As novas políticas sociais brasileiras na saúde e na assistência: produção local do serviço e relações de gênero | I. P. H. George e Y. G. dos Santos

O que há de novo nas políticas sociais brasileiras? Em que a discussão de gênero pode contribuir para pensar essa novas políticas? Mercantilização da pobreza, privatização e terceirização dos serviços na saúde e na assistência? Em que medida a experiência paulistana contribui para pensarmos o contexto de emergência e popularização de políticas voltadas a programas de transferência condicionada de renda? Ao lermos o título e o sumário do livro, surgem essas questões, que nos fazem avidamente percorrer cada página em busca de novos olhares e discussões sobre o tema. E, de fato, as autoras conseguem discutir cada um desses pontos ao longo desta obra, que é resultado de uma extensa pesquisa de caráter etnográfico na periferia da maior cidade da América Latina.

A zona leste da cidade de São Paulo representa um lócus emblemático devido ao seu histórico de lutas por acesso a direitos sociais. Apesar disso, atualmente, a área é considerada uma das zonas mais socialmente vulneráveis da cidade. É nesse local, mais especificamente em três bairros periféricos da região, que as autoras buscam analisar a presença do Estado por meio de observações participantes e entrevistas semidiretivas com profissionais que atuam ao longo da cadeia dos serviços da saúde e da assistência, bem como com as usuárias destes.

Isabel Georges e Yumi Garcia dos Santos realizam a pesquisa juntas a partir de 2010 até 2012, mas anteriormente, ambas já haviam atuado na zona leste em pesquisas distintas – Georges, por meio dos projetos As novas configurações do trabalho e trajetórias de inserção de populações de baixa renda, A nova gestão da questão social no Brasil e as lógicas territoriais: entre oferta institucional e formas de apropriação dos(as) atores(as) e A nova gestão da questão social no Brasil: entre participação e mercantilização; Santos, por meio de sua pesquisa de pós-doutorado pelo Centro de Estudos da Metrópole. Santos é socióloga e professora do Departamento de Sociologia da UFMG, atua como pesquisadora nas áreas de relações sociais de gênero, políticas públicas, família, trabalho e migrações. Georges, também socióloga, é pesquisadora do Institut de recherche pour le développement/França e professora credenciada do Programa de Pós-Graduação em Sociologia na UFSCar; suas áreas de interesse são as novas configurações do trabalho, informalidade, relações de gênero, atividades de serviço, formas de mobilização e políticas sociais latino-americanas.

Saber sobre o contexto em que as autoras costuram suas pesquisas e sobre seus interesses de trabalho é importante para compreendermos as questões que atravessam a obra. As relações de gênero e raça, bem como as configurações de família e do trabalho feminino, são questões fundamentais e que nos conduzem a pensar as desigualdades sociais de forma multidimensional, considerando o viés da interseccionalidade adotado pelas autoras.

O livro está dividido em três partes. A primeira compreende uma radiografia do perfil das políticas incentivadas pelos organismos internacionais e um resgate histórico da proteção social no Brasil (cap. 2). Além de uma revisão bibliográfica de perspectivas teóricas que possibilitam compreender e discutir acerca da emergência de um novo modelo de políticas sociais dentro de um novo contexto de políticas desenvolvimentistas (cap. 1). Nesse contexto, há uma convergência para políticas familistas por meio de uma gestão sexuada do social, em que ocorre um processo de funcionalização da mulher, o qual estimula sua atuação nas esferas produtiva, reprodutiva e comunitária. Cabe destacar a concomitância dos discursos de empoderamento feminino e igualdade de gênero com a reprodução da divisão sexual do trabalho hierarquizado por meio de programas que centralizam na mulher o papel do cuidado e da manutenção da integração social da família – esfera reprodutiva.

No Brasil, a lógica de participação comunitária nas políticas surge com o MOBRAL (Movimento Brasileiro de Alfabetização), e ela ainda permanece na história das políticas públicas brasileiras. Tanto a Estratégia Saúde da Família quanto o Serviço de Assistência Social às Famílias (São Paulo) atendem essa lógica e alocam na ponta da cadeia de seus serviços a mão de obra de mulheres e de homens que moram nos territórios de atuação dessas políticas. É essencial salientar que as mulheres são em maior número. Apesar de ser um trabalho precário e mal remunerado, ser agente comunitária em saúde e/ou agente de proteção social representa a inserção da mulher na esfera produtiva e comunitária, bem como uma via de acesso a melhores condições de vida.

A segunda parte do livro aborda a mercantilização da pobreza e como as mulheres atuam e se mobilizam nesse sentido. Primeiramente, as autoras relatam como se deu a constituição das políticas em São Paulo para, assim, entender a privatização existente no município (cap. 3). No município de São Paulo, a prática de parcerias entre o poder público e a iniciativa privada para políticas sociais e de saúde é frequente. As organizações sociais parceiras que executam os serviços na cidade tornam-se aliadas na execução não apenas de políticas nessas áreas, mas nos mais variados setores – as chamadas privatizações cruzadas, identificadas pelas autoras. Nesse sentido, as políticas sociais surgem como nicho de negócios para essas organizações que atuam na capital paulista.

Nos capítulos seguintes (cap. 4 e 5), as autoras analisam a atuação das operadoras dos serviços em saúde e assistência, com o objetivo de compreender a operacionalização do serviço em âmbito local e os contornos das entidades responsáveis por ele.

As agentes comunitárias de saúde aparecem como uma categoria profissional mais acessível para as mulheres nos territórios pesquisados. Tanto agentes comunitárias de saúde quanto as agentes de proteção social, bem como os profissionais em nível de chefia são categorias ocupadas, em maior número, pelas mulheres. Ser uma agente significa acessar renda e ao mesmo tempo ter condições de permanecer cuidando da família e do lar – a autonomia da mulher aparece de mãos dadas com a permanência nos campos tradicionalmente femininos. Cabe destacar que o fato de serem mulheres, assim como terem origem social semelhante às usuárias, confere maior legitimidade à atuação profissional dessas atrizes.

Quanto às organizações sociais, apesar de terem seus discursos apoiados em diferentes frentes (religiosa ou política), elas partilham de uma moral dos pobres, a do pobre bom e a do pobre mau, daquele que é merecedor dos serviços e daquele que não é. Por meio da análise das trajetórias das atrizes, as autoras apontam para a confluência do discurso moralizador e meritocrático. As trajetórias de sucesso delas, considerando suas origens sociais, as conduzem para a lógica do esforço individual e do merecimento, o que só reforça o discurso do “empreendedorismo de si” contido nas novas políticas sociais.

Esse discurso está alinhado ao processo de despolitização das políticas sociais e da saúde que tem ocorrido na cidade de São Paulo (cap. 6). As parceiras do poder público em São Paulo adquirem um caráter de empresa, para o qual o serviço é visto de forma tecnicista e racional, com aspecto de demanda. A escolha do território e a classificação dele (mais participativo ou menos participativo) são um exemplo de elementos que alimentam essa faceta de mercado, que adquire a relação entre as entidades e o poder público.

As autoras tomam emprestado de Becker (2008) a noção de empreendedoras morais para explicar a atuação das agentes comunitárias e a relação delas com as usuárias dos serviços (cap. 7). O governo moral dos pobres perpassa pelo discurso meritocrático reproduzido pelas operadoras dos serviços – ascender socialmente depende de esforços próprios, apenas assim é possível realizar transformação social, como elas mesmas fizeram.

Por fim, a última parte tem o foco na análise das trajetórias das atrizes, tanto as trabalhadoras em saúde e em assistência quanto as usuárias desses serviços. Observou-se que a vida dessas atrizes e desses atores estão permeadas pela violência doméstica, pelo racismo, pela pobreza e pelas desigualdades, de diversas formas. O acesso a empregos na ponta da cadeia de serviços da saúde e da assistência ocorre como uma brecha, uma saída para situações de dominação, e o emprego se apresenta como meio de ascender, apesar de se tratar de um trabalho precário e mal remunerado (cap. 8). As mulheres também o utilizam como forma de conciliar o trabalho doméstico com a geração de renda; os homens, como forma de enfrentar uma situação de dominação e discriminação racial.

As usuárias, por sua vez, podem ser classificadas como boas usuárias ou como desviantes, de acordo com o “governo moral dos pobres” (cap. 9). Nesse sentido, a religião possui grande importância na vida dessas usuárias, atravessando-lhes as trajetórias e as ajudando a organizar suas vidas conforme o esperado pelas agentes moralizadoras – parte do dispositivo de governo e controle social dos pobres. Entretanto, não só a religião atua no cotidiano das famílias atendidas pelas políticas sociais; outras instituições estão presentes no território, e estas, por sua vez, possuem sistemas próprios de valor.

Nesse sentido, o último capítulo (cap. 10) busca compreender como o Estado se configura nesses territórios, onde ele disputa espaço com outros códigos morais e de conduta. Por meio da trajetória das atrizes que vivenciam esses lugares, sob o ponto de vista das mediadoras entre o Estado e a população, as autoras lançam olhar para o trabalho permanente de tradução dos códigos entre os diferentes sistemas de moral e conduta que é realizado por essas mulheres. Esse trabalho é invisibilizado, assim como a gestão dos conflitos que emergem a partir do entrelaçamento do público e do privado.

A abordagem das autoras foi capaz de apontar algumas conclusões a respeito das “novas” políticas sociais. Como característica geral, é razoável assumir que se apoiam, fundamentalmente, na divisão sexual do trabalho e na disposição feminina para o cuidado. Além disso, no Brasil, essas políticas estão permeadas pela lógica do mercado e da redução de custos através da contratação de mulheres e de homens (em menor número) oriundos do local de execução dos serviços.

A transformação da pobreza em mercadoria política faz parte de um processo de privatização e despolitização das políticas públicas ( Lautier, 2014 ). Políticas essas que, ao trazer a mulher como figura central, não possuem o compromisso de romper com a desigualdade de gênero, mas acabam por reforçar estereótipos de gênero. Destacam-se a maior carga de funcionalização das mulheres que estão na ponta da cadeia dos serviços e das usuárias e o ganho pífio delas, se comparado aos ganhos das organizações sociais, das entidades religiosas, de agentes do Estado e do próprio Estado. Por fim, não existe um enfrentamento da pobreza como um problema estrutural e, a partir disso, se transfere aos atores sociais a responsabilidade individual de superar a situação de “vulnerabilidade” em que vivem.

Ao fim da leitura, é necessário que tenhamos claro que a pesquisa das autoras foi realizada na cidade de São Paulo, e quaisquer generalizações devem ser evitadas, considerando o caráter qualitativo do estudo. No entanto, a contribuição dela para pensarmos as configurações do trabalho na operacionalização das políticas sociais e da desigualdade de gênero é inegável. Resta o questionamento: políticas de combate à pobreza e à desigualdade conseguem ser efetivas quando invisibilizam o trabalho feminino?


Referências

BECKER, Howard. Outsiders. Estudos de sociologia do desvio: Rio de Janeiro: Zahar, 2008, 231 p.

LAUTIER, Bruno. O governo moral dos pobres e a despolitização das políticas públicas na América Latina. [ 2009 ]. Cadernos CRH , Salvador , v. 27 , n. 72 , pp. 463 – 477 , set./dez ., 2014 [ http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-49792014000300002&lng=en&nrm=iso&tlng=pt – acesso em 17 jan 2018 ].
» http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-49792014000300002&lng=en&nrm=iso&tlng=pt

Resenhista

Barby de Bittencourt Martins – Professora de Sociologia do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Rondônia, Porto Velho, RO, Brasil. E-mail: [email protected]  http://orcid.org/0000-0002-7117-6260


Referências desta Resenha

GEORGE, I. P. H.; SANTOS, Y. G. Dos. As novas políticas sociais brasileiras na saúde e na assistência: produção local do serviço e relações de gênero. Belo Horizonte: Fino Traço, 2016. Resenha de: MARTINS, Barby de Bittencourt. (In)visibilidade das mulheres nas “novas” políticas sociais brasileiras. Cadernos Pagu. Campinas, n.58, 2020. Acessar publicação original [DR]

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