As Universidades e o Regime Militar: cultura política brasileira e modernização autoritária | Rodrigo de Patto Sá Motta

Rodrigo Patto Sá Motta, vinculado à Universidade Federal de Minas Gerais, é pesquisador da história política do Brasil contemporâneo. Sua escrita privilegia uma narrativa analítica, embasada em farto material empírico, resultado do domínio da bibliografia sobre a temática abordada, pesquisa em arquivos nacionais e nos EUA. Sua preocupação com a análise da “cultura política brasileira”, conceito esse que parece ainda não estar bem desenvolvido, também é preocupação de historiadores como Carlos Fico, Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Marcos Napolitano. Embora não seja citado nas referências bibliográficas o nome de Sérgio Buarque de Holanda, essas reflexões parecem reabilitar o conceito de “homem cordial” por perseguirem os traços do personalismo na política, dentre outras características.

A obra As universidades e o regime militar faz parte de um conjunto de publicações realizadas no contexto dos 50 anos do Golpe Militar de 1964. Elas fazem uma espécie de “redescoberta” da ditadura brasileira, sobretudo ao analisar os aspectos autoritários de nossa cultura, manifestados nos ambientes institucionais. Algumas análises vão de encontro à memória coletiva de certos setores acadêmicos mais inclinados a ideologias esquerdistas, pois, se por um lado, confirma e aprofunda os aspectos ligados à repressão, por outro, expõe fatores que levaram à modernização das universidades, o que colaborou para a renovação da própria historiografia brasileira como, por exemplo, as mudanças trazidas pela Reforma Universitária e a sistematização e expansão da pós-graduação. Assim, o autor perpassa a transformação das universidades que antes da Reforma era uma federação de escolas e faculdades para se tornarem um sistema universitário articulado, que deslocou o poder anteriormente exercido pelos diretores de faculdades para as mãos dos reitores e modificou um “modelo” de universidade que havia perdurado por trinta anos.

A massa documental utilizada por Motta é bastante ampla, constituída de entrevistas orais, legislações, relatórios administrativos, bibliografia, e documentos escritos pouco divulgados, com destaque à documentação disponibilizada recentemente para consulta em arquivos e bibliotecas nos Estados Unidos da América e, no Brasil, documentos produzidos pelas agências de informação do Estado.

O binômio modernização conservadora, central na discussão empreendida por Motta, auxilia a análise das ambiguidades ou contradições da sociedade brasileira, com vistas aos acontecimentos que formaram a conjuntura política do período estudado e às negociações que ocorreram em micro escala, quando então aparece o papel dos atores históricos. Ao longo do texto, o autor analisa as manifestações da cultura política brasileira no meio universitário, constituída por fortes traços personalistas, a qual se orienta por estratégias de acomodação, negociação e conciliação com o fim de evitar conflitos agudos. Essas estratégias eram ressaltadas nos períodos de maior autoritarismo na política brasileira.

O livro divide-se em oito capítulos, alocados em ordem cronológica: Operação limpeza; A face modernizadora; A Usaid e a influência norte-americana; O novo ciclo repressivo; Os espiões dos campi; Os resultados das reformas; Adesão, resistência e acomodação: o influxo da cultura política; Epílogo: o desmonte do aparato autoritário nas universidades.

O primeiro capítulo, Operação limpeza, faz um apanhado sobre o contexto político do golpe civil militar, demonstrando as ambiguidades do regime, que oscilava entre um governo abertamente ditatorial e o respeito às instituições liberais. O autor aborda as intervenções nas reitorias, que acarretaram substituições dos reitores não alinhados ao governo, incumbidos de disciplinar professores e alunos. Essa foi a primeira iniciativa de afastar os possíveis “inimigos” que o Estado financiava. Durante a ditadura, duas grandes ondas de expurgos foram realizadas nas universidades: uma logo em seguida ao golpe de 1964, outra após o Ato Institucional n° 5, de dezembro de 1968, que aprofundava a “Revolução” e inclinava mais o governo às demandas da direita conservadora. Motta demonstra as motivações que levaram à criação dos mecanismos jurídicos para o controle do movimento estudantil, uma vez que este possuía grande capacidade de mobilização de massa para protestos nos grandes centros do país. Por outro lado, o autor aponta que a “esquerdização da juventude” ocorreu em muitos momentos “independente da opinião dos professores”, e que “muitos professores sentiram-se impelidos a acompanhar a tendência, para não se alienar em relação às lideranças estudantis” (MOTTA, 2014, p. 62- 63).

O segundo capítulo, A face modernizadora, expõe os esforços progressistas do sistema universitário, cuja demanda por mudança vinha sendo requisitada há anos pelos estudantes e setores progressistas das universidades, mas que acabou por se efetivar de modo autoritário durante o regime militar. A partir de 1965, os atos do governo sinalizavam para a Reforma Universitária, intensificada nos anos de 1968 e 1969, que serviram para tentar conter a capacidade de contestação e mobilização do movimento estudantil e cooptar os mesmos.

O capítulo terceiro, Usaid – United States Agency for International Development – e a influência norte-americana, aborda os acordos do governo brasileiro com instituições estrangeiras, sobretudo agências e fundações norte-americanas, trazendo explicações sobre as negociações do Estado brasileiro com organismos internacionais. Uma importante contribuição trazida por Motta choca-se com a representação de que o governo militar serviu de aporte do imperialismo norte-americano, bastante anunciada pelo movimento estudantil, e demonstra as aproximações distanciamentos entre as políticas do governo brasileiro e os interesses dos organismos estrangeiros, registrados por meio dos desagrados dos funcionários da Usaid no Brasil e pela resistência dos estudantes.

O ciclo de rebeldia estudantil foi vigiado de perto pelos militares, que aguardavam a oportunidade para endurecer o jogo com as oposições. Na esteira da ebulição dos protestos, no final de 1968, foi sancionado o Ato Institucional n° 5, abrindo o precedente jurídico para o segundo ciclo de expurgos nas universidades, ceifando até mesmo pessoas que não tinham ligação com movimentos esquerdistas, e o traço personalista da cultura política brasileira se manifestou intensamente: aqueles que não possuíam vínculos com pessoas influentes no governo sofreram mais intensamente o peso da mão da ditadura.

O quarto e o quinto capítulo, O novo ciclo repressivo e Os espiões dos campi, são dedicados à exposição das forças que atuaram no segundo ciclo repressivo e à montagem de um sistema de informações que alocou nas universidades a seguinte agência: Assessoria de Segurança e Informações/ASI, que operava em conjunto com o Serviço Nacional de Informações/SNI e com a Divisão de Segurança e Informações/DSI. As políticas de controle criadas para combater o inimigo interno, ou seja, o comunista e o corrupto, ultrapassaram a coleta de informações que empoderavam os órgãos de vigilância. O pensamento autocrático estimulou algumas agências a desenvolver métodos próprios de contrapropaganda: a criação de movimentos políticos fictícios com o fim de docilizar a mobilização estudantil aliada a técnicas de repressão.

Motta destaca o alcance da política do medo instaurada no regime militar, ao favorecer o surgimento de uma autocensura no meio acadêmico, uma vez que as pessoas não conseguiam visualizar o que seria considerado lícito e ilícito, para o governo, nos debates e manifestações de opinião sobre a direção da coisa pública.

Paradoxalmente, o governo militar buscou disciplinar as universidades com ações repressivas e modernizadoras. A partir de 1969, houve expressivo aumento do financiamento público no setor educacional, impulsionando fortemente a pesquisa, o que permitiu em algumas situações “substituir” importantes nomes expurgados por outros de uma nova geração de profissionais. Nesse contexto, foi estruturado o sistema nacional de pós-graduação, quando setores estratégicos do governo foram convencidos sobre a importância dos investimentos em educação para o desenvolvimento da economia do país, e tentou-se consolidar uma política de melhores salários aos professores e a concessão de bolsas de estudo no país e no exterior. Dessa forma, a estruturação da carreira do professor universitário obteve grandes melhorias.

O sexto capítulo, Os resultados das reformas, analisam as transformações operadas no ensino superior durante o governo militar. No Brasil, às ciências sociais coube sua fatia do bolo dos investimentos que, apesar de muito modesta em comparação às outras áreas, representou grande incentivo em um ramo do conhecimento acadêmico até então com pouca tradição de pesquisa e sob forte influência de ensaístas.

Em nome da defesa da liberdade de expressão, o marxismo não teria sido oficialmente banido das universidades, sendo considerado por alguns reitores e pelo ministro da educação, Jarbas Passarinho, como necessário na academia, desde que as leituras de Marx ficassem na esfera do pensamento filosófico. Contrariamente às intenções do regime militar, as universidades brasileiras assistiram a intensificação da influência marxista durante a década de 1970, que começou a transparecer à medida que a distensão política se despontava no cenário político nacional. Ao mesmo tempo, a influência da sociologia norte-americana aumentava e, por sua vez, apresentava-se como opção teórica ao “marxismo vulgar” e ao “stalinismo”.

Os dois últimos capítulos, Adesão, resistência e acomodação: o influxo da cultura política e Epílogo: o desmonte do aparato autoritário nas universidades, aprofundam a discussão sobre a complexidade das políticas do sistema universitário, com suas contradições e paradoxos. Por exemplo, alguns demiurgos de instituições universitárias, sobretudo reitores – empoderados pelo efeito administrativo da Reforma Universitária –, mantiveram-se fiéis ao regime militar, e outros se mostraram mais abertos à negociação e promoveram iniciativas próprias para a modernização de universidades. Uma das estratégias foi arregimentar intelectuais que manifestavam pensamentos de esquerda, utilizando-se do prestígio pessoal do Reitor para interceder junto a agentes do Estado. Nesse contexto, o autor ressalta a figura de Zeferino Vaz, adesista de primeira hora do regime militar, o que lhe valeu o cargo de Reitor da UnB, onde promoveu expurgos. Por outro lado, Vaz arregimentou importantes intelectuais de esquerda para a consolidação da Unicamp, e chegou a interceder por professores que se encontravam no cárcere.

Os traços da cultura política brasileira também se fizeram sentir no contexto da reabertura política. Motta demonstra que, nas universidades, raras foram as manifestações “revanchistas”, mesmo porque o desmonte das assessorias de informações não ocorreu a “toque de caixa”. Muitos dos apoiadores da ditadura permaneceram em cargos importantes após o término do regime militar, o que poderia frustrar os ânimos de alguns professores durante o processo de reintegração dos cargos dos expurgados, possibilitado pela Lei de Anistia.

O período de redemocratização não aquietou os ânimos nas universidades, ao contrário, muitos sentiram que era a oportunidade de repensar certas políticas. Institucionalmente, as tensões eram aguçadas pelo esgotamento do “milagre econômico” brasileiro, pois os investimentos em pesquisa diminuíram e os salários perderam poder de compra, resultado da alta inflação durante o governo do presidente João Figueiredo.

O autor deixa transparecer ao longo do livro o desejo de aprofundar a experiência democrática na atualidade, chamando a atenção sobre os aspectos autoritários que permanecem em nossa cultura e também na práxis do meio acadêmico. Publicada no ano em que a área de História rememorou e discutiu os feitos do golpe de Estado de 1964 por ocasião dos seus cinquenta anos, As universidades e o regime militar realiza uma abordagem original da política educacional do regime militar, confronta algumas impressões dos contemporâneos de então com fontes inéditas, mostra o valor da pesquisa documental e evidencia a fragilidade da memória, mesmo diante de uma história do tempo presente.

Referências

FICO, Carlos. Além do golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2004.

__________; & POLITO, Ronald. A História no Brasil (1980-1989): elementos para uma avaliação historiográfica. Ouro Preto: Ed. UFOP, 1992.

NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014.

REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo P. Sá (orgs.). A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.


Resenhista

Tiago Alinor Hoissa Benfica – Pós-Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS/Paranaíba), do Projeto Biografias.


Referências desta Resenha

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As Universidades e o Regime Militar: cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. Resenha de: BENFICA, Tiago Alinor Hoissa. Fronteira: Revista de História. Dourados, v.19, n.33, p.196-201, jan./jun. 2017. Acessar publicação original.

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.