As narrativas dos mestres e uma história social da capoeira em Teresina/PI: do pé do berimbau aos espaços escolares | Robson Carlos da Silva

Se você é leigo nos estudos da capoeira e está buscando aprimorar seus estudos sobre esse esporte considerado “genuinamente nacional”, você deve antes de tudo entender que a capoeira não é simplesmente baiana em sua constituição. A capoeira institucionalizada com Mestre Bimba e Mestre Pastinha na Bahia nos anos de 1920, era só uma parcela da prática que já havia sido registrada em outros estados, principalmente no Rio de Janeiro, como as pesquisas de (SOARES, 1999; 2002) nos mostram.

Entretanto desde o início do século XXI, inúmeras pesquisas surgiram e ampliaram nossos encontros com a história da capoeira em outros estados. Foram ampliados os estudos de capoeira na Bahia com a dissertação de (OLIVEIRA, 2004) e a historiografia da capoeira passa a construir uma lógica de prática regional, consolidada sobretudo nos estudos do século XX, presente nos trabalhos de (LEAL,2002) com a história da capoeira no Pará republicano, recentemente com a história da capoeira no Maranhão por (PEREIRA, 2019) e com as dissertações de (CUNHA, 2012) e (AMADO, 2019) traçando a prática da capoeira no estado de São Paulo, desde a monarquia até a república. E ainda pouco divulgado temos a história da capoeira no Piauí, escrita pelo Mestre Bobby2 e objeto de reflexões dessa resenha.

As narrativas dos mestres e uma história social da capoeira em Teresina/PI: do pé do Berimbau aos espaços escolares, demonstra o excelente gingado que Mestre Bobby tem para pesquisar e alinhar seu papel como mestre de capoeira e pesquisador universitário/acadêmico. Conseguindo muito bem se equilibrar na parada de mão e estabelecer uma análise crítica de suas fontes.

Por não encontrar vestígios da capoeira em Teresina/PI que antecedam os anos 1970, traça um recorte temporal que vai de 1970 até 2009. Buscando cruzar os registros em jornais, revistas, documentos oficiais e não oficiais com os depoimentos dos mestres de capoeira que estiveram presentes nessa construção da capoeira no Piauí na década de 1970 em diante.

Buscando entender o processo histórico da capoeira em seu estado, encontrando seus principais personagens e suas características principais, alinhando com o processo de inserção da capoeira nos espaços escolares e quais as efetivas contribuições da capoeira como prática educativa. Desenvolvida em três capítulos, o autor sempre está muito preocupado em justificar teórica e metodologicamente o uso da história oral como instrumento de pesquisa histórica. Portanto, também acaba criando um grande manual de como fazer história oral e descontrói muito bem suas problemáticas. Citando uma excelente bibliografia historiográfica sobre história social, cultural, uso da memória, história oral, escola dos Annales e citando historiadores como Thompson, Burke, LeGoff, Chartier e pensando muito bem uma história além da história política.

No Capítulo I – Considerações a respeito da história da capoeira: mitos, verdades e possibilidades, discute a capoeira como prática cultural e educativa pedagógica que surge como forma de resistência no seio de uma população escravizada e que hoje é reconhecida como disciplina pedagógica. Explicitando o já conhecido e consolidado em outros estudos sobre seu surgimento entre o final do século XVIII e início do século XIX, principalmente em espaços urbanos. Mesclando características de luta, esporte, dança, jogo, musicalidade, malícia e filosofia de vida, fortalecendo vínculos de grupo e sentimentos de identidade. Sendo oposição a uma cultura eurocêntrica e favorecendo os estudos da história “vinda de baixo”.

Comenta muito bem o preconceito com uma suposta “baixa cultura” da capoeira. Ressalta brilhantemente que os indivíduos praticantes quando se expressam deixam de ser algozes e passam a ser reconhecido como sujeitos e produtores da sua própria cultura e história. Escutando discursos históricos diferentes dos oficiais. O que com certeza fez os capoeiras ocuparem os espaços acadêmicos e construírem dentro das universidades a história já divulgada em seus grupos.

O autor também esclarece um ponto muito polêmico na histografia da capoeira sobre as suas origens: brasileiras ou africanas? Ficamos aqui com sua teoria que é a mais consolidada, de que ela é genuinamente brasileira, pois só existe como conhecemos no Brasil. E passa a existir no restante do mundo porque foi levada por brasileiros.

Se dedica ainda no primeiro capítulo, que é um grande apanhando sobre a história da capoeira e de excelente leitura para aqueles que desejam começar estudar a história da capoeira, em falar sobre a perseguição aos capoeiras desde o século XIX. Cita a perseguição massiva das maltas no fim do período imperial, a criminalização de sua prática através do Art. 402 – Dos Vadios e Capoeiras – no primeiro código penal republicano e cita a mudança da visão sobre os capoeiristas no século XX diante de suas transformações e o papel de Bimba, Pastinha, Zuma, Ciríaco nessa transformação. Porém acaba citando a velha máxima equivocada que Vargas foi um dos responsáveis por descriminalizar a capoeira na década de 1930 diante do encontro com o mestre Bimba, sendo que esse encontro na verdade só ocorre na década de 1950 com a capoeira já consolidada como esporte nacional e sendo enaltecida Brasil afora. Essa afirmação da capoeira ser fruto do projeto de identidade nacional de Vargas, está sendo descontruída em minha dissertação de mestrado que está sendo desenvolvida, onde busco entender que a capoeira já estava sendo usada por intelectuais para um projeto de identidade nacional desde antes de Vargas assumir o poder.

Sobre as tradições da capoeira, passa uma grande rasteira em todos nós, usando a tese das invenções das tradições, discutida por Hobsbawm: “O ‘costume’ não pode se dar ao luxo de ser invariável, porque a vida não é assim nem mesmo nas sociedades tradicionais”. Dessa forma, cita a invenção do uso do uniforme como tradição na capoeira e discute muito bem as rivalidades entre os praticantes de Regional e Angola, na disputa de quem seria mais tradicional em sua concepção. A capoeira é um mar de possibilidades, dinâmica, reinvenção constante, porém, segundo a autor, devemos tomar cuidado para o fato da mitificação romântica não ser substituída por tradições inadequadas.

No Capítulo II – A capoeira como prática cultural e educativa a luz da história cultural: caminhos, pistas e fragmentos, busca mostrar o caminho metodológico que percorreu para realizar a pesquisa. Cita Burke para justificar a nova história, não pautada nas visões tradicionais. Esclarece que seu objetivo da pesquisa é entender como se deu o processo histórico da capoeira e o processo de escolarização através dos testemunhos dos mestres de capoeira em Teresina.

Faz portanto, uma breve apresentação de Teresina na década de 70, como uma cidade pequena, quase provinciana, com uma política centrada na ideia desenvolvimentista do governo militar, com valores de uma sociedade tradicionalista pautados na religião e família bem abastadas e com notícias dos pobres que remete quase sempre ao crime e as calamidades públicas, que quase não tem outro espaço nos jornais esportivos se não para o futebol. Peca porém, em não citar estudos bibliográficos históricos que deem base e justifiquem suas falas.

No Capítulo III – Subsídios para o entendimento do processo histórico da capoeira em Teresina-PI, discute o processo de desenvolvimento histórico da capoeira em Teresina, do surgimento ao espaço ocupado nos locais de educação formal. Busca no arquivo público do Piauí notícias que remetem a história da capoeira e começa mostrando fontes de jornais a partir da década de 80 que falam sobre os grupos de capoeira presente em Piauí. Levanta a questão do preconceito que existe entre aqueles que não conhecem a capoeira e como essa visão passa a ser desconstruída em algumas reportagens de jornais no início dos anos 90.

Ressalta que apesar de praticada em locais periféricos, a capoeira tem espaços em quadras de escolas aos fins de semana e apoio de organizações como o SESC. E que ao final da década de 90 já começa de estabelecer uma capoeira como mercadoria do capitalismo, fazendo uma excelente comparação com a cultura de massa de Adorno e Horkheimer. Surgindo e se apoderando cada vez mais da capoeira grupos-empresas que prostituem a atividade em nome do sistema. Fazendo uma fundamental crítica ao valor competitivo que se estabelece na capoeira através do valor ocidental de “conquista da próxima corda” e não pelo prazer de ser mandingueiro.

Delimita a pesquisa após os anos de 1970 diante dos depoimentos dos mestres. Acreditando que é esse o momento em que a capoeira surge no PI. Não limita a possibilidade dela existir anteriormente, mais argumenta que o contexto social e a bibliografia já produzida sobre o a história do Piauí, não indica a presença de capoeira. Porém, resta fazer uma pesquisa mais afundo nos jornais. Hoje, com mais tecnologia nas buscas, talvez fique mais fácil sanar essas dúvidas por completo. Visto que o Piauí era um grande estado escravista, espaço muito propício para o surgimento de formas de resistência como a capoeira.

Contudo, começa finalmente a falar sobre os depoimentos dos mestres, começando pelo Mestre Caramurú, que em 1969 recebe um primo de Salvador que o ensina os primeiros movimentos e começa a jogar com ele capoeira. Caramurú retrata que só achou alguém para jogar capoeira com ele em 71, onde posteriormente ele começa organizar um grupo para jogar capoeira construindo os primeiros traços da capoeira em Teresina e que se desenrolam em 74 em conjunto com as práticas das escolas de samba e suas atividades.

Mestre Tucano e Mestre Chocolate passam a apreender capoeira no Sesc em 1978, com a chegada de um capoeirista carioca chamado Paulo Capoeira. Mestre Zé Carlos começa a praticar capoeira quando foi chamado em 77 para ala carnavalesca, ganhando ensinamentos de pessoas que viajavam para o “Sul” e voltavam dizendo que eram professores de capoeira. Comentando ainda que existiam outros focos de capoeiristas na cidade. Se referindo provavelmente aos grupos do Mestre Caramurú.

Ainda em 1979 alguns capoeiristas iniciados no Sesc passam a se organizar em torno de seus próprios alunos, difundindo assim a capoeira pelo Estado. Com alguns capoeiristas inclusive, saindo da cidade e trocando experiências em outros locais e voltando para difundir ainda mais a capoeira no Piauí. Em 1980 os grupos passam a se encontrar e criar um novo momento da capoeira no estado. Ainda sem muita padronização nos rituais que marcam a capoeira em outras regiões, mesmo com a realização do primeiro batizado em 1983.

Uma “primeira notícia” sobre a capoeira seria de 1981 quando um repórter fala no jornal “O Estado” sobre os praticamente de capoeira que fazem roda em frente ao comércio central para conseguir fundos para seu grupo que não é amparado de nenhuma forma pelo governo. Os mestres ressaltam que os treinamentos ocorriam geralmente nos fundos dos quintais dos professores e que se buscava locais mais adequados para prática. Algumas apresentações dos grupos geravam um cachê que ajudava na manutenção dos grupos, porém, ainda com pouca atração do poder público e do empresariado.

Mestre Tucano ressalta que a sociedade piauiense estava empolgada com o kung-fuu devido aos filmes do Bruce Lee e a capoeira não era muito bem vista. Mestre Tucano também comenta como eram mal vistos na década de 70 e como eram perseguidos e até presos por vadiagem. Esse depoimento me chamou muita atenção, pois foge totalmente dos cenários que temos em outros locais do Brasil, onde a capoeira é valorizada desde 1920 como na Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo e que nesse momento já está exportando capoeiras para o exterior. Vou dar dois exemplos de famosos que desde 1990 já estavam consolidados no exterior: João Grande e sua escola em Nova York e Mestre Barrão, espalhando suas famosas músicas pelo mundo depois de criar sua escola em Vancouver.

Enfim, a capoeira no Piauí passa por um período de conquista da sociedade entre 78 a 88, onde a capoeira foi ganhando espaço e respeito até estar bem consolidada na década de 90. Vale ressaltar também que em 1985 com o fim da ditadura militar e o surgimento de novos jornais a capoeira ganha mais espaço nos periódicos do estado.

Para finalizar o livro, discute-se a capoeira nos espaços escolares, com o autor elucidando o depoimento dos mestres de que escolas particulares não enxergam tão bem essa cultura popular de resistência. Porém com a ascensão das mesmas, essas escolas passam a ter condições de oferecer ambiente melhores para a formação de capoeiristas devido a melhor estrutura e profissionais altamente capacitados contratados. Mestre Caramurú relatou fazer apresentações esporádicas nas escolas em 1975 e que em 1979 as escolas passam a ser local de treino aos fins de semana. E que em 1990 a capoeira passa entrar muito forte através das escolas particulares, que acreditam que sua prática é importante para o currículo.

Como já comentado, em 2000 ela entra muito forte nas faculdades, sendo muito mais que uma manifestação cultural, mas também um momento de relaxamento, de terapia. Sem falar no seu caráter de inclusão social e de defesa pessoal. Surgem então um grande aumento dos trabalhos científicos sendo desenvolvidos sobre capoeira.

Podemos perceber com essa brilhante pesquisa, as dificuldades de se contar a “história dos povos sem história”; a capoeira surgindo de forma espontânea no Piauí; que aos poucos vai ganhando os espaços escolares depois de muito se manifestar em outros espaços; que aos poucos foi ganhando incentivo governamental através de programas socioeducativos; e que dentro da sua história no Piauí, não aparece em documentos oficiais devido à falta de prática pela população mais abastada economicamente. Reforço ainda o sempre bem lembrado pelo autor de que precisamos de pesquisas mais aprofundadas que investiguem a capoeira no estado em um período anterior ao de 1970 e esclareça se não havia nenhum vestígio de prática de capoeira antes dessa data.

Nota

2 Pedagogo (UFPI), Mestre em educação (UFPI), Doutor em educação (UFC), com pós-doutoramento em história e memória da educação da UFPB; Professor adjunto II da UESPI; Mestre de capoeira com mais de 40 anos de experiência; Coordenador do núcleo de pesquisa em história cultural, sociedades e história da educação brasileira (NUPHEB); Orientador de projetos de pesquisa pelo PIBIC com bolsa de fomento CNPq.

Referências

AMADO, Filipe. Abre a roda minha gente que o batuque é diferente – Tiririca, Capoeira e Samba em São Paulo (1900-1970). USP, 2019.

CUNHA, Pedro. Capoeiras e Valentões na História de São Paulo (1830 – 1930). Dissertação de Mestrado USP, São Paulo, 2011.

LEAL, Luiz Augusto Pinheiro. Deixa a política da capoeiragem gritar. UFB, 2002.

OLIVEIRA, Josivaldo Pires. Pelas ruas da Bahia: criminalidade e poder no universo dos capoeiristas na Salvador republicana (1912-1937). UFB, 2004.

PEREIRA, Roberto Augusto Amâncio. A Capoeira do Maranhão entre as décadas de 1870 e 1930. 1. ed. São Luís: IPHAN, 2019.

SILVA, Robson Carlos da. As narrativas dos mestres e uma história social da capoeira em Teresina/PI: do pé do berimbau aos espaços escolares. Curitiba: CRV, 2016.

SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A Negregada Instituição: os Capoeiras no Rio de Janeiro 1850-1890. Rio de Janeiro: Access Editora, 1999.

SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A Capoeira Escrava e Outras Tradições Rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). 2ª edição. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2002.


Resenhista

Rafael Blessa Maciel – Mestrando em História pela UNIFESP. São Paulo, SP. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

SILVA, Robson Carlos da. As narrativas dos mestres e uma história social da capoeira em Teresina/PI: do pé do berimbau aos espaços escolares. Curitiba: CRV, 2016. Resenha de: MACIEL, Rafael Blessa. Mais uma ladainha no mapa – resenha do livro: As narrativas dos mestres e uma história social da capoeira em Teresina/PI: do pé do berimbau aos espaços escolares. Recorde: Revista de História do Esporte, v.14, n.2, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

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