As novas políticas sociais brasileiras na saúde e na assistência: produção local do serviço e relações de gênero | I. P. H. George e Y. G. dos Santos

O que há de novo nas políticas sociais brasileiras? Em que a discussão de gênero pode contribuir para pensar essa novas políticas? Mercantilização da pobreza, privatização e terceirização dos serviços na saúde e na assistência? Em que medida a experiência paulistana contribui para pensarmos o contexto de emergência e popularização de políticas voltadas a programas de transferência condicionada de renda? Ao lermos o título e o sumário do livro, surgem essas questões, que nos fazem avidamente percorrer cada página em busca de novos olhares e discussões sobre o tema. E, de fato, as autoras conseguem discutir cada um desses pontos ao longo desta obra, que é resultado de uma extensa pesquisa de caráter etnográfico na periferia da maior cidade da América Latina.

A zona leste da cidade de São Paulo representa um lócus emblemático devido ao seu histórico de lutas por acesso a direitos sociais. Apesar disso, atualmente, a área é considerada uma das zonas mais socialmente vulneráveis da cidade. É nesse local, mais especificamente em três bairros periféricos da região, que as autoras buscam analisar a presença do Estado por meio de observações participantes e entrevistas semidiretivas com profissionais que atuam ao longo da cadeia dos serviços da saúde e da assistência, bem como com as usuárias destes. Leia Mais

As “novas” políticas sociais brasileiras na saúde e na assistência: uma produção local do serviço e das relações de gênero | Isabel Georges e Yumi Garcia dos Santos

O livro apresenta uma análise teórica, histórica e social sobre o lugar central ocupado pelas mulheres nas políticas públicas voltadas para o controle dos pobres em regimes liberais ou progressistas. Baseia-se em extenso material coletado pelas autoras em suas pesquisas individuais e em conjunto, realizadas na zona leste da cidade de São Paulo ao longo das primeiras décadas do século XXI. O trabalho envolve observação em organizações sociais (OS) e nos serviços por elas oferecidos em parceria com o Estado, e entrevistas com gestoras, agentes de saúde e usuárias dos programas.

A primeira parte da obra recupera o histórico de desenvolvimento, em níveis internacional, nacional e local, de uma “gestão sexuada” da pobreza que orienta a elaboração de políticas públicas para determinada parcela da sociedade. As autoras se debruçaram sobre a construção da ideia de proteção social desde o século XVIII e seu trânsito entre a caridade, a filantropia e o mercado. A figura feminina emerge como a mediadora na concretização dos objetivos do Estado, na gestão da população pobre. A partir da figura moral da mãe-mulher com cuidadora “natural”, responsável pelo bem-estar da família, as políticas de proteção social familistas do século XX mostram-se herdeiras dessa caracterização. Seja em contextos liberais, neoliberais “humanizados” ou progressistas, a família constitui-se como categoria consensual, e a mulher como responsável por sua saúde. Leia Mais

A violência de gênero nos espaços do Direito: Narrativas sobre ensino e aplicação do direito em uma sociedade machista – SCHINKE (RTA)

SCHINKE, Vanessa Dorneles (Org.). A violência de gênero nos espaços do Direito: Narrativas sobre ensino e aplicação do direito em uma sociedade machista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. 388 p. Resenha de: REIS, Jade. Relações de Gênero nos espaços do Direito: experiências compartilhadas. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.11, n.27, p.523-529, maio/ago., 2019.

Diversos relatos de mulheres advogadas sobre o seu ofício diário mostram que durante sua trajetória jurídica lhes são apresentados empecilhos e violências simbólicas que envolvem as relações de gênero. Não coincidentemente, a coletânea de artigos organizada pela professora e doutora em Direito Vanessa Dorneles Schinke, objeto desta resenha, aborda experiências de mulheres da área do Direito, em carreiras absolutamente marcadas pelos estereótipos historicamente construídos nas relações de gênero.

O livro, lançado no ano de 2017, é dividido em três partes, sendo a primeira delas o “Prelúdio”, na qual estudantes de Direito narram suas trajetórias e experiências da vida universitária, bem como expressam as relações complexas de poder que permeiam estes espaços. O exercício de questionar e historicizar a situação das mulheres está presente nesta parte, assim como em todo o livro, bem como o de refletir sobre o papel de educadoras e operadoras do Direito em uma sociedade machista. Para as autoras, partindo da perspectiva de que, por muito tempo, este campo científico foi essencialmente masculino em termos de representatividade, e tendo em vista a luta das mulheres pela democratização do ensino superior e do mercado de trabalho, sua presença nestes espaços e no espaço público de maneira geral, estudando, profissionalizando-se, adentrando carreiras e cargos públicos, se apresenta como um avanço no que se refere ao árduo processo de ocupação dos espaços considerados pela norma patriarcal como “masculinos”.

A segunda parte, intitulada “Andante”, conta com doze artigos escritos por professoras, estudantes de graduação, pós-graduação e operadoras do Direito. Esta tem como foco temático questões que, como afirmam, não encontram espaço na circulação acadêmica do campo do Direito, mas fazem parte das experiências e cotidianos destas mulheres no âmbito universitário, como, por exemplo, nas salas de aula e instâncias politicamente deliberativas do meio universitário. As autoras buscam, por meio da narrativa de suas experiências, problematizar a naturalização de práticas violentas e machistas no ensino do Direito.

Segundo estas autoras, a condição de gênero expressa nas relações sociais no campo do ensino do Direito é definida historicamente a partir da socialização e das definições impostas pela sociedade patriarcal, gerando assim o problema da ausência de reconhecimento e a descrença no seu potencial de desenvolvimento na área jurídica. Roberta Baggio, professora do curso de Direito da UFRGS relatou em seu artigo que, na banca de um concurso público que prestou, ouviu de um membro a seguinte frase “como pode você ser mulher e ter um currículo com tantas experiências acadêmicas ao mesmo tempo?” (BAGGIO, 2017, p. 66), demonstrando assim o grau de incapacitação destinado às mulheres em suas avaliações de emprego, o que é por vezes um fator determinante em suas trajetórias profissionais. A autora afirma que na medida em que o ensino do Direito contribui para tais práticas, formam-se juristas que naturalizam as violências de gênero, culpabilizam e responsabilizam as mulheres pela cultura machista em casos de opressão.

As violências físicas e simbólicas existentes nos “trotes” nos cursos de Direito são, também, tema de abordagem nesta parte do livro. Violências estas que, muitas vezes advindas dos professores, envolvem provocações e incitações machistas, homofóbicas, transfóbicas e racistas, nas quais os corpos femininos são objetificados. Estudantes e professoras se organizam em ações contra os episódios de extremo machismo e preconceitos na universidade através de cartas de repúdio, escrachos, atos e movimentações, criação de coletivos e meios de solidariedade e articulações via internet e redes sociais. No entanto, denunciam as poucas oportunidades de debater gênero e violência nos cursos de Direito, bem como nos demais cursos de graduação e pós-graduação. A pesquisa realizada pela advogada Luana Pereira com estudantes da faculdade de Direito da UFRGS revela que 69% destas afirmaram já ter sido vítimas de práticas machistas na academia, 52% afirmaram ter passado por situações de assédio moral e 19,4% assédio sexual (PEREIRA, 2017, p. 94). Muitos dos casos de extrema violência de gênero que ocorrem nestes espaços têm repercussão em nível público, atingindo assim um maior número de mulheres, formando uma rede de sociabilidades e luta contra tais práticas. Todavia, o silenciamento dos assédios continua sendo uma realidade para as mulheres, professoras, estudantes e funcionárias técnicas e terceirizadas. Segundo a advogada Alice Abelar, na PUCRS, dentre 126 professores de graduação, 26% são mulheres. Apenas 20% na Pós-graduação em Direito e 10% na Pós-graduação em Ciências Criminais. Estes dados evidenciam a dificuldade do acesso das mulheres ao cargo de professora universitária, enquanto que não há discussão e questionamento sobre o assunto que não sejam impulsionados pelas mulheres, e daí a importância de sua representatividade.

A partir da leitura da obra é possível observar que entre as décadas de 1970 e 1990, com a crescente expansão das universidades, as mulheres passam a ter maior expressão neste campo, ainda que com as demarcações de classe e raça. Problematizar a violência de gênero nestes espaços deve considerar a gritante ausência de mulheres negras, indígenas e deficientes no ensino superior, que tem se democratizado processualmente a partir das lutas dos Movimentos Sociais e dos incentivos governamentais, como, por exemplo, a Lei n.º 12.711 de 2012 (Lei de Cotas).

O machismo dentro da militância do movimento estudantil também é apontado pelas autoras, na medida em que os estudantes homens ocupam cargos de representatividade, interrompem as falas de companheiras do movimento, não levam em consideração suas boas ideias, considerando-as apenas auxiliares de determinadas funções dentro das organizações.

As mulheres encontram-se em árduo combate político na academia, espaço que durante muito tempo fora homogeneizado pela presença masculina. Por isso a importância dada às professoras e militantes deste espaço na construção de diferentes futuros para estas mulheres. A terceira parte da coletânea, intitulada “Adagio”, reúne o total de onze artigos que apresentam criticamente a disputa de gênero no interior do judiciário, no qual a presença das violências simbólicas se destaca sobremaneira. Nesta parte da obra em questão, são narrados diversos casos que apresentam a naturalização e o descaso com as violências de gênero expressas no campo.

Marta Machado e Fernanda Matsuda, em seu estudo sobre a representação das mulheres nos processos judiciais no Sistema de Justiça Criminal, apontam que o discurso sobre as mulheres apresenta figuras dicotômicas idealizadas de mulher, sendo a “boa mulher” de família, boa esposa, dedicada, trabalhadeira, e a “mulher desafiadora, festeira, nervosa” (MACHADO e MATSUDA, 2017, p. 196), enquanto que os homens são sempre representados como pais de família, honestos e trabalhadores. As violências cometidas por estes, segundo as autoras, são rotineiramente justificadas nas salas de audiência pelo “mau comportamento” das mulheres, e apontadas como comportamento isolado dos homens. Estas demarcações interferem sobremaneira nos desfechos processuais das ações, legitimando, por vezes, danos irreparáveis às vidas de mulheres que são vítimas das violências de gênero, raça, etnicidade e demais preconceitos.

Segundo as autoras, os órgãos do Sistema Judiciário não reconhecem tais violências, e portanto não incidem os dispositivos legais específicos para os respectivos casos. Neste sentido, percebemos a desigualdade de gênero do exercício de poder nas instâncias do Judiciário brasileiro, o que está expresso, também, na baixa representatividade das mulheres nas esferas de decisão das organizações jurídicas, igualmente abordadas nesta parte do livro. Da mesma forma, ocorre nos escritórios de advocacia, nos quais a pesquisadora Patrícia Bertolin observou alto número de evasão de mulheres, ainda que nas entrevistas realizadas com os advogados homens que trabalham nestes espaços tenha sido frequente a negação de qualquer tipo de discriminação de gênero. A maternidade nesta profissão parece ser um dos principais problemas aparentes que obstacularizam a ascensão das mulheres no meio, como um “problema a ser resolvido”. Nesse sentido, é consenso entre as autoras que a advocacia é uma profissão que vem se femilinizando, mas ainda nos padrões machistas excludentes, obrigando as mulheres a afirmar e provar o tempo todo sua competência e eficiência profissional.

O livro “A violência de gênero nos espaços do Direito” é uma obra sobre experiências cotidianas. Um manifesto de mulheres feministas. Mulheres que lutam pela igualdade e promoção de direitos. Trata-se de pesquisadoras guiadas pela epistemologia feminista, que buscam problematizar seus posicionamentos e lugares de fala de forma interseccional, considerando os diferentes tipos de opressão decorrentes dos diversos marcadores sociais historicamente constituídos em nossa sociedade. Suas narrativas expressam uma série de subjetividades, com as quais se identificam o tempo todo as mulheres que as leem. Estas narrativas, como afirmam diversas vezes as autoras, saem da posição estritamente acadêmica, na medida em que tratam de experiências de mulheres que vivenciam as violências e demarcações de gênero não apenas nos espaços do Direito, mas na sociedade como um todo. A pesquisadora e organizadora da obra, Vanessa Dorneles Schinke, apontou ao encerrar as discussões realizadas no livro: “Aqui não há linha clara entre sujeito e objeto, empiria e teoria. O resultado é uma complexa composição que se retroalimenta da colaboração entre diversas pessoas – verbais e de carne e osso” (SCHINKE, 2017, p. 367) São diversos os arcabouços teóricos sobre Relações de Gênero e Teoria Feminista, específicos de cada temática abordada, utilizados nos 23 artigos que compõem a obra. Dentre eles, estão os que possibilitam articular as categorias como gênero e poder, através dos escritos de Michel Foucault e Joann Scott, por exemplo, gênero, raça e interseccionalidade, através dos estudos das teóricas Kimberlé Crenshaw e Helena Hirata, por exemplo, gênero e classe social, utilizando como referencial teórico os escritos da socióloga Heleieth Saffioti, dentre outras. Bem como referenciais teóricos clássicos dos estudos de gênero, como Simone de Beauvoir, Judith Butler e Bell Hooks, por exemplo. As autoras partem, em comum, da já mencionada epistemologia feminista, na medida em que têm como proposta a mudança do paradigma referencial das experiências compartilhadas pelos sujeitos e abordadas nas pesquisas científicas. A lógica da narrativa de suas experiências vivenciadas no campo alinha-se na epistemologia feminista, na medida em que justamente descola a figura masculina como detentora principal das discussões acerca das relações no meio jurídico.

A universidade e os demais campos do Judiciário são entendidos por estas pesquisadoras como espaços privilegiados da reprodução de uma cultura machista e sexista, mas são também expressos como espaços de luta e resistência de mulheres pela democratização dos espaços do Direito.

Jade Liz Almeida dos Reis – Mestranda em História na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Florianópolis, SC – BRASIL. E-mail: [email protected].

Lugares para a história – FARGE (RHR)

FARGE, Arlette. Lugares para a história. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. Resenha de: ESTACHESKI, Dulceli de Loures Tonet. Relações de gênero nos lugares para a história. Revista de História Regional n.21 v.2, p.735-739, 2016.

Uma das características dos estudos de gênero é a pluralidade teórica, metodológica e temática. São diversas possibilidades reflexivas que refletem a própria essência de tais estudos, que visam não apenas produções acadêmicas consistentes, mas principalmente, objetivam reflexões que possibilitem transformações nas práticas sociais. O intuito é a construção de um mundo mais justo que, como os estudos de gênero, valorize a diversidade. Teorias e metodologias diversas para pensar práticas diversas de pessoas diversas, essa é a essência.

Arlette Farge é uma historiadora francesa que se dedica aos estudos do século XVIII. No Brasil temos duas de suas importantes obras publicadas, o primeiro, ‘O sabor do arquivo’, de 20091 é uma escrita quase poética sobre a pesquisa arquivística. Trata do contato com o documento, do encantamento pela descoberta na pesquisa histórica que utiliza como fontes os documentos judiciais. Pessoas, queixas, delinquência, vigilância, controle, narrativas, são elementos que constituem tais documentos e revelam histórias, costumes, o cotidiano de pessoas que não queriam suas vidas expostas de tal forma, mas que por terem sido assim documentadas, ajudam a pensar sobre as relações de poder. Os arquivos judiciários expressam os ajustes e os impasses nas relações do sujeito com seu grupo social e com os poderes estabelecidos. E quando pensamos em relações de poder, pensamos em gênero, que “é um primeiro modo de dar significado”2 a elas e, mesmo que a autora não cite especificamente o termo, ela salienta que as mulheres são encontradas nesses arquivos que, para ela, desvendam também “o funcionamento do confronto do masculino e do feminino”3. A segunda obra, mais recente, publicada em 2015, é ‘Lugares para a História’4 e novamente ela não escreve especificamente sobre gênero, mas então, como sua obra pode ser importante para as pesquisas na área? Afinal, de que ela trata? Em sua introdução Farge ressalta que a historiografia precisa ocupar-se de escritas que interessem à comunidade social e que confrontem o passado e o presente. Quando pesquisamos as relações hierárquicas de gênero por uma perspectiva histórica, é isso que fazemos, é o que queremos, confrontar o passado, as formas como foram constituídas essas relações para melhor argumentar em nossas problematizações em relação ao presente. As questões de gênero são essenciais para a comunidade social e por isso devem ser escritas, lidas e refletidas.

Em sete capítulos a autora apresenta o que chama de ‘lugares para história’, que são situações que encontram eco na atualidade, como o sofrimento, a violência e a guerra, ou que consideram sujeitos e experiências singulares, como a fala, o acontecimento, a opinião e a diferença dos sexos. Para ela Esses dois conjuntos se religam pela presença hoje de configurações sociais violentas e sofridas, e de dificuldades sociais que desqualificam o conjunto das relações entre o um e o coletivo, entre o homem e a mulher, o ser singular e sua – ou suas – comunidade social, entre o separado e sua história.5 No primeiro capítulo, ‘Do sofrimento’, Farge questiona se a historiografia pode dar conta do sofrimento humano. O sofrer pode ser um tema para a história ou o sofrimento um lugar para ela? A história tem dado conta de grandes “catástrofes humanas” fazendo com que a dor que elas causam nos sujeitos seja pensada como se fosse apenas fatalidade, consequência de eventos maiores que merecem a total atenção. Dificilmente a história se volta para os “ditos do sofrimento”, para as palavras de dor, à exceção, como aponta a autora, da história do tempo presente que valoriza os relatos de pessoas que vivenciaram momentos históricos tensos e apresentam as suas percepções sobre eles. Um bom exemplo disso é o texto de Wollf6 que analisa relatos de familiares de desaparecidos políticos da América Latina, evidenciando que os apelos aos sentimentos da opinião pública foram utilizados para fins políticos, para desacreditar regimes militares e fortalecer a luta por direitos humanos.

Para Farge é possível e preciso entender que “a dor significa, e a maneira como a sociedade a capta ou a reusa é extremamente importante”.7 Os grandes eventos como guerras e revoluções afetam a vida das pessoas de formas muito distintas, dependendo do lugar social que elas ocupam. Farge salienta a necessidade de se pensar na tristeza de mulheres que sofrem em um mundo caracteristicamente masculino e de pobres que vivem em sociedades tão desiguais. Ela enfatiza que há racionalidade nessas distorções, nessas diferenciações que causam dor e pesquisar sobre isso, escrever a partir desse entendimento, é uma forma de buscar erradicar o sofrimento dos que hoje são atingidos pelos ecos dessas situações históricas. Para Wolff8 emoções e gênero se entrelaçam, pois fazem parte da experiência humana. É sobre essa experiência, essencialmente a que causa sofrimento, que Farge nos convida a escrever e é por isso que sua obra é tão importante para pensar as relações de gênero. A racionalização do sofrimento nessas relações sendo historicamente analisados pode explicar os dispositivos que fizeram surgir tais sentimentos e práticas, podendo “fornecer os meios intelectuais de suprimi-los ou de evitá-los”9 Há uma insatisfação em relação aos discursos históricos sobre a violência.

“A interpretação histórica da violência, dos massacres passados, dos conflitos e das crueldades, praticamente não permite, na hora atual, ‘captar’ em sua desorientadora atualidade o que se passa sob nossos olhos”10. Em seu capítulo ‘Da violência’, a autora convida a não nos dobrarmos ao sentimento de fatalidade ou impotência diante da violência e ressalta que é legítimo buscar outras interpretações históricas, como o fazem as pesquisas sobre as emoções que destacam sujeitos, gestos e falas. Para ela, a historiografia pode, não apenas, apresentar o conhecimento, mas indicar caminhos para a luta, para o enfrentamento à violência.

A violência tem racionalidade. A violência de gênero é pautada numa racionalidade em relação a uma sociedade hierarquizada na qual homens devem ser dominadores e mulheres submissas, contrariar essa lógica pode levar ao ato violento. Entender a racionalidade da violência, para Farge, é um caminho para evitá-la, transformando a realidade com outras formas de racionalização.

‘Da guerra’ problematiza a ideia de que a guerra é inevitável e questiona a “estranha disposição que nos fez considerar esse fenômeno como normal”11.

No capítulo seguinte, ‘Da fala’, Farge afirma que o/a historiador/a dá sentido à fala para que o passado se torne inteligível ao leitor e alerta para o fato de que “a história pode ser dita rápido demais”12 e dessa forma invisibilizar as pessoas que a fazem. A escrita da história pode dar lugar aos sujeitos, como Foucault o fez em ‘A vida dos homens infames’13 ou em ‘Eu, Pierre Riviere…’14, como Davis fez com Martin Guerre15, Esteves com as ‘meninas perdidas’16 e Wolff com as mães de desaparecidos políticos17.

A história pode pensar a resistência pelas vozes de quem transgride a ordem. Estas percepções são apresentadas nos capítulos seguintes, ‘Do acontecimento’ e ‘Da opinião’. Em seguida, a autora dedica um capítulo para pensar a ‘diferença dos sexos’ como um lugar para a história. Como salientado acima, Farge não parte dos estudos de gênero, então não se ocupa em pensar as categorias de análise sexo e gênero e suas problematizações. Ela parte de discussões propostas por uma história das mulheres da França, para acusá-la de pessimista, marcada por uma inércia que apresenta as diferenças entre homens e mulheres como algo estável, não tendo como intuito mover o leitor a pensar a necessidade de mudança. A autora critica, assim como o fazem os estudos de gênero, esse caráter fixo das coisas. A ordem hierárquica, desigual, deve ser pensada pelas transgressões que sofre, pois “reconstituir os momentos em que a instabilidade, o desequilíbrio, as recusas”18, ocorrem pode demonstrar a possibilidade de novas estruturas.

Farge conclui que “buscando conhecer outro tempo, não escapamos do nosso, e, se este último, como o faz hoje, se arranca brutalmente do passado, a história se engaja também nessa ‘realidade’ para encontrar seu sentido”.19 Ao propor uma reflexão histórica que dê conta das dores humanas, sem entendê-las apenas como fatalidades, mas embrenhando-se pelo que move as ações, os sentimentos, as inquietações e os desejos, que transformam as pessoas, fazem sofrer ou lutar, submeter-se ou transgredir, ‘Lugares para História’ ajuda a pensar a categoria gênero como essencial para as reflexões históricas, mesmo que não a cite. Os estudos de gênero possibilitam compreensões que podem gerar mudança social, que se configuram em uma história engajada, como almeja a autora.

Notas

1 FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. São Paulo: EDUSP, 2009.

2 SCOTT, Joan. Gênero uma categoria útil para análise histórica. Educação e realidade. Porto Alegre. Vol. 20. N. 2. Jul/dez, 1995. p. 14.

3 FARGE, op. cit.,p. 43.

4 FARGE, Arlette. Lugares para a história. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

5 FARGE, Lugares… Op. cit. p. 9-10.

6 WOLFF, Cristina Scheibe. Pedaços da alma: emoções e gênero nos discursos da resistência. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, 23(3), setembro/dezembro, 2015.

7 Ibidem. p. 19.

8 WOLFF, op. cit.

9 FARGE, Lugares… Op. cit., p. 23.

10 Ibidem. p. 25.

11 Ibidem. p. 43.

12 FARGE, Lugares… Op. cit., p. 61.

13 FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In: Ditos e escritos. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2006.

14 FOUCAULT, Michel. Eu, Pierre Riviere, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão. Rio de Janeiro: Graal, 1977.

15 DAVIS, Natalie Zemon. O retorno de Martin Guerre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

16 ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas Perdidas: Os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

17 WOLFF, op. cit.

18 FARGE, Lugares… Op. cit., p. 114.

19 Ibidem, p. 129.

Dulceli de Loures Tonet Estacheski – Doutoranda em História pela UFSC. Professora do curso de História da UNESPAR, campus de União da Vitória. E-mail: [email protected].

 

 

Relações de Gênero, Sexualidade & Cinema | ArtCultura | 2015

Ensaiar a explicação de uma obra é, sobretudo, saber e confessar o quanto ela nos atravessou, quanto ela nos ajuda a reconhecermo-nos através dela.

Octávio Paz

Este dossiê, idealizado e concebido a seis mãos, é fruto de uma paixão e uma fantasia partilhada. Um paixão pela magia embriagante do cinema, pelas ilusões diegéticas da narrativa e sua visualidade, pelas multidimensões sensoriais de sua operacionalidade maquínica no seio de diversas e diferentes culturas visuais, pela potencialidade de intervenção crítica no seio das práticas culturais das cidades, das mais distintas localidades, do modo fugidio como as imagens escapam das fronteiras pré-estabelecidas dos gêneros (cinematográficos), dos limites das produções (censuras, verbas, gramática, tecnologias), da forma dramática como os vários modos de se produzir um filme (dos clássicos à videoarte) marcam imaginários e imaginações.

A fantasia, nos termos como bem a colocou Joan Scott1 , é de transformar este conjunto de textos num amálgama de leituras que extrapolem a crítica por si mesma e invista no elo entre o saber e a confissão (conforme Octávio Paz), ou seja, o ato poético de entender e tensionar obras e práticas filmográficas, de diferentes idiomas e gramáticas, naquilo que elas têm de táteis, isto é, no seu poder de nos tocar ainda que tenham sido parte de um passado do qual jamais faremos parte. O ontem que vive hoje como aprendizado estético e político, mas também como estopim para autodescentramento e autodistanciamento, que nos faça ver nosso hoje com a alteridade crítica que ele requer. Nesse sentido, a fantasia de ir a diferentes países (Índia, Nicarágua, Guiné, Estados Unidos, México, Inglaterra), trespassando, interligando vozes (femininas, feministas, queer) que ousem dialogar ao mesmo tempo com formas de ver e entender dos que criam a maquinaria artística e a engrenagem da indústria cinematográfica e dos que se dispuseram e se dispõem a pensar os impactos e as atuações, enfim, os efeitos subjetivos e microfísicos desta usina de produções de sentidos, significados, emoções e racionalidades. Leia Mais

Moça educada, mulher civilizada, esposa feliz: Relações de Gênero e História em José de Alencar | Ana Caroline Eiras Coelho Soares

Publicada originalmente no Brasil em 2012, a obra expõe, em seus 4 capítulos, as representações femininas presentes nas obras literárias do século XIX, mais especificamente, da autoria de José de Alencar, lançadas no Rio de Janeiro. Os romances Lucíola, Diva e Senhora demonstram os elementos que Soares pretende analisar, dos quais se ressalta o papel do amor e da felicidade conjugal como atribuições da mulher necessárias para a solidez do casamento. A autora analisa também o papel que a mulher desempenhava na sociedade no período em que a obra foi escrita e o caráter pedagógico dessas obras. Cumprindo esses objetivos, a autora relaciona a literatura com o “espírito da época” e a transformação do conceito “civilização” desde aquele momento histórico.

O momento histórico Brasil Império, especificamente a partir de 1860, data da primeira publicação de José Alencar analisada nesse trabalho, é marcado por homens da “elite dominante” que absorveram, refletindo no país, hábitos e costumes europeus. Deste modo, a elite imperial acabou por criar uma série de pontos de semelhança que ficarão marcados na literatura: educação, vida profissional, indumentária, regras de etiqueta e bens. Essa homogeneização será relacionada com a construção e modificação do conceito de “civilização”, e será cobrada da mulher que pretender ser civilizada como pré-requisito para tornar-se uma mulher feliz através do casamento. Leia Mais