Barry Farm Hillsdale in Anacostia: A Historic African Community | Alcione M. Amos

Quando li o livro de Alcione Amos me convenci logo de sua importância para a compreensão da história dos negros norte-americanos. Estava na leitura do seu livro durante o julgamento do policial que matou George Floyd, e na sua finalização o ex-presidente Barack Obama disse mais ou menos isso: “enquanto os afro-americanos forem tratados como diferentes pela força policial e pela sociedade, jamais teremos democracia em nosso país”. Obama atingira o cerne do problema: o afro-americano – e outros grupos minoritários politicamente – apesar de todas as tentativas para a sua integração na sociedade americana, permanecia como o estranho, o diferente. Mudanças significativas ocorreram; porém, efetivas barreiras invisíveis impedem uma participação igualitária dos negros. Mais: expulsando-os do território administrado, ou quando possível, destruindo-os fisicamente. Enfim, quando aparecem figuras inusitadas como Trump, elementos adormecidos ou retraídos ganham força e aparecem sem pudor, configurando o racismo nacionalista.1 Racismo construído por séculos de opressão e violência. Dessa forma, nada disso pode ser esquecido, por atravessar a vida de milhões de afro-descendentes em todo o país. Entretanto, a formulação como o racismo se desencadeou não foi homogênea, sendo diversificada local e regionalmente, além de variada temporalmente.

Este livro, versando sobre a atual Anacostia, no Sudeste de Washington D.C., é um exemplo de tal situação. O que mais gostei é que Amos não fica teorizando sobre o racismo, mas demonstrando como ele se efetiva no contexto abordado. Porém, o seu texto se baseia em concepções que sustentam a sua narrativa. Ela situa o espaço e o tempo como categorias inseparáveis, pois nenhuma dinâmica social se realiza sem extensão geográfica e duração histórica. É visível a força do espaço nos cem anos da história de Anacostia. De acordo com McLaren, utilizando-se de vários autores, a supremacia branca e suas práticas racistas se afirmam, entre outros aspectos, através da renovação urbana e da construção de vias, que sempre vitimizaram principalmente os bairros das minorias. Enquanto isso os brancos são favorecidos amplamente por práticas institucionalizadas de racismo, com a construção de moradias e centros culturais luxuosos, ajudados na disputa da cidade por subsídios governamentais e investimento das corporações.2

A bibliografia apresenta dois tipos de segregação: uma, voluntária; a outra, compulsória. No primeiro caso, é um processo de autossegregação das elites, sendo uma prática histórica por séculos nos EUA: moradias e demais formas de uso do espaço separadas da “impureza” externa, pautadas no status, na homogeneidade racial e na segurança. Já a segregação compulsória tornou-se um componente histórico da vida dos negros nos EUA. Anos após a Reconstrução, as leis Jim Crow criaram uma base oficial para a segregação nos estados do Sul. Na realidade ela se estendeu para todo o país. Moradias e atividades sociais, culturais e de lazer foram separadas pela discriminação e estigma. Racismo e condição de classe conjugados, é o que nos mostrará Alcione Amos quanto à antiga Fazenda Barry-Hillsdale, futura Anacostia.

Pesquisador tem que trabalhar duro, mas tem que ter sorte também; foi o que aconteceu com a autora. Ela teve condições de utilizar uma multiplicidade de fontes: registros municipais, federais, militares, coleção de documentos privados e, sobretudo, a história oral e acervos de imagens. Depoimentos abarcam diversos períodos, permitindo desde a reconstrução genealógica de famílias, a localização geográfica e suas mudanças, assim como o acompanhamento dos eventos que fizeram a história da comunidade. Considero as entrevistas o material mais significativo da sua pesquisa, não foram apenas informantes, mas interlocutores de Alcione Amos. Como ela própria afirma, eles foram o impulso para iniciar a pesquisa, abarcando depoimentos compilados nos anos 1970 a 2000, realizados com septuagenários e octogenários que tinham nascido ou vivido na Fazenda Barry-Hillsdale nos fins do século XIX ou inícios do XX. O material estava contido, em especial, nos Arquivos do Museu da Comunidade de Anacostia, do Instituto Smithsonian; no Projeto de História Oral da Vizinhança; na Sociedade Histórica de Washington D.C.; nas entrevistas de Dianne Dale e nos registros do Departamento de Homens Libertos. Marcante também é a coleção de imagens do livro, com fotos que abarcam situações e personagens que fizeram a história da comunidade. O período escolhido, abarcando o primeiro século (1867-1970), é o momento em que a Fazenda Barry-Hillsdale ainda tinha uma identidade separada de Anacostia.

Vamos à etnografia densa, pautada em extensa documentação, na construção da história da comunidade. Uma história de opressão e dor, mas também de resistência, solidariedade e alegria. O livro é dividido em cinco partes, com doze capítulos. Na primeira parte, “A história do lugar”, aprendemos que a comunidade se localizava em solo fértil, com variedade de animais e um rio repleto de peixes; área que fora fruto da invasão e apropriação do território dos índios Nacotchtank. O rio mais tarde foi renomeado Anacostia, uma corruptela do nome dos antigos habitantes. Em 1802, após passar por várias mãos, foi comprada pelos irlandeses James Barry e sua esposa, sendo então construída a Fazenda Barry. James Barry morreu em 1808, falido, sendo a metade da extensão do norte da propriedade comprada por seu sobrinho, James David Barry, que construiu uma mansão no porto de Choupo. A parte do Sul, em 1852, era propriedade de Thomas Blayden, que a vendeu para o governo para a construção de um hospital psiquiátrico. Com a morte de James David Barry, em 1867, sua esposa Juliana vendeu uma ampla fazenda, com 375 acres, vizinha do Asilo dos Insanos e perto de Uniontown. Comprada por intermediários, na verdade ela pertencia à Freedom Agency, que a adquiriu para alocar os afro-americanos. A denominação Barry Farm causou desconforto aos futuros moradores, porque os Barry tinham sido proprietários de escravos. Assim, a demanda de proeminentes afro-americanos levou a Assembleia Legislativa do Distrito de Columbia a aprovar, em 1873, a mudança do nome para Hillsdale, devido às muitas colinas e vales na região. O irônico é que, aprovado oficialmente, o nome Hillsdale nunca apareceu nos mapas da região e, mesmo em nossos dias, o nome Barry Farm ainda é usado.

A parte II, “As primeiras décadas”, é composta por capítulos que mostram a formação da comunidade. Quando a Guerra Civil se aproximava do final, o Exército da União estava dentro da Virgínia, criando uma oportunidade para a fuga de afro-americanos. Primordialmente moradores da Virgínia, mas também de Maryland, quarenta a cinquenta mil negros se deslocaram para Washington D.C. a pé, em cavalos, ou carroças. Contudo, eles não tinham onde se fixar, esvanecendo-se o sonho de que estar em Washington D.C. era a forma de encontrar a liberdade. Aí apareceu o general Howard, que decidiu criar em 1867 habitações para aqueles negros, pois muitos deles já estavam estabelecidos no centro de Washington D.C. Evidentemente eram terras valorizadas, daí a necessidade de sua remoção. Após negociar com eles, foi criada uma povoação perto de Washington D.C., com 375 acres da família Barry, ao lado do ramo leste, então conhecido como Condado Washington. Uma área montanhosa e plena de riachos, dividida em 365 lotes. Homens e mulheres que agora tinham a posse de um acre de terra onde erigiam suas casas. Nascia a comunidade afro- -americana Barry-Hillsdale Farm. Os capítulos 3, 4 e 5, demonstram, em detalhes, a estruturação da comunidade: a férrea autonomia feminina; a priorização da construção de escola e igrejas; a participação no mercado de trabalho e o surgimento de associações para a defesa da comunidade, em especial diante das péssimas condições sanitárias.

Na parte III, “O novo século: sucessos e desafios”, Barry-Hillsdale aparece no despertar do novo século XX como uma comunidade bem estabelecida e florescente. Foram inauguradas mercearias e outros estabelecimentos comerciais. George Butler construiu o Butler Hall como uma residência para seus netos, que no decorrer dos anos passou por vários proprietários, sendo desde funerária até transformar-se em área de negócios e centro cultural. Outra presença marcante nos negócios foram os judeus na primeira metade do século, no ramo de mercearias. A área de entretenimentos foi bem representada, por décadas, por dois parques frequentados pelos afro- -americanos: Green Willow e Eureka. Green Willow foi adquirida em 1940 para formar a Fazenda dos Moradores de Barry, onde foram construídas casas para os trabalhadores negros envolvidos no esforço de guerra. Já o Parque Eureka, funcionando desde 1896, era um prazeroso local, porém, não era utilizado apenas pela comunidade, pois atraia para dançar nas suas festas afro-americanos de toda a cidade. Isso irritava a vizinhança branca, insatisfeita com a presença de estranhos. Os brancos fizeram várias queixas ao comissário do distrito e os negros reagiram, por meio da Associação Cívica de Hillsdale. Contudo, em 1918, a licença do parque foi revogada. Em 1926, o Governo do Distrito de Columbia comprou dois acres e meio do Parque Eureka. Construíram então o Playground da Fazenda Barry, para atender as crianças afro- -americanas. Para alguns jovens era quase uma segunda casa. O rio Anacostia era fonte de diversão, mas também de desgosto, porque alguns jovens morreriam ali afogados. O divertimento em casa era algo precioso, porém a maior e melhor fonte de entretenimento eram as igrejas. Todas tinham atividades para jovens e adultos.

O capítulo 7 anuncia que “Nem tudo ia bem”. Persistiria por décadas, a falta de infraestrutura e de serviços essenciais. Outro problema eram as periódicas e ameaçadoras enchentes. A situação se agravou com a chegada do Exército do Bônus, veteranos brancos e negros, a quem tinham sido prometidos recompensas pela participação na I Guerra Mundial. No meio da Grande Depressão, em 1932, milhares chegaram a Washington D.C. Quase vinte mil veteranos se estabeleceram em Barry-Hillsdale, em acampamentos deploráveis. Era um problema adicional aos já vivenciados pela comunidade. Foi o único momento em que houve uma convivência inter-racial na comunidade. Mas, nada disso durou, porque o Exército dos Veteranos foi expulso, a ferro e fogo, pelo General Douglas MacArthur, ainda em 1932, de toda Washington D.C. Entre 1903 a 1940, haveria a perda de terras da comunidade para o Governo, ficando assim espremidos entre duas povoações brancas: Uniontown (mais tarde chamada Anacostia), que se desenvolvera em 1854 como o primeiro subúrbio de Washington D.C., e Congress Heights, que veio se formando em 1890, adjacente ao Santa Elizabeth. Memórias de discriminação e desagradáveis conflitos com brancos residentes nas vizinhanças permaneceram vivas nas mentes dos afro-americanos.

Na parte IV, atingimos a década de 1940. Com a entrada dos EUA na II Guerra Mundial, tem início a derrocada de Barry-Hillsdale. Aconteceram grandes mudanças na comunidade. Com o New Deal, progressivamente a economia melhorou, pela geração de empregos nas mais diversas áreas, além do apoio assistencial. Um fenômeno se acoplara a esta aparente tranquilidade: com o aumento da capacidade industrial do país, houve grande migração para as cidades. Washington D.C. se tornou uma cidade superpovoada, sendo subestimada a chegada de afro-americanos. Os brancos não se preocuparam com eles, na medida em que ficassem distantes. Assim, eles foram compelidos a morar em uma área na Fazenda Barry, com a destruição de 32 casas, para que fossem construídas habitações de níveis inferiores e insalubres. Com o fim da II Grande Guerra, a comunidade entrou em uma nova fase, com o aluguel de habitações de baixo custo e casas construídas para pobres. O ultimato para a dissolução da comunidade foi a construção da estrada militar, conectando o aeródromo Bolling ao Camp Spring. Um espetáculo de terra arrasada: destruídas 99 casas, com 112 famílias, constituídas por 600 pessoas. Não foi o bastante: passaram por cima do Cemitério Macedônia, sem nenhum respeito por seu valor simbólico. A denominação do capítulo 9, anuncia o que viria para a comunidade: “Vão embora”. Antes de começar a II Guerra Mundial, a Comissão de Zoneamento do Distrito de Columbia já pretendia a inclusão de Barry-Hillsdale no planejamento da cidade. Sob esdrúxulos argumentos depreciativos, a ideia era expulsar os negros da zona central da cidade. A guerra protelou esses objetivos, mas em 1944, ele já retornava com força. De nada valeram os protestos e argumentos da comunidade. A situação era insustentável, diante da proposta de construção de unidades habitacionais multifamiliares, ao contrário de casas, com seus espaços adicionais. Para piorar a situação, a comunidade se dividiu em duas facções. Em 1946, os brancos aprovaram o Ato de Renovação do Distrito de Columbia, que afetava diretamente Barry-Hillsdale. Já existiam inclusive áreas para onde realocar os negros. A Associação de Barry, presidida por Ulysses Banks, de imediato, foi contra o plano. Foram apoiados pelo famoso arquiteto Howard Woodson, que disse ser a intenção retirar os afro- -americanos do centro, removendo-os para os guetos no sudoeste da cidade; enquanto James Mason, um jornalista, declarou ser a renovação uma reencarnação do plano nazista de remoção das populações indesejadas. O ano de 1949 foi decisivo; de um lado, Banks e Woodson, e do outro, o intransigente general Grant, que mesmo sem a aprovação dos recursos, declarou que iria prosseguir o plano de renovação. Entretanto, os seus devaneios racistas terminaram em 15 de julho de 1949, quando o Congresso aprovou o Ato da Habitação, que incluía a proibição da renovação de Marshal Heights e Barry-Hillsdale. Em 1954 e 1955, tentaram levantar novamente a bandeira da renovação urbana, mas os moradores reagiram violentamente, e as propostas não foram a lugar algum.

O capítulo 10 indica “Um prelúdio das coisas que viriam: a integração da piscina de Anacostia-1949”. Criado em 1918, oficialmente designado Parque Anacostia, onde a parte da 11th Street era para os negros, e o outro lado era para os brancos, e neste havia piscina, quadra de tênis e outros equipamentos de diversão. Em teoria, as piscinas eram públicas, não-segregadas, muito diferentes da realidade. Numa terça-feira de junho de 1949, jovens negros tentaram utilizar a piscina, e encontraram feroz resistência dos brancos, sendo a polícia obrigada a intervir. Os negros não desistiram, até que seis jovens negros, de 14 a 21 anos, foram expulsos por setecentos a oitocentos brancos. No dia 28 de junho os jovens retornaram em grande número, travando uma grande batalha contra os brancos. Foi necessário a intervenção da polícia montada para afastar os combatentes. Ambos os lados estavam armados com bastões, muitos deles cheios de pregos. A luta continuou no dia seguinte, com violentos choques entre centenas de brancos e afro-americanos. A partir daí o ódio entre os dois grupos cresceu, marcado por conflitos de pequenos grupos e individuais. A solução foi o fechamento da piscina Anacostia, durante todo o verão de 1949. Em março de 1950, o Departamento do Interior decretou que todas as seis piscinas de Washington D.C. seriam reabertas em bases não-segregadas. Foi um sucesso, devido à ausência de incidentes violentos. A presença dos brancos na piscina de Anacostia diminuiu drasticamente, sendo frequentada por 90% de afro-americanos. Enfim, a segregação continuava.

A parte V começa com uma discussão sobre a dessegregação nas escolas. O sistema de escolas segregadas de Washington D.C. foi organizado em 1862, quando o Congresso passou uma lei especificando que 10% das taxas pagas pelos afro- -americanos residentes no Distrito de Columbia e Georgetown seriam aplicadas na construção de suas escolas. O pior viria com o Ato de 1864, estabelecendo que os fundos seriam alocados baseados na percentagem de crianças de 6 a 17 anos brancas e afro-americanas presentes no censo decenal. O problema é que ninguém pensou no largo fluxo de imigrantes negros. Essas crianças não eram contadas. Por outro lado, a população branca crescia devagar ou decrescia nas escolas, enquanto a divisão dos recursos se mantinha invariável. Outra mudança significativa ocorreu em 1871, quando foi criado um conselho inter-racial para as escolas, majoritariamente branco. O resultado desastroso não demorou de se apresentar: escolas negras deterioradas, sem equipamentos e abarrotadas de alunos, enquanto o contrário ocorria nas escolas dos brancos. Lixo para uns, luxo para outros.

Inevitavelmente, começaram, antes mesmo do fim da guerra, os desafios legais contra a segregação. Era o começo de uma batalha sem limites, na Justiça e nas ruas. Gardner Bishop, dono de uma barbearia, com problemas com a escola da filha, quis resolver o problema de forma imediata. Apoiado por um grupo de pais, partiu para a desobediência civil. Deixaram as suas crianças fora da escola até que uma solução fosse encontrada. Gardner Bishop tornou-se uma expressiva liderança, criando o Grupo Consolidado de Pais que, com o apoio da Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor (NAACP), tornou-se central no esforço para a dessegregação. Desenvolveu-se uma longa batalha judicial, com a incorporação de importantes advogados, com Barry-Hillsdale entrando na Suprema Corte, em maio de 1954, com o caso Bolling versus Sharpe. Entretanto, o marco decisório seria o caso Brown versus Board of Education, que determinou o fim da segregação nas escolas. Sem entrar nos detalhes apresentados pela autora, os cidadãos brancos tentaram proibir judicialmente a decisão no Distrito de Columbia, mas foram derrotados. As crianças negras foram “amavelmente” recepcionadas, nos primeiros dias, pelas escolas dos brancos, daí necessitarem de proteção policial. Os estudantes experimentaram de diferentes perspectivas o choque da integração. Anos mais tarde, alguns diziam que os professores brancos não sabiam lidar com eles, com raras exceções. Seus colegas de classe eram na sua maioria indiferentes, como se eles não existissem, já outros demonstravam aberta discriminação. Sheila Cogan lembrava do baile de gala da graduação da High School Anacostia, realizada no ginásio de basquete. Havia uma linha no centro, separando os dançarinos brancos e os negros.

Uma vez que a dessegregação estava realizada, muitos pais brancos começavam a remover seus filhos das escolas públicas ou se mudar do Distrito de Columbia, para os subúrbios próximos ainda segregados. Após cinquenta anos da dessegregação racial, menos de 2%dos brancos estavam em escolas públicas. Assim, de forma prática, o Distrito de Columbia tinha se ressegregado, após três décadas de luta pela dessegregação.

Progressivamente, desde a década de 1940, Barry-Hillsdale estava sendo tragada por Anacostia, perdendo a sua identidade. Grupos e organizações já se denominavam anacostianos. Em meados de 1960, outra mudança significativa ocorria: a rápida mudança demográfica. Em 1966, os jornais noticiavam o alto número de brancos que tinha abandonado Anacostia e adicionava que a região era agora predominantemente afro-americana. Havia necessidade de casas para grupos de baixa renda, sendo a terra em Anacostia plena e barata. Empreendedores privados colocavam sessenta apartamentos onde antes ficava apenas uma casa. Assim, construíram 33% de casas de baixa renda, abrigando 4.600 famílias, com 23.000 membros. Enquanto os brancos saíam, os negros chegavam, gerando uma superpopulação da antiga Barry-Hillsdale.

A despeito de todos os problemas, ou talvez por causa deles, os moradores da Barry-Hillsdale Farm se organizaram sob a égide da Casa da Vizinhança do Sudeste (SHE). Em 1965, receberam subsídios para implementar a “guerra contra a pobreza”. Apesar do sucesso do programa, eles fizeram uma autocrítica e pretendiam ser vistos como “agentes da mudança social”. ASHE conseguiu, com pressão e organização, vários melhoramentos para a comunidade. Surgiram novos grupos organizados, como um de mulheres, denominado Bando de Anjos, com uma forte bandeira ativista. Os jovens criaram o “Rebeldes com uma Causa”, decerto inspirados no famoso filme de James Dean, de 1955. Eles realmente tinham uma causa: se rebelar contra o poder. Tornaram-se um modelo antipobreza e antidelinquência, empoderando os adolescentes para desenvolverem suas próprias atividades educacionais, de emprego e recreativas. Contudo, a despeito de todo o sucesso, em agosto de 1966, foram envolvidos em um incidente com a polícia, que revelou a força do racismo. Tudo começou perto do Congresso, uma sólida vizinhança branca, com os ares de uma pequena cidade sulista, sustentada por forte racismo. O bar Clube 1023, que discriminava os negros, um dia teve seus clientes atacados, janelas quebradas e a luz cortada. A polícia do distrito dispersou a multidão e fez prisões. A partir daí, começaram os protestos contra a brutalidade policial e um ataque contra o 11º Distrito Policial. Aresposta foi violenta, com a participação de cães e radiopatrulhas, resultando em dez presos e treze feridos. Os protestos continuaram, sendo o departamento forçado a substituir o chefe do 11º Distrito por dois policiais afro-americanos. Um comitê foi formado para investigar os distúrbios, o qual chegou à conclusão que os dois lados estavam errados.

Resolveram também criar um Conselho de Assessoria à Polícia do 11º Distrito, inserindo membros da comunidade, porém cometeram um erro: incluíram a canadense Mary Kidd, que tinha sido membro do primeiro grupo treinado pela SEH. Ela ficou horrorizada com as atitudes racistas dos brancos e com a postura dos policiais negros, que agiam como os brancos. O mais significativo, no entanto, foi o que Kidd encontrou nas salas do 11º Distrito, cadeiras e mesas com dizeres racistas. Um jornalista – William Raspherry – publicou uma coluna denunciando a presença de elementos os mais ofensivos: a suástica, a proclamação do Poder Branco, e dizeres como Vizinhança Comunista. Já a televisão de Anacostia fez um programa onde um policial, sem revelar sua identidade, dizia que os prisioneiros negros eram deitados no chão, eles jogavam água e depois cuspiam neles.

O verão de 1966 trouxe a Washington D.C. Stokely Carmichael, então líder do Comitê de Coordenação Não-Violenta dos Estudantes, para discutir o projeto dos direitos civis com o presidente Lyndon Johnson. Mas ele estava interessado também na questão local, advogando a substituição do superintendente do distrito escolar, Carl Hansen, um branco. Ele se reuniu em Barry com cento e cinquenta pessoas e falou do Poder Negro, um slogan usado pela primeira vez em Greenwood, Mississipi, no mês anterior, durante a “Marcha Contra o Medo em Meredith”. Ele anunciou a intenção de criar uma base para distribuir o poder negro na Fazenda Barry.

Os anos 1960, com seu ativismo, foram objeto de duas perspectivas em Barry-Hillsdale: 1) segundo Frederick Saunders, um antigo líder do SEH, foi um aparente sucesso, mas trouxe mais prejuízos que benefícios para os jovens, pois quando cessaram os programas de auxílio para os jovens, estes se voltaram para a venda de drogas, muitos terminando presos; 2) de acordo com William Raspherry, em 1967, a organização da comunidade tinha sido bem sucedida, por exercer influência nas agências estabelecidas na cidade, com significativas melhorias para a comunidade. Para a guerra contra a pobreza ser inteiramente bem-sucedida, ela requeria – o que não aconteceu – um abalo no sistema social e político.

Já Pharnal Langus, acadêmico e morador, acreditava que o sucesso da organização de Barry-Hillsdale tinha sido tão revolucionário que ameaçou a estrutura de poder. Agora o Presidente e o Congresso estavam sendo pressionados a parar de fazer concessões. No final de 1967, os jornais já noticiavam que “Os sonhos antipobreza murcharam”, o que se repetiria nas manchetes dos anos 1970. Agora, os recursos para os pobres, para os jovens negros, eram considerados indesejáveis. As drogas tinham enchido a cidade e os programas para os pobres tinham sido mortos por negligência, enquanto o país era tragado pela guerra do Vietnã e o escândalo político de Watergate. O advento da epidemia da cocaína e do crack, nas décadas de 1970 e 1980, destruiu os últimos remanescentes da coesão da histórica comunidade. A última lembrança dos tempos heroicos foi a mudança do nome da Avenida Nichols, em 1971, para Avenida Dr. Martin Luther King Jr. no dia 15 de janeiro, dia do aniversário da morte do grande líder afro-americano.

Um instigante livro, que narra uma história da luta desigual, com tristes marcas, ainda vivas nos dias de hoje.


Notas

1 Embora não literal, é o pensamento de Lévi-Strauss sobre o estranho, citado por Bauman, adaptado para os nossos propósitos. Zigmunt Bauman, O mal-estar da pós-modernidade, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1998, pp. 28-29.

2 Peter McLaren, Multiculturalismo revolucionário. Pedagogia do dissenso para o novo milênio, Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000, pp. 258-259.


Resenhista

Jeferson Bacelar – Universidade Federal da Bahia.


Referências desta Resenha

AMOS, Alcione M. Barry Farm Hillsdale in Anacostia: A Historic African Community. Charleston: History Press, 2021. Resenha de: BACELAR, Jeferson. Uma luta desigual sem fim: a história de uma comunidade afro-americana. Afro-Ásia, n. 65, p. 791-802, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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