As relações de poder na Idade Média Tardia: Marsílio de Pádua, Álvaro Pais O. Min., e Guilherme de Ockham O. Min. | José Antônio de C. R. de Souza

José Antônio de Camargo Rodrigues de Souza é Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (1980), com a tese A contribuição filosófico-política de Guilherme de Ockham ao conceito de poder civil, e Doutor em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa (2001), com a tese O pensamento social de Santo Antônio. Especialista em História política, social e filosófica dos séculos XIII-XIV, foi um dos pioneiros dos estudos medievais no Centro-Oeste brasileiro. Em 1980, propôs a fundação do que hoje é a Sociedade Brasileira de Estudos Medievais, da qual foi o primeiro presidente. Autor de renome internacional, tem mais de 50 artigos publicados em periódicos especializados na Argentina, Espanha, Itália e Portugal, além de dezenas de capítulos de livros e organização de coletâneas.

Assaz conhecedor da língua latina, fez inúmeras traduções para o português, como o conjunto das obras de Marsílio de Pádua, as obras políticas de Guilherme de Ockham(+ ou – 1280-1347), de Pedro João Olivi, Francisco Mayronnes, de Jonas e Orleans, dentre outros.

No livro que ora apresentamos, o autor ressalta as visões de três consagrados pensadores da primeira metade do século XIV, a saber: Marsílio de Pádua (1280-1343), médico, teólogo, filósofo e jurista, defensor radical das ideias de Aristóteles, advogava que o Regnum fosse governado pelo Imperador – a quem deveriam se sujeitar o papa e os bispos e a quem caberia convocar os concílios a exemplo de Constantino, no I Concílio de Niceia de 325. Para tanto, fundamentava-se na soberania do povo, à qual o clero deveria sujeitar-se, pautando-se em suas e leis e em suas normas. O médico patavino pertencia à burguesia ilustrada e culta de Pádua, tendo sido professor de filosofia na Universidade de Artes de Paris entre os anos de 1318 e 1320. Seu engajamento político como partidário dos gibelinos deu-se face às pretensões papais à titularidade da plenitudo papalis, tanto na esfera temporal quanto espiritual.

Declarado herético em 1326, foi excomungado pelo papa João XXII (1316- 1334) em função das teses defendidas no Defensor da paz, momento em que fugiu de Paris e se refugiou na corte do Imperador Luís IV, o Bávaro (1314- 1347), servindo-o como conselheiro político. Em 1328, acompanhou o imperador a Roma e foi nomeado vigário imperial da cidade. Morreu em Munique, em 1343. Além do Defensor pacis, foi autor de outros trabalhos como Defensor Menor, De Translatione Imperii e Sobre a jurisdição do Imperador em questões matrimoniais, além do Brevilóquio sobre o principado tirânico.

O segundo autor arrolado por Souza é Álvaro Pais (1270-1349), jurista canônico de formação neoplatônica agostiniana, franciscano, adepto da pobreza evangélica, penitenciário do papa João XXII na Corte papal em Avinhão. Hierocrata convicto, via as relações de poder diferentemente de Marsílio e Guilherme de Ockham. Este, igualmente franciscano, alcunhado Venerabilis Inceptor, por não ter recebido o grau de Mestre em Teologia, admitia igualmente a máxima de Rm 13,1 de que todo o poder vem de Deus; todavia, apontava dois caminhos: o religioso e o secular, ambos com esferas distintas de poder. O espiritual conferido àquele apresentado pela Igreja para dirigi-la; o do imperador e dos reis, pela escolha do povo.

Esse trabalho emblemático a que se propôs o Professor José Antônio de Souza é fruto de vários anos de pesquisa sobre as sociedades cristãs da Baixa Idade Média, especialmente acerca do pensamento social, político e religioso daquele período. O trabalho é desafiador justamente por verificar e cotejar o pensamento de três autores, tanto no que se refere ao poder do papa e demais clérigos num primeiro momento, seguido da reflexão sobre as suas ideias a respeito da origem e finalidade do poder régio temporal e da figura do imperador e do papa na Societas Christiana.

Souza conhece a fundo as obras dos referidos autores, pois traduziu, como mencionado, toda a obra de Marsílio de Pádua para a língua portuguesa, além de boa parte das obras de Guilherme de Ockham, tornando-se referência como estudioso de Álvaro Pais, ao qual dedicou vários estudos já publicados em periódicos científicos, nacionais e internacionais. Há de se ressaltar que o autor não pretende realizar apenas uma descrição dos personagens e seus feitos, mas trazer à tona o debate político-religioso em torno desses pensadores, no âmbito das relações de poder, dando ênfase às polêmicas ampliadas pelas querelas entre o poder espiritual e temporal, a partir de discussões teóricas, como entre Guilherme de Ockham e Marsílio de Pádua e a postura de Frei Álvaro em relação aos dois coetâneos.

O contexto que se apresenta é marcado pelo difícil diálogo entre o papado e o império. O dissenso entre o papa João XXII (1316-1334) e Luís IV da Baviera foi o desfecho para um processo repleto de tensões entre essas duas dignidades e entre o papado e os franciscanos espirituais, nas primeiras décadas do século XIV, o que fez com que pensadores como Guilherme de Ockham e Marsílio de Pádua buscassem refúgio junto ao imperador, devido à acusação de heresia. Nesse momento conturbado, sequer Álvaro Pais, partidário do papa, ficou imune, pois de um lado era defensor da pobreza franciscana, o que causou desconfianças da parte dos legados papais, de outro, enquanto penitenciário do papa, não era bem visto pelo imperador.

Tais acontecimentos contribuíram para certa consolidação das pretensões imperiais quanto à autonomia do poder secular, no último embate entre papado e império, tanto sob o aspecto bélico quanto do ponto de vista das acepções teóricas acerca do poder divino e temporal. Dessa forma, Souza propõe como fio condutor de sua pesquisa o substrato que alinhava o seu pensamento, ou seja, as concepções de poder dos três pensadores que, em alguns pontos doutrinários, se entrelaçam e, em outros, se afastam totalmente.

Trataremos de comentar a obra, buscando alguns eixos temáticos presentes nas concepções dos três biografados que nos ajudarão a perceber os elos que unem e separam homens de pensamentos tão distintos, mas que apresentam, como objetos de reflexão, temáticas comuns, ou seja, teorias acerca do poder temporal e espiritual.

O professor José Antônio de Souza nos apresenta uma obra de história política, privilegiando igualmente os aspectos humanos e sociais dos indivíduos imersos nas problemáticas de seu tempo. A obra divide-se em quatro capítulos, dos quais comentaremos as ideias principais: o primeiro versa sobre as controvérsias entre o império e o papado e este com os franciscanos espirituais, ambientando o leitor no contexto geral em que os protagonistas se inseriram no recorte espaço-temporal priorizado pelo autor. Partindo de rica documentação e bibliografia especializada, ressalta a querela entre Jacques de Cahors (João XXII) e o imperador Luis IV da Baviera e os principais acontecimentos político-religiosos e militares envolvendo as duas dignidades, bem como a problemática em torno da pobreza evangélica levantada pelos franciscanos espirituais nas primeiras décadas do século XIV, momento em que a autoridade pontifícia se viu questionada sobre a hierocracia pontifícia e a posse de riquezas pelo clero.

No segundo capítulo, José Antônio de Souza apresenta a trajetória pessoal e intelectual de seus protagonistas: Marsílio de Pádua, Álvaro Pais e Guilherme de Ockham. Sob o ponto de vista filosófico e religioso, o primeiro e o último ampararam-se em fontes comuns, como As Sagradas Escrituras, a Ética e a Política de Aristóteles, a fim de construírem um arcabouço teórico sobre a causa eficiente e final do poder sacerdotal na Societas Christiana. Álvaro Pais, embora neo-platônico e adepto do agostinismo político, também bebeu nas referidas fontes, todavia interpretando-as de maneira rigidamente hierocrática.

Ainda no capítulo 3, o autor busca apresentar seus estudos sobre as “causas eficientes do poder espiritual”, refletindo sobre o pensamento dos três biografados a respeito da plenitudo potestatis papalis e temporalis e sobre quem deveria gerir cada uma dessas esferas de poder. Finalmente, no capítulo 4, como veremos mais à frente, discute a origem da dignidade imperial, sua causa e finalidade.

É preciso reiterar que metodologicamente, nos capítulos 3 e 4, o autor preocupa-se em detalhar vários excertos das obras dos pensadores em epígrafe, certamente com o intuito de trazer a lume obras até então pouco conhecidas, um ganho para os leitores, especialmente no tocante à obra de Álvaro Pais.

Para hierocratas como Álvaro Pais, Igreja, sociedade e cristandade se reduziam a um só corpo e a cabeça deveria ser regida pelo Sumo Pontífice, pois ele era o legítimo representante de Cristo na terra. Já para Marsílio de Pádua, a causa imediata do sacerdócio é de origem espiritual, isto é, o próprio Deus, todavia, sem descartar a cooperação humana.

Uma das problemáticas demonstradas pelo autor em relação às teses marsilianas, que, com certeza, foi objeto de controvérsias entre Marsílio e Álvaro Pais, refere-se à tentativa de o médico patavino questionar a posição eminente que o papa ocupava, ao afirmar que houve igualdade entre Pedro e os outros apóstolos e que ele não exerceu primazia entre eles. Essa assertiva implicava sérios problemas hierárquicos não apenas aos clérigos, mas também aos fiéis, de modo geral.

Ainda em relação ao paduano, Souza expõe outro argumento acerca da pretensão dos bispos de Roma de tomarem para si o primado da Sé Apostólica, referindo-se ao fato histórico retirado dos At 8, 4 de que Pedro e João foram enviados a Samaria pela assembleia dos primeiros cristãos. Logo, o médico patavino desconstrói as teses hierocratas, caras a pensadores como Álvaro Pais, e cria sérios problemas com o papado.

Ressaltemos que as mesmas fontes utilizadas pelos partidários do imperador e do papa como a Doação de Constantino, no caso do paduano, foi utilizada para demonstrar que o primado de Roma não foi concedido espiritualmente, mas de forma meramente humana, pois foi o imperador Constantino I (313-337) que concedeu ao papa Silvestre I (314-335), bispo de Roma, e a essa Igreja a preeminência e certo poder sobre as demais. Por outro lado, os hierocratas, como Álvaro Pais, defendiam a preeminência do poder espiritual sobre o temporal e os mesmos documentos foram utilizados e interpretados, por exemplo, na Segunda Parte do Estado e pranto da Igreja, como base comprobatória da origem e da superioridade do poder espiritual e o lugar que ocupa na Cristandade, ressaltando que o poder jurisdicional do papa tem extensão universal.

Noutro ponto essencial desse estudo comparativo, Souza assinala outro embate entre Álvaro Pais e Marsílio de Pádua. O primeiro recorre ao argumento metafísico da unidade e depois o articula com a hierarquia entre os seres, afirmando que neste mundo o Romano Pontífice é a fonte de onde emana toda autoridade espiritual, porque ele detém a plenitudo potestatis, régia e sacerdotal. Para o frade galego, não convinha ao papa repartir o poder, pois uma pluralidade de governantes não era necessária a uma sociedade cristã que se queria perfeita, ao contrário, por analogia comparar-se-ia a um monstro de muitas cabeças, causando a sua ingovernabilidade.

Não vamos aqui evidenciar todos os pontos dessa querela, deixemos que o leitor sinta-se instigado a saber dos seus resultados. E Guilherme de Ockham? Seria o elo intermediário desse debate? Apesar de haver nas obras do Venerabilis Inceptor remissões a várias origens do poder sacerdotal, nesse capítulo, Souza lança mão do debate nas teses: primeira, quarta e quinta do Livro I do Tratado I, intitulado “Sobre o poder do papa e do clero”, da terceira parte do Dialogo.

Conforme Souza, a primeira dessas teses reúne a teoria hierocrata segundo a qual o papa recebeu de Cristo a plenitude de poder (Mt 16, 16-19). Pensamento contrário é expresso na quarta tese – também defendida por Marsílio – de que o papa não possui poder em nenhuma das esferas, seja temporal ou espiritual. Já a quinta demonstra o pensamento de Ockham concernente ao poder do papa, afirmando que, de alguma forma particular, Cristo concedeu a Pedro a plenitude do poder no âmbito espiritual e a exerceu. Com fundamento na lei divina e com respaldo na lei humana, Ockham ressalta que Pedro também recebeu uma espécie de poder sobre o âmbito secular, o qual ele exercitou em determinadas ocasiões ou circunstâncias.

Para Souza, Ockham apresenta uma via média entre as ideias hierocráticas de Álvaro Pais e o radicalismo de Marsílio de Pádua em relação à origem e finalidade do poder espiritual. Todavia, na condição de cristão ortodoxo, teólogo e frade menor, não compartilhava das ideias de Marsílio de Pádua quanto à desestruturação da hierarquia eclesiástica. Mesmo como portador de uma via média, as ideias de Ockham não eram concordantes com as de Álvaro Pais ou Marsílio de Pádua.

No capítulo 4, Souza lança mão do mesmo estilo dos capítulos anteriores, mas desta vez focando o pensamento dos estudiosos aqui elencados acerca da causa, origem e finalidade do poder imperial, ou seja, as causas eficientes do poder imperial e secular e suas respectivas abrangências. Primeiramente, discute as teses de Marsílio que, como vimos, desconstruiu a teoria hierocrata de poder no Defensor da paz, e, amparado especialmente na Ética e na Política de Aristóteles, expôs a origem do poder civil e a origem do poder imperial. Souza adverte que, para os pensadores daquele momento, mesmo no caso de Marsílio, era muito difícil desvencilharem-se do pensamento teológico na elaboração de suas obras. Nesse sentido, o médico patavino encontrou-se num dilema para conciliar os ensinamentos de Aristóteles e a doutrina cristã. Assim, sem incorrer na incredulidade e nas sérias consequências que isso lhe podia trazer, dado o acirramento do Tribunal da Santa Inquisição em relação às questões dogmáticas, Marsílio buscou a solução para essa problemática, procurando assegurar-se de não cair nas armadilhas dos hierocratas ao formular o seu pensamento político e para isso afirma que “Deus é a causa eficiente remota de todo poder”.

Por seu turno, Álvaro Pais refuta a referida tese de Marsílio sobre a translatio imperii, afirmando que o império provém do papa, pois o imperador recebe-o, sim, de Deus, mas necessita do papa, que na condição de vigário de Jesus Cristo no orbe terrestre, tem a missão de aprovar o nome do governante eleito, consagrá-lo, ungi-lo e coroá-lo. Lembremos que a base argumentativa para o pensamento político de frei Álvaro, nesse quesito, é o De Regimine Christiano, do agostiniano Tiago de Viterbo, obra que compilou em grande parte ad litteram no Livro I do Estado e pranto da Igreja, compulsado por Souza. Para frei Álvaro, a causa final do poder secular e imperial é o bem comum dos súditos; ademais o soberano deve alicerçar-se sobretudo no conhecimento das Sagradas Escrituras e na prática das virtudes e, especialmente, na justiça para que possa aplicá-la aos súditos, de acordo com leis justas e equânimes.

Para explicar a origem do poder civil de acordo com Guilherme de Ockham, Souza faz um estudo comparativo entre as obras que sustentam seu pensamento político, a saber, o Diálogo, as Oito questões e O brevilóquio sobre o principado tirânico, donde vemos que, para o Venerabilis Inceptor, a gênese do poder secular tem seu início entre os gentios, defendendo que é impensável que Deus não tenha concedido poder aos pagãos, pois o senhorio e o domínio sobre os bens temporais lhes pertenciam antes mesmo da Instituição da Igreja. No caso de Álvaro Pais, esse argumento será usado, insistindo que Cristo sempre foi coeterno com o Pai e, pelo fato de o papa ser Seu ministro na terra, ele detém até mesmo o governo sobre os gentios. Ockham, por sua vez, voltando ao Antigo Testamento, defende que o senhorio ou domínio sobre os bens temporais pertenciam aos pagãos bem como a jurisdição ou o poder temporal. Assim, a finalidade do poder secular e imperial para Frei Guilherme seria o cumprimento dos deveres inerentes ao ofício. Tal qual o Frade galego, também pressupõe que a pessoa que toma tal dignidade deve adquirir e cultivar virtudes como a justiça e a sabedoria.

Reiteramos o propósito de Souza com este livro, que foi apontar um amplo acervo documental e bibliográfico sobre o assunto, com o “desejo que tanto os pesquisadores quanto os estudantes, com base em suas reflexões, por si próprios ou sob orientação de seus mestres, possam vir a ampliar este livro com outros trabalhos […]”.

Podemos depreender, pela apresentação da obra, que a sua leitura, apesar de requerer um conhecimento prévio do leitor na área do pensamento político medieval, não implica maiores problemas, visto que a metodologia utilizada pelo autor é extremamente didática e a utilização das fontes e da bibliografia especializada fornece a quem ler a obra o máximo de informações sobre os temas abordados. Assim, podemos afirmar que a mais significativa contribuição de Souza é justamente ter conseguido reunir num único livro a grande complexidade das discussões filosóficas, teológicas e jurídicas que levaram ao debate três dos mais renomados pensadores políticos do século XIV.


Resenhista

Armênia Maria de Souza – Universidade Federal de Goiás.


Referências desta Resenha

SOUZA, José Antônio de C.R. de. As relações de poder na Idade Média Tardia: Marsílio de Pádua, Álvaro Pais O. Min., e Guilherme de Ockham O. Min. Porto Alegre: Est Edições. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2010. Resenha de: SOUZA, Armênia Maria de. Signum- Revista da ABREM, v. 11, n. 2, p.256-262, 2010. Acessar publicação original [DR]

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