Apocalypse and Anti-Catholicism in Seventeenth-Century English Drama | Adrian Street

As relações entre o pensamento político e religioso com o teatro moderno inglês são largamente discutidas nos trabalhos de estudos literários dos últimos trinta anos, sendo também pensadas na historiografia recente sobre o mesmo período. Desde a década de 1980, houve uma mudança nas produções sobre a Inglaterra Moderna, tanto nos estudos historiográficos quanto literários. No campo da História, a corrente pós-revisionista começava a se voltar para as continuidades, rupturas e negociações nos processos históricos da Inglaterra moderna, evitando as abordagens polarizadas das historiografias revisionista e whiggista2. Paralelamente, os estudos literários do Novo Historicismo rompiam com as análises puramente textuais do criticismo literário (ou Neo-crítica), defendendo uma análise do texto literário que se aproximasse do seu contexto político e social, entendendo a História como um fator fundamental para produção literária3. No que diz respeito à religião, os estudos recentes passaram a enfatizar as diferentes manifestações da linguagem religiosa na cultura impressa e visual4, inclusive observando a presença do catolicismo no pensamento e literatura inglesa ao longo da Época Moderna5.

É neste momento do debate sobre o teatro e a literatura inglesa que se inserem os trabalhos de Adrian Streete. O autor é professor da cadeira de “Early Modern English Literature and Religion”, no departamento de Literatura Inglesa na Universidade de Glasgow. Seus estudos se voltam para a relação entre a literatura e o pensamento religioso e político entre os séculos XVI e XVIII. Em Apocalypse and AntiCatholicism in Seventeenth-Century English Drama, publicado em 2017 pela Cambridge University Press, Streete observa as várias formas de linguagem apocalíptica e anti-católica nos textos dramáticos ingleses ao longo do século XVII. Mais que o resultado de um cenário de crise político-social, ou de divisão religiosa, essa linguagem era uma expressão da religião protestante utilizada por distintos grupos da sociedade inglesa seiscentista, e foi apropriada pelos dramaturgos ingleses para mobilizar diferentes visões e opiniões sobre o cenário político no qual estavam inseridos. O autor ressalta que, apesar de não serem sinônimas, as ideias apocalípticas e anti-católicas quase sempre estavam vinculadas a um discurso protestante do século XVII.

O autor opta por uma organização cronológica dos capítulos, partindo do reinado de Jaime I e terminando, na sua conclusão, com Guilherme III. Streete propõe uma aproximação com a long durée de Braudel ao se voltar para a história literária do século XVII, pensando “as continuidades e inovações no pensamento religioso, político e literário”6 da época. Apesar de oferecer um olhar sobre todo o século XVII, o autor não trabalha com o teatro inglês no intervalo entre 1642 a 1681, deixando de lado três momentos centrais para a História da Inglaterra seiscentista: as guerras civis (1642-1651), o Protetorado (1653-1659), e a Restauração dos Stuart (1660-1661). É também um momento de crise e transformações no teatro inglês, tanto pela proibição e fechamento dos teatros em Londres – cujas companhias e dramaturgos, entre 1642 e 1660, tiveram que se readaptar e até mesmo atuar na ilegalidade -, quanto pela sua reabertura e suas consequentes transformações durante os primeiros anos do reinado de Carlos II7. Seria interessante para o autor observar se (e de que forma) a linguagem apocalíptica e anti-católica se apresentaria nas peças teatrais destes momentos.

O livro se divide em seis capítulos, além da introdução e conclusão. De modo geral, os capítulos possuem dois momentos: uma primeira apresentação do momento histórico e do uso da linguagem apocalíptica e anti-católica, e então a análise das peças teatrais. Para tal, o autor propõe o método por ele chamado de “historically informed close reading”8, ou seja, uma leitura atenta aos detalhes do texto; à sintaxe; às metáforas criadas pelo autor e o uso de palavras selecionadas para compor o texto, mas sem perder de vista a contextualização histórica dessas fontes, os momentos e eventos que permeavam a sua produção e, principalmente, “enfatizando as imbricações nacionais, internacionais e globais da cultura religiosa do início da Modernidade”9. No caso de Streete, essa análise ressalta, principalmente, o uso da linguagem e do imaginário religioso e às referências ao texto bíblico.

Essa divisão entre apresentação e análise não é tão claramente delimitada no primeiro capítulo, momento em que o autor se preocupa em expor algumas figuras principais na linguagem por ele trabalhadas e de que forma elas são apropriadas pelo teatro de forma geral. Para isso, há uma diversidade de peças, panfletos e sermões utilizados pelo autor ao longo de todo o texto, de forma a mostrar como essa linguagem é disseminada na cultura impressa e visual inglesa. Streete identifica duas figuras bastante apropriadas pelos dramaturgos ao mobilizarem essa retórica anti-católica e apocalíptica enraizada na cultura inglesa dos Seiscentos: a prostituta da Babilônia, que representa a corrupção e as falhas da Igreja Romana, e o anticristo, que na leitura protestante não era mais uma figura que viria a surgir, mas sim o próprio papado e a instituição que ele representava.

O fio condutor do texto não é apenas cronológico, como já apontado anteriormente, mas também pautado no conceito de monarquia imperial, suas discussões, contradições e alterações ao longo do século XVII. O autor trabalha a razão de Estado e a relação entre os poderes temporal e espiritual da monarquia inglesa, abordando as ameaças ao poder monárquico tanto nos limites do reino, quanto nas relações externas, tendo sempre em perspectiva como os dramaturgos reproduzem estas questões utilizando-se das diversas figuras de linguagem apocalípticas e anti-católicas. Para refletir sobre o conceito de monarquia imperial no caso inglês e a sua relação com a linguagem religiosa, Streete utiliza uma perspectiva transnacional, dialogando com autores como Barbara Fuchs e Eric Griffin10. Esta abordagem também é relativamente recente nos estudos históricos e literários, mas tem sido bastante explorada para se pensar os textos dramáticos da Inglaterra Moderna, sobretudo por Fuchs e Griffin. Aqui também é interessante mencionar o embasamento bibliográfico do autor, que não só introduz o debate sobre o teatro e literatura inglesa e as peças analisadas, mas também dialoga com diversos historiadores da área de História Moderna, de Kevin Sharpe e John Morrill a Quentin Skinner e Christopher Hill, estes últimos nomes mais familiares à historiografia brasileira. Streete não debate diretamente com a historiografia, mas recorre a estes autores como fonte de informação sobre o momento histórico das fontes por ele utilizadas.

A linguagem e o imaginário apocalíptico e anti-católico eram parte da cultura humanista que sincretiza tanto o referencial bíblico quando o clássico. No protestantismo inglês, essa linguagem é mobilizada para se contrapor ao catolicismo romano. Após a Reforma, o rei inglês ganha autoridade temporal e espiritual sobre o reino. Para Streete, essa articulação entre religião e política é central para a formação de uma ideia imperial na Inglaterra moderna que se opõe ao império de Roma. Nesta chave, a leitura do Apocalipse trata de uma questão temporal e não só espiritual: a Reforma é o elemento central para romper com a corrupção do catolicismo romano e retornar às raízes da Igreja primitiva, e o monarca, como chefe da Igreja, é quem rompe com o império de Roma por meio da sua própria figura imperial, dando início assim aos últimos dias. Daí surgem as analogias e metáforas da linguagem apocalíptica e anti-católica que são levadas aos palcos e aos textos dramáticos.

Nos capítulos que se seguem, Street realiza uma análise mais profunda das peças selecionadas, observando as relações entre a linguagem religiosa e a as construções, adaptações e apropriações da figura imperial ao longo do século XVII. Desta forma, o segundo capítulo apresenta uma análise da peça The Dutch Courtesan (1605), de John Marston, estabelecendo associações entre a cortesã holandesa Franceschina com a figura da prostituta da Babilônia, de forma a demonstrar como o dramaturgo utiliza a linguagem apocalíptica e anticatólica na comédia para tratar da política externa dos primeiros anos do reinado de Jaime I e as conturbadas relações entre Inglaterra, Espanha e Países Baixos. A política reconciliatória de Jaime I, e principalmente o tratado de paz com a Espanha em 1605, colocou em xeque a imagem do monarca inglês como o imperador protestante da Europa, além de influenciar nas relações com os Países Baixos, tanto militar quanto economicamente. No capítulo seguinte, a linha tênue que divide um monarca de um tirano é explorada em The Lady’s Tragedy (1610), de Thomas Middleton. O contexto da obra é o regicídio de Henri IV da França e suas repercussões em solo inglês, principalmente as medidas anti-papistas na Inglaterra, como o juramento de fidelidade (Oath of Aleggiance) imposto por Jaime I em 1606 11.

Em seguida, Streete aborda os primeiros anos do reinado de Carlos I, marcados por uma série de tensões político-religiosas. O autor defende que a peça Believe as You List (1631), de Philip Massinger, seria uma resposta a essas tensões, principalmente aos conflitos gerados pela crise do Palatinado e pelas impopulares tentativas de reconciliação com a Espanha, mas também à crise interna na monarquia Inglesa, marcada por uma crescente frustração do povo inglês sobre o monarca. As críticas à figura monárquica também constituem uma questão central para a análise da peça The Cardinal (1641), de James Shirley, analisada no quinto capítulo. Neste momento, o autor demonstra como a linguagem anti-católica e apocalíptica eram utilizadas para abordar as tensões e revoltas geradas pelo laudianismo – movimento reformista liderado pelo Arcebispo de Canterbury, William Laud – e suas relações com a monarquia inglesa.

Por fim, Streete analisa a peça The Duke of Guise (1682), “o monstro híbrido” escrito em conjunto pelo whig Nathaniel Lee e o tory John Dryden. Seu último capítulo mostra como tanto Whigs quanto Torys, apesar das diferentes visões sobre o direito de Jaime II a suceder o trono, utilizam a linguagem apocalíptica e anti-católica para defenderem a necessidade da monarquia. O autor mostra que tal linguagem não era imutável, mas se modificava e se recriava de acordo com o seu uso e o momento em que ela era utilizada. Já no final do século XVII, o reinado de Guilherme III, brevemente explorado na conclusão do livro, testemunhou o surgimento de uma série de peças teatrais com forte teor anti-católico, e com análises políticas cada vez mais diretas, sendo moldada e moldando, segundo Streete, os debates da esfera pública, inclusive ao longo do século XVIII e XIX. O livro termina com uma ênfase a uma das primeiras afirmações do autor: a linguagem apocalíptica e anti-católica não era mero fruto de disputas religiosas ou de uma sociedade em crise, mas sim a expressão de uma cultura protestante que se enraizou na sociedade inglesa do início da Modernidade, e sua utilização para consolidar ou criticar a monarquia imperial se percebe nas questões políticas internas e externas do Reino Unido desde o século XVII, mas continuam até os dias de hoje.

Adrian Streete contribui para os estudos sobre o teatro inglês do século XVII por meio de um trabalho aprofundado e cuidadoso sobre a apropriação da linguagem anti-católica e apocalíptica no teatro inglês para construir ou criticar a figura monárquica imperial, em um momento em que a própria monarquia inglesa passava por diversas crises e tensões – tanto no cenário interno quanto nas relações com os demais impérios europeus. Sua opção por utilizar textos dramáticos menos conhecidos e propositalmente evitar o cânone shakespeariano, somada às variadas fontes mobilizadas pelo autor, apresentam novas possibilidades de estudo e contribuem para o diálogo entre os estudos literários e a produção historiográfica sobre a Inglaterra Moderna.

Notas

2 VIANNA, Alexander Martins. Corpus shakespeariano e reformas religiosas inglesas: um estudo de caso – O mercador de Veneza. Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro, v. 14, n. 27, 2013, p. 454-456. Disponível em: https://www.scielo.br/j/topoi/a/TrxYSFqcM4BP5GXF7Yswj8z/?lang=pt . Acesso em 10 dez. 2020.

3 ______. Estado e individuação no Antigo Regime: por uma leitura não romântica de Shakespeare. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008, p. 12

4 ______, 2013, p. 456.

5 STREETE, Adrian. Protestantism and Drama in Early Modern England. Cambridge: Cambridge University Press, 2009, p. 6.

6 “[…] considering important continuities and innovations in religious, political, and literary thought.”. STREETE, Adrian. Apocalypse and Anti-Catholicism in Seventeenth-Century English Drama. Cambridge: Cambridge University Press, 2017, p. 16.

7 CLARE, Janet. Theatre and Commonwealth. In: MILLING, Jane; THOMSON, Peter. The Cambridge History of British Theatre, Volume 1: Origins to 1660. Cambridge: Cambridge University Press. 2008. Ver também: DONOHUE, Joseph. Introduction: the theatre from 1660 to 1800. In: DONOHUE, Joseph. The Cambridge History of British Theatre, Volume 2: 1660 to 1895. Cambridge: Cambridge University Press. 2008.

8 STREETE, Adrian. Apocalypse and Anti-Catholicism in Seventeenth-Century English Drama. Cambridge: Cambridge University Press, 2017, p. 21.

9 “[…] emphasising the national, international, and global imbrications of early modern religious culture”. STREETE, Adrian. Apocalypse and Anti-Catholicism in SeventeenthCentury English Drama. Cambridge: Cambridge University Press, 2017, p. 17.

10 Barbara Fuchs observa as apropriações, traduções e imitações dos modelos ibéricos na literatura e teatro ingleses, trabalhando a imitação como “uma prática historicamente situada” em um momento de rivalidade entre estes impérios que repercute no teatro elisabetano, sobretudo nas apropriações dos moldes ibéricos (principalmente hispânicos), em um momento de caracterização nacional e de forte sentimento anti-hispânico – que se mostra, inclusive, na construção da “Black Legend”. Eric Griffin, por sua vez, observa as conexões entre a Inglaterra e os reinos ibéricos, centrando sua discussão no “espectro da Espanha”, cuja presença na literatura e teatro inglês, especialmente a criação da “Black Legend” contra a Espanha, teria sido fundamental para a definição de uma “identidade nacional” da própria Inglaterra. Ambos os autores, portanto, propõem uma abordagem transnacional ao se voltarem para o teatro inglês, observando como a Inglaterra seiscentista se define por meio dos seus processos de tradução, apropriação e imitação dos moldes e produções ibéricas. Ver: FUCHS, Barbara. The Poetics of Piracy: Emulating Spain in English Literature. Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 2013; GRIFFIN, Eric J. English Renaissance Drama and the Specter of Spain: Ethnopoetics and Empire. Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 2009.

11 Após a descoberta da Conspiração da Pólvora, foram aprovadas uma série de leis anti-papistas, dentre elas um juramento de fidelidade, no qual todos os súditos ingleses acima de 18 anos deveriam jurar fidelidade ao rei como retentor do poder temporal, e que portanto não poderia ser deposto pelo Papa. STREETE, Adrian Apocalypse and AntiCatholicism in Seventeenth-Century English Drama. Cambridge: Cambridge University Press, 2017, p. 100.

Referências

CLARE, Janet. Theatre and Commonwealth. In: MILLING, Jane; THOMSON, Peter. The Cambridge History of British Theatre, Volume 1: Origins to 1660. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p. 458-476.

DONOHUE, Joseph. Introduction: the theatre from 1660 to 1800. In: DONOHUE, Joseph. The Cambridge History of British Theatre, Volume 2: 1660 to 1895. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p. 3-52.

FUCHS, Barbara. The Poetics of Piracy: Emulating Spain in English Literature. Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 2013.

GRIFFIN, Eric J. English Renaissance Drama and the Specter of Spain: Ethnopoetics and Empire. Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 2009

STREET, Adrian. Apocalypse and Anti-Catholicism in Seventeenth-Century English Drama. Cambridge: Cambridge University Press. 2017.

STREETE, Adrian. Protestantism and Drama in Early Modern England. Cambridge: Cambridge University Press. 2009.

VIANNA, Alexander Martins. Corpus shakespeariano e reformas religiosas inglesas: um estudo de caso – O mercador de Veneza. Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro, v. 14, n. 27, 2013, p. 453-471. Disponível em: https://www.scielo.br/j/topoi/a/TrxYSFqcM4BP5GXF7Yswj8z/?lang=pt. Acesso em 10 dez. 2020.

VIANNA, Alexander Martins. Estado e individuação no Antigo Regime: por uma leitura não romântica de Shakespeare. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2008.


Resenhista

Aline Davies Moreira – Graduanda em História pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). E-mail: [email protected] http://lattes.cnpq.br/8711793039893556


Referências desta Resenha

STREET, Adrian. Apocalypse and Anti-Catholicism in Seventeenth-Century English Drama. Cambridge: Cambridge University Press, 2017. Resenha de: MOREIRA, Aline Davies. Os usos políticos da linguagem apocalíptica e anti-católica no teatro inglês do século XVII. Revista Hydra. São Paulo, v.5, n.10, p. 342- 350, ago. 2021. Acessar publicação original [DR]

 

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