As artes de curar: medicina/ religião/ magia e positivismo na República Rio-Grandense – 1889-1928 | Beatriz Teixeira Weber

Na paisagem sociocultural do século XX, as profissões apareceram como criaturas naturais, dotadas de legítima autoridade para influenciar ou mesmo dirigir os negócios humanos. Cada expertise reivindicava especial competência técnico-científica sobre a definição, avaliação e solução de nossos problemas cotidianos em áreas cada vez mais amplas. A medicina era geralmente apresentada como o arquétipo das profissões. Nela encontraríamos a forma mais bem-acabada de poder profissional. A demonstração da espetacular simbiose entre razão científica e ética de serviço tem sido a tônica de toda uma tradição historiográfica voltada a cultuar e justificar a autoridade que ela hoje goza, como sistema de conhecimentos e práticas dedicado a evitar, curar ou atenuar doenças.

Muita tinta tem sido gasta também na denúncia dessas formas de poder secular que se espalharam pelas sociedades modernas como contraponto do fenômeno que Weber cunhou como desencantamento do mundo. Da inspirada boutade de Oscar Wilde, para quem “toda profissão é uma conspiração contra os leigos” à “sociedade disciplinar” de Foucault, excelentes análises revelaram como as profissões lograram monopolizar o acesso e a aplicação do conhecimento que haviam adquirido, tendo em vista a preservação do status e de privilégios por elas reclamados. Dessa forma, toda uma vertente de estudos históricos e sociológicos dedicou-se à análise da influência política e cultural das profissões, buscando esclarecer a relação entre as profissões, as elites políticas e econômicas e o Estado; as relações entre elas, o mercado e o sistema de classes no mundo moderno.

No Brasil, desde fins da década de 1970, muitos autores debruçaram-se sobre o nosso passado médico, com o fim de rever as representações laudatórias e enobrecedoras do desenvolvimento progressivo da ciência médica. Nessa empresa, puseram em foco a interação entre medicina e poder estatal, pretendendo comprovar uma homologia entre o discurso médico higienista e a estratégia de dominação das elites agrárias, tendo como pano de fundo o processo de aburguesamento da sociedade patriarcal. Apesar de terem contribuído para alterar definitivamente a imagem ascética e progressista do conhecimento médico, apresentando-o como um dos fermentos da ideologia conservadora com que se plasmou o modelo antidemocrático e hierárquico de nossa sociedade, estes estudos pioneiros tiveram uma limitação metodológica que lhes comprometeu o alcance analítico: em geral, tomaram como institucionalizado o conhecimento formalmente produzido e veiculado no estreito ambiente acadêmico. Entretanto, a análise dos textos científicos e técnicos não pode substituir a análise das diversas formas de interação humana que os cria e transforma no curso de sua utilização como empreendimento prático. A própria institucionalização requer a transformação do conhecimento por aqueles que o empregam. Justamente nesse ponto encontra-se um dos méritos do livro de Beatriz Teixeira Weber.

As artes de curar: medicina, religião, magia e positivismo na República Rio-Grandense – 1889-1928, originalmente uma tese de doutoramento defendida no Programa de História Social da Unicamp, trata das “mudanças ocorridas … na forma como as autoridades públicas, médicos e instituições religiosas se relacionavam com práticas populares de cura”, no cenário gaúcho, durante a República Velha. Em contraste com as abordagens que estudam o exercício do poder médico informadas por conceitos teleológicos, excessivamente abrangentes e totalizantes, como medicalização ou profissionalização, Beatriz Weber procura resgatar a diversidade das práticas de cura numa sociedade marcada pela intensa desigualdade social à qual se somava uma pluralidade étnica, formada por imigrantes europeus de várias nacionalidades, índios e ex-escravos de origem africana.

Como sabemos, ao longo da segunda metade do século XIX a medicina hospitalar de base anatomoclínica, em interação com diversas disciplinas laboratoriais, fixaria um padrão de formação acadêmica, obtendo o monopólio legal da prática de diagnóstico, cura e profilaxia em quase todas as nações ocidentais. O controle desse conhecimento e de suas formas de aplicação implicou o domínio daqueles que a ele se opuseram. Ora, monopólio sem liberdade é fácil, mas como seria o processo de legitimação profissional dos doutores diplomados se não contassem com o poder de polícia do Estado para constranger ou erradicar a concorrência de outros curadores? O caso estudado pela autora permite tomar tal questão não como uma especulação teórica, mas, ao contrário, como um exemplo raro em que os esculápios tiveram que enfrentar outras concepções de cura e saúde vinculadas a distintas práticas culturais num ambiente de tensões e conflitos, sem proteção legal. De fato, o Rio Grande do Sul foi o único estado da federação a adotar uma perspectiva positivista após a proclamação da República, consolidada na Constituição Estadual de 1891. Um dos princípios norteadores dessa constituição garantia ampla liberdade profissional.

Debruçando-se sobre variada documentação — processos criminais, jornais e revistas de ampla circulação, legislação estadual e municipal, relatórios da provedoria da Santa Casa da Misericórdia de Porto Alegre, correspondências e relatos de irmãs franciscanas, crônicas e memórias deixadas por médicos e membros do governo estadual, publicações do Apostolado Positivista —, Beatriz Weber recupera as suposições, esperanças, necessidades, aspirações e interesses das pessoas comuns envolvidas com práticas alternativas à medicina acadêmica.

Curandeiros, mezinheiros, pajés, espíritas, feiticeiras, membros de ordens religiosas e parteiras populares confrontam-se com os médicos homeopatas e alopatas, oferecendo seus serviços à sombra dos poderes estatais que se recusavam a intervir no caminho inexorável da sociedade, em sua marcha rumo ao estado positivo. Não caberia ao governo imiscuir-se nesse processo, apadrinhando uma ou outra prática, mas deixar que os indivíduos distinguissem livremente entre os preceitos científicos e as crendices fundadas em preconceitos metafísicos. Os membros do Partido Republicano Rio-Grandense, que monopolizaram o poder ao longo da Primeira República, garantiram a continuidade dessa perspectiva voltada a “zelar pelas condições materiais exigidas pela saúde pública e pela assistência voluntária, mas sem nunca ferir a liberdade individual, de consciência”.

Dividido em quatro capítulos, o livro dedica-se, inicialmente, a explorar a visão de saúde que norteava a política oficial, recuperando as ambivalentes orientações defendidas por grupos de positivistas filiados a distintas correntes do comtismo. O segundo capítulo reflete sobre as relações entre a profissão médica e o governo gaúcho, tendo como fio condutor o processo de constituição da solidariedade corporativa, num contexto em que a própria medicina acadêmica estava envolvida em conflitos internos sobre a cientificidade de seus fundamentos e procedimentos técnicos de diagnóstico e terapêutica. Nesse momento, a criação da Faculdade de Medicina iria permitir que os doutores gaúchos iniciassem “uma guerra de trincheiras” pela afirmação de seus saberes face às ordens religiosas, que controlavam o hospital da Santa Casa, e à política positivista. O capítulo seguinte concentra-se no estudo da Santa Casa, instituição hospitalar e asilar de grande importância para a história médica local. Como a Santa Casa tinha funções assistenciais e, gradativamente, adquiriu funções terapêuticas e de produção de conhecimento médico, foram muito complexas e heterogêneas as relações entre os provedores leigos, que a administravam; as irmãs de caridade, que realizavam o trabalho de enfermagem e conforto espiritual; os médicos, que a punham no centro da formação profissional, ampliando e aproximando os vínculos entre ela e a Faculdade de Medicina; e os pacientes, que possuíam diversas crenças e perspectivas religiosas, compartilhando, entre si, o medo das práticas terapêuticas. Usando documentação original, Beatriz Weber vai analisando os significados da instituição para cada um desses grupos. A lenta afirmação do poder médico sobre os demais atores se deu em meio a “tensões e harmonias geradas pelo convívio de elementos aparentemente contraditórios, como fé e ciência, magia e clínica”. Sua pesquisa desmente a visão arquetípica de uma medicina fortemente disciplinadora, persuasiva e destituída de opositores. Pelo contrário, a inscrição dos doutores num espaço dominado por irmãs religiosas revela que o exercício de seu poder profissional era compartilhado, negociado e mitigado devido à existência das vozes dissonantes bradadas por outras práticas curativas.

O quarto e último capítulo investiga justamente o universo das práticas populares de cura. Esse rico inventário, que inclui terreiros de batuques, rituais afro-brasileiros, seitas radicais de imigrantes europeus, benzedeiras, curandeiros, espíritas e parteiras, é analisado em seu permanente convívio com a medicina acadêmica. Weber demonstra sobejamente, “à luz da experiência dos gaúchos”, que os saberes populares nem sucumbiram nem apenas reagiram ao controle do saber dominante. O exame cuidadoso da prática desenvolvida por cada grupo que reclamava competência na solução de problemas ligados ao bem-estar físico e conforto material e espiritual daquela população — em especial feiticeiros, parteira e espíritas — torna evidente o quanto eles interagiram com criatividade, instituindo novas práticas sociais, e participaram ativamente das definições de saúde, doença e cura, ligadas a segmentos daquela sociedade.

Apresentado numa narrativa que informa e convence o leitor, o livro de Beatriz Weber vem preencher uma lacuna na história da medicina brasileira, geralmente restrita aos casos supostamente exemplares do Rio de Janeiro e da Bahia, onde a tradição médica firmou-se inicialmente. Trata-se, enfim, de uma obra inovadora, cuja narrativa fluente interessará também ao público não especializado.


Resenhista

Flavio Coelho Edler – Pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

WEBER, Beatriz Teixeira. As artes de curar: medicina, religião, magia e positivismo na República Rio-Grandense – 1889-1928. Santa Maria/Bauru: Editora da UFSM; EDUSC, 1999. Resenha de: EDLER, Flavio Coelho. A peculiar medicina dos gaúchos. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.8, n.1, mar./jun. 2001. Acessar publicação original [DR]

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