As esquerdas latino-americanas e a Revolução Russa de 1917: Abordagens e reflexões no contexto do centenário | Revista Eletrônica da ANPHLAC | 2018

A proposta deste dossiê surgiu em 2017, ano marcado por inúmeras iniciativas de reflexões sobre o centenário de um dos acontecimentos mais marcantes do século passado: A Revolução Russa de 1917. No Brasil, assim como em outros países latino-americanos, programaram-se eventos acadêmicos preocupados em realizar um balanço do impacto e das heranças da Revolução Russa no continente. Os resultados observados indicaram um interesse crescente pelo estudo dos desdobramentos dessa experiência de superação do capitalismo no campo teórico e na prática política e cultural de partidos políticos, movimentos sociais e indivíduos nas distintas regiões da América Latina. O processo abrangente, heterogêneo e marcado por profundos desacordos e rupturas tornou o desenvolvimento da esquerda e da sua relação com a repercussão da Revolução Russa objeto de estudos variados.

Parafraseando Barry Carr (2017), as pesquisas atuais contrariam os prognósticos de 30 anos atrás em que a história operária, a história do trabalho e a história das esquerdas (vistas de todas as óticas incluindo a história cultural e social) sairiam de moda e que as novas gerações não se interessariam por esses temas. Redes de pesquisa, arquivos e revistas dedicadas ao tema do comunismo na América Latina atestam a relevância das diferentes correntes comunistas e da esquerda radical nos movimentos operários e camponeses, bem como em importantes setores da intelectualidade do continente. Retomou-se assim o campo a partir de um conjunto diversificado de propostas em um ambiente acadêmico mais aberto ao exame e debate com espírito interdisciplinar e plural inconcebível em períodos anteriores.

As pesquisas demonstram como, diante da possibilidade revolucionária, a articulação entre teoria e práxis tornou-se essencial para o crescimento de propostas anticapitalistas, antiimperialistas e de libertação nacional nas Américas. É possível identificar o impacto da experiência revolucionária russa em distintas organizações e ações políticas e culturais latino-americanas que procuraram adotar os referenciais estéticos e/ou constituir um campo teórico capaz de articular elementos globais com o regional ou nacional, dentre outros. Os resultados foram experiências diversas que se desenvolveram buscando a consonância, ou em constante tensão, com os referenciais e/ou instâncias orientadoras do movimento comunista internacional dirigidas pela União Soviética.

Este dossiê pretende proporcionar mais um espaço para divulgação de investigações sobre o impacto da Revolução Russa de 1917 nas esquerdas latino-americanas a partir de diversos olhares, matizes e temas. Os três primeiros artigos da Revista discutem os impactos da revolução nos movimentos sociais, em especial na Argentina e no Uruguai.

Em “Polêmicas e discussões no interior do movimento anarquista uruguaio sobre a natureza e os rumos Revolução Russa entre 1918-1919”, George Araújo apresenta as divergências entre anarco-individualistas e anarco-comunistas a respeito do processo de consolidação do poder do Estado bolchevique na Rússia e as perspectivas do processo revolucionário. A análise baseia-se em dois importantes periódicos anarquistas uruguaios, La Batalla e El Hombre, a partir dos quais demonstra também como as divergências entre os anarquistas afetaram o conjunto do movimento operário-social do país à época.

No artigo “O Sindicalismo Revolucionário argentino e a Revolução Russa”, Fernando Sarti Ferreira aborda os impactos da Revolução Russa entre os sindicalistas revolucionários e seus embates a partir da nova reconfiguração das organizações de esquerda. O autor aponta as divergências no interior da Federação Operária Argentina entre as correntes políticas anarquistas e socialistas e seu aprofundamento após a formação da Internacional Comunista.

Já Amanda Monteiro, no texto “A Formação de Grupos Armados da Nova Esquerda nos anos de 1960 e 1970: a Especificidade do Caso Argentino”, discute a repercussão das revoluções cubana e chinesa na conformação das estratégias de grupos guerrilheiros na Argentina. A autora, além de demonstrar as influências externas, apresenta a radicalização da conjuntura política argentina nos anos 60 e 70 para analisar a formação e os debates internos de grupos guerrilheiros, como, por exemplo, os Montoneros e o Exército Revolucionário do Povo.

Para analisar o pensamento de um dos principais teóricos marxistas latino-americanos, Erick da Silva, no seu artigo “A revolução russa e o nascimento de um marxismo latino-americano: a influência bolchevique no pensamento de José Carlos Mariátegui”, apresenta um panorama das apropriações do marxismo na América Latina e insere o pensamento mariateguiano nesse contexto. O autor afirma que a Revolução Russa influenciou a escrita da principal obra de Mariátegui, os Sete Ensaios de interpretação sobre a realidade peruana, ao sustentar a viabilidade revolucionária para o Peru trazendo, no entanto, o indígena e sua forma comunitária de vida para o centro da formulação revolucionária. Assim, afirma que a tradição e a inovação estavam presentes no pensamento do autor, declaradamente marxista.

Sobre o México, o dossiê apresenta o artigo de Leonardo Bento de Andrade, “A mitologia de ‘La Catrina’: comunismo e arte na máquina de Rivera”, no qual analisam-se elementos da obra de Diego Rivera ressaltando seu diálogo com a produção de José Guadalupe Posada, em especial Cavalera Catrina. O artigo relata sua relação com o Partido Comunista Mexicano, com a própria revolução e ressalta a preocupação em construir uma identidade cultural popular para o país que enfatizasse o México dos trabalhadores, dos mestiços, dos cristãos e dos pagãos. Por fim, o autor relaciona a aproximação de Rivera com a obra de Posada a partir da ideia da “máquina mitológica” proposta por Furio Jesi.

A seção de artigos livres desta edição apresenta quatro textos. Inauguramos com o artigo de Marcos Vinicius Gontijo, “Pensar a obra rulfiana: ficção literária latino-americana, História do México e Modernidade na obra de Juan Rulfo”, em que discute, a partir da relação entre história e literatura, a tensão entre a tradição e a modernidade durante os governos da Revolução Mexicana. O autor cita as principais obras de Rulfo, mas concentra sua análise no romance Pedro Páramo que, com seu realismo maravilhoso, apresenta uma síntese histórica do México marcada pela crítica irônica ao Partido da Revolução Institucional e à produção sociológica do Instituto Nacional Indigenista.

O artigo “Consumo cultural do pensamento vasconceliano na literatura modernista brasileira: intercâmbios intelectuais na constituição do discurso da raça latino-americana na década de 1920”, de George Leonardo Seabra Coelho, identifica e discute contatos culturais entre alguns escritores modernistas brasileiros e o intelectual mexicano José Vasconcelos decorrentes de sua visita ao Brasil no contexto das comemorações do centenário da Independência, em 1922. A reflexão ressalta a forma como as teses da Raça Cósmica vasconcelianas foram apropriadas por escritores brasileiros. O autor recorreu a artigos de jornais escritos por Plínio Salgado e Cassiano Ricardo e aos poemas “Toda América” (1926), de Ronald de Carvalho, e “Martim Cererê” (1927), de Cassiano Ricardo.

O artigo “Documentos dos Estados Unidos Referentes às ditaduras do Cone Sul: desafios metodológicos”, de Mariana Joffily, apresenta e problematiza o acervo documental proveniente de agências governamentais estadunidenses disponibilizado para consulta pública pelo National Security Archive (NSA). A autora atesta a singularidade dessa documentação destacando características dificilmente encontradas em fontes nacionais que tratam da violência do Estado contra os oponentes políticos, tais como: o olhar externo às políticas dos governos do Cone Sul e o grau de conhecimento e participação dos Estados Unidos na violência perpetrada por esses governos contra seus opositores.

O artigo “América Latina, Direitos Humanos e Guerra Fria: uma análise da escrita da Declaração Universal dos Direitos Humanos”, de Fernanda Linhares Pereira, proporciona um contraponto à historiografia tradicional sobre os direitos humanos ao destacar a importância dos países da América Latina no processo de elaboração da Declaração Universal dos Direito Humanos (DHDU). A autora demonstra como durante o processo de escrita da Declaração, os representantes da América Latina foram decisivos para que o texto final contivesse direitos sociais, econômicos e culturais e destaca o papel da Declaração de Bogotá, divulgada alguns meses antes da DUDH, como parâmetro para sua redação.

Para encerrar esta edição da Revista, contamos com quatro resenhas de obras importantes para o pensamento latino-americano. Na primeira, Thiago Prats analisa a obra Las revistas montoneras: como la organización construyó su identidade a través de sus publicaciones, de Daniela Slipak; a segunda, de Raphael Coelho Neto, aborda o livro Acuerdos y desacuerdos. La DC italiana y el PDC chileno: 1962-1973, de Rafaelle Nocera; a leitura crítica do livro De Satiricón a Humor: risa, cultura y política en los años setenta, de Mara Burkart, foi elaborada por Ana Marília Carneiro; por fim, Igor Lemos Moireira versa sobre a obra Pensando a música a partir da América Latina: problemas e questões, de Juan Pablo González.

Para finalizar, agradecemos aos colaboradores desta edição e reafirmamos que nosso intuito era trazer a atualidade e a importância do centenário da Revolução Russa para as reflexões sobre as esquerdas latino-americanas a partir de múltiplos olhares e amplos debates. Esperamos que o leitor aprecie os artigos e as resenhas deste Dossiê. Boa Leitura!


Organizadores

Carine Dalmás – Professora de História das Américas (Séculos XIX, XX e XXI) na Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Credenciada no Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIST), na mesma instituição. E-mail: [email protected]

Elisa de Campos Borges – Professora de História da América Latina Contemporânea na Universidade Federal Fluminense (UFF). Email: [email protected]


Referências desta apresentação

DALMÁS, Carine; BORGES, Elisa de Campos. Apresentação. Revista Eletrônica da ANPHLAC, n. 25, p. 1-4, jul./dez. 2018. Acessar publicação original [DR]

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