Bastardos do Império: Família e sociedade em Mato Grosso no século XIX | Maria Adenir Peraro

A publicação de “Bastardos do Império: Família e sociedade em Mato Grosso no século XIX”, de Maria Adenir Peraro, é motivo de honra e orgulho múltiplos, quer por parte do Programa de Pós-Graduação em História, da UFPr, de cujos bancos escolares a obra é resultado de tese de Doutorado, quer para o Programa de Pós-Graduação em História, da UFMT, do qual a pesquisadora é integrante. Não bastasse isto, a obra expressa uma política editorial corajosa e encorajadora no sentido de abrigar publicações ditas “regionais”, conotação esta que tem dificultado a inserção acadêmica de temas e objetos relevantes e pertinentes e que extrapolam o caráter “local”. Particularmente, os centros de pesquisa cujo foco reside nas questões de fronteira, populações, territórios e identidades, foram os grandes beneficiados, pois a obra vem chancelar, não apenas um grandioso esforço na preservação de fontes paroquiais, mas, sobretudo, um importante patrocínio institucional à pesquisa da história da família. Neste sentido, imprescindível reconhecer o apoio da Cúria Metropolitana de Cuiabá, que facilitou o acesso ao seu acervo documental.

“Bastardos do Império: Família e sociedade em Mato Grosso no século XIX” tem uma organização dorsal sustentada na abordagem da ilegitimidade na Paróquia do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, ao longo da segunda metade do século XIX, no recorte entre 1853 e 1890, na perspectiva da esfera da vida privada. O privado assume a conotação de espaço em que as pessoas relacionavam-se, uniam-se afetivamente em resposta às contingências de viver em uma região de fronteira e de mineração. As manifestações do privado em nível de Paróquia Senhor Bom Jesus de Cuiabá têm como contraponto inicial a inserção da Capitania de Mato Grosso no contexto da colonização moderna européia e sua posição na defesa da fronteira oeste contra a invasão espanhola, e na segunda metade do século XIX, contra a invasão paraguaia. A estruturação do privado frente ao Estado Nacional brasileiro e à Igreja Católica, em uma região de fronteira, na segunda metade do século XIX, é o fio condutor do trabalho apresentado por Maria Adenir Peraro.

Mais que perscrutar o significado histórico da exclusão de homens e mulheres sem posses, insere o tema da ilegitimidade no espaço do ilícito e das transgressões e apreende traços de conjugalidade, sociabilidade e de conviviabilidade, engendrados nas relações afetivas em uma região de fronteira e itinerância. Aborda um viver, cujos traços acentuados são a instabilidade, precariedade, provisoriedade, decorrente das especificidades que marcaram a Província de Mato Grosso na condição de antemural da colônia brasileira na defesa da fronteira oeste. A obra se funda na perspectiva de apreensão das manifestações da intimidade ocorrida no âmbito do cotidiano das famílias legalmente constituídas e nas uniões extra-conjugais, espaços por excelência de nascimentos dos ilegítimos.

A obra estrutura-se em três capítulos. Num primeiro momento, sob o título de “A província de Mato Grosso: as vértebras da sociedade civil”, analisa a inserção da capitania de Mato Grosso no contexto da colonização moderna européia e sua posição na defesa da fronteira oeste. Trata do duplo sentido da itinerância dos destacamentos militares enquanto agentes do povoamento e mantenedores da segurança da província e ganha relevo focalizando os mourões da fronteira oeste. Focaliza aspectos da defesa e povoamento da capitania, mediante a montagem de um aparato administrativo, militar e eclesiástico e as implicações do recrutamento e da itinerância da população masculina adulta, culminando na redefinição de papéis entre homens e mulheres. Maria Adenir Peraro destaca que o recrutamento e o engajamento da população masculina em idade adulta não acarretava apenas problemas de ordem econômica aos cofres da província, como despesas com pagamentos e desfalque dos homens nas atividades agrícolas. Os problemas iam além e para dentro dos lares, atingindo o espaço familiar. Mães, esposas e filhos, diretamente atingidos pela ausência desses homens, eram levados a assumir funções e tarefas nos lares e nos espaços públicos, como tavernas, igrejas e no campo. Neste sentido, a situação de distanciamento cultural entre a corte e Mato Grosso e a gravidade da situação econômica da província evidenciada pela Guerra do Paraguai propicia manifestações de solidariedades no período da guerra entre a população local e os militares, procedentes de outras províncias. Do conflito bélico deriva a solução da tradicional questão da fronteira oeste e a emergência de antigos problemas que demandavam por soluções adequadas à nova conjuntura do último quartel do século: Buscar soluções que dessem conta de romper o isolamento da região CentroOeste e de rumar a economia em direção ao desenvolvimento do capitalismo. Entre os desafios estava o da implementação de uma política demográfica eficaz e vigorosa. A autora, ao examinar ainda a gradual recuperação econômica da província, aborda o movimento de recuperação demográfica como resultante, menos da chegada de estrangeiros do que de migrantes de outras províncias brasileiras e do crescimento vegetativo.

No segundo momento, ao tratar da circunscrição do objeto na Paróquia Senhor Bom Jesus de Cuiabá, o tema da ilegitimidade e os registros paroquiais imprimem forma e conteúdo à obra. A proposta de estudo dos padrões da ilegitimidade na referida paróquia cuiabana ganha novos contornos a partir do momento em que o leque das possibilidades de análise passa a comportar preocupações voltadas à inserção dos ilegítimos nas formas de organização familiar. O embasamento de fontes para a efetivação deste estudo são os livros de registro de batizados do arquivo da Cúria Metropolitana de Cuiabá. A utilização de tal acervo, inédito para a história da paróquia em questão, sugere um trabalho de crítica das fontes em relação ao estado e conteúdo dos referidos registros e à tarefa de localizar o tema da ilegitimidade no campo da produção historiográfica é dado caráter de precedência no desenvolvimento do capítulo.

A primeira parte localiza o tema da ilegitimidade no campo da produção historiográfica nacional e estrangeira e destaca vários estudos que inserem a ilegitimidade no quadro das grandes transformações pelas quais passaram as sociedades do Ocidente europeu, notadamente Edward Shorter, Lawrence Stone e Jean Louis Flandrin. O processo de secularização dessas sociedades, culmina em mudanças gradativas nas normas morais, em violação nas normas de honra das comunidades que, no entendimento de Stone, é exemplificada com o fenômeno do aumento dos filhos bastardos na sociedade inglesa do século XVIII. O fenômeno representa a desintegração social e o colapso de todas as normas de honra e ocorre basicamente entre os grupos sociais demasiadamente pobres não submetidos às mesmas repressões que recaíam sobre as classes proprietárias de terra, distanciados das idéias de defesa do patriarcalismo, da lealdade ao Estado autoritário e da extrema inibição sexual. Essas circunstâncias, devidamente contextualizadas (Inglaterra dos séculos XVI ao XVIII), revelariam para Stone, além das transformações sociais e morais, situações bem específicas dos grupos mais pauperizados, para quem a virgindade não era importante, e que tendiam a ter filhos ilegítimos, considerados os únicos bens para os pais.A perspectiva de análise de Stone contém tanto pontos de aproximação como de distanciamento em relação a outros estudos. Caroline Brettell é tomada como referência ao explicar as razões pelas quais Portugal, tanto no contexto da Europa mediterrânea, como no da Europa católica, comportava taxas de ilegitimidade anormalmente elevadas até a primeira metade do século XIX. A maciça emigração masculina, ocorrida a partir do século XVIII, teria acentuado o papel das mulheres como fonte de auxílio econômico, possibilitando sua autosuficiência e um relativo relaxamento dos costumes e da moral. Nos níveis de análise propostos por Stone e Bretell, Peraro destaca as categorias comportamento promíscuo da mulher e sub-sociedade com propensão para a bastardia. Brettell identifica esta sub-sociedade no escalão mais baixo da hierarquia socioeconômica portuguesa, que comportaria ainda criadas, jornaleiras e filhas de caseiros e destaca os laços de parentesco entre essas mulheres. Relaciona o contexto sócioeconômico e o significado da bastardia tanto à emigração masculina colada à estrutura fundiária da região, quanto ao papel da Igreja Católica local. Shorter, por sua vez, ao analisar as mudanças de comportamento e de valores no seio das famílias européias dos séculos XVIII e XIX, ressalta como fator responsável a substituição da economia tradicional moral pela economia moderna de mercado, que teria afetado mais diretamente as classes inferiores da sociedade, sendo as primeiras a realizar uma revolução sexual. Um indicador seria a constatação de um grande número de nascimentos de crianças ilegítimas na França e na Inglaterra, no período citado. Tal fenômeno estaria intimamente relacionado a um comportamento sexual diferenciado entre os jovens, principalmente entre as mulheres. Tanto Shorter, quanto Stone relacionam a liberdade de escolha de parceiros entre os despossuídos à liberação do domínio paterno, implicando menos compromisso com a família e a comunidade, bem como o rompimento com as normas tradicionais. Contudo, no entendimento de Flandrin, não se pode pensar o fenômeno da ilegitimidade sem que este seja evocado ao sistema cristão, cujo irrealismo e dureza eram minimizados pela concubinagem dos ricos, pelo celibato prolongado ou definitivo dos pobres e pela vida sexual dissoluta dos celibatários. Segundo ele, tanto na Idade Média como no século XVIII, a concubinagem podia estar presente em todos os níveis sociais, entre os miseráveis, ricos e celibatários e estava adaptada às estruturas não-igualitárias da sociedade e permitia aos bastardos sobreviver. Entre os primeiros, porque não tinham como arcar com as despesas do casamento, e entre os ricos, pela questão moral. Estes últimos, geralmente, davam ouvido aos moralistas defensores do pressuposto de que os homens deveriam criar e educar seus bastardos tão bem como os filhos legítimos. A queda da porcentagem de nascimentos ilegítimos, como produto de concubinagem, entre os séculos XVI e meados do XVIII, nos campos franceses, é explicada, em parte, como resultado da atuação da Igreja. O fato de a Igreja ter passado a impor aos sedutores o casamento com as moças seduzidas, bem como adotado a prática da excomunhão, teria levado muitos jovens sem posses a optar pelo celibato e, ou, pelo casamento tardio. Assim, tanto o aumento de nascimentos ilegítimos quanto o abandono de crianças (mais ou menos na segunda metade do século XVIII) podiam ter outras causas que não a falta de religião e a imoralidade e esse conjunto de mudanças revelaria nada mais do que uma transformação dos costumes e, ou, a cristianização dos costumes.

Em âmbito de Brasil, Maria Adenir Peraro destaca estudos sobre ilegitimidade que se constituem em propostas metodológicas concernentes à sociedade colonial e imperial, o que implica dizer que muitos deles acabam por propor uma história da população brasileira a partir de temáticas como família, criança, concubinato, bastardia, etc. Reporta-se à Maria Beatriz Nizza da Silva que trabalha com vários aspectos da vida conjugal, tais como sexualidade, procriação, rapto por sedução ou violência, concubinato, obstáculos ao casamento, etc, e contribui para o entendimento do fenômeno da ilegitimidade no Brasil colonial. Outra referência que merece destaque é Kátia de Queirós Mattoso, que ao analisar a população de Salvador no século XIX busca dar conta da dinâmica demográfica da família, ao relacionar a proporção dos nascimentos ilegítimos em relação ao total de nascimentos dentre a população livre e escrava. Maria Luíza Marcílio, por sua vez, é mencionada pelas suas pesquisas que dimensionam os níveis de bastardia e de uniões consensuais estáveis, no seio da população livre no Brasil colonial. As hipóteses levantadas por Marcílio a respeito desse fenômeno para São Paulo (1750-1850) referem-se às dificuldades da realização dos casamentos, seja em razão da exigência de vários papéis a serem apresentados pelos noivos, seja pelas taxas cobradas pela Igreja, a desproporção entre o número de homens e mulheres, ou seja, as mulheres eram mais numerosas que os homens, fator que proporcionava a mancebia. A presença dos ilegítimos pode ser entendida, ainda, como um dos componentes da sociedade escravista, onde as escravas comumente concebiam filhos de seus senhores. De Fernando Torres Londoño, Maria Adenir Peraro toma emprestada a contribuição relacionada aos aspectos morais da igreja no Brasil, pois apenas a partir do início do século XVIII a Igreja colonial passou a receber uma orientação plasmada em um corpo doutrinal e normativo, visando a implantação da catolicidade. Isto implicaria corrigir os escândalos e a negação da moral católica, existentes nos trópicos e propiciados por vários fatores: imensidão do território, isolamento dos povoados, vastidão das dioceses, condescendência e cumplicidade do clero e, por fim, a precariedade de vida da população. Dentre os escândalos destacava-se o concubinato, como decorrência da dificuldade dos laicos brasileiros em guardar a castidade e que deveria ser combatido por meio da estrutura eclesiástica: párocos, visitadores, juízes eclesiásticos e bispos. Objetivava-se, portanto, implantar o modelo católico de constituição da família, como espaço de controle da Igreja sobre a população. Em idêntica direção, Mary Del Priore, ao investigar a trajetória da mulher brasileira desde o início da colonização até o período que precedeu a independência, registra a ação da Igreja na pregação da procriação exclusiva do casamento. Por sua vez, as mães solteiras apropriavam-se com muita habilidade das leis da Igreja para resolver os problemas advindos da gravidez indesejada através de queixas às autoridades: fuga de noivo, honra perdida, etc. Independentemente da classe social a que pertencessem, essas mulheres, quando seduzidas e grávidas, almejavam estabilidade e proteção. A Igreja, segundo a autora, protegia essas mulheres, incitando-as a redimirem-se pelo exercício do papel de mãe em torno do filho ilegítimo. Esses filhos de mães solteiras eram tidos como naturais e reconhecidos como filhos de pais incógnitos. Poucas opções apresentavam-se para essas mulheres quando não viam suas súplicas serem atendidas: abandono, infanticídio, criar sozinhas seus filhos. Por outro lado, afirma Priori que a constatação de circulação de crianças entre vizinhas e comadres revelaria uma rede de solidariedade estabelecida entre as mães solteiras e a comunidade. E sobre essas mulheres a Igreja teria encontrado um espaço próprio para normatizar a população da sociedade colonial.

Também Laura de Mello e Souza chama a atenção para a existência de famílias à margem do vínculo do matrimônio, consideradas ilegais e ponto de aguçar a preocupação das autoridades mineiras do século XVIII. Uma das soluções encontradas foi impor e, ao mesmo tempo, aceitar, os casamentos mistos. Mesmo assim, afirma ela, um vasto contingente de mestiços originados de uniões ilícitas aumentava o número dos socialmente desclassificados em Minas. Ressalta, ainda, que esse contingente foi, no século XVIII, predominantemente de origem negra e mestiça, bastarda e oriunda de domicílios dirigidos por mulheres sozinhas. Para Ronaldo Vainfas, no Brasil os segmentos pobres deixavam de se casar, não por terem escolhido qualquer forma de união oposta ao sacramento católico e pelos obstáculos financeiros e, ou, burocráticos, e sim, por viverem num mundo instável e precário onde a itinerância fazia parte de suas vidas. Maria Odila Leite da Silva Dias, por sua vez, salienta a presença de mulheres sós com maridos ausentes, na população da cidade de São Paulo no século XIX. Segundo a autora, os séculos XVII e XVIII, fortemente marcados pelo processo de povoamento de arraias de mineração em Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, acentuaram a presença feminina na vida urbana em decorrência dos costumes itinerantes dos homens mineradores, comerciantes e tropeiros em direção às ditas regiões. Enfatiza Dias que o fenômeno de mulheres solteiras, chefes de família, parece peculiar à urbanização como um todo no Brasil colônia, mantendo-se vivo em São Paulo nas primeiras décadas de século XIX.

Indiscutivelmente, ao se tratar desta problemática, tende-se a avançar para os múltiplos fatores desencadeadores da ilegitimidade. Diante disso nos defrontamos com uma rede intrincada de novos elementos que acabam por revelar o quanto vasto é o universo sócio-cultural do qual os filhos ilegítimos faziam parte. Dissociá-los da estrutura da sociedade colonial e imperial brasileira, do processo de formação do Estado, da performance da população, branca, negra e índia, da influência e domínio da Igreja Católica, assim como da atuação do clero local e, por fim, da família legalmente constituída e das uniões consensuais estáveis, é não dar à questão o seu devido lugar no processo histórico.

A centralidade da obra reside, pois, em três focos. Em “A remissão do pecado”, Peraro analisa como as especificidades históricas pertinentes à região de Mato Grosso viabilizaram a reprodução da bastardia no contingente mais amplo da população, extrapolando a população escrava e instalando-se dentre a população livre, tanto pobre como da elite. A abordagem do tema da família, no âmbito da paróquia Senhor Bom Jesus de Cuiabá centra-se na apreensão de como as especificidades locais pertinentes à região de Mato Grosso teriam forjado formas de organização familiar alternativas e qual o nível de aceitação dos filhos ilegítimos por parte das famílias cuiabanas. Essa reflexão encontra sentido diante do expressivo número de crianças batizadas como naturais na referida paróquia, ou seja, 43,5% no conjunto de registros de batismos do período em estudo. A autora questiona a eficácia dos propósitos da Igreja, que apregoava a necessidade normatizadora do casamento nas relações conjugais, bem como o vigor da justiça eclesiástica na objetivação de suas práticas. Diante do elevado índice de ilegitimidade de crianças batizadas na paróquia Senhor Bom Jesus uma primeira inferência possível é a de que a população da província de Mato Grosso não diferia das demais no tocante ao cumprimento das normas impostas pela Igreja Católica. A autora questiona inúmeros estudos que têm relacionado os ilegítimos ao sistema escravista e à promiscuidade dos escravos. Mulheres negras estavam nesse sistema sujeitas a gerar tanto filhos de seus senhores, como de seus companheiros. Essa explicação, por si só, não se sustenta, pois as pesquisas demonstram que mulheres livres também geravam filhos ilegítimos.

Podemos perceber que a ilegitimidade nesta paróquia não encontra explicações tão somente na escravidão, mas na conjugação de vários fatores que acabariam por gerar no cotidiano das pessoas uma ordem menos rígida quando comparada aos padrões culturais europeus. Indiscutível negar que, na sedimentação dessa manifestação de privacidade, teve parcela de influência a superioridade numérica da população mestiça e negra, tanto no século XVIII quanto no XIX, porém, a autora não atribui exclusivamente à escravidão o fenômeno da ilegitimidade em Mato Grosso. O registro de crianças ilegítimas, filhas de livres e forros, ratifica o pressuposto de que nessa província e, em particular, na paróquia em estudo, a bastardia não era adstrita às escravas. Mais que isso, implica perceber que, entre as mulheres livres, ela não estava restrita às das camadas populares. Neste universo estavam presentes mulheres de famílias da elite. Maria Adenir Peraro constata que é possível deduzir que a movimentação de militares organizando-se para proteger Cuiabá da invasão paraguaia, além de guardar relação com a bastardia na paróquia, alterou a tendência de nascimentos de crianças ilegítimas durante o período em consideração. Conclui, portanto, que os agentes históricos nesta província de fronteira estabeleciam relações propiciadoras ao nascimento de ilegítimos.

A autora examina ainda o nível de aceitação dos filhos ilegítimos por parte das famílias cuiabanas em suas mais variadas performances. Ela nos faz pensar que o nível de aceitação dessas crianças por parte da população como um todo, era positivo. Tal hipótese não deve ser descartada se consideramos que essas crianças, apesar de não nascerem de um casamento legalizado pela Igreja Católica, poderiam conviver com seus pais e, quando não, poderiam ser criadas por suas mães. Objetiva-se uma rede de solidariedade quando do nascimento de tais crianças, de maneira que as mães pudessem contar umas com as outras. Frisa que o ato de enjeitar crianças ilegítimas era reforçado por muitas mulheres brancas, de boa estirpe, e resultava da condenação moral e familiar dos amores ilícitos. Entre as contingências de um cotidiano real e as condenações às atitudes tomadas enquanto contravenções às normas da Igreja foi tecido, segundo Peraro, um espaço de trama, resistência e estratégias voltadas a solucionar os nascimentos ilegítimos. Em muitos casos, quando as mulheres brancas viam-se impossibilitadas de assumir publicamente a bastardia, as crianças ilegítimas eram deixadas aos cuidados de parentes, vizinhos, padrinhos e, mesmo, dos clérigos. Era comum recorrer-se à cumplicidade das parteiras e das escravas mais íntimas do ambiente doméstico para que tais crianças fossem encaminhadas aos destinatários pré-estabelecidos. Uma extensa rede de parentela e vizinhança assentava práticas e estratégias de mães pobres para socializar os filhos naturais através de relações de parentesco espiritual, via compadrio. Essas relações, seladas por atitudes de solidariedade e conivência, deixaram marcas nos espaços recônditos da família e enredaram práticas em nível do privado. Sua presença corriqueira em espaços esquadrinhados pela Igreja revela, sobretudo, nuanças de uma cultura de resistência popular, enfatiza Peraro. Assim, as cifras pouco expressivas de crianças expostas podem significar que as pessoas adotavam uma postura menos de negação dessas crianças do que de aceitação. O recurso aos parentes parece ter sido uma solução comum e recorrente no cuidado do filho ilegítimo, evidenciando que a família era o espaço, em geral, escolhido para abrigar os nascidos fora do casamento formal. Os baixos percentuais de crianças expostas na paróquia Senhor Bom Jesus de Cuiabá indicam, portanto, que a prática de colocar os recém-nascidos na Roda não era utilizada na mesma intensidade como ocorria em outras regiões brasileiras, segundo nos revela a historiografia pertinente. Portanto, as mulheres não tendiam a abandonar seus recém-nascidos ilegítimos e os deixavam aos cuidados de outrem. Seria possível supor que na capital, e no caso na paróquia Senhor Bom Jesus de Cuiabá, os pais e, principalmente, as mulheres não adotavam a prática de abandonar seus recém-nascidos ilegítimos. Negar o espaço da Roda dos Expostos revela um forte indicativo de atitude de negação do espaço público de controle da vida familiar. Pode residir aí um espaço de tecitura de atitudes de resistência à intermediação da Igreja, respaldadas por práticas de solidariedade que acabam por agir como atenuantes de tensões entre o público e o privado, conclui a autora. Tanto as baixas cifras de expostos parecem confirmar tal suposição, quanto a própria referência de que a Roda não era utilizada. As relações seladas pelo compadrio são convertidas em relações de parentesco generalizado entre pares de idêntica condição, para além do casal. Acrescenta, se inserem no quadro mais amplo das redes de solidariedade e promovem a inflexão da fluidez existente entre os setores mais empobrecidos. O compadrio se converte em arena onde se define a resistência cultural da população através de um sistema de alianças e de uma moral que guardava distância da institucionalização objetivada pelo Estado e pela Igreja. Lícito, portanto, dizer que o compadrio era um dos elementos fundadores de uma solidariedade forjada no cotidiano de tais setores da população. Os pais, seja vivendo em forma de união consensual livre, seja a mãe sozinha, preferiam arcar com os custos de permanecer com os filhos em vez de colocá-los na Roda. No primeiro caso, quando da convivência permanente dos pais, os filhos poderiam, eventualmente, ser legitimados pelo pai. Os baixos percentuais de crianças expostas e a não-utilização da Roda, levam à inferência de uma acentuada sociabilidade inscrita no âmbito do privado. Os pais das crianças indesejáveis antes pareciam utilizar-se do recurso de apoiar-se nas famílias do que na Roda. Nesse sentido, igualmente as mães das crianças registradas como naturais pareciam tanto viver acompanhadas dos pais de seus filhos, como viver sozinhas com os filhos, numa indicação de formas de organização familiar alternativas.

No segundo momento, em “Errantes e aventureiros: o sentido do matrimônio e os tratos ilícitos”, Maria Adenir Peraro focaliza os tratos ilícitos como espaços em que se inseriam as uniões consensuais estáveis, em confronto com a moral da Igreja Católica, revestidos, porém, de legitimidade social. Examina o sentido do matrimônio e os tratos ilícitos, a partir de exemplos localizados em fontes paroquiais — os autos de justificação de viuvez e de casado, indicadores de que concubinato e ilegitimidade eram faces de uma só moeda. Se nos compêndios da Igreja a definição do concubinato, ainda que imprecisa, era suficientemente ampla para comportar todos os delitos da carne entre um homem e uma mulher, na prática tornou-se o espaço de múltiplas relações amorosas tomadas como tratos ilícitos. É nesse mesmo espaço que se localizam as uniões ilegítimas assentadas em práticas que, de certo modo, se revestiram de legitimidade social, ainda que sempre em confronto com a moral da Igreja. A autora nos revela que a compleição das relações livres e consensuais comportava boa parte da população e tais tratos se multiplicavam à margem do poder de controle da Igreja. Signos e emblemas de tais práticas sociais podem ser mais bem pontuados se consideradas as especificidades históricas que balizaram o processo de ocupação e de modernização do Mato Grosso. A incidência de casos de homens e mulheres da elite, unidos sem os laços do matrimônio religioso, nos mostra que o viver consensualmente na sociedade cuiabana da segunda metade do século XIX não era um estado exclusivo de pobres, fossem livres ou forros. Tais constatações levam-nos a perceber que, apesar das prédicas da Igreja Católica e de toda uma legislação que ordenava as relações conjugais, as transgressões acabavam por nuançar a sociedade mato-grossense; de outro lado, que não é verdadeiro supor que os indivíduos das baixas camadas deixassem de reconhecer a importância social do casamento. Os autos de justificação de estado de viuvez e de casado depositados no Arquivo da Cúria Metropolitana de Cuiabá, são por excelência as fontes deste capítulo. Constituem-se em uma categoria de fonte valiosa para a compreensão e reflexão de outras formas de organização familiar, que não aquela oficializada e reconhecida pela Igreja Católica, quais sejam, as uniões consensuais estáveis. Entre os tratos ilícitos, as uniões consensuais estáveis ganham dimensão nesta abordagem exatamente pelo contingenciamento da natureza e especificidade das fontes documentais, aspecto, aliás, que confere outro nível de importância à obra em apreço.

O cotidiano, nas considerações de Peraro, acabava por comportar relações conjugais que se colocavam na contramão do público, como que a confrontar as imposições da Igreja. As pregações do clero acabavam atropeladas pela dinâmica de práticas plurais amalgamadas na reincidência dos costumes e no caldo da cultura da resistência popular. Para a Igreja, dispensar os justificantes da apresentação das certidões de óbito e de batismo, além de constituir-se em ato de tolerância para com os pecaminosos, constituía-se em um esforço para distender a prática das uniões ilícitas. Estas dispensas seriam tidas como um mal menor em relação às uniões ilícitas. O conjunto de exemplos de uniões consensuais utilizados na pesquisa nos permite perceber que o casamento era um sacramento importante e almejado pelas pessoas, independentemente da classe social. Era considerado como algo necessário, tanto para as pessoas de origem simples como para aquelas que possuíam algum prestígio ou status na sociedade cuiabana. A Igreja praticamente não criava obstáculos à realização dos casamentos oriundos de relações ilícitas, muito ao contrário, muitas vezes facilitava as solicitações dos casais mediante a dispensa das certidões de batismo e de óbitos dos justificantes. Mesmo assim, segundo a autora constata, as uniões consensuais teimavam em persistir. Por alguns motivos específicos, os casais revelavam, por escrito, a união ilícita em que viviam. Entre eles estava a preocupação com a segurança da prole. A necessidade de legitimar os filhos levava os justificantes a procurarem o Juízo Eclesiástico para o alcance do matrimônio. Entre as famílias de posses, as legitimações ocorriam visando-se assegurar herança aos filhos tidos no âmbito das relações ilícitas. Mas por que a legitimação revestia-se de importância para os casais reconhecidamente pobres? No caso dos casais exemplificados no texto, através dos autos de viuvez, embora o casamento não assegurasse fortunas, não deixava de constituir-se em um instrumento que facilitava a segurança dos filhos e da esposa, em caso de morte do genitor. As fontes evidenciaram que, ainda no final do século XIX, o viver consensualmente na sociedade cuiabana abarcava práticas que se caracterizavam como relação familiar típica de setores populares. Do mesmo modo, revelaram que tal condição conjugal não lhes era peculiar ou exclusiva, mas que abrangia pessoas dos grupos médios e da própria elite. Tal constatação ratifica o pressuposto de que as transgressões, apesar da injunção da Igreja e de toda uma legislação ordenadora das relações conjugais, imprimiam contorno à sociedade cuiabana. Essas relações familiares acabavam por incorporar e reproduzir práticas que se cristalizavam no cotidiano e catalisavam certa legitimidade social.

Em Mato Grosso encontravam-se presentes tanto os fatores econômicos que impulsionavam a população de outras regiões brasileiras a migrar, quanto os obstáculos próprios de áreas em processo de povoamento, particularmente de uma região de fronteira exigia a organização de um aparato militar permanente e que desde os primórdios imprimiu marcas típicas à região. Tais atribuições contribuíram por acentuar naquela população a característica de itinerância pronunciada, em decorrência da prática do recrutamento da população masculina e revela a existência de famílias dirigidas por mulheres. Assim, a condição de fronteira e a retirada de homens do interior de suas famílias podem ter forjado uma reorganização e substituição de papéis entre homens e mulheres, bem como podem ter impresso na população características de vida maleáveis e amoldadas às circunstâncias do imprevisto e do imediato. Nesse aspecto, afirma Peraro, as condições de privacidade não podiam ser diferentes, estando sempre sujeitas aos embates do cotidiano. Na paróquia Senhor Bom Jesus de Cuiabá, os filhos ilegítimos, revelariam a manifestação de uma privacidade em que os mesmos sentimentos de isolamento e solidão, tão presentes nos primórdios da ocupação da fronteira oeste, nas populações das guarnições fortificadas, ainda se faziam sentir na segunda metade de século XIX.

Na terceira parte — “As mulheres de Jesus no universo dos ilegítimos” a autora dedica-se a examinar quem eram as mães dos filhos ilegítimos na Paróquia Senhor Bom Jesus de Cuiabá, considerando-se a condição social, práticas e ofícios por elas desenvolvidos no cotidiano. Averigua a possibilidade das mães dos ilegítimos serem reincidentes, e as estratégias por elas desenvolvidas para dar conta da prole. A autora apresenta ainda os padrões de registro de batismo encontrado nas atas referentes aos filhos legítimos, naturais ou ilegítimos, legitimados, expostos e indígenas. Do ponto de vista metodológico, na esteira do componente demográfico, discute a perspectiva que a Escola dos Annales abriu com as pesquisas demográficas, permitindo-se chegar aos sistemas demográficos europeus. Remete às propostas para o estudo das populações do passado brasileiro na tentativa de uma aproximação em relação aos padrões demográficos da paróquia do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, a partir das variáveis como: sexo, raça, estado civil, atividades produtivas dos homens brancos, negros, mestiços (pardos) e os caboclos contidas nos recenseamentos de 1872 e de 1890, relativos à província de Mato Grosso. Podemos apreender daí as possíveis estratégias utilizadas pelas mulheres para acobertar o nascimento de filhos ilegítimos e a absorção dos mesmos pela rede de parentela, assim como o reencontro com suas respectivas mães, após o casamento das mesmas na Igreja Católica. Mas talvez não fosse esse o comportamento da maior parte da população mato-grossense, no caso, das pessoas sem posses, aquelas sem um nome de família a zelar. Possivelmente, no espaço da intimidade dos homens e mulheres livres e forros, os nascimentos de crianças ilegítimas não se constituíam em razão de murmúrios, tal como parecia ocorrer entre as famílias de posses. Essa impressão é significativa diante das informações reveladas nos registros paroquiais, ou seja, a constatação de expressivas taxas de crianças ilegítimas na Paróquia Senhor Bom Jesus de Cuiabá, ao longo da segunda metade do século XIX, 1853-1890.

Além dos méritos já mencionados, a publicação da obra torna pública a importância da abertura dos arquivos paroquiais aos historiadores e revela, sobretudo, a sensibilidade do arcebispado cuiabano à organização e sistematização do acervo e à preservação da memória histórica local, elemento que vem revigorar o fôlego das pesquisas tradicionalmente tidas como regionais. Mais que isto, ratifica a afirmação de que a verdade consiste em evitar o esquecimento e que há entre todos nós um dever para com a memória.


Resenhista

Hilda Pívaro Stadniky – Professora do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá.


Referências desta Resenha

PERARO, Maria Adenir. Bastardos do Império: Família e sociedade em Mato Grosso no século XIX. São Paulo: Contexto, 2001. Resenha de: STADNIKY, Hilda Pívaro. Diálogos. Maringá, v.8, n.1, 223-235, 2004. Acessar publicação original [DR]

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