Alocava-se, com isso, na melancolia do passado e nos detalhes.

Benjamin desenvolveu a competência de catalogar seus conhecimentos, cultivando a estratégia de dispersar seu material sob as mãos de pessoas e abrigos de lugares rigorosamente selecionados. A obsessão por brinquedos russos exprime, metaforicamente, este idealismo. Acreditava, contudo, na posteridade. Cultivou um misticismo judaico e o apelo pelo messianismo até seus últimos dias. Ainda que duvidasse do desenfreado progresso e dos cativeiros das liberdades, lutava pela sobrevivência de seus arquivos e, desta maneira, pelo próprio futuro, em um constante duelo contra a fogueira do tempo. Eis sua solução revolucionária: tornar-se um compulsivo colecionador. Eis a esperança de que, simbolicamente, pudesse sobrepor-se à curta experiência neste mundo. É sobre a permanência de um amplo legado, juntamente com os esforços de lançar novos questionamentos sobre a trajetória do emblemático intelectual do século XX, que este livro nos faz pensar.

1 Esta resenha é referente à edição em espanhol de 2010. 2 “Marx diz que as revoluções são as locomotivas da história universal. Mas, talvez, isso não seja assim. Talvez sejam as revoluções o cabo de freio de emergência que o gênero humano que viaja nesse trem aciona.”

Chrystian Wilson Pereira – Graduando em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina. E-mail: [email protected]. Graduando em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina. E-mail: [email protected].

Escola e Universidade na pós-modernidade – SANTOS FILHO (RTA)

SANTOS FILHO, José Camilo dos; MORAES, Silvia E. (orgs.). Escola e Universidade na pós-modernidade. Campinas/ São Paulo: Mercado de Letras/ FAPESP, 1ª reimp., 2010, 247p. Resenha de: PASSOS, Rogério Duarte Fernandes dos. Escola e Universidade na pos-modernidade. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 3, n. 1, p. 236 – 236, jan/jun. 2011.

Escola e Universidade na Pós-Modernidade, obra coordenada pelos professores José Camilo dos Santos Filho e Silvia E. Moraes debate as interfaces e intercorrências que se colocam para a Universidade – e para a própria educação – no bojo do processo que se convencionou chamar de pós-modernidade.

A conceituação e contextualização da pós-modernidade como momento histórico que não apenas sucedeu a modernidade, mas reestruturou o olhar humano acerca do relacionamento do homem em face do mundo que o cerca e em face do próprio conhecimento – e, por conseguinte, da própria Universidade –, é objeto da obra em questão, donde se tem uma reconstrução do processo que resultou na superação do paradigma de razão da era moderna, como se lê do texto de José Camilo dos Santos Filho.

Consoante nos é colocado pelo trabalho do professor inglês Mike Featherstone, esse, por certo, é um processo que alcança a Universidade, obrigando-a a uma reflexão acerca de seu papel, cotejando novas formas de comunicação e incorporação de novas tecnologias em favor da instrumentalização do saber – a exemplo do livro digital –, contemplando inclusive a mobilidade dos estudantes na produção e construção do conhecimento.

Os aspectos que envolvem a crise identitária da Universidade moderna não podem ser tomados sem um profundo estudo que esteja aliado à compreensão da própria crise do Estado moderno, donde se tem um novo pressuposto gnosiológico, de sorte que a relação do homem com a natureza não pressupõe apenas a uma transformação entre ambos, mas o alicerçar de transformações apoiadas em conhecimento – manifestação de um verdadeiro pós-industrialismo –, voltadas à prestação de serviços e à sua operacionalização, ocasionando modificações na estrutura social, cada vez mais necessitada de redes de processamento e geração de informação.

As soberanias nacionais erodidas e a própria mundialização da economia criam o espaço para o reexame do Estado e a análise de sua crise identitária, ao lado do esforço de alguns grupos para manutenção das identidades locais e étnicas, em que o paradigma do mercado coloca desafios ao modelo de universidade idealista humboldtiana, originalmente concebida no bojo de uma sociedade pré-industrial. Essas são algumas das linhas da relevante contribuição de Pedro Goergen.

A universidade desafiada pela crise de uma racionalidade que propõe uma explicação única para o mundo não se coloca mais como elemento sustentável, de maneira que a pós-modernidade oportuniza o questionamento de seu papel como agente capaz de reger o conhecimento. O seu projeto educativo tem a ocasião de construir uma nova significação, contemplando um projeto de educação geral capaz de trazer fundamentos para a compreensão holística da natureza e os correspectivos princípios de ciência, trazendo consigo os referenciais da literatura, da história – e de muitas outras áreas do conhecimento – para a tentativa de se compreender verdadeiramente os fatos que circundam a vida social, despertando as competências para uma vida de aprendizagem, debatendo o conseguinte papel e relacionamento entre alta cultura e cultura popular.

A interdisciplinaridade, no interior desse processo, torna-se ferramenta de grande importância para subsidiar a eficaz formação e atuação especializada do estudante, no que conclui Elisabete Monteiro de Aguiar Pereira – dentre tantos outros aspectos abordados em seu trabalho – que caberá às universidades de todo o mundo responder a esses dilemas, recuperando a capacidade de se autoquestionar, lançando-se na utopia da construção de um projeto que identifique a sua função contemporânea.

Silvia E. Moraes fecha a obra discutindo questões que envolvem o currículo, a transversalidade e a pós-modernidade, contemplando evolução científico-tecnológica, meio ambiente, cidadania, multiculturalismo, estética, sexualidade e saúde.

Essa tarefa implica em uma superação das concepções positivistas de ciência, além da superação do fracionamento do saber e da descontextualização de problemas. Lembra a autora acerca da necessidade de igual superação que ciência e filosofia devem empreender no intuito de abandonar as suas reivindicações metafísicas, enxergando-se como algumas dentre as várias narrativas de um conjunto maior.

A transversalidade é parte de suas preocupações, em diagnóstico de superação do currículo moderno, transpassado por um contexto de pluralismo cultural, solidariedade e teorias científicas emergentes, que refutam uma suposta neutralidade da ciência, propondo em seu interior uma profunda reflexão de natureza ética.

Experiências curriculares em diferentes países – de diferentes realidades em distintos continentes – são cuidadosamente abordadas por Silvia E. Moraes na sua proposta de instrumentalização e compreensão do pluriculturalismo na construção curricular, no que há advertência de não se ter novos currículos apenas como novos conteúdos a serem agregados aos já vigentes, mas, sobretudo, em tê-los como instrumentos para o estabelecimento de relações de entendimento entre a produção econômica e a construção de conhecimento.

Por derradeiro, Escola e Universidade na Pós-Modernidade nos traz uma relevante contribuição para a compreensão do ambiente escolar – e principalmente o universitário – no bojo das transformações e reorientações de paradigma que a condição pós-moderna propõe no tradicional método positivista da aprendizagem, em especial, no reconhecimento da edificação de um novo papel da instituição universitária em face das circunstâncias de um Estado que – se se constitui ainda em unidade básica de referência para análise – se dilui em uma rede ao longo do mercado mundializado estabelecido pelo processo de globalização.

Rogério Duarte Fernandes dos Passos – Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Email: [email protected].

Antologia de textos – GEBARA (RTA)

GEBARA, Ivone. Antologia de textos. São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2010. 256 p. Resenha de ZIMMERMANN Tânia Regian. Vulnerabilidade, justiça e feminismos. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 3, n. 1, jan/jun. 2011.

Como teóloga feminista, Ivone Gebara nos presenteia com esta obra que é fruto de vários textos produzidos para revistas e palestras em eventos de diversos países. Ao todo são mais de trinta textos escritos entre os anos de 2001 e 2010. A autora surpreende a cada linha pela sua coragem e ousadia com suas diferentes abordagens teológicas em relação a diversos temas aqui apresentados como o cotidiano, o cristianismo, a tolerância, a violência, a felicidade, o Estado laico, o fundamentalismo, os feminismos e o ecofeminismo.

Na maioria desse conjunto de escritos, o conceito de gênero e de feminismo serão centrais e utilizados de forma plural. Ao historicizar os diferentes conceitos e seus usos na atualidade, Gebara almeja a construção de novos sentidos e olhares na interpretação destes temas para dar visibilidade, principalmente à atuação das mulheres em múltiplos espaços e momentos. Com a história na mão, Gebara sonha com outras possibilidades de existência na atualidade que perpassem relações mais solidárias entre os seres humanos.

Esta antologia demonstra o vigor do pensamento de uma autora feminista inserida em uma comunidade do interior nordestino. Ela usa sua experiência e a de seus protagonistas locais para dizer com sua subjetividade e seus conhecimentos filosóficos, históricos e sociológicos o não-dito, a fronteira, as linhas de fuga até então, em grande parte, silenciados e ocultados pela ciência. Estes olhares de Gebara são amostras da resistência a uma história forjada e contada de forma privilegiada pelo ideal normativo masculino, machista e patriarcal.

A obra em seu conjunto está organizada em quatro capítulos divididos pela seguinte temporalidade: de 2001 a 2003; de 2004 a 2005; de 2006 a 2007 e de 2008 a 2010.

Na primeira parte, a autora apresenta novidade ao tecer algumas relações entre a teologia da libertação e os começos da teologia feminista na América Latina. É nestes textos que a categoria gênero é problematizada como parte da cultura e não fora dela e, portanto, instável e móvel. Assim, o corpo biológico é também cultural, mas a forma como foi nos apresentado normatiza o conjunto de relações entre as pessoas pelo aparelho genital, ou seja, em torno do sexo as desigualdades ganhavam de longa data contornos bem definidos. Na sua visão “Gênero não é o sexo genital, mas o conjunto de atribuições simbólicas dadas ao sexo das pessoas.” (p. 4). A ciência foi corroborante neste efeito de desigualdade? Para Gebara foi sim, pois as ciências humanas privilegiaram apenas um gênero. Destarte, as mulheres foram vistas e analisadas pelo olhar masculino misógino, o qual identificava as mulheres à natureza. Então, se as mulheres possuíam esta identificação, elas não poderiam acender ao estatuto da plena individualidade e da plena consciência. Isto ainda as coloca no tempo presente como subalternas e sem direito a serem sujeitos da história.

Quais as questões de relevância propostas pela teologia feminista? Para Gebara esta teologia visa denunciar as relações de poder assimétricas que impedem a igualdade e a liberdade das mulheres em todos os espaços. Advogando o pluralismo, a autora nos convida a pensar outros caminhos para entedermos os seres humanos em suas relações e com o ecossistema. E a questão da religião e das mulheres? As religiões também são construções advindas da criatividade e da necessidade humana e este resgate histórico, posto por Gebara, quer nos mostrar a exclusão das mulheres nas igrejas. Ela pretende resgatar o orgulho de pertencer a alguma comunidade religiosa, como sendo um espaço de solidariedade entre as próprias mulheres.

No segundo conjunto de textos encontramos olhares de Gebara sobre o feminismo, o pluralismo religioso, a corporeidade, religião e ecofeminismo. A autora destaca que embora se advogue o pluralismo e a diversidade cultural, veicula-se, inclusive pela mídia, uma espécie de “vale-tudo” cuja violência incide principalmente sobre a população carente. Para ela, o pluralismo deveria relacionar-se com a liberdade e o direito à diferença. Destarte, uma leitura feminista principia o respeito à diversidade de gênero e critica a normatividade masculina em relação aos demais corpos existentes. A teologia feminista também discute a invisibilidade e exclusão das mulheres das instituições religiosas e busca por novos equilíbrios nas relações entre os gêneros. Já o ecofeminismo é discutido a partir de seu começo na Europa, e, Gebara inova ao tecer relações entre a opressão das mulheres e a degradação dos ecossistemas. Esta degradação atinge de forma particular as crianças e as mulheres. Além disso, as ecofeministas alargam suas causas mostrando a perversidade do sistema capitalista em expansão na destruição do planeta.

Quando a autora discute o corpo e a cristandade, ela observa a valorização da figura masculina nas religiões cristãs como, por exemplo, a imagem de Jesus Cristo. A teologia feminista busca a visibilidade de todos os corpos até então generificados na bíblia e na história cristã. Para Gebara, a existência da igualdade entre os gêneros também afirmaria a evolução da humanidade.

Democracia, política feminista, violência e Estado laico são alguns dos temas do terceiro conjunto de textos. A democracia é entendida pela autora como a igualdade de condições as quais não podem ser cumpridas no sistema capitalista. Este sistema transformou a democracia num reinado de consumismo e uma palavra vazia de sentido ético. Neste texto, Gebara lança os desafios para a existência da democracia com sugestões feministas para reorganizarmos nossas relações e aprendermos a respeitar a diversidade. Em relação ao Estado laico, a autora advoga a presença da cultura religiosa plural na política e observa a força que a religiosidade cristã ainda tem nas decisões pessoais e políticas no Brasil.

Sobre os conflitos de gênero, Gebara questiona o porquê mulheres atraem tanta violência. O corpo da mulher ao ser identificado a natureza tornou-se um dos lugares onde a raiva da humanidade tem sido depositada. Esta identificação é cultural e não natural e, portanto, passível de mudanças em relação aos nossos corpos o que pode construir novas formas de afetividade, inclusive sexuais. Esse processo de mudança requer a desconstrução de conceitos como o de sexo, mulher e homem. Para Gebara, as experiências que estão sendo vivenciadas nem sempre se enquadram nos ideais normativos criados para os gêneros. Assim, a “desconstrução é complexa e plural” e vai à direção de criar novas relações humanas. (p. 184) A última parte do livro repensa todo o conjunto de escritos e reforça algumas reflexões sobre o socialismo e a necessidade de novas práticas para mesmo isto. Gebara revê o conceito de “pessoa humana”, discute a inclusão digital, as práticas do ecumenismo, a tolerância, as perspectivas para a teologia feminista, inclui um texto em homenagem ao pensamento de Dom Helder Camara e, por fim, enfatiza o pluralismo teológico contraposto ao fundamentalismo religioso. Com esta obra, Ivone viabiliza-nos a desconstrução de vários temas até então vistos sob o olhar masculino. Olhar este que enunciava a hegemonia do pensamento normativo pautado na natureza fixa para a identidade dos corpos. Assim, ela resgata a heterogeneidade como condição humana enquanto um precioso fazer-se de povos e culturas. Sua teologia feminista elenca questões que desafiam nossos olhares sobre o cotidiano. As críticas que ela direciona aos homens, mulheres e à própria Igreja trilham por uma constante reelaboração de práticas libertárias em nossa sociedade. As linhas deixadas por Gebara tecem entre si laços de intuição para todas e todos aqueles que desejam um mundo novo no tempo presente.

Tânia Regian Zimmermann – Professora Adjunta do Curso de História da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul. Email: [email protected].

Comunista de casaca: a vida revolucionária de Friedrich Engels – HUNT (RTA)

HUNT, Tristram. Comunista de casaca: a vida revolucionária de Friedrich Engels. Traduzido por: Dinah Azevedo. Rio de Janeiro: Record, 2010 (472p). Resenha de: DANTAS, Jéferson. Engels: o interlocutor fundamental de Marx. Revista Tempo e Argumento v. 03, n. 02, 2011.

O historiador britânico Tristram Julian William Hunt (1974-), ao traçar a biografia do parceiro intelectual de Karl Marx (1818-1883), Friedrich Engels (1820-1895), poderia ter optado por um ensaio truanesco, tão ao gosto de determinada mídia mais preocupada com adjetivismos e juízos de valor, do que propriamente com a contribuição filosófica de seu retratado. Foi, justamente, a partir da leitura enviesada da obra de Hunt por setores da mídia impressa, que procurei trazer à tona a contribuição deste professor de História da Universidade de Londres e comentarista político nos jornais The GuardianThe Times e London Review Of Books.

De fato, Hunt explora em várias passagens de seu texto a personalidade e a vida privada de Engels, desmitificando sua persona vetusta e austera. Engels é apresentado como um ‘homem de ação vitoriano’, sedento por novos conhecimentos, porém, que não desprezava o ‘mergulho nos prazeres carnais de Paris’; um ‘dom-juan experiente’, cuja boa aparência e ‘comportamento devasso granjeavam-lhe muitas amantes’. E mais adiante, Hunt vaticina: “Impressionante é o fato de Engels ter conseguido fazer política enquanto andava atrás de um rabo de saia” (HUNT, 2010, p. 164). Afastadas essas observações que poderiam tornar a obra do historiador inglês um conjunto de anedotas, a principal tese do livro é demonstrar as contradições ou a ‘vida dupla’ de Engels:

[…] de dia era um respeitável barão algodoeiro, um membro de casaca da classe média alta; à noite, o socialista revolucionário, um discípulo fervoroso das classes menos favorecidas. Para manter o emprego no escritório, sustentar Marx e manter a causa comunista à tona, Engels foi obrigado a manter uma fachada de penoso decoro. O esforço de viver em dois mundos era desgastante, e a contradição entre as declarações públicas e as crenças pessoais acabam lançando Engels num espiral de doença, depressão e colapso nervoso (Idem, p. 229).

Assim, ‘a ambição de Tristram Hunt’ é captar as paixões, as aversões pessoais e os caprichos individuais de um homem corresponsável por um dos mais importantes tratados filosóficos a que a humanidade já teve acesso. Não me refiro apenas à obra O capital, em que ele foi interlocutor basilar, por meio de extensa correspondência com Marx, mas de obras seminais, que contribuíram decisivamente para a sua compreensão da Inglaterra industrial e dos mecanismos da lógica capitalista, sendo a primeira delas A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (1845), um texto juvenil voluntarioso, mas empiricamente detalhista.

Fortemente influenciado pelo Romantismo alemão e um leitor atento de Hegel, Friedrich Engels procurou, ao longo de sua existência, compreender as questões familiares, as teorias de cunho militar, a libertação sexual feminina e a insurgência dos países colonizados, algo pelo qual Marx nunca teria se aventurado com denodo, teoricamente. Diante da teologia especulativa hegeliana (um mundo desencarnado e não terreno), Engels passou a se dedicar com mais afinco, no final da segunda metade do século XIX, aos estudos da realidade econômica, período que teria conhecido Karl Marx, e estabelecido, com ele, uma relação fecunda e íntima. A afinidade entre Engels e Marx extrapolou os limites acadêmicos, a ponto de Engels ter cuidado das filhas de Marx como se fosse um parente próximo, afeto reciprocamente recompensado pelas filhas do ‘mouro’ (apelido de Marx). O investimento de Engels em Marx (literalmente falando) tinha a sua razão de ser pelo primeiro acreditar que Marx era um gênio, e ele apenas um pensador talentoso. Engels afirmava enfaticamente que sem Marx, o materialismo histórico dialético não existiria.

Mesmo após Marx ter tido um filho fora do casamento e, de certo modo, rejeitado a criança, Engels assumiu a paternidade oficial do filho do amigo para protegê-lo de escândalos públicos. Aqui, Hunt dedica boas páginas ao envolvimento de Marx com a sua empregada e aos ‘dramas de alcova folhetinescos’ bem ao gosto de um público sedento por narrativas burlescas. Mas, Tristram Hunt, quando consegue se desvencilhar da historieta bufônica, atinge pontos altos em sua descrição biográfica de Engels, principalmente porque está fundamentado em vasta bibliografia e fontes de primeira mão. Esta é a grande contribuição do historiador inglês: desvelar a extensa troca de missivas entre Engels e Marx (por meio das quais é possível se perceber que a obra O capital foi uma tarefa realizada a quatro mãos) e expor a ‘humanidade’ desses destes homens, equivocadamente mitificados e extremamente vigilantes, em relação aos fenômenos históricos de seu tempo.

Segundo Hunt, o desaparecimento de Marx em 1883 não só levou o melhor amigo de Engels, mas a ‘maior parceria intelectual da filosofia do ocidente’. Após a morte do amigo, Engels procurou defender a sua memória, principalmente de seus desafetos e detratores, que vulgarizaram o socialismo científico. Friedrich Engels se tornou o ‘curador da obra marxiana’, ao mesmo tempo que passou a se dedicar a novos escritos, notadamente em relação aos efeitos nefastos do patriarcado nas chamadas famílias modernas, de onde se originou o livro A origem da família, da propriedade privada e do Estado (1884). Além disso, com todos os limites aí postos, Engels angariou a admiração das feministas da década de 1970 ao tratar as questões de gênero pela ótica econômico-produtiva e não pelo ‘determinismo biológico’. Seus últimos anos de vida foram dedicados a promover a causa marxista, através da publicação dos últimos volumes de O capital. Engels procurou, até o último suspiro, evitar o dogma e o clichê para popularizar o legado de Marx, e que a ‘intervenção política não poderia ser exageradamente prescritiva e nem inutilmente vaga’. Finalmente, veio a falecer no dia 5 de agosto de 1895.

Tristram Hunt procura isentar Engels das acusações que recebeu após a sua morte, principalmente de ter sido o mentor do socialismo soviético controlado por Stalin, quando o socialismo científico foi transformado numa ortodoxia rígida e que “contaminou praticamente todos os elementos da vida cultural, científica, política e privada” (Idem, p. 399) da extinta União Soviética. Nesta direção, o historiador britânico destaca que não se pode culpar Engels ou Marx pelos crimes cometidos por agentes históricos gerações depois, mesmo que as políticas de Estado tenham sido realizadas em seus nomes; assim como não se pode julgar Adam Smith pela desregulamentação do mercado ou Maomé pelas atrocidades de Osama Bin Laden.

Opiniões à parte, Hunt procurou desenvolver uma síntese da trajetória existencial, intelectual e política do teórico alemão Friedrich Engels, e contextualizou os momentos mais marcantes de sua juventude e da convivência com Marx, iniciada quando os dois tinham pouco mais de vinte anos de idade. Esta relação de amizade duradoura e os reflexos da interlocução permanente denotaram extrema vigilância epistemológica, fizeram destes homens figuras centrais de um método de apreensão da realidade social que, se por um lado pode ser ignorado atualmente pela desrazão pós-moderna, certamente não pode ser desprezado pelas ciências humanas até os dias de hoje.

Jéferson Dantas – Bacharel e Licenciado em História, Mestre em Educação e Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação no Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected].

Foucault, sa pensée, sa personne – VEYNE (RTA)

VEYNE, Paul. Foucault, sa pensée, sa personne. Paris: Albin Michel, 2008. Resenha de: BORGES, Viviane Trindade. Um livro-homenagem: mais recente biografia de Michel Foucault. Tempo e Argumento. Florianópolis, v. 2, n. 2, p. 244 – 248, jul./dez. 2010.

Conforme Paul Veyne, Foucault sugeriu, imprudentement, que em nossa época a humanidade começa a aprender que poderia viver sem mitos, sem religião e sem filosofia, sem verdades gerais sobre ela mesma. No entanto, a tessitura da análise empreendida pelo historiador acaba instituindo um mito, um herói, como ele mesmo se refere a Foucault em vários momentos. Lançado em 2008, seu livro Foucault: sa pensée, sa personne foi traduzido para o português de Portugal em 20091 Na introdução, Veyne utiliza duas metáforas interessantes para caracterizar o herói de seu livro. Primeiro, compara Foucault a um peixe que consegue transcender o aquário em que vive. Essa figura inquieta extrapola sua própria realidade, observando os demais “peixinhos vermelhos” do lado de fora, sem, contudo, deixar de ser mais um habitante do aquário. Num segundo momento, o autor descreve seu personagem como uma “esgrima intelectual”, que usava sua caneta com a mesma destreza que um samurai usa seu sabre afiado. Conforme Paul Veyne, Foucault escrevia seus livros “à espada”, como se usasse o sabre de um samurai, e com certa ironia afirma que seu livro poderia se chamar “O samurai e o peixinho vermelho”. Ao longo de 200 páginas, divididas em 11 capítulos, o historiador perpassa diferentes conceitos foucaultianos e as discussões por eles suscitadas, numa análise rigorosa e pontual, ao longo da qual os pontos sensíveis e polêmicos da obra do filósofo são tocados com sutileza. As percepções de Foucault a respeito do discurso, do saber, da verdade, do poder, da formação do homem como sujeito, foram todas problematizadas de forma clara e magistral. As aproximações e distanciamentos do olhar de Foucault em relação às obras de Kant, Wittengenstein, Nietzche, entre outros, se entrelaçam pela escrita de Veyne, compondo o olhar foucaultiano em diferentes momentos de sua trajetória.

Das inúmeras inquietações elucidadas e provocadas pelo referido livro, chama a atenção tê-lo transformado em “herói”, num mito cuja obra ainda hoje desestabiliza e encanta diferentes campos do conhecimento. Contudo, ao mesmo tempo, desmistifica e humaniza suas posições e atitudes, brinca com seus depoimentos, mostrando seu senso de humor refinado, suas convicções apaixonadas, mas também suas misérias e suas fraquezas.

Conforme o historiador, Foucault foi um pensador cético. Esta afirmação teria sido legitimada pelo próprio filósofo 25 dias antes de sua morte, durante uma entrevista. Foucault teria resumido seu pensamento numa só palavra ao responder que “sim”, “absolutamente”, ele se considerava um cético. O personagem de Veyne era um observador que duvidava de qualquer certeza, jamais aceitando ideias gerais. Este olhar cético não se referia aos fatos históricos em si; ele não duvidava de sua existência, mas dos questionamentos que lhes fazia, renunciando a verdades gerais e definitivas.

Veyne problematiza os conceitos foucaultianos, tais como discurso e verdade, por exemplo, mostrando que estavam impregnados de seu ceticismo em relação o mundo. Para Foucault, nós, os contemporâneos, estamos envolvidos por discursos, presos em aquários falsamente transparentes. Somos apreendidos, classificados e tomados por verdades por nós criadas, pois cada época é dona de sua própria verdade. Vivemos em prisões transparentes, sem mesmo perceber que esta prisão existe. Sem dúvida, uma forma cética de olhar o mundo.

Veyne afirma que Foucault vê a humanidade prisioneira dos discursos de sua época. Somos condicionados por discursos. Estes são os óculos através dos quais, a cada época, os homens percebem as coisas, pensam e agem. Os discursos são, portanto, singularidades datadas, práticas que instituem figuras sociais, imprimindo determinado sentido às trajetórias e aos fatos históricos. Assim, sob o olhar cético de Foucault, não há nenhuma transcendência fundadora, pois os sujeitos são instituídos através de práticas discursivas.

Conforme Paul Veyne, Foucault não pretendeu criar uma teoria do sujeito; ao contrário, pretendia mostrar como o sujeito se constituía através de práticas de verdade e de práticas de poder. De acordo com a perspectiva do pensador, não podemos escapar das relações de poder, mas podemos modificá-las, pois somos sujeitos livres para resistir em maior ou menor escala. Mas mesmo diante desta liberdade, o sujeito livre não é soberano; longe disso, ele é modelado em cada época pelos discursos e dispositivos do período e reage, constituindo a si mesmo através de processos de subjetivação.

O ceticismo do personagem descrito por Veyne provocou polêmica entre alguns de seus leitores, que entenderam seu pensamento como algo um tanto agressivo, ou mesmo esquerdista. Foucault foi muitas vezes o centro das atenções, duramente criticado sob vários aspectos. Sua percepção de discurso, por exemplo, foi classificada como errônea, pois seu ceticismo desencorajava a humanidade, fazendo da história um processo anônimo, irresponsável e desesperante. Veyne aponta uma frase específica, a frase “fatal”, com a qual finaliza o livro “As palavras e as coisas” e a partir da qual Foucault passa a ser violentamente criticado: “l’homme s’effacera, comme à la limite de la mer un visage de sable”. De acordo com Veyne, é a partir desta provocação (pois para ele Foucault não era “nada além de um provocador”) que o filósofo adquire a reputação de “inimigo da espécie humana”. É esta frase “fatal” que passa a definir o estilo e a atitude de Foucault como escritor.

Veyne defende seu herói. Não se tratava, para ele, de um inimigo do sujeito humano; mostra, ao contrário, que o seu personagem acreditava que este sujeito somente não poderia fazer descer do céu uma verdade absoluta nem agir soberanamente no céu destas verdades, mas poderia agir contra as verdades e realidades de sua época ou inovar sobre elas. Assim, o pensamento foucaultiano é descrito como uma crítica à atualidade; nega-se a ditar prescrições para a ação, mas fornece conhecimento para que esta aconteça.

Segundo Veyne, Foucault não pretendia ser um intelectual especialista, daqueles que se indignam com certas singularidades ao longo de sua existência, ou no exercício de seu métier. Para o historiador, ele foi um novo tipo de intelectual, um intelectual específico que conhecemos por volta dos anos 1980. Este novo modelo de intelectual trabalhava muito e não vivia em estado de permanente indignação, nem de febre militante, mas atacava toda vez que encontrava abusos que considerasse intoleráveis, um verdadeiro herói agindo contra as injustiças.

De acordo com o historiador, Foucault nunca transformou suas ações militantes em doutrinas. Em momento algum utilizou seus pensamentos para dar a uma prática política um valor de verdade, nem em seus livros nem em suas aulas. No entanto, o engajamento do filósofo nos grandes debates de seu tempo contribuiu para questionar o papel do intelectual em nossa sociedade. Em sua atuação no Grupo de Informações sobre as Prisões – GIP -, por exemplo, Foucault não desejava ser porta-voz das reivindicações dos prisioneiros, mas chamar a atenção da sociedade para as condições desumanas em que estes viviam no encarceramento. Sua atuação, portanto, não deixava de ter um caráter político, visto que o grupo acabou estimulando um movimento de revolta em 35 prisões em 1971 e 1972.

Da mesma forma, a publicação de “Vigiar e Punir” (1975) não deixa de ser um dos resultados dessa experiência, problematizando a idéia de punição. Nesta perspectiva, podemos questionar se estas não seriam maneiras de usar seu pensamento e seus atos para legitimar sua militância. Veyne não interpreta a atuação de Foucault desta forma. Para o historiador, a tarefa de um intelectual, segundo Foucault, é arruinar as evidências, dissipar as familiaridades aceitas, e não tentar modelar a vontade política dos outros. Seu personagem não era nem esquerdista, nem freudiano, nem marxista, nem socialista, nem progressista, nem terceiro-mundista, nem heideggeriano; era apenas um inconformista, característica suficiente para classificá-lo em todas as posições citadas.

Veyne cria um herói. Um personagem que se destaca por seus livros e suas ideias, mas também por seus feitos, como na ocasião em que teria arriscado a própria vida para salvar as vítimas de um cabaré em chamas numa praia tunisiana. Para o autor, a vida e a obra de Foucault se entrelaçam, pois ele construía a si mesmo em suas obras. O historiador atenta para uma questão que para ele explica a intenção de seu personagem em seu métier: “porque um pintor trabalharia se não fosse para ser transformado por sua pintura?” Analisando a provocação feita por Foucault, Veyne não identifica nem o filósofo, nem o historiador, mas um artista, um pintor, que escrevia para não ter um rosto, para se desprender de si mesmo, para se transformar pelo seu próprio saber.

É ao final do livro que a narrativa de Veyne se torna mais pessoal, na medida em que temas delicados e perturbadores são perpassados, tais como a homossexualidade, as drogas e a Aids. A homossexualidade do filósofo é tecida inicialmente de forma descontraída. O historiador conta que Foucault lhe teria conferido o título de “homossexual de honra”, pois um homem aberto e instruído, tal como Veyne, não poderia “preferir as mulheres”, e ressalta: “nossas brincadeiras mútuas sobre a diferença de nossos gostos amorosos eram rituais de nossa amizade”.

Para o autor, a homossexualidade e seus “sofrimentos” influenciaram o pensamento de seu herói e despertaram sensibilidades particulares que determinaram certos objetos de sua pesquisa e sua forma de pensar. Nesta perspectiva, a opção sexual de Foucault explicaria as razões pelas quais boa parte de sua energia intelectual foi dedicada a combater a normatividade imposta pelo saber relacionado ao sexo e a resistir aos efeitos deste poder que induz à formação de discursos de verdade.

Segundo Veyne, Foucault fazia uso de opium e LSD, mas ressalta que eram episódios controlados, que aconteciam em intervalos de meses, pois seu gosto por escrever e trabalhar predominava e impedia que tais vícios se tornassem hábitos frequentes. O historiador conta que, certa vez, ao finalizar um de seus cursos na Universidade de Berkeley (EUA), Foucault acordou de uma “viagem” produzida pelo LSD numa sauna gay, localizada num “ghetto” homossexual de San Francisco. Veyne parece lamentar, ressaltando que “foi disso que ele morreu”, pois foi possivelmente em lugares como este que ele teria contraído o vírus HIV, e afirma que dias antes de sua morte ainda era possível encontrar em seu escritório no Collège de France um panfleto publicitário da referida sauna.

No início dos anos 1980, a Aids ainda era um flagelo distante, percebida de forma pejorativa como o “câncer dos homossexuais”. De acordo com o autor, nenhum dos familiares de Foucault ficou sabendo da doença real que havia dado fim a sua existência. Até mesmo seus amigos (entre os quais ele próprio) só ficaram sabendo dias antes ou mesmo depois de sua morte. Em seus últimos dias, Foucault teria registrado a seguinte frase: “Eu sei que tenho Aids, mas, em minha histeria, eu esqueço”.

Em seu livro-homenagem, o historiador deixa clara a admiração por seu personagem, admitindo o desejo de que os jovens historiadores de hoje “sonhem em escrever” como Foucault. Para Veyne, o pensador cético acreditava em seus métodos e convidava os “leitores de boa vontade” a utilizá-los e a continuarem sua empreitada, como fazem muitos ainda hoje. O herói cético descrito por Paul Veyne não tinha medo da morte e certamente foi imortalizado por seu pensamento e por sua pessoa. Apesar de ter afirmado que nossa sociedade se havia dado conta que poderia viver sem mitos, Foucault continua sendo um deles.

1 VEYNE, Paul. Foucault o pensamento a pessoa. Lisboa: Pilares, 2009. A presente resenha refere-se à edição francesa.

Viviane Trindade Borges – Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora Adjunta do Departamento de Historia da Universidade do Estado de Santa Catarina. E-mail: [email protected].

História Oral, Feminismo e Política – PATAI (RTA)

PATAI, Daphne. História Oral, Feminismo e Política. São Paulo: Letra e Voz, 2010, 163 p. Resenha de: ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 2, n. 2, p. 240 – 243, jul./dez. 2010.

“Com os anos, percebi claramente que não há nenhuma filiação política, filosófica, religiosa, doutrinária, etc. que garanta comportamento íntegro e honesto no mundo, nem que impeça a corrupção, o egocentrismo, a crueldade, a injustiça.” Assim a estudiosa norte-americana Daphne Patai inicia o livro História Oral, Feminismo e Política (São Paulo: Letra e Voz, 2010), um conjunto de oito ensaios selecionados por ela, representativos de sua competente e ousada trajetória como intelectual.

Grande estudiosa das relações de gênero e da história oral, sem filiação a nenhuma linha teórica ou política, e sempre inspirando reflexões com seus questionamentos provocativos, a professora de Literatura Brasileira na Universidade de Massachusetts tem, pela primeira vez, alguns de seus textos traduzidos para o português. Mesmo assim, desde seu primeiro trabalho com história de vida de mulheres brasileiras, nos anos 80, sua postura sensível e atenta às expressões verbais e à textualização das narrativas já chamava a atenção de diversos intelectuais, como Ecleá Bosi e José Carlos Sebe Bom Meihy1.

As colocações iniciais do livro são também o ponto de chegada: uma constante, sofisticada e inacabada autocrítica acerca de crenças utópicas e ingênuas, repensadas ao longo de sua vida intelectual e a preocupação ética com o uso político/acadêmico da história oral por pesquisadores, em especial nos estudos feministas.

O primeiro texto apresentado, Construindo um eu: uma história ora de mulheres brasileiras, parte do livro Brazilian Women Speak (New Brunswick: Rugers University Press, 1988), consiste no esforço de Patai em ouvir e compreender histórias de vida de mulheres nas cidades de Recife e do Rio de Janeiro, durante os anos 80, ainda no contexto da Ditadura Militar. Mulheres comuns, mas não insignificantes, pois não há, segundo ela, vidas sem sentido e sim revelações que desconhecemos. Com esse trabalho, a pesquisadora inaugura a discussão ética presente nos demais ensaios.

A entrevista é pensada por ela não apenas como um projeto acadêmico; é relação dialógica, resultado da intersecção entre duas subjetividades, duas visões culturais, duas percepções e condições socais distintas, o que requer um cuidado ético quanto à interferência, à coleta, à exposição e ao uso das narrativas de vida pelo pesquisador, eivtando incorrer no perigo de “recriarmos o mundo que estamos tentando desfazer”. Ao entrevistar mulheres, Patai aponta a importância da escuta atenta, intensa e da garantia à autonomia do narrador que, apesar de sujeito aos interesses do entrevistador, tem suas próprias intenções, objetivos e escolhe o que quer dizer, procurando dar sentido às ações que narra por meio da linguagem. Por isso, a textualização dos relatos deve prestar atenção à evocação verbal, ao ritmo e à entonação nas performances.

Essa reflexão ética permanece na peça Problemas éticos de narativas pessoais ou, quem vai ficar com o último pedaço do bolo? publicada em 1987, quando aprofunda os questionamentos em torno do uso que fez das entrevistas com as mulheres brasileiras, preocupada com seus propósitos acadêmicos e com a exposição das histórias de vida. A autora relata como escreveu para dezenas de pessoas para compartilhar suas angústias sobre as implicações éticas do uso de narrativas. Dentre as várias respostas que recebeu, destaca a que sugere a devolução das entrevistas aos “colaboradores” para serem revistas e autorizadas, um problema que ultrapassa a pesquisa acadêmica e que permanece aberto à discussão. Sua preocupação é mostrar que a questão ética no tratamento das entrevistas deve ir além das carreiras e da produção de conhecimento, envolvendo também compromissos com “objetos de pesquisa humanos”, a apropriação da vida do narrador, sem desrespeitar sua autonomia e interesses.

O desrespeito pelo narrador é o tema de Quem chama quem de “subalterno”?, texto de 1988, em que Daphne Patai questiona a competência dos intelectuais que trabalham com história oral para estabelecer critérios de hierarquia, o conceito de “subalterno” para tratar vcertos grupos sociais, e o direito de indicar a importância de uma narrativa ou a relevância de sua fala. As mulheres que entrevistou, duplamente nas sombras, por sua condição social e de gênero, poderiam ser consideradas subalternas, e suas narrativas, irrelevantes? Em nome de que conhecimento isso poderia ser feito? As mulheres entrevistadas não são uma categoria pré-estabelecida e generalizante, mas pessoas a serem ouvidas e consideradas em seus direitos. O respeito às suas vidas, às suas crenças, a seus “eus”, e o reconhecimento de que o trabalho de pesquisador é imperfeito, repleto de limitações, são os aspectos que a intelectual reivindica nos trabalhos com história oral e feminismo.

Nos textos seguintes, O que há de errado com os estudos da Mulher? (1995) e Chega de solipsismo nouveau dos acadêmicos (1994), Patai radicaliza sua postura em relação a algumas intelectuais e à sua própria crença até então, de que os estudos feministas seriam sinônimos de uma postura diferencial e mais ética do que a masculina. Após anos envolvida com os Estudos da Mulher, a estudiosa afirma que essa experiência provocou o desejo de rompimento com um certo tipo de empoderamento de algumas mulheres nas academias. Percebendo a intolerância nos códigos de discurso e políticas de assédio sexual e as difamações em nome da igualdade, a autora aponta exageros nas práticas feministas estadunidenses, muitas vezes consideradas masculinas. Um novo vocabulário criado por estudiosas e militantes demonstra a rejeição a qualquer coisa “contaminada” pelos homens e interfere na dinâmica de salas de aulas, cursos e procedimentos acadêmicos, descambando para manifestos doutrinários que exaltam valores considerados verdades feministas, como honestidade e ética. Essa prática, segundo ela, permitiu julgamentos sem fundamento, transformando a academia em campo de luta política e o movimento feminista numa atitude beata, desdenhosa e solipsista.

Daphne Patai condena a convergência entre militância e academia, lembrando que o intelectual não é a vanguarda política, escolhendo quem pode ou não falar em nome de quem ou validando verdades a partir de interesses políticos, discussão que fica mais clara em A verdade de quem? Iconicidade e exatidão no universo da literatura testemunhal, texto publicado em 2001, quando a pesquisadora apresenta o debate intelectual em torno da qualificação do testemunho, a partir do livro Me llamo Rigoberta Menchú.

A grande questão nesse momento é sobre a validade do testemunho de Rigoberta Menchú, guatemalteca que se apropriou de fatos políticos relativos à história de vida de outras pessoas, como a tortura, como partes de sua vida e representativos da memória de seu povo. Bandeiras como o feminismo ou a “justiça social” levam professores estadunidenses a validar sua narrativa como denúncia da realidade opressora da Guatemala, aceitando suas deturpações e omissões. Patai pergunta se os intelectuais devem tornar a verdade subserviente aos interesses políticos e quais as implicações disso para o conhecimento. A autora não nega que a memória seja inexata e tenha suas próprias construções, e que a experiência seja significada pelo narrador, porém considera que “as pequenas mentiras da memória” não devem ser confundidas com deturpações e mentiras que podem se propagar e trazer implicações perigosas politicamente. A militância não pode ser mais importante que o conhecimento em si, discussão que se aprofunda nos textos mais atuais da coletânea, História oral e feminismo: uma revisão crítica (2008) e A face evanescente do humanismo (2005), quando reconhece o empoderamento e ao mesmo tempo a fraqueza das práticas feministas quando os compromissos políticos são colocados acima das escolhas metodológicas.

A história oral feminista abriu um campo de reflexão e de ação em torno de políticas públicas, o que inspirou outros grupos identitários que também pretendem se fazer ouvir. No entanto, a política de identidade levada ao extremo fez desaparecer o humano, o “eu” compreendido em seus direitos e singularidades. A reivindicação de pertencimento a categorias e a “política da queixa”, segundo Patai, levou ao declínio da liberdade de expressão e a ações que privilegiam determinados grupos em detrimento de outros. O dogma do construcionismo social e a retórica do pós-modernismo são, para ela, os inimigos do humanismo, forçando os indivíduos a serem reconhecidos apenas enquanto em grupo, e assim também seus discursos. Esse teria sido o erro do feminismo solipsista, considerando-se capaz de qualificar conhecimentos produzidos nas universidades. A subjetividade e o humanismo ficam vulneráveis a abusos provenientes de reivindicações de grupos identitários, enquanto os argumentos racionais perdem espaço para a violência e os dogmas.

A leitura de cada texto nessa coletânea inquieta o leitor em torno de questões como a produção de conhecimento e os comprometimentos exagerados com políticas identitárias. Não que a luta por direitos coletivos seja desvalorizada pela autora, mas sua sensibilidade está sempre atenta às implicações decorrentes dos exageros políticos. Patai não revê suas posições para negá-las, mas para as reavaliar e complementar. É fundamental levar em conta criticamente a própria posição e as circunstâncias de produção do conhecimento. Aquilo que era vergonhoso na academia – o reconhecimento das próprias imperfeições e a postura autocrítica – deve ser impetuoso à história oral e ao feminismo?

Marta Gouveia de Oliveira Rovai – Doutoranda em História Social e Pesquisadora do Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO) da Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

1 BOSI, E. Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Cia. Das Letras, 1979; MEIHY, José C.S.B. A colônia brasilianista: história oral de vida acadêmica. São Paulo: Nova Stella, 1990.

O que resta de Auschwitz: o arquivo e o testemunho (Homo Sacer III) – AGAMBEN (RTA)

AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e o testemunho (Homo Sacer III). São Paulo: Boitempo Editorial, 2008, 175 p.  Resenha de: SOUZA, Fábio Francisco Feltrin de. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 2, n. 1, p. 247 – 250, jan./jun. 2010.

O controverso pensamento de Giorgio Agamben tornou-se referência obrigatória para qualquer pesquisador que se depare com os dispositivos construtores de subjetividades. Seus escritos, consagrados em muitas universidades européias e norte-americanas, vêm ganhando espaço nos círculos de debates brasileiros, principalmente no que diz respeito à teoria política e literária. Na esteira desse pensamento político e dando continuidade ao projeto Homo Sacer1, chegou às livrarias brasileiras O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha.

De pronto, o título já traz implicações que serão aprofundadas ao longo da obra. Agamben desenvolve sua noção de “resto” a partir do que chamou de “contração do tempo”. Noção esta recolhida, de maneira bastante livre, da Epístola aos Coríntios de São Paulo e numa reapropriação do conceito tempo-de-agora, de Walter Benjamim.2 Com isso, o resto não pode ser o que sobra ou o que permanece como um dever de memória. Ele é um hiato, uma lacuna que se instaura na língua do testemunho em oposição às classificações do arquivo, pois aquilo que não é enunciado, que não é passível de ser arquivado, é a própria língua pela qual a testemunha manifesta sua incapacidade de falar. Esta perspectiva destrói os contornos delineados do dizer e institui a verdade da fala. Esta verdade rompe com a linearidade infinita  Mestre em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (2005). Atualmente é doutorando na mesma Universidade. E-mail: [email protected] 1 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: O poder soberano e vida nua. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1995.

2 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

Com isso, o resto não pode ser o que sobra ou o que permanece como um dever de memória. Ele é um hiato, uma lacuna que se instaura na língua do testemunho em oResenha AGAMBEN, Giorgio.O que resta de Auschwitz:o arquivo eo testemunho(Homo Sacer III). São Paulo: Boitempo Editorial, 2008, 175 p.Fábio Francisco Feltrinde Souza do chronoshistoricistae institui a plenitude do tempo-de-agora como kairos, discutido porAgamben no livro a Infância e a História(AGAMBEN, 1999, 128).3 Quando perguntada, nos anos de 1960, pela televisão alemã o que restava da Europapré-hitlerista, Hannah Arendt respondeu:”A língua materna” (AGAMBEN, 2008, p. 159). Para compreender este resto, Agamben se vale das tensões que fazema língua viva, seuspolos de inovação e transformação, mas centrados no falante destituído da capacidade defalar. Por isso, o autor dedica o segundo capítulo ao mulçumano, pois ele seriaa refutaçãoradical de qualquer possível refutação; a destruição desses últimos baluartes metafísicos, osquais continuam de pé não por não poderem serdiretamente provados, senão por unicamentenegarem sua negação. O mulçumano era o morto-vivo, o não-homem, o sem história doscampos de concentração. Não tinha rosto, nem força. Perambulava pelo campo sem vida, magro ao extremo, de ombros curvos.

Agamben lembra que a situação-limite, ou situação-extrema, foi invocada em nosso tempo tanto por filósofos quanto por filólogos. Afunção que desempenhaé semelhante à quejuristas chamam de estado de exceção. Por isso, o filósofo italiano vai a Kierkegaard,paraargumentar que na situação-limite se pode julgar e decidir sobrea situação normal. Para ofilósofo dinamarquês, “a exceção explica o geral e a si mesma. Quando se quer estudarcorretamente o geral, importa ocupar-se de umaexceção real” (AGAMBEN, 2008, p. 55). Apartir desse ponto, o autor argumenta queo espaço político contemporâneo não é maisacidade idealizada, a pólis erguida pela racionalidade da lei e da norma, mas o campo deconcentração, cuja marca é a ausência de lei, a anomia, onde abiose transforma emzoé. Nolugar de cidadão, ohomo sacer. Os habitantes foram despojados de todo estatuto político ereduzidos a vida nua. O estado de exceção é, pois, uma norma. Nele, o mulçumano surgecomo testemunha impossível, pois é privado da língua.O cerne do testemunho linguístico noCampo Grande–Auschwitz–privilegia a exceção à norma, arriscando-se na deriva do fechamento da passagem entre o real e o possível. Este paradoxo só seria resolvido em umtempo que não é nem o da História, nem o daeternidade, mas o do Messias; daquilo quesobreviverá.

O conceito de sobrevivente é fundamental no pensamento político de Agamben. OHomo Sacersobrevive àbiopolítica, àzoé. Dessa forma, podemos dizer que os sobreviventesao extermínio sistemático implementado pelos nazistas são filhos do acaso, pois o campo, situação absoluta, acaba com toda possibilidade de uma temporalidadeoriginária, de uma fundação temporal. No Lager, o irremissível do passado torna-se iminência absoluta. O antes e o depois são destruídos numa paródia sinistra que anuncia a fatalidade sem deuses ou heróis. Não há destino a ser enfrentado; não há proximidade. Há tão somente a vida nua.

Os sobreviventes do Holocausto também se referiram à impossibilidade de dar testemunho verdadeiro acerca experiência vivida nos campos de concentração. O escritor italiano Primo Levi, prisioneiro em Auschwitz e que Agamben recupera em sua obra, diz que ‘as verdadeiras testemunhas’ são aqueles que viveram a experiência do extermínio até ao fim; as que ‘viram a gorgona’ e não sobreviveram; aqueles que, nas palavras do italiano citado, já estavam mortos antes morrer e já haviam perdido toda capacidade de se comunicar. Aos sobreviventes – os que não sofreram a experiência radical do Holocausto, os que conseguiram não ir ‘até ao fim’ – compete, diz Primo Levi, falar por proximidade. Dar testemunho é assim falar de uma experiência radical, que o sobrevivente não teve. É uma impossibilidade de testemunhar, por assim dizer. Há, pois, um duplo paradoxo na condição da testemunha: o paradoxo que resulta da impossibilidade de expressar por palavras uma situação limite, e o paradoxo da condição do sobrevivente, que dá testemunho, por aproximação, da experiência radical daqueles que não sobreviveram ao Holocausto e pela qual ele próprio não passou. O esclarecimento destes aparentes paradoxos é indispensável para compreender o sentido da impossibilidade de testemunhar referida pelos sobreviventes do Holocausto, usados pelos negacionistas com o objetivo de negarem o extermínio nazi. O que Agamben procura fazer é compreender a estrutura do testemunho. O testemunho é relegado ao plano da linguagem não como o que resulta da impossibilidade de dizer, mas como um sistema de relação entre o dizível e o indizível; entre o que se pode dizer e aquilo que de fato se diz. É o que fica entre as potencialidades da linguagem e a sua possibilidade efetiva. Dar testemunho é colocar-se nesta cisão entre o que é possível dizer e o que se diz. O testemunho é, assim, uma efetivação possível, uma possibilidade de dizer que carrega a potência do não-dizível.

É neste limite que o testemunho dos sobreviventes se afirma hoje como o único relato possível e verdadeiro de uma barbárie inimaginável. Os testemunhos dos sobreviventes do Holocausto, fixados em livros e diversos documentos, não provam a impossibilidade de falar do horror, mas a possibilidade de falar do impossível – Auschwitz. Só os sobreviventes do Holocausto podiam fixar, nos seus próprios termos, a verdade do que viram. Nem poderia ser de outra forma, porque a experiência sem termo de comparação pela qual passaram fez deles testemunhas únicas do inimaginável. Há um episódio contado por Levi, no livro A Trégua, que ilustra de forma dramática a necessidade de dar testemunho em nome dos impossibiltados de o dar. Ele conta a história do pequeno Hurbinek, uma criança muito provavelmente nascida em Auschwitz, paralítica e incapaz de falar, e cujo verdadeiro nome ninguém conhecia. O nome Hurbinek fora-lhe atribuído pelos prisioneiros, que tomaram conta dele nos últimos dias de vida. A falta de linguagem de Hurbinek ‘fazia-se sentir no seu olhar’, diz Levi. Era um olhar ‘selvagem e humano, ao mesmo tempo; aliás, maduro e julgador, que ninguém entre nós sabia confrontar, tamanha era a sua carga de força e de pena’, escreve o autor. Nos últimos dias de vida, já em agonia, os prisioneiros ouviram Hurbinek pronunciar uma palavra, ou aquilo que parecia ser o som de uma palavra, algo como ‘mass-klo’, ou ‘mistisklo’, que ninguém, no entanto, soube dizer o que significava. Hurbinek, o sem-vida, morreu dias depois da libertação de Auschwitz. Primo Levi despede-se dele assim:

Hurbinek, que tinha três anos e que talvez tenha nascido em Auschwitz e nunca tinha visto uma árvore; Hurbinek, que tinha combatido como um homem até ao último suspiro, para conquistar a entrada no mundo dos homens, de onde uma força bestial o tinha banido; Hurbinek, o sem-nome, cujo minúsculo braço tinha gravado a tatuagem de Auschwitz; Hurbinek morreu nos primeiros dias de Março de 1945 livre, mas não rendido. Nada ficou dele: ele testemunha através destas minhas palavras (AGAMBEN, 2008, p. 47).

Primo Levi não é propriamente um sobrevivente, uma testemunha autêntica. Ele, como outros, por habilidade ou sorte, não tocaram o fundo. Quem o fez, quem fitou a “górgona” não voltou para contar, ou voltou mudo. Muito próximo do que Benjamin chamou de “experiência do choque”, da mudez, da impossibilidade de falar após as trincheiras (BENJAMIN, 1994, p. 115.). Assim, paradoxalmente, não há nem verdadeira testemunha, nem testemunho verdadeiro, pois os verdadeiros (e os mulçumanos, aqueles mortos posteriormente, os sem-humanidade) foram mortos. O não-essencial é o dizível, o narrado, aquilo que está no arquivo. Por sua vez, o essencial torna-se indizível. O resto de Auschwitz é a passagem do dito não-essencial ao não-dito fundamental. Esta falta, esta lacuna, este deslocamento, esta não-consciência desmancha qualquer plenitude discursiva e ameaça o logos de desmoronamento. É a não-língua de Hurbinek, que não encontra lugar nos arquivos e bibliotecas do enunciado. Aquilo que deveria ser falado não é arquivado nos salões da memória. Ele não passou da in-fantos para o não-dizer. Ela é a própria potência do não. Florianópolis, v. 2, n. 1, p.247–250, jan./jun. 2010 posição às classificações do arquivo, pois aquilo que não é enunciado, que não é passível de ser arquivado, é a própria língua pela qual a testemunha manifesta sua incapacidade de falar. Esta perspectiva destrói os contornos delineados do dizer e institui a verdade da fala. Esta verdade rompe com a linearidade infinita 3

AGAMBEN, Giorgio.Infância e História:a destruição da experiência e a origem da História. Belo Horizonte:Ed. UFMG, 1999. Florianópolis, v. 2, n. 2, p. 240 – 243, jul./dez. 2010

1 BOSI, E. Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Cia. Das Letras, 1979; MEIHY, José C.S.B. A colônia brasilianista: história oral de vida acadêmica. São Paulo: Nova Stella, 1990.

Fábio Francisco Feltrin de Souza – Mestre em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (2005). Atualmente é doutorando na mesma Universidade. E-mail: [email protected].

Diáspora Negra no Brasil – HEYWOOD (RTA)

HEYWOOD, Linda. (Org.) Diáspora Negra no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2008. 222 p. Resenha de: SANTOS, Raphael Freitas. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 1, n. 2, p. 186 – 190, jul./dez. 2009.

O leitor brasileiro desavisado que olhar na estante o livro organizado por Linda Heywood pode pensar, pelo título “Diáspora Negra no Brasil”, que se trata de mais uma obra que aborda os africanos como vítimas do tráfico atlântico de escravizados. Mas não julgue o livro pela capa nem pelo título. Em inglês (Central Africans and Cultural Transformations in the American Diaspora), o título apresenta melhor o principal objetivo do livro: explorar o legado cultural dos africanos da África Central na América. Além de Linda Heywood, o livro conta com a contribuição de importantes pesquisadores africanistas, como Joseph Miller e John Thornton, e brazilianistas, como Mary Karasch e Robert Slenes.

“Diáspora Negra no Brasil” pode ser inserido em uma perspectiva historiográfica menos afeita às análises demográficas sobre o tráfico de escravos (que, durante muito tempo, negligenciaram aspectos etnográficos e antropológicos) e mais preocupada com a dimensão das práticas culturais dos africanos na América. O objetivo é resgatar as origens dos escravizados, procurando dimensionar o caráter, a natureza e a dinâmica das relações entre sociedades africanas e culturas afro-americanas, a fim de tornar “visíveis os africanos invisíveis” (HALL, 2005). Para tanto, as identidades trazidas e/ou criadas pelos africanos no Atlântico vêm sendo o principal objeto de pesquisa, e a noção de “diáspora”, um conceitochave.

Nesse livro, os autores dedicaram-se a solucionar um grande problema da historiografia que analisa a diáspora africana na América: a demasiada ênfase na cultura dos africanos da região ocidental da África, como se fossem esses os verdadeiros repositórios da cultura africana na América. Para Heywood, o “conhecimento da história e do impacto cultural dos centro-africanos na diáspora está muito aquém do dedicado à África Ocidental” (HEYWOOD, 2008, p. 18). Apesar dessa subrepresentação dos centro-africanos nas pesquisas históricas, eles corresponderam, segundo Joseph Miller, a nada menos do que 45% dos africanos escravizados enviados para a América – sendo que entre 1600 e 1650, os escravizados da África centro-ocidental representaram mais de 92% das importações americanas de escravos (MILLER, 2008, p. 78-79). Portanto, fazia-se urgente reunir o trabalho de pesquisadores que, reconhecendo a importância dos centro-africanos na construção da América, analisassem a história da transformação de sua cultura durante a diáspora.

Em seu artigo “África Central durante a era do comércio de escravizados, de 1490 a 1850”, Joseph Miller, além de apresentar um interessante panorama do tráfico atlântico de escravizados na África centro-ocidental, atenta para o fato de que uma origem linguística comum, certa intimidade com a cultura europeia e um “pragmatismo cultural” foram os elementos que garantiram a maior integração dos africanos centro-ocidentais nas Américas, construindo identidades que mudavam constantemente “conforme lutavam para encontrar um lugar para si na escalada para obter vantagens ou, para as vítimas, simplesmente sobreviver” (MILLER, 2008, p. 74).

O artigo apresentado por John Thornton, intitulado “Religião e vida cerimonial no Congo e áreas Umbundo, de 1500 a 1700”, reforça essa hipótese. Importante africanista que elaborou a polêmica hipótese da existência de uma base comum cristã pan-atlântica derivada da África, John Thornton, em seu artigo, analisa as práticas religiosas dos africanos centroocidentais e as suas transformações com a difusão do cristianismo. Para o autor, a prática sincrética do catolicismo não teria simplesmente nascido na América.

Esse é o argumento-chave do artigo “De português a africano: a origem centroafricana das culturas atlânticas crioulas no século XVIII”, escrito pela organizadora do livro, Linda Heywood. Segundo a autora, “os escravizados que chegaram a América levaram elementos desse catolicismo centro-africano com eles, e essas práticas acabaram passando por novas transformações ao se tornarem parte da diáspora americana” (HEYWOOD, 2008, p. 112). O caso de Luiza Pinto, estudado por Luiz Mott (1994) e lembrado por Linda Heywood em seu artigo, é exemplar nesse sentido. Presa pela Inquisição em 1743, após 30 anos de atividades curandeiras no Brasil, Luiza teria aprendido em Luanda a “curar pessoas com a combinação de rituais católicos com raízes africanas. Seu repertório incluía também adivinhação e contato com o ‘outro mundo’” (HEYWOOD, 2008, p. 123). Luiza foi escravizada na África centro-ocidental e vendida em Sabará, Minas Gerais, uma região marcada pela significativa presença de africanos centro-ocidentais, principalmente entre os anos de 1734 e 1773. Nesse momento, eles representavam 49% da população escravizada inventariada na comarca do Rio das Velhas, cuja sede era Sabará (SANTOS; CORREA, 2008, p. 289).

Em “Centro-africanos no Brasil Central, de 1780 a 1835”, Mary Karasch analisa outra sociedade mineradora na América portuguesa: a capitania de Goiás. Apesar de contar com apenas 40 mil escravizados no auge do sistema escravista, a autora chama a atenção para o fato de que os centro-ocidentais tiveram uma participação fundamental na construção da cultura afro-brasileira no Brasil Central. Os dados apresentados por Karasch para Goiás podem ser interpretados como uma espécie de microcosmos do Brasil, no que tange à estrutura da posse de escravizados africanos: na região mais ao norte, havia uma concentração maior de escravizados ocidentais (66,7%, no caso de Goiás), enquanto na região Sul a percentagem de centro-ocidentais era maior (62,4% em Goiás) (KARASCH, 2008, p. 149). Mesmo marcando uma presença maior, em termos demográficos, nos territórios mais ao sul do Brasil, os centro-ocidentais foram importantes na formação de uma religiosidade afrobrasileira, de matriz católica, em todas as regiões.

De acordo com Elizabeth Kiddy, em seu artigo “Quem é o rei do Congo? Um novo olhar sobre os reis africanos e afro-brasileiros no Brasil”,

[…] a familiaridade dos centro-ocidentais com os símbolos, rituais e organizações católicas, combinada com uma crença na estrutura hierárquica da sociedade e no papel ritual dos reis, fez das irmandades religiosas leigas um lugar ideal para recriar uma comunidade africana no Brasil (KIDDY, 2008, p. 174).

Nesses espaços, o legado centro-ocidental foi reproduzido e transformado, na medida em que reis e rainhas representaram, não raramente, líderes, inclusive de comunidades quilombolas. O que podemos vislumbrar com esse e com os demais exemplos apresentados ao longo do livro é que os escravizados africanos de uma mesma origem (cuja identidade pode ter sido construída ou apenas consolidada na América), na vivência de sua cultura (agora afroamericana), agiram historicamente, transformando os espaços e as relações às quais estavam submetidos. É isso que nos mostra Robert Slenes (“A grande greve do crânio do tucuxi: espírito das águas centro-africanas e identidade escrava no início do século XIX no Rio de Janeiro”), em seu brilhante trabalho de interpretação histórica a partir de um relato etnográfico feito por John Luccock, mercador e naturalista inglês que desembarcou no Brasil no início do século XIX.

Luccock testemunhou – na verdade, protagonizou – um pequeno motim no navio que o levava a uma expedição pela baía de Guanabara. A tripulação do barco, composta por escravizados africanos, simplesmente parou de trabalhar, e a única explicação que o naturalista inglês conseguiu encontrar para a pequena insurreição foi a superstição dos negros. De acordo com o relato, tudo teria começado quando foi coletado, durante a expedição, um crânio de tucuxi – uma espécie de golfinho. Esse “objeto” teria causado um mal-estar entre os tripulantes, que pediram para retirá-lo do barco.

Slenes, com toda sua perspicácia, analisa esse evento, buscando compreender os símbolos e as metáforas que estão por trás do comportamento dos escravizados. Como Darnton, em seu “O Grande Massacre de Gatos”, Slenes confirma que “quando deparamos com alguma coisa que nos parece inconcebível, podemos ter tropeçado num meio de acesso válido a uma mentalidade estranha. E, quando vencermos a perplexidade e alcançarmos o ponto de vista do nativo, deveremos ser capazes de perambular através de seu universo simbólico” (DARNTON, 1986, p. 335). O episódio protagonizado e narrado por Luccock e todos os outros tantos episódios da história da presença africana no Brasil apontam para o fato de que certas pessoas descobriram a África na América e usaram essa descoberta como base para a ação. No caso dos centro-africanos, devido a uma série de características comuns, apontadas ao longo do livro, “esses povos tenderam a superar possíveis hostilidades entre si e descobrir uma identidade comum” (SLENES, 2008, p. 200).

“Diáspora Negra no Brasil” oferece uma importante contribuição à historiografia brasileira preocupada com temas como: linguística comparativa, religião, política, representação e utilização do corpo, músicas e manifestações artísticas em geral, de origem africana. Além disso, os autores colocam em foco os africanos da região centro-ocidental da África, que, apesar de representarem, demograficamente, uma parcela significativa da população escravizada de origem africana na América, nunca tiveram a atenção merecida por parte dos pesquisadores. Ao terminar de ler cada artigo do livro organizado por Heywood, fica a impressão de que, em diversos espaços e momentos, a cultura dos africanos centroocidentais foi um elemento dinâmico, capaz de dar sentido à experiência e de permitir a ação, de forma conjunta e decisiva, em sua experiência diaspórica.

Referências

DARNTON, Robert. O Grande Massacre de Gatos e Outros Episódios da História Cultural Francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

HALL, Gwendolyn Midlo. Slavery and African Ethnicities in the Americas: Restoring the links. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2005.

HEYWOOD, Linda. (Org.) Diáspora Negra no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2008.

MOTT, Luiz. O calundu angola de Luzia Pint: Sabará, 1739. Revista do Instituto de Artes e Cultura. Ouro Preto: UFOP, v. 2, n. 11, p. 73-82, 1994.

SANTOS, Raphael Freitas; CORRÊA Carolina Perpétuo. A trajetória econômica da comarca do Rio das Velhas: um estudo das estruturas de posse de escravos e as relações com o mercado internacional de escravos (século XVIII). In: PAIVA, Eduardo F.; IVO, Isnara P. Escravidão, Mestiçagem e Histórias Comparadas. São Paulo: Annablume, 2008, p. 289 – 304.

1 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: O poder soberano e vida nua. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1995.

2 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

Raphael Freitas Santos Universidade Federal Fluminense Universidade Federal de Ouro Preto.

A história do conceito de “Latin America” nos Estados Unidos – FERES JR (RTA)

FERES JR, João. A história do conceito de “Latin America” nos Estados Unidos. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2005. Resenha de: LOSSO, Tiago. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 1, n. 1, p. 172 – 175, jan./jun. 2009.

Existe uma América Latina? Esta pergunta, que soaria deslocada aos ouvidos de um desavisado, faz todo sentido como abertura de uma resenha que pretende apresentar um livro debruçado exatamente sobre os mecanismos, meandros e componentes do conceito de Latin America formulado pela intelectualidade norte-americana.

A história do conceito de “Latin America” nos Estados Unidos é trabalho premiado no Concurso EDUSC-ANPOCS, edição 2004, na área de Ciência Política. O livro é uma versão revisada da tese defendida pelo autor na City University of New York, ambientada na vertente de reflexão teórica sobre problemas intelectuais inspirada por Reinhart Koseleck, e difundida em solo norte-americano por Melvin Richter.1 Hoje, a História conceitual alemã (termo usado pelos seus praticantes) é um dos campos teóricos mais vigorosos no âmbito da investigação de problemas de ordem intelectual, mobilizando um debate frutífero, que tanto se desenrola entre seus praticantes, quanto através do contato com outras vertentes teóricas da história intelectual, principalmeente aquela inspirada em Quentin Skinner, Jonh Pocock e Jonh Dunn, conhecida como “Escola de Cambridge”. Como o próprio Melvin Richter admite, na orelha do livro, A história do conceito de “Latin America” nos Estados Unidos é uma contribuição vigorosa ao debate, levando o leitor a acompanhar o conceito de Latin America transitando entre os discursos das ciências socias que tematizaram a América abaixo do equador e os livros textos usados pelos atuais graduandos norteamericanos, sem deixar de marcar a política externa daquele país. Utilizando a teoria de Koselleck, Feres organiza seu argumento identificando de que maneira o conceito de Latin America foi articulado através de pares de contraconceitos assimétricos, onde “cada par é composto por um conceito positivo, assumido como identidade do grupo que nomeia, e um negativo que corresponde à mera inversão semântica do elemento positivo” (p. 38). Assim, ao tratar da Latin America, o estudioso norte-americano estava também elaborando o que era a sua América.

Estes pares de contraconceitos assimétricos, em se tratando do estudo em questão, são articulados em suas dimensões raciais, culturais e temporais. Racialmente, o latin american é sempre visto como não-branco, independentemente de ser afro-descendente ou nativo do continente, ou mesmo um mestiço entre qualquer uma das pretensas clivagens “raciais”. No tocante ao par cultural, a Latin America é concebida como uma região portadora de um conjunto cultural particular, profundamente marcado por elementos católicos, contraposto ao protestantismo que teria marcado definitivamente a realidade norte-americana. Ainda em termos culturais, a indolência do latin american é contrastada com a disposição do norte-americano; bem como o desprezo pelas leis na Latin America serve para ressaltar o apego dos americanos do norte ao direito e as regras. Por fim, o atraso da Latin America. Ao passo que o norte da América é o paroxismo do progresso, a Latin America encerra o atraso, os grilhões com o passado colonial ou, como em alguns autores analisados no livro, com elementos pretensamete feudais. Como bem frisado por Feres, estes pares de contraconceitos assimétricos não são mobilizados de forma estanque. Pelo contrário, em grande parte das oportunidades em que são utilizados, é possível identificar a “sobreposição” de dois ou mesmo dos três pares.

Um ponto relevante de A história do conceito de “Latin America” nos Estado Unidos é a investigação do papel das ciências sociais na difusão do conceito, hoje circulando para além dos muros acadêmicos. Surgido no século 19, o termo Latin America assume contornos de um discurso sócio-científico ao longo das décadas iniciais do século 20, fenômeno que tem seu impulso definitvo com a da conformação dos Latin American Studies, na década de 1960, momento em que verbas para pesquisas sobre a realidade latinoamericana foram abundamentemente distribuídas pelo governo dos EUA, preocupado com a “instabilidade política” da região.

No mapeamento da emergência e circulação do conceito, Feres passa em revista as várias tendências que marcaram estudos produzidos sobre a realidade da Latin America. Da teoria da modernização, passando pela teoria da estabilização política, pela Teoria da Dependência e pelas teorias corporativistas, até os livros-texto usados atualmente nos cursos de graduação dos EUA, o autor mostra a permanência de elementos semânticos pejorativos atribuídos a realidade e aos habitantes da Latin America. Digno de nota é a referência feita a Teoria da Modernização (tanto nos trabalhos de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Falleto quanto nos estudos de Andre Gunder Frank), que distancia-se dos preconceitos típicos das outras teorias referenciadas, negando a validade heurística dos argumentos ancorados nos pares de contraconceitos assimétricos que constituem o conceito de Latin America.

Cabe ainda notar que Feres identifica uma estreita relação entre as interpretações sobre a Latin America e os sucessivos contotrnos assumidos pela política externa norteamericana durante o período coberto pelo livro. Esta observação é particulamente válida para os autores que antecedem a completa profissionalização do campo da ciências sociais nos EUA, usualmente autores de livros que também se destacaram como conselheiros de agências governamentais encarregadas de lidar com a Latin America.

Dois elementos do livro de Feres Jr. podem desconcertar um historiador brasileiro. Como historiador, é desconfortável notar a penetração de alguns autores – e suas “interpretações do Brasil” – nos curriculos acadêmicos do Brasil, e, por que não dizer, na historiografia produzida no e sobre o Brasil. O livro aqui resenhado imbrica estes autores numa linhagem intelectual que disseminou conceitos pejorativos em relação a uma massa de terra transformada em todo cultural recorrendo-se a sinédoque. O detalhe pitoresco sobre esse aspecto da ignorância que transborda dos Latin American Studies é a existência de livros que simplesmente não tratam da colonização portuguesa na América quando tematizam a Latin American History. Como brasileiro, é desconcertante ver-se pintado num retrato coalhado de elementos pejorativos, numa trama destinada a satisfação do outro. Nas palavras de Melvin Richter, na já referida orelha do livro: “os norte-americanos fazem uso dele [o conceito de Latin America] para reforçar sua própria identidade, glorificando assim o ‘nós’ através da atribuição de um conjunto de características pejorativas a ‘eles’, ‘o outro’, as populações das Américas do sul e central.” Talvez, um leitor dos ensaistas brasileiros do primeiro terço do século 20 conheça inclusive alguns elementos do conceito de Latin America, ficando menos impressionado e mais curioso. No livro não há uma única menção sobre possíveis leituras mútuas entre o norte e o sul da América. Não se trata, evidentemente, de falha do trabalho de Feres. Esta questão é uma das diversas possíveis direções que pode tomar o exame da nossa história intelectual. A história do conceito de “Latin America” nos Estados Unidos é prova da possibilidade de fazer esta história de forma inventiva e criativa.

Referências

RICHTER, Melvin. The History of Political and Social Concepts: a Crtitical Introduction. New York: Oxford University Press, 1995.

RICHTER, Melvin. Begriffsgeschichte today – an overview. Opening address at the meeting Conceptual Change and European Political Cultures at the Finnish Institute in London, 18-20 June 1998.

1 Uma introdução ao tema pode ser visto em Richter, 1995. Um apanhado das preocupações atuais da begriffsgeschichte pode ser conferido em Richter, 1998.

Tiago Losso – Universidade Federal de Santa Catarina.

Tempo & Argumento | UDESC | 2009

Tempo e ARgumento3 Tempo & Argumento

A Revista Tempo & Argumento (Florinópolis, 2009-) é uma publicação do Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC.

Apresenta como objetivos estabelecer-se como canal de divulgação de estudos recentes e inovadores na área de concentração do Programa de Pós Graduação: História do Tempo Presente; estimular e desenvolver o intercâmbio entre pesquisadores e profissionais atuantes na área de História e/ou áreas afins; fomentar o intercâmbio de informações e experiências entre instituições nacionais e/ou estrangeiras; fomentar o debate de questões teórico-metodológicas referentes à História; divulgar publicações, comentários, entrevistas e documentos concernentes à pesquisa em História.

Periodicidade quadrimestral.

Acesso livre.

ISSN 2175-1803 (Online)

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