Brasil: uma biografia | Lilia Moritz Schwarcz

Brasil: uma biografia [1], obra escrita em conjunto pela historiadora Heloísa M. Starling [2] e pela antropóloga e historiadora Lilia M. Schwarcz [3], traz em si, como toda boa síntese propõe-se a fazer, um sentido outro para a história desse personagem conhecido pelo nome que vingou entre tantos outros, Brasil.

Com o auxílio de extensa bibliografia e documentos-chave para a compreensão de determinados acontecimentos e períodos que marcaram o desenrolar da história brasileira, as autoras optaram por uma narrativa na qual o Brasil aparece na categoria de personagem, dotado de interesses, vontades e dilemas. Sua história se inicia às vésperas da chegada dos europeus ao então chamado Novo Mundo, habitado pelos povos indígenas e coberto por uma exuberância tropical, até os idos de 1995, apesar das autoras concluírem com referências diretas aos governos Lula e Dilma e aos ocorridos de 2013, ano marcado por manifestações públicas em prol de maior amplitude dos direitos sociais e de uma política menos íntima da corrupção.

Em constante diálogo com o clássico Raízes do Brasil [4], publicado em 1936, de Sérgio Buarque de Hollanda, e com os conceitos que nortearam a análise do sociólogo, as escritoras trilharam caminhos percorridos pelo dito personagem que as conduziram às encruzilhadas com as quais ele se deparou. Debruçadas sobre conceitos-base em torno dos quais certas ambivalências, bem como na obra do intelectual citado acima, surgem em acontecimentos abordados no livro, relacionadas à ideia de democracia, de república, de cidadania e identidade. Por conseguinte, as autoras mostram como eles apareceram, desenvolveram-se e se relacionaram ao longo da história do Brasil e suas características mais duradouras.

A “herança rural” e o passado colonial, marcado pela mão-de-obra negra escravizada e a grande propriedade monocultora, surgem numa análise sobre os desafios e a violência enfrentados pelos e contra os negros de origem africana, trazidos à força ao longo da história brasileira em capítulos como “Toma lá dá cá: o sistema escravocrata e a naturalização da violência”. Estrutura que, após a abolição em 1888 — a última dentre os países do continente —, produziu uma situação na qual o homem negro teve sua derradeira liberdade conquistada, mas que não garantira a conquista da igualdade. À maneira que a mácula do passado escravocrata e suas reminiscências ainda impõem aos dias de hoje impasses para com o exercício da cidadania pelo povo brasileiro, que alicerça uma sociedade na qual há uma enorme desigualdade social, onde os negros e negras possuem menos oportunidades e são por vezes alijados de direitos básicos e vítimas de discriminação. O legado rural, ademais, em acordo com a análise do sociólogo paulista, seria uma das principais causas da não separação entre as esferas pública e privada; a primeira, ao contrário, seria antes uma continuidade e projeção das relações familiares constituídas ao redor do latifúndio e seus dependentes, alicerce do patrimonialismo, encontrado no seio das instituições.

Por outro lado, as autoras demonstram que, desde a Revolução da Cachaça (1660) [5] embora não seja de forma contínua, até as manifestações de junho de 2013, como apontam na conclusão — utilizando, inclusive, fotografias do período —, a história brasileira se realizou, também, a partir de consequências oriundas de deliberações, embates em torno de distintos projetos de nação, negociações e resistências, muitas vezes nas ruas, no espaço público. Como se pode observar no quinto capítulo da obra, “Revoltas, conjurações, motins e sedições no paraíso dos trópicos”, logo em seu início, as autoras deixam claro ao leitor que a história desse personagem, contada por elas, é muito distinta da história harmoniosa e amena que a versão oficial nos dispõe. Ela é marcada por resistências e desacordos que, ressalvas sejam feitas, principalmente a partir do século XVIII, com a Inconfidência Mineira (1789), apresentavam ainda no período colonial ideias republicanas. Inclusive, décadas mais tarde, em 1824, a Confederação do Equador marcaria a província de Pernambuco com uma das maiores revoltas contrárias à Monarquia que se instaurava no Brasil, com uma independência e a favor de um governo republicano. Ainda em Pernambuco, em 1832 estourava a Cabanada, que em seus quatro anos de duração reuniu diversas parcelas da população, de escravos e índios a proprietários rurais, em oposição à renúncia de D. Pedro I. Para além disso, a obra Brasil: uma biografia ressalta o extenso número de quilombos e diversas formas de resistência, até mesmo física, dos homens negros escravizados contra o sistema escravocrata e os senhores de engenho.

Ato contínuo, o oitavo e nono capítulos, a Independência em 1822 e as alternativas possíveis naquele momento: optar pela república ou pela monarquia a modelo da metrópole; o décimo primeiro, A Proclamação da República, em 1889, fruto de um golpe negociado entre a elite política e os militares; e, também, o capítulo dezessete, “No fio da navalha: ditadura, oposição e resistência”, demonstram que a história não é meramente linear e que o seu desenvolver sempre se dá diante de alternativas que podem fazer com que prossigamos ou, como em 1964, passemos por momentos de regressão, porém sempre acompanhados de resistências e embates políticos na cena pública.

A história, marcada por avanços e recuos, lentos ou rápidos, é marcada também por sincronias. A democracia e a liberdade conquistadas no século XIX e tornadas mais agudas e amplas, sobretudo a partir de 1888 e ao longo do século XX — salvo os momentos de interrupções ditatoriais —, coexistiu com a problemática da igualdade entre homens e mulheres, negros, brancos e índios. A República proclamada em 1889 — abordada no capítulo treze, “A Primeira República e o povo nas ruas”, é o momento em que a análise das escritoras lança luz mais intensa sobre a relação entre os espaços público e privado e o “homem cordial”, exposta na obra Raízes do Brasil. A então recente vida republicana brasileira enfrentou problemas causados por uma carência dos valores republicanos entre o povo brasileiro, lidou com um Estado repleto de práticas patrimonialistas e a usurpação do poder público pelo poder privado e oligárquico, frutos de um passado colonial que traçara os contornos do “homem cordial” [6]. Um país que se ornamentava com ares de modernidade, sobretudo a partir da década de 1950, nutriu em seu seio, e ainda o nutre, uma das desigualdades sociais mais preocupantes do globo, sendo os negros a parte majoritária dos pobres e carentes, num sintomático apontamento para as reminiscências da escravidão [7] . Ademais, um Estado que se diz harmonioso, hospitaleiro e pacífico continua a engendrar, ainda no século XXI, a violência contra o índio, o genocídio da juventude negra, a violência contra a mulher e a homofobia.

Outro cerne da história brasileira, pelo menos de um passado ainda recente, é o desenvolvimento da cidadania. Podemos concluir pela obra — que faz constante diálogo com o livro Cidadania no Brasil: um longo caminho, de José Murilo de Carvalho — que aquela teve difícil desabrochar. O desenvolvimento do Estado brasileiro, norteado por interesses de uma elite política patrimonialista e patriarcal, contribuiu para uma perspectiva hierárquica da sociedade, que estabelecera para o Estado uma imagem paterna de provedor diante da população. Isto, em geral, fizera com que uma relação caracterizada pela delegação de direitos entre Estado e cidadão fosse constituída. O Estado, portanto, foi visto como aquele que provém, como um pai que às vezes é bondoso, apesar de seus surtos de fúria. Dessa forma, a relação com o papel de cidadão sempre fora conflitante entre Estado e a população, pois, em momentos cruciais, o povo brasileiro assumira o papel de “cidadão ativo” — aquele que não mais delega a defesa e a prática de seus direitos —, rompendo com essa forma de “pacto político”, enquanto colocara-se no lugar de atuante no seio da luta pela defesa dos próprios direitos.

A identidade do povo brasileiro também seria um dos problemas-chave da nossa história. País cuja formação e desenvolvimento se dá com a violenta colonização portuguesa, marcada pela grande propriedade rural e pela volumosa mão-de-obra escravizada (cerca de 40% da população africana retirada à força e trazida para a América tivera como destino a América portuguesa), a partir do século XIX, com sua independência em 1822, encontra a necessidade de dar sentido à nação e elaborar uma imagem do Estado.

A identidade do povo brasileiro desdobrou-se, ao cabo, ao redor dum ponto de tensão entre o autóctone e a cultura herdada da metrópole. O que caracterizou, e as autoras estão de acordo nesse ponto, o que Sérgio Buarque de Holanda chamou de “bovarismo”. Inspirado no romance de Gustave Flaubert, Madame Bovary, publicado em 1856 [8], o sociólogo apontou essa característica no povo brasileiro que definiria essa negação do real em favor de ideias que, muitas vezes, dizem muito pouco sobre ele próprio ou não se adequam a sua realidade. As escritoras de Brasil: uma biografia, mostram como o povo brasileiro possuiu, ao longo da construção do Estado brasileiro e de sua história republicana, distintas ideias sobre sua própria feição, de tal forma que em certo momento fomos um pouco franceses, inspirados pela Art Nouveau e a Belle Époque; enquanto em outro, fomos estadunidenses, frequentamos cassinos ao ritmo de jazz. Portanto, esse “bovarismo” faria com que sempre nos reconhecêssemos no outro, desencontrados de nossa realidade mais fundamental.

Dessa forma, como a democracia, a república e a cidadania ficariam nessas encruzilhadas da nossa história? A obra sugere que apesar dos avanços em direção à amplitude e expansão dos direitos conquistados pelo povo brasileiro, tais direitos muitas vezes coexistiram com seu contraditório. Teríamos, portanto, uma história marcada por ambivalências. Em vários momentos, a população, ou partes específicas dela, ocupou as ruas em defesa daquilo que entendia como interesse comum; outras vezes, direitos já conquistados foram suprimidos e, novamente, travou-se longa luta para reconquistá-los. No caso da república, sua instauração partira de um projeto de sentido vertical, ainda, quando proclamada, porque não se tratava de uma demanda da população em geral, o que deu forma à descontinuidade entre as instituições e os valores republicanos, numa sociedade marcadamente patriarcal e patrimonialista. Além disso, um Estado que não só negava a cidadania à parcela analfabeta de sua população, mas às pessoas negras em geral.

Colocado dessa maneira, pode parecer que a democracia e as conquistas políticas no Brasil foram realizadas ao longo de um movimento retilíneo com o passar do tempo. Contudo, a história, ressaltam as escritoras, não é feita apenas de fatos cronológicos: ela é formada por movimentos que muitas vezes não só avançam numa medida exata, mas que podem recuar ou avançar em intensidades variadas, como é o caso do golpe de 1964 que suprimiu durante 21 anos os direitos políticos e civis do povo brasileiro.

As autoras buscaram, e uma leitura crítica da obra nos permite tal reflexão, mostrar como conceitos e valores democráticos, cidadãos e republicanos ainda estão em construção e precisam estar, pois, mesmo com os avanços e momentos de retrocessos, em nossa história sempre houve, podemos dizer, um outro lado da moeda. Onde mitos como o de um povo “pacífico”, “harmonioso” e “hospitaleiro” coexistiram com um índice grave de violência contra mulheres, negros e homossexuais; onde a imagem de país moderno e do futuro coexistiu com uma realidade na qual a moradia e a fome ainda estão entre os principais problemas; onde a imagem de um país urbano e desenvolvido, coexiste com vasto território rural e no qual práticas de mandonismo e trabalho compulsório persistem.

A democracia, portanto, como afirmam no capítulo dezoito do livro, não teria “ponto final” e a história e nosso presente, conclui a obra, não seria apenas termos de uma “soma” de resultado exato. São, pelo contrário, produtos de um processo conflituoso no qual alternativas distintas estiveram dispostas e pelas quais a sociedade e seus grupos deliberam e se enfrentam. A democracia é, por conseguinte, uma constante construção e assim deve o ser, de maneira que a sociedade esteja sempre apta a estabelecer diálogo com suas próprias transformações e os novos grupos que ela pode vir a engendrar. As autoras, portanto, com a obra já acabada e com os olhos voltados para os ocorridos de 2015, deixaram-nos um post scriptum, que define a conclusão da obra como um convite, convite para que o povo brasileiro ocupe mais uma vez o espaço público em defesa de seus projetos, sobretudo, democráticos e republicanos.

Notas

1. SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloísa M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

2. Heloísa Murgel Starling é professora titular do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais. Tem sido referência nos estudos sobre o pensamento republicano e democrático e a teoria política ocidentais. Coordenou o relatório da Comissão Nacional da Verdade, criada em 2012. Auxiliada pelo grupo de pesquisadores membros do Projeto República, deram parecer sobre a atuação criminosa e violenta dos militares durante a Ditatura militar (1964-1985), com base em documentação do período.

3. A professora Lilia Moritz Schwarcz é professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo. Especialista no século dezenove, a historiadora e antropóloga tem se voltado principalmente para as relações entre as raças durante o desenvolvimento da sociedade brasileira e sua ligação com o racismo e a discriminação racial ainda presentes no Brasil.

4. HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

5. Cf. SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloísa M. Brasil: uma biografia, p.129-131.

6. HOLLANDA, Sérgio Buarque de. O homem cordial. In: Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.139-162.

7. Em 2015, de acordo com o Programa das Nações Unidos para Desenvolvimento (Pnud), O Brasil estava em 75º entre 188 países, com base no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), considerando expectativa de vida, tempo de escolaridade e renda. Contudo o IDH não abarca a amplitude da desigualdade social, que aparece sobretudo entre regiões do país. Um dos itens analisados pelo índice demonstrou que a população brasileira estava em 14º lugar entre os países com pior distribuição de renda no mundo. Apesar de ocupar a oitava economia do mundo, o Brasil apresenta, inclusive, elevado índice de homicídios, destes, em 2012, sendo 67, 90% das vítimas negras. Disponíveis em: Acesso em: 18 de de dezembro de 2016.

8. FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. São Paulo: Editora Nova Cultural ltda, 2002.


Resenhista

Marcos Vinícius Gontijo Alves – Licenciado em História – UFMG. E-mail: [email protected]


Referências desta resenha

SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloísa M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. Resenha de: ALVES, Marcos Vinícius Gontijo. Temporalidades. Belo Horizonte, v.9, n.1, p.424-429, jan./abr. 2017. Acessar publicação original [DR]

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