Antologia de textos – GEBARA (RTA)

GEBARA, Ivone. Antologia de textos. São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2010. 256 p. Resenha de ZIMMERMANN Tânia Regian. Vulnerabilidade, justiça e feminismos. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 3, n. 1, jan/jun. 2011.

Como teóloga feminista, Ivone Gebara nos presenteia com esta obra que é fruto de vários textos produzidos para revistas e palestras em eventos de diversos países. Ao todo são mais de trinta textos escritos entre os anos de 2001 e 2010. A autora surpreende a cada linha pela sua coragem e ousadia com suas diferentes abordagens teológicas em relação a diversos temas aqui apresentados como o cotidiano, o cristianismo, a tolerância, a violência, a felicidade, o Estado laico, o fundamentalismo, os feminismos e o ecofeminismo.

Na maioria desse conjunto de escritos, o conceito de gênero e de feminismo serão centrais e utilizados de forma plural. Ao historicizar os diferentes conceitos e seus usos na atualidade, Gebara almeja a construção de novos sentidos e olhares na interpretação destes temas para dar visibilidade, principalmente à atuação das mulheres em múltiplos espaços e momentos. Com a história na mão, Gebara sonha com outras possibilidades de existência na atualidade que perpassem relações mais solidárias entre os seres humanos.

Esta antologia demonstra o vigor do pensamento de uma autora feminista inserida em uma comunidade do interior nordestino. Ela usa sua experiência e a de seus protagonistas locais para dizer com sua subjetividade e seus conhecimentos filosóficos, históricos e sociológicos o não-dito, a fronteira, as linhas de fuga até então, em grande parte, silenciados e ocultados pela ciência. Estes olhares de Gebara são amostras da resistência a uma história forjada e contada de forma privilegiada pelo ideal normativo masculino, machista e patriarcal.

A obra em seu conjunto está organizada em quatro capítulos divididos pela seguinte temporalidade: de 2001 a 2003; de 2004 a 2005; de 2006 a 2007 e de 2008 a 2010.

Na primeira parte, a autora apresenta novidade ao tecer algumas relações entre a teologia da libertação e os começos da teologia feminista na América Latina. É nestes textos que a categoria gênero é problematizada como parte da cultura e não fora dela e, portanto, instável e móvel. Assim, o corpo biológico é também cultural, mas a forma como foi nos apresentado normatiza o conjunto de relações entre as pessoas pelo aparelho genital, ou seja, em torno do sexo as desigualdades ganhavam de longa data contornos bem definidos. Na sua visão “Gênero não é o sexo genital, mas o conjunto de atribuições simbólicas dadas ao sexo das pessoas.” (p. 4). A ciência foi corroborante neste efeito de desigualdade? Para Gebara foi sim, pois as ciências humanas privilegiaram apenas um gênero. Destarte, as mulheres foram vistas e analisadas pelo olhar masculino misógino, o qual identificava as mulheres à natureza. Então, se as mulheres possuíam esta identificação, elas não poderiam acender ao estatuto da plena individualidade e da plena consciência. Isto ainda as coloca no tempo presente como subalternas e sem direito a serem sujeitos da história.

Quais as questões de relevância propostas pela teologia feminista? Para Gebara esta teologia visa denunciar as relações de poder assimétricas que impedem a igualdade e a liberdade das mulheres em todos os espaços. Advogando o pluralismo, a autora nos convida a pensar outros caminhos para entedermos os seres humanos em suas relações e com o ecossistema. E a questão da religião e das mulheres? As religiões também são construções advindas da criatividade e da necessidade humana e este resgate histórico, posto por Gebara, quer nos mostrar a exclusão das mulheres nas igrejas. Ela pretende resgatar o orgulho de pertencer a alguma comunidade religiosa, como sendo um espaço de solidariedade entre as próprias mulheres.

No segundo conjunto de textos encontramos olhares de Gebara sobre o feminismo, o pluralismo religioso, a corporeidade, religião e ecofeminismo. A autora destaca que embora se advogue o pluralismo e a diversidade cultural, veicula-se, inclusive pela mídia, uma espécie de “vale-tudo” cuja violência incide principalmente sobre a população carente. Para ela, o pluralismo deveria relacionar-se com a liberdade e o direito à diferença. Destarte, uma leitura feminista principia o respeito à diversidade de gênero e critica a normatividade masculina em relação aos demais corpos existentes. A teologia feminista também discute a invisibilidade e exclusão das mulheres das instituições religiosas e busca por novos equilíbrios nas relações entre os gêneros. Já o ecofeminismo é discutido a partir de seu começo na Europa, e, Gebara inova ao tecer relações entre a opressão das mulheres e a degradação dos ecossistemas. Esta degradação atinge de forma particular as crianças e as mulheres. Além disso, as ecofeministas alargam suas causas mostrando a perversidade do sistema capitalista em expansão na destruição do planeta.

Quando a autora discute o corpo e a cristandade, ela observa a valorização da figura masculina nas religiões cristãs como, por exemplo, a imagem de Jesus Cristo. A teologia feminista busca a visibilidade de todos os corpos até então generificados na bíblia e na história cristã. Para Gebara, a existência da igualdade entre os gêneros também afirmaria a evolução da humanidade.

Democracia, política feminista, violência e Estado laico são alguns dos temas do terceiro conjunto de textos. A democracia é entendida pela autora como a igualdade de condições as quais não podem ser cumpridas no sistema capitalista. Este sistema transformou a democracia num reinado de consumismo e uma palavra vazia de sentido ético. Neste texto, Gebara lança os desafios para a existência da democracia com sugestões feministas para reorganizarmos nossas relações e aprendermos a respeitar a diversidade. Em relação ao Estado laico, a autora advoga a presença da cultura religiosa plural na política e observa a força que a religiosidade cristã ainda tem nas decisões pessoais e políticas no Brasil.

Sobre os conflitos de gênero, Gebara questiona o porquê mulheres atraem tanta violência. O corpo da mulher ao ser identificado a natureza tornou-se um dos lugares onde a raiva da humanidade tem sido depositada. Esta identificação é cultural e não natural e, portanto, passível de mudanças em relação aos nossos corpos o que pode construir novas formas de afetividade, inclusive sexuais. Esse processo de mudança requer a desconstrução de conceitos como o de sexo, mulher e homem. Para Gebara, as experiências que estão sendo vivenciadas nem sempre se enquadram nos ideais normativos criados para os gêneros. Assim, a “desconstrução é complexa e plural” e vai à direção de criar novas relações humanas. (p. 184) A última parte do livro repensa todo o conjunto de escritos e reforça algumas reflexões sobre o socialismo e a necessidade de novas práticas para mesmo isto. Gebara revê o conceito de “pessoa humana”, discute a inclusão digital, as práticas do ecumenismo, a tolerância, as perspectivas para a teologia feminista, inclui um texto em homenagem ao pensamento de Dom Helder Camara e, por fim, enfatiza o pluralismo teológico contraposto ao fundamentalismo religioso. Com esta obra, Ivone viabiliza-nos a desconstrução de vários temas até então vistos sob o olhar masculino. Olhar este que enunciava a hegemonia do pensamento normativo pautado na natureza fixa para a identidade dos corpos. Assim, ela resgata a heterogeneidade como condição humana enquanto um precioso fazer-se de povos e culturas. Sua teologia feminista elenca questões que desafiam nossos olhares sobre o cotidiano. As críticas que ela direciona aos homens, mulheres e à própria Igreja trilham por uma constante reelaboração de práticas libertárias em nossa sociedade. As linhas deixadas por Gebara tecem entre si laços de intuição para todas e todos aqueles que desejam um mundo novo no tempo presente.

Tânia Regian Zimmermann – Professora Adjunta do Curso de História da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul. Email: [email protected].

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