Dandara Katheryn: a mulher de nome bonito | Anderson Cavichioli

Dandara dos Santos Imagem Arquivo pessoalBBC News
Dandara dos Santos | Imagem: Arquivo pessoal/BBC News

O céu das travestis deve ser belo como as paisagens deslumbrantes da recordação, um lugar para passar a eternidade sem se entediar. As lobas travestis biscates que morrem no inverno são acolhidas com especiais pompa e alegria, e naquele mundo paralelo recebem toda a bondade que este mundo mesquinho lhes negou.

Enquanto isso, as que permanecem por aqui, bordamos com lantejoulas nossas mortalhas de linho.

(O Parque das Irmãs Magníficas, Camila Sosa Villada, 2021, p. 177)

Quão impactante e intenso podem ser um minuto e vinte segundos? Um minuto e vinte segundos é o tempo de duração de um vídeo que foi divulgado nas mídias sociais e que reproduz atos de extrema violência cometidos através de um crime de transfobia. Este crime aconteceu no início do ano de 2017 contra a travesti Dandara Katheryn, brutalmente assassinada por um grupo de homens em Fortaleza, no estado do Ceará. Parte de seu assassinato foi gravado e divulgado.

Este caso faz parte de um fenômeno amplo, a transfobia, que transpassou a pesquisa de mestrado de Anderson Cavichioli, dando espaço, posteriormente, à publicação do livro Dandara Katheryn: a mulher de nome bonito. Esta dissertação foi defendida no ano de 2019 e foi publicada no ano de 2021 pela editora Devires.

Anderson Cavichioli, além de mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Brasília (UnB), é bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Direito Penal. Atualmente exerce a função de delegado da Polícia Civil do Distrito Federal. É um dos fundadores e atual presidente da Rede Nacional de Operadores de Segurança Pública LGBTI+ (RENOSP LGBTI+), associação composta por operadores de segurança pública atuantes em diferentes instâncias e que se identificam como LGBTI+, na busca pela defesa dos direitos humanos e enfrentamento da lgbtfobia intra e extra institucional. Também se denomina como ativista dos Direitos Humanos e pessoas LGBTI+, desenvolvendo pesquisas sobre esta temática.

A editora Devires, por sua vez, teve sua fundação datada em 16 de janeiro de 2017 e tem como proposta editorial publicar textos acadêmicos e/ou literários que abordam temáticas dos estudos das sexualidades e dos gêneros, raça, classe, entre outros marcadores sociais, levando em consideração que ainda há uma lacuna no mercado editorial no que diz respeito às produções que enfoquem os campos de estudos referentes a sujeitos que foram e são subalternizados e, de certa forma, vulnerabilizados e/ou objetificados (EDITORA DEVIRES, 2022). A editora tem como propósito a divulgação de obras e autoras/es que dialogam a partir de desconstruções e estranhamentos de estigmas e hierarquizações que, social e historicamente, cristalizaram-se em nossos contextos, além de protagonizar discussões que abarcam os estudos queer, descoloniais, transfeministas, entre outros. Por se tratar de uma editora relativamente recente, esta vem ganhando destaque nos últimos anos.

Dandara Katheryn: a mulher de nome bonito não tem a pretensão de reviver a morte, nem a vida, de Dandara, o que poderia reproduzir toda a violência experienciada, mas produzir reflexões sobre as políticas de produção de morte em larga escala existentes em nossos contextos, e nomeá-las a partir de diferentes aspectos. Mortes essas que acontecem com quem ousa afrontar as normativas de gênero e de sexualidade. Morte de quem ousa afrontar os binarismos estabelecidos. Morte de uma parcela da população que serve como alvo. Morte de sonhos. Morte simbólica. Morte física.

A jornalista e professora Débora Diniz, responsável por orientar a dissertação da qual resultou em livro, ressalta no prefácio que o volume deve, preferencialmente, ser lido todo de uma vez, “para que a dor se arrebate em indignação de uma só vez” (DINIZ, 2021, p. 10). Concordo com Débora, penso que livros intensos como este devem ser acompanhados de mergulhos de cabeça.

O mergulho que Anderson Cavichioli nos propõe é composto por 37 breves capítulos, além de prefácio, prólogo, posfácio e referências bibliográficas, que são distribuídos ao longo de 199 páginas.

Os capítulos são sintetizados em poucas páginas, entre duas e três, mesclando reflexões teóricas e movimentações ocorridas durante a realização do mestrado do autor, que consistiram em, ora acompanhar os desdobramentos do assassinato de Dandara, ora se debruçar em alguns aspectos das vivências dela, a partir de memórias relatadas por algumas pessoas de seu convívio, como familiares e amigos.

Anderson entrelaça a teoria e a prática, a escrita e a vivência, de maneira consistente. A obra foi embasada nas contribuições teóricas de autores e autoras como: Judith Butler, Virgínia Vergueiro, Achille Mbembe, Michel Foucault, Paul B. Preciado etc. As análises realizadas se pautaram, principalmente, nas perspectivas dos estudos queer, levando em consideração que, assim como nesses estudos, a intenção do autor foi a de abrir discussões e provocar tensionamentos em relação às lógicas sociais que são pautadas no ideal de uma cisheteronormatividade, ideal esse que acaba por desumanizar quem está afastado da matriz cisheterossexual. Como o próprio autor salienta, Dandara foi uma das tantas vítimas desse afastamento. Foi desumanizada por não pertencer à matriz cisheterossexual.

O autor ressalta que há um conjunto de saberes-poderes, que se transfiguram em códigos morais, que perpassam os nossos contextos e desumanizam olhares. Esses saberes-poderes colonizam corpos, vidas, sujeitos… e os hierarquizam. O corpo de Dandara se configurava como um daqueles que são condizem com o topo, e nem com os primeiros degraus, dessa hierarquia, portanto foi desumanizado, tornando-se abjeto.

Cavichioli nos chama a atenção sobre quão desafiante é falar sobre corpos dissidentes sem que haja essa hierarquização e desumanização. O autor também atenta para o fato de que, por não ser uma pessoa transgênero, ele aborda tais assuntos, mas sem tomar um protagonismo, havendo, segundo ele, uma responsabilidade e um dever ético em se discutir essas temáticas, abrindo possibilidades de diálogos. É nessa abertura de diálogos que se encontra, de fato, a necessidade de se avolumar obras como esta.

Dandara foi uma vítima da política de produção de morte. Perante a lei, ela nunca existiu. Nunca teve seu nome retificado. Nunca foi nomeada pelo nome que escolheu para si. Foi enterrada com um nome masculino.

No livro, Dandara é a única pessoa nomeada. No livro, ela existe. Ela existiu. “Nomear é fazer existir” (Anderson CAVICHIOLI, 2021, p. 72). O autor enfatiza que

Nomear Dandara é um ato de responsabilidade, uma forma de reconhecer sua existência como alguém cujos direitos foram violados, como tardiamente admitiram os sistemas de justiça nacional e internacional. Sua história exige o testemunho de seu extermínio. Nomeá-la é forçar a reconhecer seu rosto, identificá-la como a travesti assassinada à luz do dia, abandonada à decisão de vida ou morte sobre sua vida precarizada e destituída de humanização (CAVICHIOLI, 2021, p. 45).

Também compreendo como um ato de responsabilidade a abrangência de espaços para que as temáticas das formas de vida consideradas dissidentes sejam cada vez mais discutidas, levadas em consideração, nomeadas… havendo possibilidades para que esses sujeitos dissidentes sejam os escritores de suas próprias histórias, sejam os produtores de suas resistências e de suas existências.

O autor realiza uma denúncia sobre a precarização de dados sobre violência lgbtfóbica no Brasil, sobre os retrocessos advindos de um governo conservador e sobre as restrições de políticas públicas voltadas à comunidade LGBTQIA+ em um país permeado por violências estruturais. Infelizmente, ao falar sobre histórias de travestis, quase sempre haverá o atravessamento de histórias de morte. Falar de morte é, antes de tudo, muito complexo. Pensar as causas e os efeitos de mortes que abrangem casos que não são isolados, envoltos por nuances que vão além de análises individuais. Anderson Cavichioli, ao falar sobre Dandara, além de reconhecê-la em sua individualidade, repercute sobre todo um fenômeno de violência transfóbica estrutural. Apesar de ser um assunto que causa incômodo, que rasga o peito… Anderson trata desse assunto com muito cuidado, respeitando a história de Dandara e de tantas outras travestis de corpo e de alma assassinadas.

Anderson descreveu Dandara como um exemplo de possibilidade de desestabilização dos espaços de poder, pois, ao reivindicar-se mulher, desviava dos binarismos de gênero de nossa sociedade, se distanciava das normativas. Lutava por seu nome. São nessas possibilidades de vivências diversas que circulam as resistências. Nas páginas finais, ele enfatiza que é necessário lutar pelas vidas e resistir.

A obra em questão, ao debater assuntos relacionados a um caso específico, sinaliza denúncias às incalculáveis violências enfrentadas por sujeitos dissidentes de sexualidade e de gênero, exemplificando o horror que pode estar atravessado às normativas, gerando uma política de morte em relação a estas vidas preteridas através de um fenômeno estrutural que ocorre de maneira ampliada, a transfobia.

Portanto, traz contribuições no que diz respeito ao campo dos estudos de gênero e das sexualidades, contribuindo para a ampliação, de uma forma crítica e ética, da literatura que vem se avolumando nos últimos anos acerca das transexualidades e das travestilidades. No livro, o autor aborda a temática das transexualidades e travestilidades sem as patologizá-las e sem incluí-las a padrões que fogem à concepção de normalidade. Além do mais, Cavichioli se propõe realizar discussões interseccionais que perpassam perspectivas de gênero, classe, sexualidade, religiosidade e raça ilustradas em um contexto do Brasil contemporâneo, embasando sua narrativa com autoras e autores que se dispõem a tratar de temáticas voltadas à contemporaneidade.

Referências

CAVICHIOLI, Anderson. Dandara Katheryn: a mulher de nome bonito Salvador: Devires, 2021.

Diniz, Débora. “Prefácio”. CAVICHIOLI, Anderson. Dandara Katheryn: a mulher de nome bonito Salvador: Devires, 2021. p. 09-10.

EDITORA DEVIRES. Salvador, 2022. Disponível em Disponível em https://editoradevires.com.br/ Acesso em 10/05/2022.
» https://editoradevires.com.br/

SOSA VILLADA, Camila. O parque das irmãs magníficas São Paulo: Planeta, 2021.


Resenhista

Daniela Cecilia Grisoski – Psicóloga pela Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná (UNICENTRO), possui Mestrado em Psicologia pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e atualmente é doutoranda em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mails: [email protected]; [email protected]  https://orcid.org/0000-0003-3848-5704


Referências desta Resenha

CAVICHIOLI, Anderson. Dandara Katheryn: a mulher de nome bonito. Salvador: Devires, 2021. Resenha de: GRISOSKI, Daniela Cecilia. Notas sobre Dandara Katheryn por Anderson Cavichioli. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, v. 30, n. 3, e87542, 2022.  Acessar publicação original [DR]

Joãosinho da Goméia | Inês Gouveia, Andrea Mendes, Nielson Bezerra e Marlúcia Santos de Souza

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Joãosinho da Goméia | Imagem: Brasil de Fato

O livro Joãosinho da Goméia é obra organizada sob o olhar de quatro pesquisadoras/es. Trata-se de uma coletânea voltada à memória, à palavra e à honra de um dos mais importantes nomes do Candomblé brasileiro: Joãosinho da Goméia. Babalorixá baiano do século XX, João Alves Torres Filho (seu nome de batismo) deixou um legado de conhecimentos afrodiaspóricos e lutas em prol do povo negro e para os saberes de uma religião que extrapola os limites impostos pelo pensamento opressor da colonialidade. Os quatro organizadores da obra – Inês Gouveia, Andrea Mendes, Nielson Bezerra e Marlúcia Santos de Souza –, especialistas nas áreas de Museologia, Patrimônio e História, se dedicam aos estudos sobre a África e suas influências no Brasil, observando como as implicações da africanidade são vistas, ressignificadas e vividas por nós brasileiros no cotidiano.

Joaosinho da Gomea LivroO livro é organizado em doze capítulos na forma de artigos escritos por pesquisadoras e pesquisadores que se debruçaram sobre a vida de Joãosinho da Goméia, observando a densa atmosfera cultural e religiosa negra que esta figura impôs à visibilidade do Candomblé no Brasil. Estes capítulos são divididos em duas partes. A primeira, intitulada “Memória e Representatividade”, abarca os seis primeiros capítulos e atrai o leitor para um plano imersivo na vida e na pessoa de Joãosinho da Goméia, evidenciando um homem negro envolvido com a causa cultural de seu povo e de seu tempo, conquistador dos espaços de luta e poder em prol de uma visão positiva de sua crença e suas práticas sociais e religiosas. Autoras e autores evidenciam um sacerdote que atuava nas múltiplas representatividades: homem negro, homoafetivo, artista e Babalorixá. É possível observar que qualquer tentativa de compreender Joãosinho da Goméia sem se atentar a estes marcadores será em vão, pois em todas as suas ações de vida enaltecia os valores e as lutas que a ideologia dominante cristã e heteronormativa ao seu redor repudiava, e por isso se tornara um ícone da luta e resistência subalterna de sua época. Leia Mais

Uma história feita por mãos negras | Beatriz Nascimento, organizado por Alex Ratts

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Beatriz Nascimento | Imagem: AdUFRJ

Nascida em Aracaju (SE), Maria Beatriz Nascimento (1942-1995)[1] produziu reflexões diversas e dispersas em artigos, entrevistas, roteiros cinematográficos sobre a história do negro no Brasil, ganhando visibilidade no debate historiográfico no país, nos últimos anos, por conta da publicação de seus textos em livros (Ratts, 2006; 2021), reveladores da atualidade de suas ideias sobre as relações raciais e de gênero. Graduada em História, em 1971, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ela contribuiu, decisivamente, para a rearticulação do movimento negro no Rio de Janeiro, seja “participando das reuniões no Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA), situado na Universidade Cândido Mendes (UCAM)”, seja criando coletivos como o Grupo de Estudos André Rebouças (GTAR), na Universidade Federal Fluminense (UFF). Ela cursou especialização em História do Brasil, na Universidade Federal Fluminense, ingressando no Mestrado Acadêmico, sem concluí-lo (Pinn; Reis, 2021, p. 3). Em 1995, o curso de Mestrado na Escola de Comunicação, na UFRJ, sob a orientação de Muniz Sodré, foi interrompido, abruptamente, por sua morte prematura. Grande parte dessa experiência de vida e trajetória acadêmica está no livro Uma história feita por mãos negras, organizado por Alex Ratts, e lançado em 2021.

Beatriz Nascimento Uma historiaA recuperação de suas ideias está vinculada à emergência das perspectivas decoloniais dos estudos de gênero e de raça no contexto da presença de governos de centro-esquerda no Brasil, entre 2003-2016, haja vista que os atuais “estudos sobre escravidão, o movimento social e operário, o tempo presente, a memória, a história da historiografia, dentre outras”, estão em conexão, consciente ou não, com as “pautas que emergiram da luta pela redemocratização no país, desde a década de 1970” (Pereira, 2022, p.31). Leia Mais

Jesus de Nazaré. O Que a História tem a dizer sobre Ele | André Leonardo Chevitarese

Este texto analisa a mais recente publicação da autoria do professor Dr. André Leonardo Chevitarese, intitulada: “Jesus de Nazaré, o que a história tem a dizer sobre ele”. O livro, com aproximadamente cento e dez páginas, busca fazer uma síntese sobre a personagem que fundou a sociedade ocidental: Jesus de Nazaré.

O livro é dividido na seguinte sequência: a “Apresentação”, escrita pelo filósofo e professor Dr. Gabrielle Cornelli, a “Introdução”, redigida pelo próprio professor Chevitarese, na qual sinaliza a distribuição da obra em seis capítulos bem estruturados, a saber, “I – Uma Outra Narrativa de Nascimento”, “II – Uma Vida em Nazaré”, “III – Um Caminho sem Volta”, “IV – O Reino de Deus Instaurado em Cafarnaum”, “V – O Ensino e a Performance de Jesus”, e “VI – A Crucificação de Jesus”. Além disso, há quatro apêndices que ajudam na compreensão do leitor menos familiarizado com a temática. Leia Mais

De metalúrgico a presidente: o Brasil visto a partir da biografia de Lula | John D. French

John D. French Imagem Brasil Popular
John D. French | Imagem: Brasil Popular

Em um momento no qual a construção de perspectivas sobre a história e o destino do Brasil voltam-se novamente para Luiz Inácio Lula da Silva, conhecido como Lula1, representações sobre a vida do ex-presidente trazem questionamentos acerca de sua incessante capacidade de mobilizar afetos e disputas interpretativas. Neste contexto, sua trajetória pública e privada remanesce atual e relevante para a compreensão dos impasses do presente e o que se pode esperar do futuro. Esse é o desafio assumido pelo último livro do brasilianista John D. French, que traz uma abordagem surpreendentemente dinâmica para a biografia: Lula and His Politics of Cunning, publicado em outubro de 2020.

O autor é professor de História na Duke University, com atuação também nas áreas de estudos internacionais comparados, africanos e afro-americanos. Com uma vasta e produtiva carreira, French coordena, nos últimos anos, o Duke Brazil Initiative, tendo sido diretor do Latin American Center, também em Duke, e coeditor da Hispanic American Historical Review por cinco anos. Leia Mais

Ismail Xavier: um pensador do cinema brasileiro | Fatimarlei Lunardelli, Humberto Pereira da Silva e Ivonete Pinto

Ismail Xavier Imagem Folha UOL
Ismail Xavier | Imagem: Folha – UOL

Se vocês, pesquisadores e pesquisadoras, dedicam-se a estudar o cinema brasileiro, em algum momento deverão tropeçar, ou mergulhar, se já não o fizeram, em algum escrito do Prof. Dr. Ismail Xavier.

Xavier tem uma produção profícua, com impacto nacional e internacional. Ele ingressou na Universidade de São Paulo (USP) em 1965, graduou-se em Comunicação Social, com habilitação em Cinema, na Escola de Comunicações e Artes (ECA) (1970), e em Engenharia Mecânica, na Escola Politécnica (Poli-USP) (1970). Foi orientado, em seu mestrado em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada), na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP pelo Prof. Dr. Paulo Emílio Salles Gomes, concluindo-o em 1975. Doutorou-se (1980) em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela FFLCH- -USP, sob a orientação do Prof. Dr. Antonio Candido Mello e Souza. Doutorou-se (1982), também, em Cinema Studies – New York University (NYU) (1982), com orientação da Phd. Annette Michelson. Atualmente, é professor emérito da ECA-USP. Leia Mais

Ney Matogrosso… Para Além do Bustiê: Performances da Contraviolência na Obra Bandido (1976-1977) | Robson Pereira da Silva

Ney Mato Grosso. Detalhe de capa do disco Bandido 1976. Imagem BR320
Ney Mato Grosso. Detalhe de capa do disco “Bandido” (1976). Imagem: BR320

 “[…] O personagem é um determinante da ação, que é, portanto, um resultado de sua existência e da forma como ela se apresenta. O personagem é o ser humano (ou um ser humanizado, antropomorfizado) recriado da cena por um artista-autor, e por um artista-ator.” (PALLOTTINI, 1989, p. 11)

O processo de analisar uma obra artística é complexo, e se tratando da Música Popular Brasileira (MPB) não é diferente. Ao fazê-lo é comum atentar-se mais a letra, aspecto logocentrico da canção, mas além da parte do texto é preciso nos atentar também aos intérpretes, pois eles não podem ser resumidos somente a quem dá voz a composição, por esses a relação logos e melos é corporificada. Tendo isso em mente, é importante nos questionar: Qual o lugar do intérprete na Música Popular Brasileira?

Em vista disso, o historiador Robson Pereira da Silva busca compreender como a historiografia tem olhado para os intérpretes da MPB, em especial Ney Matogrosso, no livro Ney Matogrosso… para além do bustiê: performances da contraviolência na obra Bandido (1976 – 1977), de 2020, lançado pela Editora Appris, fruto de sua dissertação de mestrado. Leia Mais

Eric Hobsbawm: uma vida na história | Richard J. Evans

Richard Evans Foto Philipp Ebellin

Richard Evans Foto Philipp Ebellin

Alguns sobrenomes possuem uma grafia difícil de ser executada corretamente, sendo esse o caso de “Hobsbaum”, geralmente escrito com “u”, que designa o historiador Eric John Ernest Hobsbawm, inglês nascido na cidade de Alexandria em 1917, filho de pai britânico e mãe austríaca, ambos judeus. Contudo, a versão de Eric Hobsbawm – que, durante seu registro, teve, erroneamente, o “w” colocado ao invés do “u” – dificilmente será esquecida graças às obras que ele assina e à biografia em que ele mesmo se apresenta como título. Referimo-nos à obra Eric Hobsbawm: uma vida na história, escrita por Richard Evans e lançada, no Brasil, em 2021.

Eric Hobsbawm uma vida na historiaEvans é especialista em história europeia dos séculos XIX e XX, com foco nos estudos sobre a Alemanha nazista. Foi professor da Universidade de Cambridge e autor de diversos livros, com destaque para a trilogia O Terceiro Reich. Em sua obra mais recente, Evans traz a trajetória de uma figura cosmopolita desde suas origens, alguém que conheceu e foi conhecido em todos os continentes. Não se trata de uma biografia produzida para responder um problema, tampouco de um texto que procura engrandecer ou detratar a imagem do biografado. O objetivo do livro é situar a vida de Hobsbawm e sua atuação como historiador no contexto do século XX; trata-se de apresentá-lo ao mundo do século XXI através de suas “próprias palavras” (p.10). Leia Mais

Malinos, zuadentos, andejos e sibites: o Aribé nos anos 70 e 80 | Teresa Cristina Cerqueira da Graça

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Andrea Moura e Tereza Cristina Cerqueira da Graça | Imagem: Pra Você Saber

Alguns personagens malignos, barulhentos, errantes, atrevidos e habitantes do bairro Siqueira Campos, na cidade de Aracaju (SE) são o objeto do novo livro de Tereza Cristina Cerqueira da Graça. Essa é a mensagem, traduzida em português culto, que o pitoresco título quer transmitir. Trata-se de uma memória de pessoas para registro da memória de uma pessoa, que é Teresa Cristina Cerqueira da Graça, historiadora da cultura, “malina”, “zuadenta”, “andeja”, “sibite” e moradora do bairro Aribé (oficialmente, Siqueira Campos), durante dois terços de sua vida.

Malinos zuadentosÉ livro desafiador para os nossos tempos acelerados. Quinhentas e três páginas. Uma semana de leitura para quem dedica um turno diário. Lourival Santana foi feliz em seu prefácio. Escreveu pouco, usou convenções – “relato de memórias”, “acurada pesquisa histórica” sobre o “cotidiano de Aracaju”, baseado “em fontes primárias”, escrito em “estilo simples”, que incorporou o depoimento de “quase 120 pessoas”, “trouxe de volta objeto brincadeiras, lugares, cenários e pessoas”, vai “encher os olhos e a alma da geração da época” e despertar a “curiosidade dos jovens do presente”. Leia Mais

Escritos perdidos/vida e obra de um imigrante insurgente – Johann Georg Klein (1822-1915) | João Biehl, Miquéias Mügge

Um manuscrito torna-se o ponto de partida de uma pesquisa minuciosa feita pelos historiadores João Biehl e Miquéias Mügge, em livro intitulado “Escritos perdidos”, que narra a vida e a obra de um imigrante germânico chamado Johann Georg Klein (1822-1915). O livro é dividido em quatro capítulos, com um prólogo e um epílogo. No prólogo, os autores narram como chegaram até o manuscrito de Johann Georg Klein – intitulado Vom Katechismus, perdido por mais de um século e que estava de posse dos descendentes do historiador Leopoldo Petry. Nas páginas finais do livro, um conjunto de cartas escritas pelo personagem e por ele redigidas em nome da líder Mucker Jacobina Mentz Maurer e de sua irmã Carolina Mentz. A obra ainda é repleta de mapas, fotografias, litografias, reprodução de cartas, trazendo qualidade e informação ao texto muito bem construído. Leia Mais

Un argentino de ley. El Dr. Norberto Piñero (1857-1938) | Pablo Santiago Facundo Piñero

“Un argentino de ley. El Dr. Norberto Piñero (1857-1938)”, publicado por CBediciones (Rosario, 2022), podría ser considerado una biografía acerca del multifacético personaje del título. Su autor, Pablo Santiago Facundo Piñero, no denomina al texto de ese modo. Su contratapa lo presenta como un “ensayo”. Su prologuista, como un “trabajo de anamnesis”. Leia Mais

Francisco J. Múgica. El presidente que no tuvimos | AnnaRibera Carbó

En 1999 se publicó la primera edición de esta obra de Anna Ribera Carbó, con el título La patria ha podido ser flor: Francisco J. Múgica, una biografía política, edición realizada por el Instituto Nacional de Antropología e Historia. La nueva edición, de 2019, ha cambiado de denominación, que resulta muy sugerente por su subtítulo: El presidente que no tuvimos. Aunque para el eventual lector este subtítulo podría funcionar de manera ambivalente al toparse de entrada con el libro en los estantes de las librerías: generarle una dimensión limitada del propio personaje, pues se afirma contundentemente que fue un presidente que no tuvo la nación mexicana. O incentivar, de inicio, la lectura para comprender el proceso histórico, y conjuntamente su interpretación y análisis, acerca de los acontecimientos coyunturales y las razones de Estado que impidieron la entronización de Múgica en la presidencia de la República.

La estructura formal de la nueva publicación contiene, después de los agradecimientos y la introducción, diez partes o capítulos que pretenden seguir en orden cronológico, y a grandes rasgos, la historia vital del revolucionario michoacano. A saber: I. La cuna de la libertad. II. El viento rudo de la Revolución. III. La Revolución al Congreso. IV. La patria ha podido ser flor. V. Selva y petróleo. VI. El exilio en el mar. VII. El ejercicio del poder. VIII. La sucesión presidencial. IX. Otra vez el Pacífico. X. Las últimas batallas. Incluye epílogo y bibliografía. Leia Mais

Estilo Avatar: Nestor Macedo e o populismo no meio afro-brasileiro | Petrônio Domingues

Petronio Domingues
Petrônio Domingues | Foto: INFONET/Acervo pessoal

Em 2019, o livro Irmã outsider, da feminista negra estadunidense Audre Lorde (1934-1992), foi publicado no Brasil. Reunindo escritos das décadas de 1970 e 1980, a obra é, segundo Cheryl Clark (1947-), seu “trabalho em prosa mais importante”[1]. Um dos textos mais avassaladores da obra é Aprendendo com os anos 1960.  Bem, mas o leitor ou a leitora poderá estar se perguntando se este texto não é uma resenha sobre o livro do historiador brasileiro Petrônio Domingues – docente da Universidade Federal de Sergipe (UFS) –, Estilo Avatar. Sim, exatamente.

A leitura desta obra fez-me refletir sobre o conceito de militância presente no texto supracitado de Audre Lorde. Como mulher negra, lésbica, poeta e escritora, ela defendeu que a militância é, entre outras coisas, “trabalhar ativamente pela mudança, às vezes sem nenhuma garantia de que ela esteja a caminho. Significa fazer o trabalho tedioso e nada romântico, ainda que necessário, de formar alianças relevantes, significa reconhecer quais alianças são possíveis e quais não são”[2].

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Marie-Esther Robichaud. Une éducatrice acadienne et son temps/ 1929– 1964 | Nicolas Landry

NIcolas Landry Imagem Acadie Nouvelle
NIcolas Landry | Imagem: Acadie Nouvelle

Parmi les richesses des archives du campus de l’Université de Moncton, campus de Shippagan, on retrouve un fonds très intéressant sur l’état du système scolaire francophone dans le monde acadien au Nouveau-Brunswick au milieu du siècle dernier, c’est-à-dire de 1929 à 1964 environ. En effet, ces documents, surtout des lettres et des rapports, recèlent des informations importantes sur la formation du corps enseignant au primaire et au secondaire. De plus, les documents témoignent de l’évolution du système scolaire, des heurs et des malheurs des maîtres tant dans les petites écoles que dans les écoles secondaires et les collèges. Ces précieux documents sont signés par Marie-Esther Robichaud, enseignante, puis directrice d’école et ultimement, assistante du surintendant des écoles dans le comté de Gloucester dans le nord-est du Nouveau-Brunswick. L’historien, Nicolas Landry, a exploré ce fonds d’archives. Il nous en livre une solide description.

Landry témoigne tout autant des grands progrès qu’il a fallu accomplir pour amener une certaine uniformité à la fois dans le contenu des matières enseignées et dans la formation du personnel enseignant que des succès qui viendront couronner les efforts de Marie-Esther Robichaud et des nombreux problèmes auxquels elle aura su apporter des solutions. Ces informations nous sont présentées en sept chapitres. Leia Mais

Jesús Yoldi Bereau: un universitario al servicio del bien común | Pedro Luis Mateo Alarcón, Carmen Muñoz Morente e Rogue Hidalgo Álvarez

a la derecha el profesor Jesus Yoldi
Fotografía tomada en el Jardín Botánico de la Universidad de Granada, muy probablemente en 1928. A la izquierda, el profesor Gonzalo Gallas y a la derecha, el profesor Jesús Yoldi. En el centro, Pieter Zeeman y su esposa. El segundo por la izquiera es el profesor Juan Antonio Tercedor Díaz, decano de la Facultad de Ciencias | Imagem: Blogsaverroes

El libro que reseñamos está estructurado en cinco partes fundamentales, además de una presentación, un prólogo y una introducción. Pero no se busque un capítulo de conclusiones; tal vez los autores han preferido que sea el lector quien las saque tras su lectura. En realidad, el libro es mucho más que la biografía del que fuera catedrático de Química General de la Universidad de Granada desde 1924 hasta 1936. Es un análisis de las condiciones históricas que llevaron a la ciencia española desde el centro, Universidad Central de Madrid, hacia la periferia; de las transformaciones sociales y económicas que vivió la sociedad española durante las tres primeras décadas del siglo XX, de su reflejo en una universidad periférica como era la Universidad de Granada; del cambio de mentalidad que se operó en la élite intelectual española desde la pérdida de las últimas posesiones coloniales en 1898, y de la toma de conciencia de la pobreza generalizada en que vivía la mayoría de la población.

Como en una sucesión infinita de elementos van apareciendo las diferentes “cuestiones”. La cuestión universitaria, que reivindicaba la autonomía frente al Gobierno de turno para distanciarse de sus cíclicas crisis políticas, la cuestión social, con la aparición de una nueva clase social, el proletariado; la cuestión militar y la situación en Marruecos, que ponía de manifiesto todas las corruptelas del régimen oligárquico; la cuestión religiosa, que en sus múltiples formas subordinaba al Estado Español ante el Estado Vaticano; y la cuestión regional, dado que las élites y el Estado, a los ojos de los autores, obviaban que dentro de España había gentes que pensaban en cuatro lenguas diferentes y que la castellanización, y, por tanto, lo que consideran la “nacionalización”, habrían sido incompletas. Este era el mundo en que se crió Jesús Yoldi Bereau después de nacer en Arizkun, una pequeña aldea del Valle del Baztán, donde además existía un barrio, Bozate, habitado por los agotes, una minoria social marginada por razones que todavía hoy se continuan investigando. Yoldi abandonó pronto su pueblo para estudiar el Bachillerato en el Instituto General y Técnico de Zaragoza y la licenciatura en Ciencias Químicas en la universidad de la ciudad aragonesa, obteniendo el premio extraordinario en 1915, doctorándose por la Universidad Central de Madrid dos años después.

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Alberto Flores Galindo. Utopía, historia y revolución | Carlos Aguirre e Charles Walker

Alberto Flores Galindo Foto Silvia Beatriz Suarez Moncada

Alberto Flores Galindo | Foto: Silvia Beatriz Suárez Moncada

Las últimas décadas del siglo XX fueron testigos del ocaso de los «intelectuales públicos», los cuales fueron desplazados paulatinamente por los «técnicos». Estos últimos tienden a proclamar que sus propuestas están basadas en las evidencias, aunque en la mayoría de ocasiones ocultan sus posturas políticas e ideológicas detrás de una «estadística» basada en sesgos de selección. Al mismo tiempo, las direcciones de las universidades han seleccionados cuáles son los géneros o el tipo de publicación válida para la carrera de los investigadores al priorizar los artículos de revistas académicas especializadas, que no suelen ser consultadas fuera de un campo específico del conocimiento. Esta situación ha traído como consecuencia una paradoja: a pesar que la información en la actualidad puede difundirse a una mayor velocidad y llegar a un espectro más amplio de la población, los nuevos conocimientos y los debates en las ciencias sociales y las humanidades demoran más en estar al alcance de un público amplio y toman aún más tiempo en llegar a los textos escolares. Una de las posibles consecuencias de este doble proceso, el reemplazo del «intelectual» por el «técnico» y la separación entre el investigador y una audiencia amplia, es el deterioro del debate sobre los asuntos públicos. Por ello, resulta interesante leer la compilación de ensayos que hacen Carlos Aguirre y Charles Walker sobre uno de los intelectuales públicos peruanos más importantes: Alberto Flores Galindo. Leia Mais

Uma história feita por mãos negras: relações raciais, quilombos e movimentos | Beatriz Nascimento

Beatriz Nascimento Imagem Carta Capital
Beatriz Nascimento | Imagem: Carta Capital

Uma história feita por mãos negras: relações raciais, quilombos e movimentos, coletânea lançada pela editora Zahar em 2021, reúne um conjunto muito especial de escritos da intelectual sergipana Beatriz Nascimento (1942-1995), entrelaçando os sentidos de sua atuação enquanto militante antirracista e feminista, à efervescência do período em que a temática da desigualdade racial adentra o universo acadêmico e disputa uma representação na mídia impressa nacional. Sua trajetória de vida, assim como sua aguçada sensibilidade, foi significativa para a construção deste seu papel de pioneirismo e de “afirmação da mulher negra como sujeito do conhecimento sobre seu povo” (Sueli CARNEIRO, 2006, p. 11)1. Organizada pelo antropólogo Alex Ratts, o conjunto de vinte e quatro escritos produzidos entre 1974 e 1994, primorosamente selecionados e devidamente contextualizados, não apenas fazem justiça ao legado de um pensamento de alto teor crítico-revolucionário, que fora, ainda, pouco reverberado no espaço acadêmico, mas também reitera a atualidade de suas formulações. Leia Mais

Notas sobre o luto | Chimamanda Adichie

Chimamanda Ngozi Adichie Imagem Diario da Regiao
Chimamanda Ngozi Adichie | Imagem: Divulgação/Diário da Região

Chimamanda Ngozi Adichie é uma escrita nigeriana contemporânea que honra todo seu sucesso. Os livros da autora extrapolam o conhecimento da leitura de um romance, ficção e/ou autobiografia. Chimamanda insere seu conhecimento sobre ancestralidades e dilemas contemporâneos em narrativas simples e, ao mesmo tempo, complexas. A autora cresceu no sudoeste da Nigéria em uma cidade universitária e hoje em dia é conhecida por obras como “Sejamos todos feministas” (2014), “Para educar crianças feministas: Um manifesto” (2017), “Meio Sol Amarelo” (2017) e “O perigo da história única” (2019).

“Notas sobre o luto” é uma reflexão profunda a partir da subjetividade da autora. O livro foi publicado pela primeira vez em 11 de maio de 2021 pela Editora Knopf Publishing Group em inglês com o título de “Notes on grief”. Não tardou para a publicação chegar ao Brasil: em 14 de maio já era possível fazer a leitura através da tradução realizada por Fernanda Abreu e publicado pela Editora Companhia das Letras. Leia Mais

Écrire ses memóires: astuces et conseils pour transformer ses souvenirs en un livre | Marie -Gaëlle Le Perff || Aspectos teóricos de la autobiografia | Edgar Velásquez Rivera

Marie Gaelle Le Perff e Edgar Velasquez Rivera
Marie-Gaëlle Le Perff e Edgar Velásquez Rivera | Imagens: Narrovita e Proclama

Dois manuais recentes sobre a elaboração de autobiografias foram lançados em línguas francesa e espanhola com abordagens e destinatários diferenciados. Não apresentam inovações  na área, mas vale a pena submetê-los à crítica como indicador da bibliografia circulante para o interessado na temática. Eles são: Écrire ses memóires: astuces et conseils pour transformer ses souvenirs en un livre, de Marie-Gaëlle Le Perff, e Aspectos teóricos de la autobiografia, de Edgar Velásquez Rivera.

Écrire ses mémoires é um singelo manual introdutório às artes dos escritos de vida (biografias, autobiografias e memórias). Foi publicado em 2020 com a meta de auxiliar pessoas comuns a escreverem suas lembranças, por si mesmas, dando a conhecer questões e conceitos típicos da investigação do gênero e da publicação independente. Sua autora, Marie-Gaëlle Le Perff, é formada em Jornalismo (Paris 7) e Biologia (Poitiers) e se apresenta como redatora da revista Vie Chrétienne, biógrafa familiar e especialista na cobertura de assuntos da saúde. Leia Mais

Plínio Salgado: Biografia Política (1895-1975) | João Fábio Bertonha

Joao Fabio Bertonha Imagem FacebookJornal Opcao

João Fábio Bertonha é um dos principais historiadores brasileiros especializado no estudo das experiências autoritárias no Brasil do século XX, especialmente no que se refere ao Integralismo Brasileiro. Seu último trabalho publicado, cuja presente resenha irá analisar, é a construção de um perfil biográfico do expoente máximo do Integralismo Brasileiro: Plínio Salgado. Apesar de associação imediata de Salgado com o Integralismo, Bertonha mostra ao leitor aspectos outros de sua trajetória. Além disso, traça paralelos importantes com o tempo no qual ele esteve inserido, o que ajuda a compreender melhor as transformações e escolhas feitas em diferentes momentos por Plínio Salgado ao longo de sua vida.

O livro foi divido em quatro partes, com 13 capítulos. Na primeira delas, composta por quatro capítulos, o autor se debruça no processo de formação de Plínio Salgado enquanto intelectual e sua inserção no mundo da política. A segunda parte, que vai dos capítulos 5 ao 8, focou na construção da AIB (Ação Integralista Brasileira) e a experiência de Salgado a frente do movimento até sua derrocada, após a tentativa frustrada de um golpe de Estado. Os capítulos 9, 10 e 11 compõe a terceira parte do livro e dizem respeito a fase de exílio de Plínio e sua família em Portugal; seu retorno ao Brasil após o fim do Estado Novo e seu retorno a vida política no período da redemocratização pós 1945. Por fim, a última parte do trabalho analisa o envolvimento de Salgado com o golpe de 1964 e com o governo ditatorial, seus últimos anos e a sobrevivência simbólica de Plínio Salgado. Leia Mais

Oswaldo Corrêa Gonçalves, arquiteto cidadão | Gino Caldatto Barbosa

Gino Caldatto Babosa Foto Matheus Tage
Gino Caldatto Babosa | Foto: Matheus Tagé

Para a apresentação deste minucioso trabalho sobre a vida e a obra de Oswaldo Correa Gonçalves, meu caro colega e amigo, realizado pelos jovens Ruy Eduardo Debbs Franco e Gino Caldatto Barbosa, penso em esboçar uma lembrança pessoal, pois conheci o arquiteto praticamente desde que cursei a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.

Para isso, reuni as mais importantes imagens que guardei de Oswaldo, e que podem ser resumidas em quatro retratos parciais de sua e de minha vida. Aliás, embora ambos tenhamos nos modificado ao longo desses sessenta anos, essas imagens demonstram que, curiosamente, permanecemos idênticos: afinal, não sou capaz de lembrar de visões e atitudes desde a minha mais longínqua infância? O mesmo pode ser dito de nosso biografado. Pretendo, por fim, apresentar a síntese dessas imagens. Leia Mais

Arendt: entre o amor e o mal: uma biografia | Ann Heberlein

Em 2021, a editora Companhia das Letras traduziu o livro [Arendt: Om kärlek och ondska] publicado em 2020 de autoria da sueca Dra. Ann Helen Heberlein, que, pouco conhecida no campo da História brasileira, produziu uma biografia sobre Hannah Arendt. Ainda que não dotada de singularidades abruptas, a biografia expõe duas categorias como chave de leitura para a narrativa de vida de Arendt: contexto e situação-limite. Nesta resenha, portanto, o caro leitor encontrará três setores de informações: a) uma leitura comparativa entre a biografia escrita por Heberlein e outras já consagradas; b) uma síntese geral da narrativa, focando em alguns capítulos-chave; e c) reflexão e apreciação das duas categorias mencionadas.

Heberlein nasceu em 22 de junho de 1970 na Suécia. Estudou Teologia na Lund University, para onde voltou a fim de ser professora-pesquisadora a partir de 2007. Sua dissertação, defendida em 2005 e intitulada Kränkningar och förlatelse (Abusos e perdão), ganhou destaque nacional. A partir de então, começou a discutir sobre culpa, vergonha, responsabilidade, moral, abusos e perdão. Passou a integrar o corpo docente da Universidade de Estocolmo a partir de 2009, além de ter trabalhado como colunista nos jornais Sydsvenskan e Dagens Nyheter. O destaque internacional veio após a publicação, em 2008, de seu relato autobiográfico sobre como é a vida com transtorno bipolar, intitulado Jag vill inte dö, jag vill bara inte leva. Contudo, o primeiro livro traduzido para o português ocorreu em 2012 com Det var inte mitt fel! Om konsten att ta ansvar – traduzido para Não foi culpa minha. A arte de assumir a responsabilidade. Leia Mais

Maria d’Apparecida. Negroluminosa voz. Esboço biográfico | Mazé Torquato Chotil

A historiografia da música, especialmente a do Brasil, de modo geral pouco destaque deu às cantoras líricas negras do passado. É que, de fato, trata-se de uma tarefa complexa conhecer essas histórias, uma vez que seus rastros são raros e os vestígios muito incertos. Sabe-se, por exemplo, que nos séculos XVII e XVIII senhores de escravos brasileiros mantinham em suas propriedades, por vaidade e luxo, orquestras e coros compostos somente de escravizados que continham vozes femininas no conjunto.1 No século XVIII há registros em Vila Rica de cantores e cantoras negras, geralmente maquiadas para esconder a cor da pele, se exibindo nos teatros da cidade. No século XIX escravas cantoras eram valorizadas e alugadas a bom preço para se apresentarem cantando modinhas ou trechos de ópera em salões e festas aristocráticas, como as sopranos Leonor Joaquina, Ignacia Francisca e Maria da Conceição.2 Os motivos para explicar esse quadro rarefeito são variados, a começar obviamente pelos imensos obstáculos impostos aos escravizados. Mas é preciso considerar também as incontáveis e permanentes barreiras à carreira artística feminina. Mulheres tinham restrições para apresentações nos palcos e cantar óperas no Brasil somente foi permitido a elas no começo do século XIX. E certamente esses entraves eram bem mais dramáticos às cantoras negras ou mestiças. Mesmo sendo assim, na colônia as leis muitas vezes eram tratadas de maneira mais acomodadiça, prevalecendo as práticas e necessidades impostas pelo cotidiano. Isso significava que nem sempre eram respeitadas integralmente as restrições nos palcos e plateias às mulheres, e às negras em particular.3 Leia Mais

Un letrado en busca de un Estado. Trayectoria jurídicopolítica de Pedro José Agrelo (1776-1846) | Ariel Eiris

En las últimas décadas el campo historiográfico vivenció un renovado interés por las biografías. Fruto de ello fueron, por ejemplo, la serie de publicaciones efectuadas por reconocidos historiadores e historiadoras sobre figuras de la talla de Mariquita Sánchez, Bernardino Rivadavia, José de San Martín, Juan Manuel de Rosas, etc. En dicha línea se incorpora Un letrado en busca de un Estado. Trayectoria jurídico-política de Pedro José Agrelo (1776-1846) de Ariel Eiris. Leia Mais

Ramón y Cajal. El ocaso de un gênio | Marcos Larriba

En Ramón y Cajal. El ocaso de un genio se da suma relevancia, merced a la experiencia de poder consultar algunas anotaciones de puño y letra de Santiago Ramón y Cajal, a un aspecto que revela la dimensión histórica de la figura del creador de la teoría neuronal: el tipo de vida que siguió el genio aragonés en su vejez, representada en la constancia con la que continuó cultivando todo tipo de disciplinas del saber: la medicina, la fotografía, la pintura, la literatura… El marco temporal de este ensayo del joven investigador Marcos Larriba, profesor en la Facultad de Química de la Universidad Complutense de Madrid, es el de la última etapa de Cajal, ya jubilado, pero consciente y, seguramente, espectador incrédulo de los efectos de su dimensión histórica.

No es de extrañar, por tanto, que existan numerosos estudios biográficos para ahondar en la figura del Cajal científico, del Cajal interdisciplinar, de los cuales, unos cuantos se han convertido en lectura obligatoria para cualquier persona interesada en la figura del premio nobel: véanse los trabajos, entre muchos otros, de Gregorio Marañón, Alonso García Durán, Charles Scott Sherrington, Enriqueta Lewy o José María López Piñero. Si bien algunas de estas obras corrigen aspectos reseñados por otras de ellas, eso no ha sido óbice para que en tiempos más recientes se haya considerado necesario traer de nuevo a la palestra a don Santiago. Prueba de ello sería un libro como Cajal: un grito por la ciencia (2019) de José Ramón Alonso Peña y Juan Andrés de Carlos Segovia y, el que nos ocupa, Ramón y Cajal. El ocaso de un genio. Leia Mais

Os caminhos da pesquisa antropológica: Homenagem a Beatriz Góis Dantas | Eufrázia Menezes e Sílvia Góis Dantas

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Beatriz Góis Dantas com o  Cacique Lucimário Ba Xocó à sua esquerda | Foto: Carolina Timoteo/ADUFS (2019)

Os caminhos da pesquisa antropológica: homenagem a Beatriz Góis Dantas, foi lançado há dois meses, em clima fraternal, em live no Youtube (Link). Presentes ao ato, além de Beatriz Dantas, estavam as organizadoras da obra Sílvia Dantas e Eufrázia Cristina Menezes, respectivamente, filha e ex-aluna da antropóloga e historiadora Beatriz Góis Dantas. A própria homenageada, na ocasião, traçou uma “cartografia afetiva e intelectual” da inserção de vários antropólogos e historiadores em sua vida de pesquisadora, em quase seis décadas de atividades.

Os caminhos da pesquisa antropologica Beatriz GoisA cartografia se expressa no próprio livro que, em suas três partes (trajetória acadêmica, experiência na Antropologia e testemunhos de colegas), reúne 14 autores com atuação acadêmica local e transnacional. Há cenas familiares, relatos autobiográficos, anedóticos de trabalho, periodização clássica da carreira, reconhecimentos e agradecimentos por auxílios pessoais e até um poema de Maria Lúcia Dal Farra, dedicado à “Missionária da memória”. Há descrição, crítica e reconhecimento da contribuição de Beatriz Dantas nos domínios da Arquivística, Museologia, Antropologia e (apesar do título do livro) História.

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Eric Hobsbawm: uma vida na história | Richard J. Evans

Richard Evans
Richard Evans | Foto: David Levene/The Guardian

“Durante toda sua carreira como historiador, Eric foi puxado por um lado por ser compromisso com o comunismo e, de forma mais ampla, pelo marxismo, e por outro por seu respeito aos fatos, aos registros documentais e às descobertas e argumentos de outros historiadores cujos trabalhos ele reconhecia e respeitava. Em alguns pontos […], o primeiro vence o segundo, mas no todo é o segundo que prevalece”.

Richard J. Evans

Lançado em 2019 na Inglaterra, acaba de ser lançada, no Brasil, em 2021, a biografia de Eric Hobsbawm escrita pelo historiador Richard J. Evans. Um livro sobre a vida de um dos mais influentes historiadores, dos séculos XX e XXI, no mundo (Hobsbawm), especialmente popular no Brasil, escrita por um proeminente historiador inglês (Evans), que se destacou por seus trabalhos sobre história da Alemanha no século passado, especialmente sobre o Terceiro Reich. Leia Mais

Edições com dedicatórias do acervo “Biblioteca pessoal de M. М. Bakhtin” | N. N. Ziemkóva

M Bakhtin
MIkhail Bakhtin | Foto: Domínio público

As dedicatórias1 em livros e periódicos presenteados a Mikhail Bakhtin e preservados em sua biblioteca são uma fonte importante não apenas para a reconstrução de alguns momentos de sua biografia, mas também para esclarecer a natureza e as especificidades da recepção das ideias e obras de Bakhtin. Em particular, elas apontam para o fato de Bakhtin ter conseguido reputação como um cientista respeitado e inovador nos círculos acadêmicos muito antes da publicação da segunda edição de Problemas da poética de Dostoiévski [1963] e da publicação de Cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais [1965].

biblioteca de BakhtinEssas dedicatórias refletem a influência revigorante das ideias de Bakhtin sobre a geração mais jovem de especialistas da área de humanidades. Ao mesmo tempo, a dedicatória em livros torna-se uma réplica do diálogo inaudível entre os autores e Bakhtin, uma expressão de esperança para uma conversa imaginada no futuro e um momento de autorreflexão e autocrítica. Entre os autores das dedicatórias estão velhos e novos amigos de Bakhtin, seus antigos oponentes científicos, escritores e críticos literários famosos, colegas de departamento e estudantes. O grande valor da publicação remonta às reproduções das capas dos livros, das páginas de rosto e das dedicatórias. É um acontecimento de grande importância no campo dos estudos bakhtinianos na Rússia. Nunca antes tantos documentos cobrindo a vida e obra de Mikhail Bakhtin foram publicados em um único livro. Leia Mais

Comandante. Hugo Chávez’s Venezuela | Rory Carroll

Comandante. Hugo Chavez’s Venezuela, escrito por Rory Carroll, aparece en un momento crucial de la historia reciente del país. Después de varios meses de rumores sobre la delicada salud de Chávez, y de una accidentada campaña electoral que le permitió la reelección, su muerte ha dejado al país en una situación de limbo, por más esfuerzos que el delfín del régimen, Nicolás Maduro, realice para llenar el vacío dejado por uno de los líderes más controvertidos de América Latina en las últimas décadas.

Carroll, quien se desempeñó como corresponsal en Caracas para el diario británico The Guardian, ha escrito una crónica donde busca explicar el fenómeno de la V República Bolivariana combinando entrevistas, perfiles, impresiones personales y material bibliográfico. Su obra se suma a una creciente bibliografía que aspira a capturar la compleja relación entre la aparición y llegada al poder de Hugo Chávez y el proyecto ideológico que busca convertir a Venezuela en una suerte de socialismo bolivariano, sucesor de Cuba y eje regional de la Nueva Izquierda, con ramificaciones en Centro América y América del Sur y aliados en Irán y Rusia. Leia Mais

Psiquiatria e Política: o jaleco/a farda e o paletó de Antonio Carlos Pacheco e Silva | Gustavo Queródia Tarelow

O Texto A obra é o resultado da pesquisa de doutoramento do historiador Gustavo Queródia Tarelow, que atualmente, desenvolve estudos no setor educativo do Museu Histórico da Faculdade de Medicina da USP e também é autor da obra “Entre comas, febres e convulsões: os tratamentos de choque no Hospital do Juquery (1923- 1937)”, pela Editora UFABC, 2013.

Na obra resenhada, Tarelow se dedica a analisar a trajetória acadêmica, profissional e política de Antonio Carlos Pacheco e Silva, procurando problematizar seu legado, analisando suas subjetividades dentro do contexto histórico em que ele estava inserido. Desta maneira, o autor deixa claro que não é objetivo do livro a produção de uma biografia de análise memorialística – como fizeram outras biografias dedicadas a exaltar suas contribuições profissionais, retratando-o como um grande psiquiatra e ilustre político – mas compreender como seu posicionamento político- ideológico esteve presente em sua prática como médico, professor e dirigente de instituições hospitalares. Leia Mais

Hegel e a liberdade dos modernos | Domenico Losurdo

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Domenico Losurdo| Foto: Kyan Shokoui Dios

LOSURDO D Hegel e a liberdadeIntrodução

A despeito das piadas jocosas que encontramos em páginas de social medias relacionadas à filosofia, é inegável que Hegel continua sendo um autor que desperta respeito, ou, no mínimo, curiosidade para uma leitura. Disso, é difícil encontrar hoje alguém disposto a comentar sua obra. O italiano Domenico Losurdo (1941-2018) tomou consciência de tal empreendimento. Porém, não se absteve de contribuir com algumas ideias. O trabalho de anos de pesquisa e publicações diversas (LOSURDO, 2019, pp. 19-20), resultou no livro intitulado Hegel e a liberdade dos modernos. O foco de sua obra direciona-se ao Hegel sujeito-político, inserido no contexto de sua época. No entanto, Losurdo deu um passo adiante ao confrontar o estudo dos escritos de Hegel com a fortuna crítica coeva e hodierna de sua obra; é dessa relação entre escritos filosóficos e fortuna crítica que se pretende dar atenção nessa resenha crítica.

A importância da historiação dos escritos filosóficos

À primeira vista, Losurdo dá atenção à biografia intelectual como uma maneira de escapar de trabalhos historicista-jornalísticos e das obras que versam a comentários a partir de Hegel. Essa premissa pode parecer estranha àqueles que, acostumados com leituras de autores e autoras já consagrados, acabam por não questionar os cortes produzidos em torno do sujeito, separando, por vezes, a vida pessoal dos escritos publicados, como se não houvesse relação nenhuma entre eles (LUKÁCS, 2018, p. 44). Leia Mais

…como se fosse um deles: almirante Aragão – Memórias, silêncios e ressentimentos em tempos de ditadura e democracia

Obra de cunho histórico-biográfico, publicada no ano de 2017, foi finalista do Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, na categoria biografia, em 2018. Seu autor, Anderson da Silva Almeida, sergipano, marinheiro entre os anos de 1996 e 1999, e sargento fuzileiro naval de 1999 a 2010, quando deixou as fileiras da Marinha do Brasil, é hoje professor na Universidade Federal de Alagoas.

Resultado de sua pesquisa de doutorado, cuja Tese foi defendida em 2014, junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF), o livro é uma contribuição no sentido de, em um quadro atual de franca disputa de memórias em torno de fatos e contextos históricos que tocam o passado ditatorial recente do Brasil, reconstruir a trajetória do vice-almirante fuzileiro naval Cândido da Costa Aragão, sobretudo a partir de seu ingresso como soldado nas fileiras da Marinha do Brasil, com ênfase nos contextos em que esteve inserido desde os anos iniciais da década de 1960, passando pela associação de marinheiros e fuzileiros navais e o golpe civil-militar em 1964, até seu regresso do exílio, no ano de 1979. Leia Mais

Flavio Koutzii: Biografia de um militante revolucionário – De 1943 a 1984 | Benito Bisso Schmidt

Em Tempos interessantes, Eric Hobsbawm comentou que comumente as biografias “terminam com a morte do biografado, mas as autobiografias não têm esse fim natural”, uma ironia que não se traduz apenas como humor para historiadores envolvidos em empreitadas biográficas (2002, p. 447). Autor proeminente nos estudos sobre esse gênero, Benito Schmidt enfrentou como desafio o que para Hobsbawm era chiste ao biografar o gaúcho Flavio Koutzii, cuja biografia não teve o aludido fim natural: Koutzii não apenas contribuiu imensamente para a produção do livro, como foi um leitor privilegiado antes e depois de sua publicação – e, assim como Hobsbawm, Koutzii é judeu, fez-se comunista e não dispensa a fina ironia.

Após debruçar-se por quase uma década sobre variados registros que a vida de Koutzii lega à pesquisa histórica, Schmidt lançou um livro bastante singular, tanto pela relação que estabeleceu com seu objeto e principal fonte – Koutzii e suas memórias -, quanto pela forma como articulou essa fonte com as demais. Da primeira às últimas páginas nota-se que o livro é a confluência da relação entre biógrafo e biografado – especial singularidade da obra. Leia Mais

Power in the Village: Social Networks/ Honor and Justice among Immigrant Families from Italy to Brazil | Maíra I. Vendrame

O livro de Maíra Vendrame, agora publicado em inglês, é uma versão reduzida de sua tese de doutoramento em história defendida em 2013 na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. O estudo tem como fio condutor a trajetória do padre Antônio Sório, imigrante italiano que se instalou no núcleo colonial de Silveira Martins, Rio Grande do Sul, na década de 1880. Quase vinte anos depois, em 1900, o sacerdote faleceu em decorrência de um grave ferimento no “baixo ventre”. A “morte trágica” gerou várias versões explicativas na comunidade, as quais foram utilizadas por Vendrame como motivação para adentrar no universo camponês e investigar os costumes do grupo. Desse modo, a morte de Sório aparece como pretexto para pesquisar temas mais amplos, como a emigração da Itália, questões de honra familiar e práticas de justiça camponesas que podiam ou não se relacionar com a justiça do Estado.

As versões sobre a morte do padre são apresentadas já no primeiro capítulo, intitulado Versions of a tragedy. Na noite em que Sório ficou ferido, ele estava em uma das ruas do núcleo colonial, a cavalo, provavelmente retornando para casa. As explicações que circularam entre a população de Silveira Martins defendiam que o sacerdote teria sofrido uma queda do cavalo ou sido vítima de uma emboscada com motivações políticas ou vingativas. Aqueles que afirmavam que havia ocorrido um crime político, sustentavam como mandante a maçonaria, pois essa se encontrava presente na comunidade e travava um conflito de ideias com Sório, defensor e representante da Igreja Católica. Por outro lado, as pessoas que acreditavam em um crime de vingança, declaravam que o pároco havia desonrado uma jovem do lugar. Como não foi aberto um processo judicial para investigar o ocorrido, que talvez pudesse apontar para uma única explicação, os diferentes relatos registrados em entrevistas orais, publicações periódicas e de padres e imigrantes locais, oferecem um horizonte de possibilidades. Leia Mais

José Reis: caixeiro-viajante da ciência | Luisa Massarani, Mariana Burlamaqui e Juliana Passos

Tratar sobre a história da ciência e divulgação científica no Brasil perpassa por importantes colaboradores, entre eles, sem dúvida, José Reis (1907-2002). Com uma atuação ampla e longeva no cenário científico brasileiro, aposentou-se como bacteriologista do Instituo Biológico, foi fundador e secretário-geral da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), integrante do Instituto Brasileiro de Educação, Cultura e Ciências (Ibecc), criador e editor do suplemento “No Mundo da Ciência” e diretor de redação da Folha de S.Paulo , divulgador da ciência em diversos veículos, como nas revistas Chácaras e Quintais, Ciência e Cultura e Anhembi , e no programa “Marcha da Ciência”, da Rádio Excelsior, presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC), além de um incansável ativista e incentivador pela melhoria do ensino de ciência nas escolas e da formação de futuros cientistas, promovendo o concurso “Cientistas de Amanhã” e feiras e clubes de ciências pelo país. É sobre essa trajetória que os livros José Reis: reflexões sobre a divulgação científica , de Luisa Massarani e Eliane Monteiro de Santana Dias, e José Reis: caixeiro-viajante da ciência , de Luisa Massarani, Mariana Burlamaqui e Juliana Passos, são dedicados.

Em comum, as duas obras são frutos do projeto Acervo José Reis da Casa de Oswaldo Cruz (Fiocruz), criado para promover a recuperação e preservação de todo acervo pessoal doado pela família Reis à Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz, em 2018, e para fomentar estudos sobre a história da ciência brasileira e da divulgação científica no país. As diferenças em cada obra encontram-se, sobretudo, pelo olhar direcionado pelas autoras ao conteúdo do acervo. Leia Mais

Qualcosa di meglio. Biografia partigiana di Otello Palmieri | Alfredo Miginini (R)

Filosofia e Historia da Biologia 8
Otello Palmieri | Detalhe de capa |

SCOTT The common wind 11Leggendo un lavoro di ricerca spesso ci si trova davanti ai risultati di un processo lungo e complesso in cui la soggettività del ricercatore solo di rado viene messa in risalto. L’impiego di fonti orali all’interno della ricerca storica ha contribuito a far emergere la consapevolezza di dover esplicitare la posizione di chi conduce la ricerca stessa, visto che è proprio l’incontro fra soggettività diverse a produrre le fonti che poi vengono usate [1]. Enrico Pontieri e Alfredo Mignini avevano ben chiaro questo impianto metodologico al momento di iniziare il lavoro che si sarebbe poi tradotto nel libro oggetto di questa recensione. In occasione di una precedente pubblicazione Mignini aveva già avuto modo di riflettere sulle modalità di raccolta e di uso delle fonti orali [2]. Più recentemente, come Pontieri, ha pubblicato un saggio all’interno di un volume sulla storia del Partito comunista italiano a Bologna [3]. Mignini fa parte da anni dell’associazione Storie in Movimento – che, fra le altre cose, pubblica «Zapruder. Rivista di storia della conflittualità sociale» – e in particolare della Redazione Web, di cui è co-coordinatore. Enrico Pontieri collabora con la Fondazione Gramsci-Emilia Romagna per la quale il 24 aprile del 2020 ha curato un appuntamento sulla storia della Resistenza.

Proprio la Resistenza è uno dei temi centrali del libro dei due giovani ricercatori, incentrato sulla storia di Otello Palmieri. Gli autori iniziano il racconto in ordine cronologico, partendo però dal loro punto di vista: dal primo incontro a Bologna con un conoscente di Palmieri, quando l’idea di realizzare un’intervista era già nell’aria ma non aveva ancora assunto un carattere definito, alla scoperta di nuove notizie sulla sua vita. Dopo le prime pagine sappiamo già che Otello Palmieri ha fatto per alcuni mesi il partigiano e che, a guerra finita da alcuni anni, è stato accusato di aver partecipato all’uccisione di un oste nel suo paese in provincia di Bologna, Oliveto. Proprio nel momento in cui la denuncia stava per trasformarsi in un mandato di cattura Palmieri lasciò l’Italia insieme a due suoi compagni per ritornare solo dopo aver ottenuto la sentenza di assoluzione. È proprio la sentenza il primo documento con cui gli autori si misurano: mettono in evidenza i tanti punti ancora poco chiari e iniziano a formulare alcune domande a cui però si può cercare di rispondere solo usando altre fonti, come le interviste allo stesso Palmieri. A questo punto gli autori portano il lettore a Oliveto e poi all’interno della casa di Palmieri a Crespellano, sempre in provincia di Bologna.

Si arriva così all’incontro e alla prima intervista: superata l’iniziale titubanza Palmieri inizia a raccontare, diventando in breve un fiume in piena, con i due autori che faticano a stargli dietro. Spuntano fuori anche due vecchie valigie riportate da Palmieri in Italia dalla Cecoslovacchia e piene di quaderni e di materiali utili. Arrivati a pagina 26 del libro sono già stati toccati i temi più importanti: la Resistenza e l’iscrizione al Partito comunista italiano, l’uccisione dell’oste di Oliveto, l’esilio in Cecoslovacchia, l’assoluzione, il ritorno in Emilia, il nuovo trasferimento in Svizzera. Tante cose, tutte insieme. Gli autori denunciano un certo smarrimento e forse per il lettore è lo stesso.

Decidono quindi di ricominciare da capo, dal 1927, anno della nascita di Otello Palmieri. Si arriva quasi subito a uno dei momenti chiave: il 17 agosto 1944 Palmieri, appena diciassettenne, venne catturato da un gruppo di repubblichini insieme ad altre persone e riuscì a sfuggire grazie all’aiuto di un medico e della sorella infermiera. Una volta tornato in paese si unì alla Resistenza. Gli autori però fanno notare come in alcuni documenti ufficiali Palmieri risulti partigiano già da prima del rastrellamento. È uno dei punti in cui Mignini e Pontieri tirano fuori le discrepanze fra ciò che ascoltano durante le interviste e ciò che risulta da altre fonti come il contenuto delle valigie conservate da Palmieri, documenti giudiziari e pubblicistica. Il pregio del metodo usato è di non arrivare a conclusioni affrettate o nette, mettendo però in evidenza i dubbi e cercando un modo per provare a scioglierli. Gli autori mettono quindi il luce la collaborazione che esisteva fra i partigiani della zona e i giovani del paese già prima del rastrellamento del 1944, soprattutto nel fornire informazioni sulla presenza di soldati tedeschi o repubblichini in zona [4]. La conoscenza reciproca facilitò l’ingresso di Palmieri fra i partigiani dove ottenne anche un nuovo nome, Battagliero (nome di un valzer emiliano e titolo del primo capitolo del volume). Palmieri a quel punto si trovò inserito in un gruppo in cui ci sono anche persone molto più grandi di lui e dei suoi amici: una di queste era Antenore Lanzarini, ucciso il 19 novembre 1944. Alla ricostruzione delle circostanze della morte di Lanzarini e alle due versioni proposte da Palmieri gli autori dedicano alcune delle pagine più interessanti del libro. Palmieri racconta poi dell’inverno del 1944 e dell’ordine del generale statunitense Harold Alexander di sospendere le operazioni belliche su larga scala durante i mesi più freddi dell’anno. Gli autori però non si accontentano e ottengono informazioni sugli spostamenti delle colonne partigiane e su delle azioni volte a recuperare delle armi o del cibo a Oliveto e nelle zone limitrofe. Si arriva quindi al momento che fin dalle prime pagine è sembrato essere una svolta nella vita di Palmieri: i giorni dell’attentato al segretario del Partito comunista italiano Togliatti (14 luglio 1948). Palmieri racconta dell’occupazione del municipio con le armi della Resistenza e il conseguente intervento del Pci di zona che riportò la calma a Oliveto e generò una certa frustrazione fra i militanti: la Rivoluzione non era all’ordine del giorno. Arrivati a questo punto l’oste del paese era già stato ucciso (4 dicembre 1945) ma sarà solo nell’estate del 1949 che Palmieri e altri due suoi compagni finirono per essere vicini all’arresto. La fuga avvenne appena in tempo e, grazie all’aiuto del Partito comunista, Palmieri e gli altri riuscirono a raggiungere la Cecoslovacchia. Una volta arrivato a Praga, Palmieri, come tutti i suoi compagni, dovette cambiare (di nuovo) nome e su indicazione del Partito comunista iniziò a chiamarsi Enrico Grassi, titolo del secondo capitolo del libro.

Qui gli autori ricostruiscono la vita di Palmieri e degli altri italiani costretti a rifugiarsi al di là della Cortina di ferro: l’apprendimento della lingua ceca e la scuola di formazione politica predisposta dal Partito con la conseguente delusione di Palmieri una volta capito che il Partito non li stava facendo studiare per fare la Rivoluzione in Italia, i rapporti con degli emigrati ideologicamente più convinti, la nascita della redazione della trasmissione radiofonica Oggi in Italia, lo stupore di fronte all’epurazione del segretario generale del Partito comunista ceco, Rudolf Slánský [5]. Finita la scuola Palmieri, in controtendenza rispetto alle scelte dei suoi compagni, scelse di iniziare un percorso di formazione professionale e venne impiegato in un’industria meccanica. Nel giro di due anni si trasferì in un’altra città e qui incrociò alcuni ex membri della Volante rossa, ex partigiani di area lombarda fatti scappare dal Pci in Cecoslovacchia per metterli al riparo da accuse di omicidi e di altri reati. Il soggiorno all’estero era però ormai prossimo alla fine: nel settembre del 1953, arrivata la notizia dell’assoluzione, Palmieri tornò in Italia, in apparenza senza esitazioni. Una volta arrivato in Emilia si sposò con Giovanna, la sua fidanzata storica. Sembrava il preludio a una nuova fase di stabilità e invece nel giro di pochi mesi la coppia si spostò di nuovo, questa volta per raggiungere la Svizzera. Gli autori dedicano alla ricostruzione del ritorno in Italia e della scelta di tornare a emigrare un “Intermezzo” in cui cercano di andare oltre la prima risposta data da Palmieri, ossia la necessità di guadagnare una somma per ripagare un debito contratto in occasione del matrimonio. Tramite un gioco di ipotesi e frasi prese dalle interviste i due autori ci restituiscono l’insoddisfazione di Palmieri per l’ipotesi di un «posto» fisso in Italia proposto dal Partito comunista emiliano contrapposto a un «lavoro» da cercare, forse da inventare e poi da praticare in Svizzera [6]. Si arriva così al terzo capitolo, intitolato Otti, diminutivo di Otello in tedesco. Qui la storia di Palmieri si lega a quella dell’emigrazione italiana in Svizzera: Palmieri trova lavoro, è apprezzato anche grazie alla formazione ricevuta in Cecoslovacchia e nel tempo rafforza la sua posizione, anche se nel paese elvetico non tutti vedevano di buon occhio l’arrivo di tanti lavoratori dall’Italia. Finisce per ammirare il paese in cui si è stabilito e nel quale però non rimarrà una volta raggiunta la pensione [7], momento di un nuovo ritorno in Emilia.

Il libro termina con il racconto di una passeggiata degli autori insieme a Palmieri a Oliveto, sui luoghi che sono stati lo scenario di una parte dei fatti descritti nelle pagine precedenti. Proprio nelle ultime righe Mignini e Pontieri riconoscono che diversi punti della storia non sono stati chiariti del tutto, ci sono ancora dei dubbi e non è stato possibile fugarli. Non si è riusciti a chiarire del tutto la vicenda dell’uccisione dell’oste e il ritrovamento di un faldone all’interno dell’archivio del Tribunale di Bologna con le carte del processo proprio nelle settimane di chiusura del lavoro si è scontrato con la quasi indifferenza di Palmieri che ha smorzato l’entusiasmo dei due ricercatori. Rimane il dubbio che in un archivio di Praga ci sia ancora l’autobiografia che al momento dell’arrivo in Cecoslovacchia il Partito comunista chiedeva agli emigrati di scrivere. Resta soprattutto il rammarico per un diario smarrito da Palmieri al ritorno dalla Cecoslovacchia. Rimangono poi altri punti non chiariti, altre strade non prese, altre domande non fatte o delle risposte non approfondite. Questo però è ciò che accade in ogni ricerca storica, anche se non sempre viene esplicitato e il lettore quindi può non accorgersene. Pontieri e Mignini si sono messi invece in gioco fin dalla prime pagine e, condividendo con il lettore la storia della ricerca e mettendo in mostra i limiti della stessa, hanno finito per scrivere un ottimo libro di metodo, godibile anche dal punto di vista narrativo.

Notas

1 PORTELLI, Alessandro, Problemi di metodo. Sulla diversità della storia orale, in BERMANI, Cesare (a cura di), Introduzione alla storia orale, vol. I, Storia, conservazione delle fonti e problemi di metodo, Roma, Odradek, 1999, pp. 149-166 (in particolare, pp. 160-161). Il contributo è stato originariamente pubblicato in Primo maggio, Saggi e documenti per una storia di classe, 13, 1979, pp. 54-60.

2 MIGNINI, Alfredo, Un lavoro da non sfruttare nessuno. Storie di vita dalla periferia di Bologna, Roma, Aracne, 2016. Si veda in particolare la parte introduttiva in cui l’autore riflette sull’uso delle fonti orali.

3 CAPUZZO, Paolo (a cura di), Il Pci davanti alla sua storia: dal massimo consenso all’inizio del declino. Bologna 1976, Roma, Viella, 2019.

4 MIGNINI, Alfredo, PONTIERI, Enrico, Qualcosa di meglio. Biografia partigiana di Otello Palmieri, Bologna, Pendragon, 2019, p. 43.

5 Ibidem, p. 102.

6 Ibidem, p. 138.

7 Ibidem, p. 166.

Alessandro Stoppoloni (Roma, 1989) è un archivista libero professionista. Si è laureato in scienze storiche nel 2015 nell’ambito del corso integrato italo-tedesco organizzato dall’Università di Bologna e da quella di Bielefeld con una tesi dal titolo Fra teoria e pratica: la psicologia politica di Peter Brückner (1966-1978). Per «Diacronie» si occupa di recensioni e cura saltuariamente le traduzioni dalla lingua tedesca.


MIGININI, Alfredo; PONTIERI, Enrico. Qualcosa di meglio. Biografia partigiana di Otello Palmieri. Bologna: Pendragon, 2019, 222p. Resenha de: STOPPOLONI, Alessandro. Diacronie – Studi di Storia Contemporanea, v.45, n1, mar. 2021. Acessar publicação original [IF].

Renzo Laconi. Una biografia politica e intellettuale | Maria Luisa di Felice (R)

Filosofia e Historia da Biologia 11
Maria Luisa di Felice | Foto: FG |

SCOTT The common wind 14Maria Luisa Di Felice, ricercatrice universitaria in Storia contemporanea presso la Facoltà di Studi umanistici dell’Università di Cagliari, oltre ad avere all’attivo una vastissima produzione scientifica e un percorso formativo e professionale in lettere e archivistica, dal 2009 è responsabile scientifico del progetto di ricerca su «Renzo Laconi, il politico e l’intellettuale. Studio e valorizzazione del pensiero e dell’opera». Un progetto di ricerca che ha realizzato l’obiettivo di recuperare, riordinare e inventariare l’archivio privato di Laconi, portando alla luce la rilevanza nazionale del suo contributo intellettuale e politico negli anni di attività all’Assemblea Costituente e alla Camera dei Deputati. Nel corso di tali ricerche, Di Felice ha pubblicato alcune prime monografie: Renzo Laconi. Per la Costituzione. Scritti e discorsi (2010) e Renzo Laconi, la formazione intellettuale e politica. Dagli anni giovanili alla nascita della Repubblica (2011) [1]. Il volume edito nel 2019 da Carocci – articolato in quindici capitoli e 685 pagine – «ha assorbito in sé anche i due precedenti» [2] e rappresenta l’ultima tappa di un lavoro biografico monumentale, corredato da fotografie e disegni realizzati dallo stesso Laconi, a coronamento di una esaustiva biografia intellettuale e politica sull’esponente comunista sardo. La messa a disposizione dell’archivio privato di Laconi e della sua biblioteca[3] ha contribuito in maniera determinante alla realizzazione dello studio. In particolare, il suo archivio personale – conservato presso la Fondazione Gramsci di Roma – rappresenta un’eredità politica e culturale ricchissima, con i suoi oltre cento Quaderni, definiti come un autentico «archivio nell’archivio». Laconi infatti aveva l’abitudine di annotare le proprie riflessioni, organizzandone in maniera sistematica la conservazione. Tra le fonti complementari si annoverano i fondi non ancora sufficientemente esplorati, come quelli del Gruppo parlamentare del Pci e del Consiglio regionale della Sardegna, accanto ad altri più noti (ad esempio: le carte della Direzione del Pci e dell’Archivio storico della Camera dei deputati). Il volume concretizza l’obiettivo di integrare le diverse opere parziali pubblicate nel corso degli anni [4], fornendo un quadro d’insieme, una visione organica di una biografia intellettuale e politica. I primi capitoli sono dedicati all’infanzia di Laconi a Sant’Antioco (CA), agli anni giovanili e universitari vissuti a Cagliari, dove si laurea in filosofia; al periodo in cui è insegnante a Firenze, all’adesione al Pci nel 1942 e all’esperienza come caporale nell’esercito dal 1943. Il libro si sofferma sul periodo di intenso impegno politico per la ricostruzione del Partito comunista nell’isola, all’indomani della caduta del fascismo: sul ruolo di segretario di federazione a Sassari e sulla partecipazione ai lavori della Consulta regionale sarda. L’opera sottolinea con precisione come il percorso di Laconi sia marcato al contempo dalla scelta di Gramsci come maestro, come guida intellettuale e umana [5], e dalla spiccata sintonia politica con la linea togliattiana. Eletto appena trentunenne all’Assemblea costituente (incarico per cui, nonostante la sua attenzione e sensibilità al movimento dei minatori del Sulcis-Iglesiente [6], lascia la fascia di Sindaco di Carbonia a Renato Mistroni), Laconi partecipa alla Commissione dei 75 nonché ai lavori del comitato di redazione, detto «dei 18», che materialmente ha il compito di tradurre le discussioni, svolte nell’Assemblea e nelle tre sottocommissioni, in puntuali enunciati normativi. Tale esperienza – sottolinea a giusto titolo Di Felice – rappresenta «la chiave di volta del suo percorso politico e intellettuale» [7]. Laconi contribuisce in maniera significativa e originale all’elaborazione della Costituzione italiana, facendosi portatore di idee innovative sul regionalismo e sulle tematiche autonomistiche, rivelatesi anticipatrici anche rispetto alla cultura politica del proprio partito. Dopo l’invito rivolto nell’aprile 1945 da Palmiro Togliatti ai «compagni sardi […] a comprendere che non devono avere nessuna paura di essere loro gli autonomisti, perché l’autonomia è una rivendicazione democratica rispondente agli interessi del popolo sardo» [8], Laconi è tra i pochi comunisti insulari a raccogliere l’esortazione del segretario nazionale, nonostante la posizione ferma e indifferente del Pci isolano. La linea autonomista del Pci diventa netta in seguito all’estromissione dei comunisti dalla coalizione di governo nazionale: nel 1947, sostiene Sircana, il partito diventa «paladino del decentramento regionale, considerandolo un fattore di equilibrio democratico perché avrebbe assicurato all’opposizione la possibilità di accesso alla direzione politica di ampie zone dell’Italia» [9]. La svolta in Sardegna è sancita dal II Convegno regionale dei quadri, tenutosi a Cagliari il 25 e 26 aprile 1947, in presenza del segretario Togliatti. È in questa fase che all’Assemblea costituente Laconi sostiene l’«apertura verso l’ordinamento regionale, purché non di tipo federale né omogeneo su tutto il territorio nazionale; differenziazioni tra le regioni; ostilità verso la frammentazione della potestà legislativa; ampia autonomia a Sardegna, Sicilia e regioni di confine con potestà legislativa primaria su alcune materie, escludendo in primo luogo quelle che avrebbero potuto essere oggetto di riforme strutturali; potestà legislativa più circoscritta alle altre regioni; assemblee regionali costituite nel rispetto della piena sovranità popolare […] contributo dello Stato allo sviluppo del Mezzogiorno attraverso la pianificazione economica» [1]0. Su quest’ultimo punto, a partire dal «Congresso del popolo sardo» nel maggio 1950, Laconi e i comunisti insulari si batteranno costantemente al fine di ottenere l’approvazione del «Piano di Rinascita economica e sociale della Sardegna», previsto dall’articolo 13 dello Statuto regionale, che avverrà soltanto nel 1962.

Per comprendere la rilevanza innovatrice del contributo di Togliatti e di Laconi al regionalismo e all’autonomismo sardo del Partito comunista – problematica alla quale l’opera di Maria Luisa Di Felice fornisce un contributo essenziale – può risultare utile la comparazione con la federazione còrsa del Partito comunista francese [11]. Nell’isola, situata a pochi chilometri a nord della Gallura, la distanza sul tema dell’autonomia è notevole (d’altronde, mentre lo statuto della Regione autonoma della Sardegna viene approvato nel 1948, bisognerà attendere il 1982 per il primo Statut particulier della Corsica). All’epoca della svolta autonomista del Pci sardo, la federazione comunista còrsa è manifestamente centralista e giacobina. L’organizzazione partitica ha raggiunto il suo apice, dopo essersi rafforzata esponenzialmente proprio negli anni della clandestinità e della resistenza, combattendo le pretese irredentiste e l’occupazione fascista dal novembre 1942 al settembre 1943. Tuttavia il Pcf còrso, rispetto alle federazioni del continente, presenta dei caratteri di originalità: l’isola viene definita una «piccola patria» all’interno della «grande patria» francese e, secondo la lettura storica dei comunisti insulari, il popolo còrso – mai sottomesso né all’invasione pisana, né a quella genovese e nemmeno alla Francia monarchica – con la rivoluzione del 1789 ha scelto di propria iniziativa di diventare repubblicano e francese.

Chiusa la breve parentesi comparativa, occorre ricordare che, in seguito all’approvazione della Costituzione italiana, Renzo Laconi si divide tra l’impegno di deputato (carica che ricopre senza interruzioni dalla I alla IV legislatura) e gli incarichi regionali. La sua attività politica è intensa e allo stesso tempo tormentata, segnata dall’aspra dialettica con Velio Spano, rivoluzionario di professione durante la clandestinità e segretario regionale del Pci nel decennio 1947-1957 [12]. Nel mese di dicembre del 1957 Laconi gli succede alla carica di segretario e resterà alla guida del Comitato regionale sardo fino al novembre 1963, periodo ampiamente documentato e descritto nei capitoli conclusivi della biografia. Laconi scompare prematuramente a Catania all’età di 51 anni, nel 1967.

Con un lavoro imponente, curato e approfondito, Maria Luisa Di Felice mette a disposizione degli studiosi quest’opera che rappresenta il «degno traguardo di numerosi anni di studio»13. La lettura non sempre è agevole, il testo a tratti risulta fin troppo scrupoloso, con dettagli e precisazioni talvolta evitabili. Ma complessivamente si tratta di un libro indispensabile non solo per la conoscenza biografica di Laconi, ma anche per approfondire la storia politica della Sardegna e del Pci sardo, nonché la questione del regionalismo e dell’autonomismo che ha profondamente marcato la storia insulare e nazionale.

Notas

1. LACONI, Renzo, Per la Costituzione. Scritti e discorsi, a cura di Maria Luisa DI FELICE, Roma, Carocci, 2010; DI FELICE, Maria Luisa, Renzo Laconi, la formazione intellettuale e politica. Dagli anni giovanili alla nascita della Repubblica, Roma, Carocci, 2011.

2. DI FELICE, Maria Luisa, Renzo Laconi. Una biografia politica e intellettuale, Roma, Carocci, 2019, p. 17.

3. LAI, Gianna (a cura di), La biblioteca di Renzo Laconi, Cagliari, Cuec, 2020.

4. LACONI, Renzo, Parlamento e Costituzione, a cura di Enrico BERLINGUER, Gerardo CHIAROMONTE, Roma, Ed. Riuniti, 1969; LACONI, Renzo, La Sardegna di ieri e di oggi. Scritti e discorsi sulla Sardegna, 1945-1967, a cura e con introduzione di Umberto CARDIA, Cagliari, Edes, 1988; SCANO, Pier Sandro, PODDA, Giuseppe (a cura di), Renzo Laconi, Un’idea di Sardegna, Cagliari, Aipsa, 1998.

5. DI FELICE, Maria Luisa, «Il Gramsci di Renzo Laconi», in Studi e ricerche, I, 2008, pp. 213-228.

6. DI FELICE, Maria Luisa, «Fare politica: Renzo Laconi, i minatori e la lezione di Gramsci», in Le Carte e la Storia, 1/2015, pp. 99-116.

7. DI FELICE, Maria Luisa, Renzo Laconi. Una biografia politica e intellettuale, cit., p. 15.

8. Ibidem, p. 97.

9. SIRCANA, Giuseppe, s.v. «Renzo Laconi», in Dizionario biografico degli italiani, vol. 63, Roma, Istituto della Enciclopedia italiana 2004.

10. DI FELICE, Maria Luisa, Renzo Laconi. Una biografia politica e intellettuale, cit., p. 159.

11. Sul tema: DI STEFANO, Lorenzo, Le Pcf en Corse et le Pci en Sardaigne, 1920-1991: implantation militante, histoire électorale, identité insulaire, tesi di dottorato (in corso di redazione dal settembre 2018), UMR CNRS 6240 LISA, Università di Corsica.

12. Sul confronto fra Spano e Laconi: MATTEI, Sebastian, «Autonomia e rinascita. Velio Spano e Renzo Laconi nella Sardegna del secondo dopoguerra», in Studi storici, LIX, 2/2018, pp. 493-523. Su Spano: MATTONE, Antonello, Velio Spano. Vita di un rivoluzionario di professione, Cagliari, Della Torre, 1978; HÖBEL, Alexander, «Velio Spano», in Dizionario biografico degli italiani, Vol. 93, Roma, Istituto della Enciclopedia italiana, 2018; nonché il libro di memorie: GALLICO SPANO, Nadia, Mabrùk: ricordi di un’inguaribile ottimista, Cagliari, AM&D, 2005.

13. MINNUCCI, Virginia, «Recensione a DI FELICE, Maria Luisa, Renzo Laconi. Una biografia politica e intellettuale», in Archivio storico italiano, 2020, pp. 666-667.

Lorenzo DI STEFANO (1989) È dottorando in Storia contemporanea presso l’Università di Corsica “Pasquale Paoli” con una tesi intitolata Le Pcf en Corse et le Pci en Sardaigne, 1920-1991: implantation militante, histoire électorale, identité insulaire. È stato operatore di servizio civile presso la Fondazione Gramsci di Roma, dove si è occupato della catalogazione del fondo librario di Paolo Spriano. Nel 2016 ha conseguito con lode la laurea magistrale in Scienze politiche presso l’Università degli studi di Teramo.


DI FELICE, Maria Luisa. Renzo Laconi. Una biografia politica e intellettuale. Roma: Carocci, 2019, 685p. Resenha de: DI STEFANO, Lorenzo. Diacronie – Studi di Storia Contemporanea, v.45, n.1, mar. 2021. Acessar publicação original [IF].

Gabo, cronista da América: história, memória e literatura | F. P. G. Vieira

Na noite em que recebeu o prêmio Nobel de Literatura, Gabriel García Márquez quebrou os protocolos ao comparecer à cerimônia vestido com um típico liquiliqui. A dessemelhança no traje, no entanto, representava apenas uma parte da oposição simbólica que ele traçaria na ocasião, por meio de seu discurso. Nele, o escritor destacou a existência de um nós – os latino-americanos, dos quais se colocava como porta-voz – e de um outro, os europeus para quem falava. Na relação que estabelecia entre esses dois mundos, a América Latina aparecia como vítima do saqueio, da violência e das tentativas de interpretação com base em esquemas alheios, das quais resultaria sua persistente solidão.

Essas palavras ecoavam, além de um protesto, uma visão que vinha ganhando força desde os anos 1950, fomentada por uma geração de escritores, para os quais a América Latina deveria ser compreendida como uma unidade com um passado, um presente e um destino comuns. À altura da cerimônia de outorga do Nobel, o continente havia passado, no intervalo de poucas décadas, por mais de uma revolução e assistido a uma sucessão de golpes de Estado. Os olhos da Europa observavam atentos essas convulsões e, diante deles, García Márquez se colocava como intérprete e tradutor dos impasses e sonhos latino-americanos. Leia Mais

San Martín. Una biografía política del Libertador | Beatriz Bragoni

El libro de Beatriz Bragoni forma parte de una colección de biografías argentinas editadas por el sello editorial Edhasa, en la que son abordadas diferentes figuras de la historia argentina a partir de interrogantes nuevos y complejos, con arreglo a los diversos aportes que ha ido recuperando el género biográfico en el ámbito de la producción e investigación históricas. He ahí, entonces, que podemos hablar de un género que goza de una vitalidad importante y que se cultiva en sintonía con las exigencias de la producción académica sin menoscabo de una narrativa amena que permite afirmar que se trata de libros destinados a un público curioso cuyo alcance excede al de los estudiosos. Leia Mais

Garibaldi in South America. An exploration | Richard Bourne

Antes de ser conocido por su papel en el Risorgimento italiano, Giuseppe Garibaldi pasó aproximadamente trece años entre Río Grande do Sul y Montevideo. En estas latitudes, el luego llamado Héroe de dos mundos no solo participó en redes políticas locales y de distintas guerras internas, tomando partido por la Revolución Farroupilha y la Defensa de Montevideo, sino que también se casó con su primera esposa, Anita, y formó una familia. Asimismo, el recuerdo de ese paso permanece hasta la actualidad en ambos lugares, al punto que nos encontramos con museos, monumentos, calles y hasta pizzerías con su nombre. En torno a esos dos ejes está centrado el trabajo del investigador y escritor británico Richard Bourne Garibaldi in South America: An Exploration.

En la introducción del libro, Bourne plantea que el tiempo que Garibaldi pasó en el sur de América fue fundamental para sus logros posteriores en Europa. Es decir, durante sus años en la región Garibaldi pasó de ser un aventurero con cierto compromiso con la unificación italiana a un muy hábil y carismático comandante capaz de reunir un gran número de voluntarios poco formados y transformarlos en una importante fuerza militar. Sin embargo, este tema no había sido tenido en cuenta por investigadores desde hacía varias décadas y la gran mayoría de los trabajos al respecto, más allá de su aporte documental, estaban dominados por un tono apologético. Leia Mais

Esther Pedreira de Mello, uma mulher (in)visível | Helois Helena Meirelles dos Santos

O livro Esther Pedreira de Mello, uma mulher (in)visível, é fruto da tese de doutorado em Educação da historiadora e pedagoga Heloisa Helena Meirelles dos Santos1 , intitulada Esther Pedreira de Mello: Múltiplas faces de uma mulher (in)visível (1880-1923), defendida em 2014. Publicada em 2017, a presente obra, aqui resenhada, tem como objetivo principal dar visibilidade às múltiplas faces de uma educadora que viveu no final do século XIX e início do XX, fruto de um silenciamento na História, em especial, na historiografia da educação brasileira.

Seu nome, como destacado no título, é Esther Pedreira de Mello. Nascida em Cachoeira, no sertão da Bahia, em 1880, filha de D. Clara Pedreira de Mello e do advogado Dr. Isaias Guedes de Mello, a biografada estudou na Escola Normal, no Rio de Janeiro, em 1897 e exerceu, posteriormente, diversas atividades sociais, tais como: inspetora de ensino (1903), Diretora da Escola Normal (1920), editora de periódicos destinados ao magistério, dentre outras. Dessa maneira, como a educadora pode diferenciar-se das mulheres de seu tempo? Como a personagem narrada teria conseguido ocupar um cargo como inspetora escolar e dirigir a Escola Normal, período em que adentrar a Instrução Pública não era cabido à uma mulher, “tidas como ardilosas, perigosas até, se não demonstrassem subserviência aos homens” (SANTOS, 2017, p. 27)? Leia Mais

Althusser y Sacristán. Itinerarios de dos comunistas críticos | Juan Dal Maso e Ariel Petruccelli

Althusser y Sacristán. Itinerario de dos comunistas críticos es un estudio profundo que constituye una recuperación justa y a la vez crítica de la obra de ambos intelectuales. Justa porque recupera la obra de un filósofo muy poco conocido como Manuel Sacristán, que ha tenido una elaboración muy lúcida y original en torno a problemas de interés y debate contemporáneo. También porque presenta una lectura alternativa a las canónicas sobre Althusser, que repara en su propia visión autocrítica de madurez y que no cae en el reduccionismo de limitar su pensamiento a la etapa “estructuralista”, o la visión que de él presenta E.P. Thompson en Miseria de la teoría. Por otro lado, es una recuperación crítica porque intenta leer las producciones de ambos autores en sus propios términos, encontrando sus nudos y contradicciones, las posibles soluciones que le quisieron dar a los problemas políticos de su tiempo y las lagunas que inherentemente todo pensamiento tiene. Desde esta perspectiva, la obra es tanto una muy buena introducción general al pensamiento de ambos autores como un aporte a la historia intelectual de los marxismos de la posguerra.

La obra está divida en tres apartados generales. El primero, “Las batallas de Althusser” y el segundo “El realismo revolucionario de Manuel Sacristán”, están dedicados a las trayectorias de ambos filósofos, sus obras e intervenciones políticas. Por último, “Teoría y praxis en dos filósofos marxistas de la segunda posguerra” aborda comparativamente algunos aspectos específicos de sus producciones intelectuales: la noción de ciencia en el marxismo, sus lecturas de Antonio Gramsci y las bases desde las cuales propusieron repensar el marxismo y la política de los PC en Europa. Leia Mais

Flávio Koutzii: Biografia de um militante revolucionário. De 1943 a 1984 | Bento B. Schmidt

Com o estudo a respeito da trajetória do militante revolucionário gaúcho Flávio Koutzii, o historiador e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Benito Schmidt consagra-se como uma referência importante na historiografia especializada no campo biográfico. Após 10 anos de pesquisas com consultas a sete arquivos, (além do acervo pessoal do biografado), a 20 periódicos e cerca de 60 entrevistas, Schmidt constrói a história de vida do seu personagem, até o seu quadragésimo primeiro ano de vida, quando Koutzii retornou definitivamente para o Brasil e reconstruiu sua vida pessoal e política na sua terra natal, Porto Alegre. Em 20 de março de 2020 Flávio Koutzii completou 77 anos e eventualmente opina sobre os grandes temas nacionais, a partir de um ponto de vista marxista que consolidou ao longo de sua vida.

O texto de Schmidt é dividido em cinco partes, contando ainda com uma introdução – onde faz uma discussão teórica sobre o gênero biográfico – uma conclusão e um posfácio escrito pelo próprio Koutzii. O livro traz, ainda, uma contribuição de Guilherme Cassel (ministro do Governo Lula e companheiro de partido de Koutzii) e uma lista das fontes consultadas e entrevistas realizadas, bem como a bibliografia. Todo o projeto de pesquisa foi financiado pela CNPQ-CAPES, FAPERGS e foi desenvolvido com apoio de bolsistas ligados à graduação e à pós-graduação do Departamento de história da UFRGS. Leia Mais

Simon de Montfort (c. 1170–1218). Le croisé, son lignage et son temps – AUREL et al (FR)

AUREL, Martin; LIPPIATT, Gregory; MACÉ, Laurent (dir.). Simon de Montfort (c. 1170–1218). Le croisé, son lignage et son temps. Turnhout (Brepols) 2020. 286p. Resenha de: BALARD, Michel. Francia-Recensio, Paris, v.4, 2020.

Figure controversée de son temps et jusqu’au nôtre, Simon de Montfort méritait incontestablement que les historiens d’aujourd’hui reprennent en toute sérénité l’étude de son action dans la croisade albigeoise, de son lignage tant en France qu’en Angleterre, et des idéaux à la base de ses faits et gestes. Un colloque tenu à Poitiers en mai 2018 y pourvut et les communications qui y furent présentées constituent le présent ouvrage, conçu en trois parties: la croisade albigeoise, l’homme, son entourage et ses représentations, enfin le lignage et sa culture.

Jean-Louis Biget, spécialiste reconnu de l’histoire religieuse en Occitanie, analyse la croisade contre les Albigeois, à partir du 15 août 1209, date à laquelle Simon de Montfort en prend la direction. Ce fut une guerre sans merci, mue par un esprit de croisade, de réforme morale et de purification spirituelle, qui cherche à éliminer les hérétiques, jugés pires que les Sarrasins. L’auteur montre les difficultés de la conquête, dues au manque d’effectifs et de moyens financiers, rendant illusoire le gouvernement des villes et des territoires conquis. Aux années triomphales (1214–1215) conclues par le IVe concile du Latran qui accorde au vainqueur tout le pays conquis, succède l’échec marqué par l’incapacité d’occuper le territoire occitan, la révolte de Toulouse et la mort de Simon devant la ville qu’il assiégeait (1218). D’heureuses cartes permettent de suivre la marche des croisés et l’organisation de leurs conquêtes.

C’est à cette tâche que dès 1212 le vainqueur s’adonne en faisant publier par un parlement croisé les »Statuts de Pamiers«. Largement inspiré de la réforme morale néo-grégorienne, ce texte cherche à imposer au Midi occitan la coutume française en matière de fief, de mariage, de statut des clercs, de corvées et de taille, tout en interdisant l’ordalie, la vengeance privée et les exactions seigneuriales. Gregory Lippiatt en compare les clauses avec d’autres textes contemporains, les »Assises d’Antioche«(avant 1219), le »Livre au Roi« (vers 1200) la »Bulle d’or« promulguée en 1222 par le roi André II de Hongrie ou les »Assises de Capoue« dues à Frédéric II (et non à Frédéric Ier, p. 43). À la différence de ces derniers, les »Statuts de Pamiers« établissent avec la »Bulle d’or« une étroite connexion entre croisade et réforme morale, mais ils n’auront qu’une éphémère application.

Martin Alvira retrace les rapports entre Simon de Montfort et Pierre II d’Aragon, depuis leur première rencontre en novembre 1209, jusqu’à la bataille de Muret (13 septembre 1213) où le »comte du Christ«, comme le dénomment certains chroniqueurs, serait venu s’apitoyer sur le cadavre du roi d’Aragon, tué par des chevaliers croisés. Le désir de revanche animera désormais les vaincus, faisant de Simon le bourreau de leur peuple.

La mort de Pierre II fait de son jeune fils, Jacques, otage de Simon de Montfort dès avant Muret, l’héritier du trône d’Aragon. Le légat pontifical, Pierre de Bénévent, recueille le jeune prince et en assure la protection face au conseil de régence. Damian Smith montre comment les nobles aragonais vont se préoccuper plutôt de leurs intérêts dans le Sud de la péninsule, face aux Almohades, que de leur implication dans les affaires de l’Occitanie.

Les démêlés de Simon de Montfort en Angleterre font l’objet de l’exposé, quelque peu confus, de Nicholas Vincent. Comte de Leicester jusqu’en 1209, Simon est privé de ses droits sur son comté par Jean sans Terre, les retrouve en plusieurs occasions, les perd à nouveau, de sorte qu’il devient l’inspirateur des barons anglais hostiles au roi. L’engagement de Simon dans la croisade albigeoise serait la conséquence directe de ses déboires concernant le comté de Leicester. Son fils, Simon VI, bénéficie à son tour de la faveur des barons anglais, en cultivant le souvenir et les relations de son père.

Laurent Macé étudie ensuite les sceaux successifs du lignage des Montfort, dont il donne des descriptions précises, sans malheureusement montrer autre chose que deux petites illustrations. Son exposé ainsi que le précédent (p. 125–126), auraient nécessité plusieurs clichés des types sigillaires successivement adoptés par Simon de Montfort et ses descendants.

Que devient la croisade après la mort de son chef devant les murs de Toulouse en 1218? Daniel Power, déplorant des sources moins nombreuses sur les événements postérieurs, rappelle la mort de Guy de Montfort lors du siège de Castelnaudary en 1220, la prise de Montréal par les Toulousains en février 1221, la participation d’Hugues de Lusignan, la fondation de l’ordre de la Foi en Jésus-Christ, puis en 1224 la trêve conclue avec les comtes de Toulouse et de Foix, par Amaury de Montfort, laissant au roi Louis VIII le soin de poursuivre la croisade dans le Midi.

Les relations des Montfort avec les Capétiens sont rendues difficiles par leur position ambivalente entre France et Angleterre. Lindy Grant retrace l’ascension du lignage depuis Simon Ier (entre 1060 et 1087): à partir d’une petite seigneurie dans la forêt royale des Yvelines (Montfort), la famille grâce à des mariages heureux acquiert le comté d’Évreux, puis celui de Leicester, mais est victime du conflit entre Capétiens et Plantagenêt. Renonçant à ses droits sur le Languedoc en 1224, Amaury, fils de Simon, est accueilli à la cour de Louis VIII, cède ses possessions anglaises à son frère Simon VI, et devient l’un des principaux conseillers de Blanche de Castille, durant sa régence. Il participe en 1239 à la croisade des barons dans le royaume de Jérusalem, est fait prisonnier en Égypte. Racheté, il meurt en Pouille sur la route du retour.

Sophie Ambler s’attache ensuite à décrire l’influence prépondérante de Simon V sur son fils Simon VI. Mu par les mêmes idéaux, faisant de la guerre sainte sa raison d’être, adoptant un sceau semblable à celui de son père (p. 199: pas d’illustration), Simon VI devient le leader de la révolution menée par les barons anglais contre le roi Henri III et son fils Édouard, mais est tué par les fidèles du roi à la bataille d’Evesham le 4 août 1265.

C’est à son expérience de gouverneur de la Gascogne anglaise que s’intéresse Amicie Pélissié du Rausas. Ayant épousé Éléanor, sœur d’Henri III, Simon VI en 1248 est dépêché par le souverain en Gascogne en pleine anarchie. Conscient d’une mission politico-religieuse et d’un souci de bon gouvernement, mais s’opposant avec violence aux coutumes et aux droits ancestraux des Gascons, Montfort se met rapidement à dos les seigneurs locaux, le peuple et l’archevêque de Bordeaux, Géraud de Malemort. Rappelé à Londres en 1252, à la suite des »dépositions gasconnes« rédigées contre lui, il est désavoué par le roi, ce qui explique sans doute son rapprochement avec les barons anglais hostiles au souverain.

Pendant moins d’un an (1265), le comté de Chester est devenu possession de Simon VI. Soutenu par des propriétaires terriens locaux, mais rejeté en raison de son gouvernement autocratique, comme le montre Rodolphe Billaud, Montfort le perd définitivement à sa mort en août 1265, au profit du futur Édouard Ier, suffisamment habile pour s’imposer en confirmant les droits et coutumes du comté.

Le dernier article, dû à Caterina Girber, étudie l’héraldique imaginaire des Montfort, oscillant entre flatteries et diffamations dans le roman arthurien ou dans deux manuscrits de l’Apocalypse.

Vient enfin une lumineuse conclusion de l’ouvrage par Martin Aurell qui développe trois thèmes illustrant la vie du lignage: Simon V et son fils représentent deux figures controversées qu’il convient de comprendre en les situant dans la société de leur temps. Mus par une ambition princière, écartelés entre Capétiens et Plantagenêt, ils échouent à garder un domaine de part et d’autre de la Manche. Aurell insiste enfin sur la ferveur religieuse du lignage, embu d’un idéal chevaleresque cléricalisé, mais aussi lieu de transmission de savoirs et de valeurs culturelles. L’extrême ambition de ses membres, pour lesquels la guerre sainte est une affaire de famille et un moyen d’expansion territoriale, les place dans une situation inconfortable, tantôt au service des souverains, tantôt à la tête d’une conjuration hostile au pouvoir royal.

De ce bel ouvrage émerge une image nuancée de Simon V et de ses descendants. Il est dommage qu’il y manque un exposé sur leurs participations aux croisades d’Orient (1204 pour Simon V, croisade des barons pour Amaury). Un tableau généalogique aurait été d’une grande utilité pour suivre la stratégie matrimoniale, moyen de leur ascension. On peut enfin déplorer la quasi absence de toute illustration et d’un index indispensable dans tout ouvrage de cette qualité.

Michel Balard – Paris.

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Martín Balza. Un general argentino. Entre la república y la democracia | Germán Soprano

Escribir una biografía, que merezca ser leída o al menos consultada, supone no solo el dominio de los datos personales y las trayectorias de vida del protagonista, sino un claro sentido sobre el propósito de la obra y las implicancias que contextualizan y explican los escenarios donde los hechos ocurrieron. No menos importante es la condición de contemporaneidad y pervivencia del personaje, ya que la distancia cronológica y la muerte -que no es este el caso- otorgarían mayor libertad de expresión y tornarían admisibles ciertos juicios críticos que la figura de un hombre público como Martín Antonio Balza siempre alientan. Ambas circunstancias son ampliamente superadas por Germán Soprano en este libro, ya que logra dar cuenta de un hombre y su tiempo sin caer en la vulgaridad apologética, además de desplegar los hechos con objetividad, más allá de la asumida admiración del autor por su biografiado.

Lo anterior es posible porque Soprano establece en forma clara, ya en la introducción, la multiplicidad de fines que persigue con este texto y que dan forma a través de la vida de Balza a una manifestación sobre las relaciones entre el Ejército y la sociedad, pero también cuál ha sido y podría ser el rol del instrumento militar terrestre en el marco de la Defensa Nacional. Para ello, el autor recurre a un infatigable trabajo de archivo y relevamiento documental que deja clara la dimensión heurística que apoya el relato metódico que estos dos tomos –por cierto bien justificados– entregan al lector. Leia Mais

Edmund Burke: redescobrindo um  gênio – Russel Kirk / Rodrigo Perez / 11 ago 2020

Ouvimos falar, à esquerda, à direita e ao centro, que o Brasil está sendo governador por “conservadores”. A própria sociedade brasileira seria “conservadora”. Mas o que significa ser conservador? Fora dos clichês, o que é conservadorismo?

Na coluna “Livros que merecem uma sentada” dessa semana, discuto o assunto, resenhando a biografia de Edmund Burke escrita por Russel Kirk. Burke é um conservador irlandês viveu na segunda metade do século XVIII, contemporâneo à Revolução Francesa.
Kirk é um conservador que viveu nos EUA na segunda metade do século XX, contemporâneo à guerra fria. O que há em comum entre eles que nos permitem classificá-los como “conservadores”?

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Karl Marx: uma biografia dialética | Angelo Segrillo

O livro de Angelo Segrillo (professor Livre Docente de história contemporânea, coordena o Laboratório de Estudos da Ásia do Departamento de História da USP; Graduou-se pela Southwest Missouri State University (EUA), cursou mestrado no Instituto Pushkin de Moscou (Rússia) e doutorado na UFF; É especialista em história da Rússia e ex-URSS eurasiana) se soma a outros dois trabalhos, com escopo biográfico, publicados por pensadores brasileiros. O primeiro deles, “Marx – vida e obra” de Leandro Konder publicado no Rio de Janeiro pela editora Paz e Terra, nos anos 1970 (em 2015 foi publicado em nova edição pela Editora Expressão Popular) e o outro, “Marx Vida e Obra” do professor José Arthur Giannotti publicado em 2000 na coleção L&PM Pocket Filosofia. Porém, enquanto estas duas obras abordam com maior ênfase aspectos teóricos do pensador alemão, Segrillo produz um trabalho com foco na vida de Karl Marx.

‘Karl Marx: uma biografia dialética’ é dividido em 10 capítulos, além da introdução, da conclusão, de um anexo (que é a cronologia da vida de Marx) e da bibliografia. As seções do livro não são proporcionais, uma vez que cada uma delas analisa como Marx viveu, em cada cidade pela qual passou. Dessa forma, lugares em que o Mouro (apelido pelo qual Marx era conhecido em razão da cor de sua pele, mais escura que os seus amigos e familiares) permaneceu por menos tempo tiveram um espaço menor no livro, sendo o décimo capítulo, “Londres, agosto 1849-14 de março 1883”, o maior de todos. Leia Mais

Santiago Londoño Londoño/ el hombre y la leyenda | Javier Amaya

En Pereira nació hace 100 años Santiago Londoño Londoño. Fue médico oncólogo, piloto de avión, cultivador de café, concejal y diputado, homosexual confeso, mecenas de las artes y miembro activo del Partido Comunista Colombiano, a quien le dejó por testamento su cuantiosa herencia. Su vida generó tantos efectos sociales, políticos y de salubridad pública, que su recuerdo ha quedado imborrable en el Eje Cafetero y generado siempre, en vida y muerte, un respeto por sus ideas y una admiración por su generosidad. Como lo repite el escritor Javier Amaya en su obra Santiago Londoño Londoño, el hombre y la leyenda, hasta Luis Carlos González, el poeta de la ruana, le dedicó un poema que termina «en el surco sembrado de sus nobles favores / crece el trigo silente de los gratos deudores / que le pagan la vida pronunciando su nombre». Leia Mais

Zé Dirceu Memórias. Vol.1 | José Dirceu

José Dirceu de Oliveira e Silva, nascido em 16 de março de 1946, na cidade mineira de Passa Quatro, graduado em Direito pela PUC-SP, ex-ministro de Estado Chefe da Casa Civil da Presidência da República, é o autor da obra aqui resenhada, intitulada: Zé Dirceu memórias Volume I, que fora escrita ao longo de 2018, enquanto estivera preso no Complexo Médico-Penal, de Pinhais, em Região Metropolitana de Curitiba. Com efeito, por si só, seu nome atrai olhares curiosos e atenções midiáticas, sejam de simpatizantes à sua trajetória de vida, sejam de críticos.

José Dirceu, como um político e personagem social recente da vida política brasileira, atinge sua significância ao relatar em sua obra momentos marcantes de atuação, de particular relevância para compreensão de seu trajeto em momentos chave da história do Brasil, como por exemplo, sua luta no movimento estudantil no enfrentamento à ditadura civil-militar (1964 – 1985), seu exílio em Cuba (1969-1974) com direito a relatos dos encontros com Fidel Castro, a criação do Partido dos Trabalhadores (PT) em 1980, a elaboração da Constituição entre os anos 1987 e 1988, o movimento “Fora Collor” em 1991, e a queda por impeachment do ex-presidente em 1992, a chegada do PT ao poder com Luiz Inácio Lula da Silva (Lula) na presidência (2002-2010), o escândalo do mensalão em 2005 e a recepção do mesmo pela mídia. Leia Mais

O que pode a biografia | Alexandre de Sá Avelar e Benito Bisso Schmidt

Benito Bisso Schmidt é professor no Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Nessa instituição, graduou-se e realizou o Mestrado e concluiu o Doutorado em 2002, pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Durante a sua formação, Schmidt estudou temas referentes à Biografia e à História Social do Trabalho, como também passou a se debruçar sobre os Estudos Queer. Alexandre de Sá Avelar é docente no Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Graduou-se e tornou-se, em 2001, mestre pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e, posteriormente, cursou o Doutorado na Universidade Federal Fluminense (UFF). Avelar trabalhou com temas ligados aos campos da História Política, da Biografia, da Teoria da História e da Historiografia.

Organizada por esses historiadores, a coletânea intitulada O que pode a biografia apresenta a narrativa como eixo principal de análise e os capítulos divididos em duas sessões. A primeira, Horizontes Teórico-Metodológicos, está relacionada aos processos constitutivos da biografia (indivíduo, tempo, narrativa e escalas) e a sua inserção no debate público. A segunda, Experiências de Pesquisa e Leitura, apresenta as trajetórias de pesquisadores, que contribuíram para a coletânea da obra, e os parâmetros usados na elaboração de suas pesquisas. Leia Mais

Lima Barreto: triste visionário | Lilia Moritz Schwarcz

Creio ser desnecessário apresentar a renomada escritora Lilia Moritz Schwarcz, autora de muitas obras no campo das ciências humanas. Iremos nos limitar a dizer que é uma pesquisadora com formação em História e Antropologia que, ao longo de suas pesquisas, tem contribuído sobremaneira com o debate acerca das relações raciais no Brasil. O livro O Espetáculo das Raças é um exemplo cabal do que estamos falando.

O objeto de nossa resenha, o livro Lima Barreto: Triste Visionário, publicado pela conceituada Editora Companhia das Letras, no ano de 2017, discorre sobre o escritor negro Afonso Henriques de Lima Barreto, mais conhecido como Lima Barreto. Leia Mais

O que pode a biografia | Alexandre de Sá Avelar e Benito Bisso Schmidt

Em algum momento, Fernando Pessoa afirmou que se um dia escrevessem sua biografia seria algo simples, com somente duas datas, de nascimento e de morte, pois todo o resto era algo só seu. Os biógrafos e os leitores de biografias discordam deste monopólio do indivíduo sobre sua trajetória e enquanto os primeiros exercitam seu ofício na construção de narrativas diversas sobre seus personagens, os segundos satisfazem suas curiosidades através da leitura de obras com diversificado conteúdo e em distintos formatos.

Personagens, biógrafos e biografias têm sido objetos de reflexão em diversos campos das ciências humanas, de modo que a História, ao mesmo tempo em que busca o diálogo com as ciências sociais, a teoria literária, a análise de discurso, a psicologia, entre outras áreas e especialidades, também tem se dedicado de forma ampla, constante e vigorosa sobre os temas derivados de tais objetos. Leia Mais

Martín García Mérou. Vida intelectual y diplomática en las Américas | Paula Bruno

En 1878 el argentino Martín García Mérou obtuvo un reconocimiento en un concurso literario del colegio que le valió el apoyo y la protección, entre otros, de los intelectuales Miguel Cané y Manuel Estrada. Con tan sólo diecinueve años fue nombrado oficial secretario de Cané en Venezuela y Colombia abriéndose así una nueva etapa en su vida de donde surgió la obra Impresiones (1884). Desde entonces, y hasta su muerte en 1905, García Mérou vivirá la mayor parte de su vida fuera de Argentina para representarla y lo hará en un contexto muy específico, el cambio del siglo XIX al XX. Aprovechará sus estancias en los distintos países tanto para recopilar materiales como para escribir sus experiencias y análisis que le permitirán a su vez proponer sus propias reflexiones ante sucesos internacionales. Estas reflexiones propias, así como su distanciamiento de los temas predominantes de la época, hacen que el perfil de García Mérou deba ser estudiado desde otra perspectiva distinta a la de varios de sus contemporáneos que también realizaron labores en el exterior. Precisamente, Paula Bruno con esta obra nos presenta a un intelectual-diplomático, ya que en García Mérou la vida intelectual y diplomática se unen, y nos invita a volver a pensarlo y leerlo de manera integral a través de sus textos.

Este interés de Bruno por las “vidas intelectuales”, por la aproximación biográfica para estudiar una época, no es reciente. Fue promotora de la Red de Estudios Biográficos de América Latina –REBAL– y desde hace años esta historiadora ha publicado varias obras que se enfocan en esa cuestión, distanciándose del modelo de biografía intelectual e inscribiéndose en la historia social de los intelectuales. Para ello, combina en sus trabajos rasgos y circunstancias biográficas con ideas y tramas sociales culturales que le permiten reconstruir los distintos perfiles. Caben mencionar sus libros Paul Groussac. Un estratega intelectual (2005) o Pioneros culturales de la Argentina. Biografías de una época, 1860-1910 (2011). En este último propone un acercamiento a la vida cultural del país de la segunda mitad del siglo XIX e inicios del XX a través de distintas biografías, entre ellas las de Paul Groussac, José Manuel Estrada o Eduardo Wilde, hombres a los que también hará referencia en la obra reseñada y que muestran junto con García Mérou las singularidades de la vida cultural de la época. Por ejemplo, Wilde y García Mérou son dos casos de la conformación de nuevas interpretaciones optimistas acerca del ascenso de Estados Unidos desarrolladas a partir de una experiencia diplomática con el propio país. Leia Mais

Si je reviens un jour… Les lettres retrouvées de Louise Pikovsky – TROUILLARD; LAMBERT (APHG)

TROUILLARD, Stéphanie, LAMBERT, Thibaut. Si je reviens un jour… Les lettres retrouvées de Louise Pikovsky. Paris: Des Ronds dans l’O, 2020. Resenha de: CHANOIR, Yohann. Association des Professeurs d’Histoire et de Géographie (APHG). 30 avr. 2020. Disponível em: <https://www.aphg.fr/Si-je-reviens-un-jour-Les-lettres-retrouvees-de-Louise-Pikovsky-4019> Consultado em 11 jan. 2021.

Un livre, une histoire, l’Histoire

Tout livre, même dessiné, a une histoire. Celui-ci encore plus que les autres. En 2010, dans un lycée parisien, sont retrouvées des lettres et des photographies appartenant à une ancienne élève, Louise Pikovsky. Arrêtée le 22 janvier 1944, transférée à Drancy avec ses parents, elle est déportée à Auschwitz, d’où elle ne reviendra pas. Le destin de Louise et de sa correspondance épistolaire avec sa professeure de latin-grec est en soi déjà émouvant. Mais il l’est davantage encore par la suite. Retrouvées, les lettres sont lues, mises en valeur dans le lycée de Louise, où une plaque commémorative sur les élèves déportés a pu être posée. Elles ont servi ensuite à nourrir un webdocumentaire réalisé par Stéphanie Trouillard en 2017, auteure que nos lecteurs connaissent bien avec son très beau livre Mon oncle de l’ombre, sur son grand-oncle exécuté en 1944 par les Allemands. Elles sont devenues aujourd’hui une bande dessinée. On retrouvera d’ailleurs quelques-unes de ces lettres et photos à la fin de l’album.

La vie d’une jeune lycéenne parisienne

Née en 1932, Louise est une élève dont la maturité surprendra plus d’un lecteur. Non seulement par la beauté de son raisonnement, par son souci des autres, mais aussi par sa prescience en 1944 que son destin est scellé et qu’elle accepte avec une incroyable résolution. Louise est cependant une jeune fille, comme bien d’autres, avec ses amitiés, ses inimitiés. Elle est aussi une de ces élèves, toujours trop rares, qui saisissent la beauté d’un texte, qui s’accaparent l’enseignement donné, le questionnent, le transforment et lui donnent une plus-value. De fait cet album est aussi celui d’une rencontre, entre une élève et son enseignante. La classe n’épuise pas évidemment la vie de Louise. On plonge dans son quotidien, les repas avec la famille, les chamailleries avec les sœurs et son frère. Le dessinateur a su rendre le caractère spartiate du logement par les couleurs plutôt ternes (seuls les rideaux rouges sous l’évier cassent la palette chromatique). Il a su également l’enrichir par une foule de petits détails, ces « effets de réel » dont parlait Roland Barthes : le torchon qui enveloppe le pain (p. 23), le seau pour les détritus (p. 19) etc. Le sérieux du propos n’exclut pas l’humour. Nos lecteurs attentifs retrouveront le clin d’œil à Hergé et aux aventures de Tintin, une allusion référentielle typique de l’école belge.

La guerre en arrière-plan

Drame singulier en même temps qu’expérience collective subie par des millions de personnes, le destin de Louise n’est pas décontextualisé. Par petites touches, à la manière d’un impressionniste, le dessinateur place des éléments de contexte dans les planches. On y découvre un Paris bien sûr occupé, avec la présence de soldats allemands, un Paris déjà martyrisé par les bombardements (p. 49) mais aussi une capitale où la mort sociale de la population juive est mise en œuvre, avec le dessin bien connu d’une pancarte dressée devant un parc à jeux réservé aux enfants mais interdit aux Juifs (p. 34). L’album offre ainsi un résumé saisissant de la politique de collaboration des autorités avec les nazis : policiers français qui saluent, au détour d’une rue, une patrouille allemande, policiers français qui viennent arrêter Louise et sa famille pour les emmener à Drancy, antichambre de la mort, policiers enfin qui livrent les familles aux nazis. En quelques images, sans le renfort de cartouches, tout est montré, tout est dit. Ces images sont d’autant plus poignantes que les grands-parents de Louise avaient quitté la Russie pour échapper aux pogroms et qu’ils pensaient être libres, heureux, en sécurité. Le destin de Louise est aussi la mort d’une certaine idée de la République.

Un album à lire et à faire lire

Si l’intérêt de cette bande dessinée est naturellement d’ordre mémoriel, il nous semble que l’album joue un rôle tout aussi déterminant dans la pédagogie de la Shoah. Expliquer à des élèves aujourd’hui ce qu’est cet assassinant industriel de masse, n’est pas simple. Cela ne peut se réduire à une collection de mesures et de chiffres. Il est nécessaire d’incarner la « Solution finale », par des exemples précis. Comme le cinéma ou les séries télévisées, la bande dessinée dispose du pouvoir de l’image. À ce titre, en raison de sa richesse, cet album doit s’inviter dans nos pratiques.

Il y a d’abord l’empathie pour une jeune fille de leur âge. Il y a ensuite l’explication sobre et efficace de la mécanique implacable de la Shoah, de l’exclusion à l’arrestation puis à la déportation. La bande dessinée souligne également l’héroïsme au quotidien d’une enseignante, qui fait retirer à Louise pour la photo de classe, sa veste avec l’étoile jaune, car elle est « une élève comme les autres » (p. 45). On imagine la tranquille résolution de notre collègue qui, elle, n’a pas démérité de la haute idée que l’immense majorité du corps enseignant, hier comme aujourd’hui, se fait de la République.

Les larmes de notre collègue s’expliquent ainsi sans doute, pour ne pas avoir pu sauver une jeune vie si prometteuse et par là tout un monde. Qu’elle soit toutefois assurée et rassurée, grâce à elle, et grâce au travail des auteurs de cet album, au soutien de la Fondation pour la Mémoire de la Shoah, Louise ne sera plus oubliée.

Site web de l’éditeur

Yohann Chanoir – Agrégé d’histoire, professeur en classe européenne allemand au Lycée Jean Jaurès de Reims, rédacteur en chef adjoint d’Historiens & Géographes.

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La revolución de los arrendires. Una historia personal de la reforma agraria | Rolando Rojas Rojas

A medio siglo de la Reforma Agraria promovida por el gobierno de Juan Velasco Alvarado (1968-1975), quedan muchas historias que contar y volver a contar. Más que conmemorar, la variedad de producciones culturales y publicaciones académicas que nos dejó el 2019 sirvió al Perú para interrogar el contestado legado de la reforma. El presente libro La revolución de los arrendires se destaca por su estilo testimonial. El historiador Rolando Rojas logra narrar una crónica en que confluye una historia personal -siendo nieto de uno de los protagonistas- y un análisis académico acerca de la agitación rural en años previos al decreto de 1969.

Lo que guía al autor son los íntimos recuerdos de familias campesinas del valle de La Convención, Cusco, sobre un evento dramático en 1956. En aquel año, un grupo de convencianos -entre ellos Tomás Rojas Pillco, abuelo del propio autor- conspiró para atentar contra la vida de Alberto Duque Larrea. Los primeros eran “arrendires” de Duque, un hacendado poderoso, no sólo en tierras, sino también en influencia política y jurídica en el valle. Para ellos, Duque era la personificación de un régimen profundamente desigual e injusto con el que decidieron acabar. El término “arrendires” dio el título al libro y llama inmediatamente la atención de las y los historiadores agrarios. El “arrendire” surgió en la región del Cuzco para referir a los jornaleros a quienes el hacendado cedió el usufructo de una porción de tierra de su propiedad a cambio de una serie de obligaciones. El libro no analiza en detalle la evolución de esta figura y los cambios concomitantes en el acceso a la tierra, pero examina el papel de estos actores en dinamizar el contexto rural pre-reforma. Ante su inminente expulsión dos arrendires encontraron un aliado en Tomás Rojas y complotaron para asesinar al hacendado. El atentado quedó registrado en la prensa regional como “la conspiración de los arrendires”. Leia Mais

Virginia Artigas. Histórias de arte e política | Rosa Artigas

Mais do que pode ser, a vida é maravilhosa! Tenho nas mãos agora um livro encantador escrito por Rosa Artigas sobre sua mãe: Virgínia Artigas, histórias de arte e política.

Armênio, nosso camarada sereno e cordial, instalou a amizade entre nós. O livro no qual celebramos sua memória – Nosso Armênio (1) – será lançado em São Paulo no dia 17 de março de 2020 (2). Trinta e um amigos, inclusive nós, derramam emoções e afeto no quanto escreveram a respeito do “Tio”, como o chamávamos. Mas o que agora me fascina, de verdade, é o livro da Rosa. Leia Mais

Gramsci: una nuova biografia A. D’orsi

O italiano Antonio Gramsci (1891-1937) pode ter seu pensamento caracterizado como essencialmente dialógico. Tendo sua personalidade intelectual construída em um período de crises marcado pela I Guerra e a ascensão do nacionalismo fascista, procurou dar respostas às questões de seu presente tanto no âmbito da elaboração intelectual como na política prática. Compreender seu pensamento exige conectá-lo com seu tempo histórico e assumir como premissa a dupla orientação de pensamento e ação que lhe marcou. Essa premissa pode parecer banal, mas devemos lembrar que se trata de uma produção mobilizada e disputada inicialmente pelo PCI (Partido Comunista Italiano) e depois pela leitura liberal estimulada especialmente a partir de Norberto Bobbio. Mais recentemente, conservadores radicais nos EUA e Brasil têm tratado a produção gramsciana como um tipo de manual que haveria orientado a esquerda em uma luta cultural, segundo esses conservadores vencida por seus antagonistas. Embora tais grupos e leituras não possam ter tratados como equivalentes, elas ilustram a persistente atenção a Gramsci e suas ideias, ainda que por vezes as mesmas sejam simplesmente instrumentalizadas ou intencionalmente distorcidas. Enfim, Gramsci está bastante vivo nos debates e controvérsia do tempo presente e não apenas no Brasil. Leia Mais

La mujer que salvaba a los niños – MULLEY (SEH)

MULLEY, C. La mujer que salvaba a los niños. Barcelona: Alienta Editorial, 2018. Resenha de: SÁNCHEZ, Elena Duque. Social and Education History, v9, n.1, p.121-123, feb., 2020.

El presente libro es una biografía de Eglantyne Jebb, nacida en 1876 en Ellesmere (Reino Unido) en una familia de clase media intelectual, que tal y como se detalla en el libro, poseían una casa en la que en todas las habitaciones era posible encontrar libros. Una pasión, la lectura que Eglantyne inició desde pequeña y no abandonó hasta su muerte. Licenciada en historia por la universidad de Oxford decidió en 1899 comenzar a dar clases en una escuela para niños y niñas de clase trabajadora y con situación económica precaria. Esta experiencia la llevó a apasionarse por la educación y por la búsqueda de mejores metodologías de aprendizaje y a estudiar la carrera de magisterio.

Tal y como se muestra a través del libro, los varios problemas de salud que tuvo nuestra Eglentyne generaron que tuviera que pasar largos períodos sin trabajar. Fue a partir de 1916 que empezó a unirse aún más a su hermana Dorothy, que movida afiliada a Liga internacional por la paz y la libertad y activista pacifista. Dorothy estaba convencida que la promoción de una visión más humanitaria de los enemigos de la Gran Bretaña se podría conseguir una paz negociada (recordemos que para esas fechas, ya se había iniciado la I Guerra Mundial). Uno de los proyectos de Dorothy para combatir la información sesgada sobre la guerra en los periódicos de Gran Bretaña, fue la de publicar noticias de la misma guerra, pero en periódicos de los países enemigos o neutrales. Con el objetivo de mostrar el sufrimiento de ambos bandos y no justificar la guerra. Entre su equipo de colaboradoras y traductoras se encontraba su hermana Eglentyne que dominaba con fluidez el francés y el alemán En 1919, entre cuatro y cinco millones de niños y niñas se estaban muriendo de hambre en Europa. Dorothy creó en marzo la Oficina de Información sobre el Hambre con el objetivo de recoger información fiable de la verdadera situación de los niños y niñas víctimas colaterales de la guerra. En estos momentos se empezaron también a elaborar y distribuir folletos de niños y niñas austríacas hambrientas, mostrando así las secuelas que estaba teniendo la guerra para un colectivo totalmente inocente. Motivo por el que fue detenida Eglentyne y otra compañera y llevadas a juicio. El motivo fue la distribución de propaganda no autorizada por el gobierno.

La propaganda involuntaria de dicho juicio fue aprovechada por las dos hermanas y convocaron una “Reunión contra la hambruna” el 19 de mayo de 1919. Fecha que se considera la creación de Save de Children. En dicha reunión Eglentyne dio un mensaje muy poderoso sobre los niños y niñas: “Tenemos un único objetivo, salvar a tantos como sea posible. Tenemos una sola regla, les ayudaremos sea cual sea su país, sea cual sea su religión” (p.319).

Aunque existían otras organizaciones humanitarias en terreno de guerra, la realidad era que los niños y sus necesidades no eran tenidos en cuenta.

Siendo así que Save the Children se convirtió en la primera organización benéfica especial creada para niños sin hogar y la primera fundada por mujeres. También es la mayor organización internacional independiente para la mejora de la infancia. Y, por lo tanto, también ha contribuido a crear conciencia de la existencia de derechos de un colectivo totalmente invisibilizado como eran los niños y niñas.

A partir de su creación, el trabajo se centró en recaudar fondos para hacer llegar la ayuda al máximo de niños y niñas y a crear una conciencia de que éstos ser considerados terreno neutral. Para hacer aún más clara esta posición de la asociación, se decidió poner su sede en Ginebra, considerado país neutral.

Al trabajo en Save the Children como presidenta de Eglentyne, se unió su empeño por crear un documento con reconocimiento que reuniera los derechos imprescindibles de los niños y niñas, tal y como se detalla en el capítulo 15, llevó a Eglantyne a elaborar un inicial redactado llamado “Carta del niño” con cinco puntos que fue el punto de partida de la promulgación de los Derechos del niño y la niña por parte de las Naciones Unidas.  En este libro se pueden encontrar los detalles de la trayectoria de una mujer que se rebeló también contra las imposiciones sociales de su época y consiguió hacer partícipe a la humanidad de la necesidad de poner en el centro del bienestar a los niños y niñas.

Elena Duque Sánchez – Universidad de Barcelona. E-mail: [email protected].

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Fragmento de Chile | Rodrigo Karmy Boltron

El presente libro reúne tres estudios/ensayos sobre tres intelectuales chilenos: Fernando Atria, Mario Góngora y Guadalupe Santa Cruz. Distintos, pero que tienen en común el haber pensado el neoliberalismo y el seguir haciéndolo pensable. “Fragmento de Chile es un conjunto de ensayos sobre las formas de violencia arraigadas en una perdida tierra al sur del planeta”, escribe Karmy.

La línea interpretativa consiste en revelar el postulado teológico detrás de cada autor, no como mero ejercicio de desvelamiento (un mostrar el enano metafísico que mueve el muñeco materialista), sino como el componente que posibilita la figuración de cada planteamiento, determinados por un inicial rechazo al neoliberalismo. Pero tanto como hacen posible pensarlo también marcan un límite, pues cada discurso, en la medida que asegura un sentido, nos condena también a un cierre que –en nuestra opinión– está determinado por la orientación la acción. Rodrigo Karmy dedica su último ensayo a Guadalupe Santa Cruz, en quien dicho postulado dice relación con el neoliberalismo como forma histórica del pastorado, que domestica bajo la prédica de la rentabilidad, frente a ello: “la escritura de Santa Cruz es la de una feliz ingobernabilidad que restituye justicia, que es pérdida y no acumulación” (p. 131). En el caso de Atria –el ensayo más provocador dado la contingencia nacional– se trataría “de una apuesta apofática por un Dios personal (…) que se proyecta en la concepción igualmente personal del pueblo. Este último puede desafiar la neutralización instigada por la Constitución de 1980 y recuperar así su carácter de agencia política sólo si se presenta bajo la forma de una persona. Sin embargo, nuestra tesis plantea que al circunscribir al pueblo bajo la forma de la persona, Atria limita las posibilidades de dicha potencia capturándola en un nuevo katechón”, un poder que contiene (pp. 31- 32). Leia Mais

Fidel Castro: biografia a duas vozes | Ignacio Ramonet

O livro escrito por Ignacio Ramonet é intitulado Fidel Castro: biografia a duas vozes e foi publicado em 2016 pela editora Boitempo. A obra é uma versão atualizada da primeira edição, publicada em 2006, e aborda a trajetória de Fidel Castro, que concretizou uma revolução em Cuba em 1959. O trabalho é fruto de 300 horas de entrevistas realizadas por Ramonet, que construiu uma destacada carreira como jornalista dirigindo o jornal Le Monde Diplomatique. As entrevistas foram realizadas entre 2003 e 2005, uma obra que, como o próprio autor nomeia, é uma espécie de “livro-conversa”.

Não são poucas as biografias de Fidel Castro, afinal esse foi o homem que comandou uma revolução na América Latina em meio à Guerra Fria e teve sempre como obstáculo os Estados Unidos, o país mais desenvolvido economicamente no continente americano. O livro de Ramonet se destaca pela casualidade de uma conversa, o que faz muitas vezes a leitora e o leitor estabelecer um grau de proximidade com os interlocutores, desejando que o entrevistador aprofunde algum tema, ou mesmo querendo fazer muitas perguntas sobre os diversos assuntos que são abordados no livro. Leia Mais

Guilherme Mansur – MELLO (HU)

MELLO, S.H. Guilherme Mansur. São Paulo: Edusp/Com-Arte, 2018. 144 p. (Editando o Editor, 9). Resenha de: QUINTA, Hugo. O caleidoscópio telúrico de Guilherme Mansur: tipógrafo-editor-poeta e artista gráfico. História Unisinos 24(1):157-160, Janeiro/Abril 2020.

Editando o Editor é a coleção idealizada por Jerusa Pires Ferreira, dirigida por ela e por Plinio Martins Filho, e editada desde 1989, ano em que a Prol Editora Gráfica e a Com-Arte (editora laboratório dos alunos de Editoração da Escola de Comunicação e Artes da USP) publicaram o primeiro livro da coleção com o relato de Jacó Ginsburg. A partir de 1991, ano de lançamento da segunda obra com o testemunho de Flávio Aderaldo, a Edusp substituiu a Prol e passou a publicar os livros da coleção em parceria com a Com-Arte. Desde a obra inaugural, a proposta que norteia a Editando o Editor parte de um esforço coletivo: os organizadores de cada título da coleção convidam os editores a serem entrevistados e orientam os estudantes de editoração no trabalho “de escutar, gravar, selecionar e, finalmente, editar o pensamento nuclear de cada um desses profissionais, respeitando o fluxo de seu discurso, seu ritmo próprio, seus saberes peculiares, suas formas de expressar a vida, experiência e trabalho” (Ferreira, 2013, p. 10). O livro com o depoimento de Cláudio Giordano (2003) foi editado por Magali Oliveira Fernandes, Sonia Montone, Carla Fernanda Fontana e Fábio Larson. A obra com o testemunho de Samuel Leon (2010) envolveu duas etapas: primeiro utilizaram a entrevista do editor, feita por Raquel Maygton Vicentini, e, depois, a edição do depoimento foi levada a cabo por Jerusa Pires Ferreira e a Com-Arte. O oitavo número foi organizado por Marcelo Yamashitta Salles e apresentou o relato de Plínio Coêlho (2013), o libertário editor de obras anarquistas.

A aura da coleção abarca o trabalho de profissionais que desenvolveram um amplo leque de projetos editoriais, desde a edição de livros populares realizada por Arlindo Pinto de Souza (1995), passando pelas edições de títulos progressistas sob a direção de Ênio Silveira (2003), além da valiosa contribuição de Jorge Zahar (2001), notável editor de livros universitários. Em cada obra, a idealizadora da coleção evidencia as idiossincrasias de editar os depoimentos dos editores, “[…] situar persona, personagens e observar sua inserção na história cultural do nosso país reunindo, sem discriminar, editores de vários tipos” (Ferreira, 2001, p.10). A coleção empregou a história oral com o propósito de esboçar as diversas maneiras como o trabalho do editor contribui para a história do livro no Brasil, são memórias editoriais que dependem do “rigor de quem colhe, interpreta e divulga entrevistas” (Alberti, 2005, p.170). Na abertura do livro sobre Plínio Coêlho, Jerusa Pires Ferreira (2013, p. 16) afirma que a ênfase dos depoimentos pode ser significada pela palavra paixão, “[…] mesmo porque diante de histórias de vida e profissão, de relatos que mergulham na memória reconstruída e na força da vivência presente, não podemos manter o ânimo frio”.

A tônica da paixão é reluzente no último número da Editando o Editor, a obra que ressoa a voz do editor que extrapola o ofício. Guilherme Mansur (2018) executa diversas etapas da cadeia de produção de um livro, trabalha com conhecimentos tradicionais – inaugurado por meio do sistema de Johannes Gutenberg (1398-1468), o impressor que revolucionou a produção editorial por ter desenvolvido um método de cópias iguais e simultâneas de um manuscrito, inovação que provocou maior participação do editor no processo de concepção de um livro (Bragança, 2005, p. 225) – e projetos inovadores de edição e publicação de palavras, poesias, livros, esculturas, instalações e poemas-objeto com lixo tipográfico.

O caleidoscópio telúrico de Guilherme Mansur simboliza a nossa percepção das entrevistas que ele concedeu a Simone Homem de Mello (2018), uma das responsáveis por também editar os depoimentos do tipógrafo- editor-poeta e artista gráfico. A fala de Mansur corrobora a força artística do editor que atua em distintas camadas de ofícios e saberes, aproveitando sucatas de tipos gráficos descartáveis, manuseando impressoras com o rigor de tipógrafo-editor, integrando o movimento Arte Correio, publicando poemas em cartões aos 18 anos de idade. A trajetória profissional de Mansur abarca diversas pessoas do campo intelectual, artístico e editorial, como os irmãos Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari, José Mindlin, Alice Ruiz, Paulo Leminski, Arnaldo Antunes, Laís Correia de Araújo, e personalidades míticas de sua terra natal, como Bené da Flauta e o pintor Takaoka.

Ao longo do livro é notória a capacidade do personagem em atrair pessoas na formulação e criação de seus trabalhos, bem como atesta a internacional loquacidade ouro-pretana fundida à versatilidade de sua obra. A Ouro Preto de Guilherme Mansur nos remete às cidades invisíveis arquitetadas por Ítalo Calvino (1990, p. 14) e descritas por Marco Polo: “A cidade não é feita disso, mas das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado.

[…] A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata”. O livro sobre o editor é um amálgama de suas descrições sobre o passado, a cidade, as parcerias e as imagens de sua produção artística, retratos que sugerem a dimensão imagética de seu trabalho.

Guilherme Mansur (2018) é dividido em 14 capítulos. O primeiro traça um breve comentário sobre a coleção e o segundo, de autoria de Jerusa Pires Ferreira, apresenta um esboço desse mineiro editor de múltiplas faces. Palavras em trânsito: a arte editorial de Guilherme Mansur é o título do terceiro capítulo, um ensaio escrito por Simone Homem de Mello (2018), a escritora e tradutora que conviveu e dialogou com Mansur entre os anos de 2012 e 2015, e que depois selecionou os trechos do depoimento, definindo os capítulos e a ordem do livro. Ela não somente o descreve como um editor e artista gráfico, tipógrafo, autor, inventor, como também sustenta que “[…] a estrutura deste livro procura espelhar a multidirecionalidade de sua atuação como editor. Como editor? Sim, pois sua arte da palavra […] sempre prioriza a veiculação da palavra, seja qual for o meio e o suporte” (Mello, 2018, p. 20). A atitude polivalente do editor tem a ver com sua prática e seus saberes de tipografias de caixa, conhecimentos que fazem parte de seus trabalhos digitais e são responsáveis por criar uma ampla gama de produtos editoriais, a exemplo de uma revista-saco e das chuvas de poesia. A partir do “[…] trânsito da palavra como eixo de concepção da obra […]” (Mello, 2018, p. 21), Mansur multiplicou os meios e as formas de publicação, o que não se contrapõe à proposta da coleção, idealizada como uma via de memória oral.

O quarto e o quinto capítulo traçam a polivalência do mineiro nascido em 1958 na cidade de Ouro Preto. No quarto capítulo, o editor relata as vivências inventivas da infância e adolescência, como trabalhar na pequena oficina tipográfica de seus pais, a única tipografia de Outro Preto entre 1965 e meados dos anos 1970, local que emana uma memória afetiva e onde ele foi alfabetizado por uma miríade de tipos gráficos. Nesse período, ele conta que estabeleceu uma relação lúdica com as letras e estranhava o modo como “[…] as palavras eram apresentadas pela professora no quadro negro, com giz. Fiquei chocado com aquilo, porque no meu universo, as palavras tinham volume, tinham peso, tinham cheiro. Letra para mim era tipo móvel, não era letra feita com giz” (Mello, 2018, p.27). Arte e Correio é título do quinto capítulo e o nome do movimento que deu início à primeira publicação de Mansur em 1976, construída por meio de uma intensa troca de experiências cujas práticas envolveram artistas de diversas localidades do Brasil, além de proporcionar a participação do editor, em 1980, na primeira Bienal Internacional de Arte Correio na Itália. O trabalho apresentado na Bienal se integra ao conjunto de pequenos poemas impressos em cartões e enviados via correios entre 1980 e 1983.

O sexto capítulo trata da Poesia Livre, a revista- saco que ele criou no final dos anos 1970. Em uma trivial manhã de 1977, o poeta foi comprar pães para os funcionários da tipografia e se deu conta de que o saco de papel pardo a abrigar os pãezinhos poderia ser um recipiente para uma revista de poesias. Segundo Mansur, “o saco resolvia economicamente duas questões: a capa e a encadernação. Dei o nome de Poesia Livre2, porque pensava numa revista com estilos diversos de poemas” (2018, p. 43). Esse projeto se inseria no bojo de um movimento independente intitulado Poesia Marginal, uma publicação à margem das grandes editoras. Durante o desenvolvimento desses trabalhos, Mansur conheceu amigos e pessoas que o auxiliaram na autoria, edição e divulgação da revista-saco, impressa em tiragem de mil exemplares.

O projeto ampliou o horizonte do mineiro a ponto de ele desenvolver habilidades ligadas à artesania tipográfica, publicando, em 1985, o primeiro empreendimento como editor de livros, nomeado Hai Tropikai: “[…] um estojo com folhas soltas de papel Canson […], uma edição de haicais de Paulo Leminski e Alice Ruiz” (2018, p. 51).

Tipografia do Fundo de Ouro Preto é o sétimo (e mais longo) capítulo do livro, o nome do estabelecimento fundado por Guilherme Mansur em 1986. A tipografia foi um meio para ele publicar livros no formato tradicional e ampliar o arco de personalidades que publicaram poesias através do estabelecimento do tipógrafo-editor. Para ele, o livro é um objeto no sentido próprio e semântico: “Quando pego originais para que sejam transformados em livro, os textos me provocam a fazer uma releitura na forma tipográfica, na forma do livro como objeto” (2018, p. 55), o que revela a sua preocupação com a materialidade do livro (definição do formato, peso, volume e papel escolhido). Ele também fala sobre o labor como artista gráfico, possível graças à confiança dos poetas em seu trabalho, autores que deram liberdade para ele definir a concepção da edição. Às vezes Mansur recebia a visita do bibliófilo José Mindlin, como no momento em que ele editava “[…] o Caderno de Traduções, de Laís Corrêa de Araújo: o miolo em linotipo e a capa com lixo tipográfico. Doutor Mindlin se encantou pela capa e eu dei a ele a matriz de presente” (2018, p.58). Cada livro idealizado pelo editor mineiro considera a forma presente em cada poesia, seja horizontal ou vertical, e esse era o ponto de partida para ele definir o formato do livro. Além de Mindlin, merece destaque a relação longa e profícua entre Haroldo de Campos e Mansur. O poeta concreto apareceu na tipografia pela primeira vez em 1987, acompanhado do poeta Carlos Ávila. Em uma das visitas, Haroldo contou sobre o projeto que estava a desenvolver sobre a viagem de Ulisses, intitulado Finismundo. Decidiram que o tipógrafo-editor ficaria responsável pela edição da obra, o que aconteceu em 1990, ano em que Haroldo enviou os originais e Mansur criou um poema visual no centro da capa, nomeado Quadriláxia e produzido com lixo tipográfico. Em seguida, o ouro-pretano narrou não apenas a saga para encontrar a vinheta tipográfica que queria inserir no centro da folha de rosto de Finismundo, como também sobre os lançamentos do livro em Belo Horizonte, Curitiba e São Paulo, onde teve a oportunidade de conhecer Arnaldo Antunes, Antônio Risério, Augusto de Campos e o casal Jerusa Pires Ferreira e Boris Schnaiderman. A multifuncionalidade de Mansur é percebida através de outros relatos, parcerias e projetos concluídos no decorrer da década de 1990, como a ocasião em que conheceu Cléber Teixeira, editor da Noa Noa: “Divido com o Cléber o ofício de poeta-tipógrafo-editor, e isso é diferente de ser apenas um editor. O que interessa a mim, e naturalmente ao Cléber, é o processo do trabalho à frente do livro acabado […]” (2018, p. 81). O mineiro deixa claro a sua opção por editar o trabalho de poetas com os quais se identifica, optando por investir na poesia de vanguarda e em artistas populares, como Bené da Flauta e Takaoka. Nos momentos em que Mansur se sentia em transe diante da falta de ideias, ele subia (na companhia da cachorra Rebeca) ao cume dos morros de Ouro Preto para se “[…] desligar completamente da ideia fixa em tipografia” (2018, p. 85).

O oitavo e o nono capítulo destrincham a relação que ele estabeleceu com a tipografia e a poesia em diferentes suportes. No oitavo, Poesia em papel, Mansur relata que a tipografia de caixa não permite malabarismos durante o processo de criação e edição da poesia, pois a impressão dos tipos gráficos é cercada por um retângulo de ferro, o que provoca uma escrita enxuta, de versos curtos, sintéticos, breves, uma poesia adequada à fôrma tipográfica. Seus trabalhos indicam essa permanente preocupação com a materialidade do livro, como Bahia Baleia: “Esse caderno com espiral e capa de papelão impressa em serigrafia surgiu da realização do desejo que eu tinha desde criança de ver uma baleia ao vivo” (2018, p. 91). Outro exemplo é o poema Barcolagem, “[…] que era uma encomenda para a peça Erwartung, de Schönberg, executada pela Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, no teatro do Palácio de Belas Artes em Belo Horizonte, em dezembro de 2009” (2018, p.92). O projeto Bandeiras, Territórios e Imaginários, de 2008, reforça a adaptação de Mansur a diferentes suportes, um trabalho inteiramente digital, ainda que as bandeiras tenham sido desenhadas em 1997 e posteriormente redesenhadas no computador, que para ele significa “[…] um encontro, o cruzamento de um país rico com um pobre, para surgir um terceiro território mais equilibrado” (2018, p. 93-94). Poesia em outros suportes é o tema do nono capítulo, instante em que ele narra o modo como aproveita pedaços de tipos para compor os poemas-objeto, a exemplo da série Quadriláxia: “A instalação consistia numa lona preta quadriculada de 4 x 4 m esticada no chão, 49 folhas de papel branco, com o lixo tipográfico impresso, dispostas simetricamente sobre a lona de meia tonelada de hematita […] espalhada em cima” (2018, p. 98). Mansur diz que existem situações em que o poema abandona o papel, vira escultura, objeto e projeta-se no asfalto, como é o caso de Batuque, um poema-escultura montado no Instituto Federal de Minas Gerais, localizado em Outro Preto. O fecho do capítulo trata as chuvas de poesia que ele promove desde o Carnaval de 1993, um evento onde pequenos livros de poesias são arremessados a partir das torres das igrejas, invadem as casas e proporcionam uma atividade lúdica que se tornou famosa na sua cidade.

Do décimo ao último capítulo, o editor manifesta as suas influências, suas reflexões sobre tipografia e seus projetos na contemporaneidade. O entendimento tipográfico de Mansur foi influenciado por Amilcar de Castro, escultor e artista gráfico que o auxiliou a perceber o quanto uma peça gráfica deve ser agradável aos olhos.

Ele foi aluno de Amilcar na Fundação de Arte de Outro Preto e recebeu as orientações do mestre no Suplemento Literário de Minas Gerais, onde trabalhou como paginador e participou da reforma ortográfica realizada durante os anos 1990. Essas experiências ocorreram em paralelo com outros projetos, tais como o Tipocines, obra que conjugou títulos de filmes às fontes tipográficas que tivessem alguma semelhança com as películas. Bamboletras é a designação do trabalho desenvolvido em parceria com Ivar Siewers, designer de móveis e objetos que transformou o bambolê de letras em descanso de mesa. E desde 2012 ele está a expor o Tipogrampo, obra realizada por intermédio de um grampeador de mão e uma folha de papel, “[…] uma espécie de exercício de tipografia ao alcance das mãos” (2018, p. 114).

Para Guilherme Mansur, um livro bem editado é aprazível ao olhar: “Tipografia é letra reunida. E letra é um desenho que se lê e não que se apenas vê” (2018, p. 120). Ele considera a tipografia uma arte da tradição e o tipógrafo um trabalhador que tem o propósito exclusivo de atender o leitor: “A elegância e harmonia de uma fonte tipográfica estão na simplicidade e no rigor do desenho de cada letra.

A boa tipografia pode ser vista na economia do uso de fontes” (2018, p. 123). A profissão de editor-tipógrafo é solitária, demanda um alto nível de concentração e de luta contra o mercado: “Numa mínima editora tipográfica, a tiragem das edições é pequena e o tempo que se gasta é grande” (2018, p. 126). Ao final do livro ele comenta sobre sua reinvenção tipográfica em face da distrofia muscular que o impediu de compor tipos móveis. A tecnologia tem sido aliada de suas últimas criações, a exemplo de Poemas Estalactites, obra cuja concepção partiu de dez poemas do alemão August Stramm (traduzidos por Augusto de Campos) e da utilização tipos art nouveau, posteriormente fotografados e digitalizados por Cláudio Santos e Leonardo Dutra. O profícuo trabalho de Guilherme Mansur está em marcha e almeja novas veredas, como o desejo de fundar um instituto tipográfico em Ouro Preto.

A escritora e tradutora Simone Homem de Mello colheu o relato de um editor que vivenciou as transformações da cultura em nível nacional, desde a década de 1970 até o tempo de agora. Ela comenta que o grande trunfo do livro é a capacidade de “[…] reunir materiais e informações que não estão acessíveis em nenhuma outra fonte […]” (Mello, 2018, p. 22). Nesse sentido, acreditamos que a obra em tela é importante para os pesquisadores da história do livro no Brasil, uma contribuição para futuros trabalhos que dissequem a peculiar trajetória do versátil mineiro, um profissional que trabalha em diversas paralelas do ofício, da tipografia à autoria, um personagem que afirma nunca ter sido um artesão das palavras e da edição, a despeito de seu depoimento comprovar o contrário.

Referências

ALBERTI, V. 2005. Fontes orais: histórias dentro da História. In: C.

PINSKY (org.), Fontes históricas. São Paulo, Contexto, p. 155-202.

AMORIM, S.M.; TREMEL, H. F. (org.). 1989. Jacó Ginsburg. São Paulo, Prol/Com-Arte, 80 p. (Editando o Editor, 1).

BRAGANÇA, A. 2005. Sobre o editor: notas para a sua história. Em Questão, 11(2):219-237.

CABRINI, C.A.; GUEDES, M.C. (org.). 1991. Flávio Aderaldo. São Paulo, Edusp/Com-Arte, 64 p. (Editando o Editor, 2).

CALVINO, I. 1990. As cidades invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. São Paulo, Companhia das Letras, 150 p.

FERREIRA, J.P. (org.). ALMEIDA, M.A.; FERNANDES, M.O.; SENRA, M. (editoras). 2003. Ênio Silveira. 1ª reimpr. São Paulo, Edusp/Com-Arte, 168 p. (Editando o Editor, 3).

FERREIRA, J.P. (org.). LIMA, A. O.; GONÇALVES, J.I.; AKIYOSHI, M. (editores).. 1995. Arlindo Pinto de Souza. São Paulo, Edusp/ Com-Arte, 168 p. (Editando o Editor, 4).

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FERNANDES, M.O.; MONTONE, S.; FONTANA, C.F.; LARSON, F. (editores). 2003. Cláudio Giordano. São Paulo, Edusp/ Com-Arte, 96 p. (Editando o Editor, 6).

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VICENTINI, R.M. 2010. Samuel Leon. São Paulo, Edusp/Com-Arte, 88 p. (Editando o Editor, 7).

Hugo Quinta – Universidade Estadual Paulista(UNESP), campus de Assis, Avenida
Dom Antonio, 2100 – Parque Universitário. 19.806-900 Assis, São Paulo,
Brasil. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(FAPESP).Email: [email protected].

El coleccionista. Fernando García y su legado al estado Uruguayo | Carolina Porley

Al describir en su novela La jauría la residencia del especulador Saccard, Emilio Zola señaló que los paneles del comedor «habían debido ser preparados para recibir pinturas de bodegones, pero habían quedado vacíos, pues sin duda el propietario retrocedió ante un gasto puramente artístico». Esta frase, leída al pasar, se carga de nuevos y complejos significados una vez leído El coleccionista…, porque como plantea con solvencia Carolina Porley, un gasto puramente artístico resulta no ser algo tan banal y simple como podríamos pensar.

El coleccionista… se basa en la tesis escrita por la autora en el marco de su proyecto de investigación para la maestría en Historia, opción Arte y Patrimonio, de la Universidad de Montevideo. El libro, dividido en cinco capítulos, destaca por la amenidad de su lectura. Una redacción atrayente, fluida, que expone con claridad sintética conceptos complejos de la sociología y de la historia del arte, demostrando preocupación por volcarlos con exactitud y aplicarlos como vertebradores de la investigación: el concepto de campo de Bourdieu, su análisis del capital simbólico y los bienes enclasantes, de la «distinción», y las reflexiones de Chartier sobre la historia intelectual. El aporte biográfico despierta la curiosidad del lector. Leia Mais

Não existe vitória sem sacrifício: da depressão severa à medalha olímpica, a trajetória de superação do mais vitorioso ginasta brasileiro. Diego Hypolito em depoimento a Fernanda Thedim | Diego Hypolito

Nascido em Santo André (SP), o vice-campeão olímpico, Diego Hypolito, contou a sua trajetória em depoimento a jornalista Fernanda Thedim, em cerca de seis encontros na casa do atleta no Rio de Janeiro. O livro intitulado Não existe vitória sem sacrifício: da depressão severa à medalha olímpica, lançado em novembro de 2019 pela editora Benvirá, é escrito em primeira pessoa e dividido em 11 capítulos, além do prefácio, apresentação, agradecimentos e quadro de medalhas (com linha do tempo). Sendo assim, nas próximas linhas será apresentada a resenha crítica da obra.

A jornalista Glenda Kozlowski, ao prefaciar a obra relembrou a primeira entrevista que realizou com o atleta, quando ele ainda era o “irmão da Daniele”, no ginásio do Flamengo em 1996. O menino agitado que a chamava de “tia” e “senhora” tirou a atenção da repórter e, mais tarde, tornou-se o Diego Hypolito – primeiro campeão mundial da história da ginástica artística brasileira. Leia Mais

D. Leopoldina, Imperatriz e Maria do Brasil / José T. M. Mencke

Dentro do contexto de preparação das efemérides do Bicentenário da Independência do Brasil, cujo ápice dar-se-à em 2022, a Câmara dos Deputados vem lançando, gradualmente, uma série de livros de autoria do nosso confrade Acadêmico José Theodoro Mascarenhas Menck, referentes aos duzentos anos de alguns episódios que terminaram por conduzir o Brasil à sua plena emancipação política.

O projeto editorial foi concebido em 2008, sob a presidência do Deputado Arlindo Chinaglia, quando a Câmara dos Deputados comemorou o Bicentenário da Transmigração da Família Real Portuguesa para o Brasil.

Evento único na história e que indubitavelmente catalisou a série de acontecimentos que nos levariam, alguns anos depois, à nossa independência.

Entre as realizações, houve o lançamento da publicação 2º centenário da vinda da Corte Portuguesa para o Brasil: registros da visita oficial do Presidente da Assembleia da República de Portugal à Câmara dos Deputados, coordenada e revisada por nosso acadêmico, recordando o desembarque de D. João em território brasileiro.

Em 2017, já sobre a presidência do Deputado Rodrigo Maia, iniciou-se a publicação da série relacionada aos Duzentos Anos da Independência. O primeiro volume, D. Leopoldina: Imperatriz e Maria do Brasil, recorda os duzentos anos do desembarque de D. Maria Leopoldina na então sede do Reino Unido Portugal, Brasil e Algarves, a cidade do Rio de Janeiro. Nesse livro, nosso colega acadêmico Menck, a par de escrever uma breve biografia de nossa primeira Imperatriz, recorda sua conversão à causa do Brasil, bem como toda sua enorme e determinante contribuição para a Independência de nossa pátria. O texto esboça um retrato psicológico da princesa austríaca, revelado por suas cartas, e esmera-se em detalhar o processo político subsequente ao retorno de D. Joao VI a Portugal, dando justo destaque ao arguto papel de D. Leopoldina nos bastidores da construção da nossa Independência. Retrata, enfim, seus últimos meses de vida e as tristíssimas circunstâncias de seu falecimento, com apenas 29 anos.

No ano seguinte, 2018, a Câmara dos Deputados lançou o livro D. João VI e a Construção das Bases do Estado Nacional, também assinado por Menck, que recorda os duzentos anos da Aclamação de D. João VI como Rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Nunca é demais recordarmos que a Aclamação de D. João VI, ocorrida no Rio de Janeiro em 1819, foi um evento singular na história: um monarca europeu sendo aclamado na América. Menck aproveitou a ocasião para recordar em seu livro o amor de D. João pelo Brasil, bem como a sua ingente obra legislativa e administrativa, fundamental para a construção das bases do Estado Nacional brasileiro.

Em 2019, por ocasião dos duzentos anos do retorno ao Brasil do Conselheiro José Bonifácio de Andrada e Silva, Menck preparou mais um volume da série, dedicado à biografia da singular personagem que era o Patriarca de nossa Independência. José Bonifácio de Andrada: Patriarca da Nacionalidade objetivou recordar a imprescindível contribuição do grande brasileiro para a consolidação de nossa emancipação política, bem como de nossa integridade territorial. Aspectos menos conhecidos da sua vida, como sua carreira acadêmica e suas contribuições à mineralogia, surpreenderão alguns leitores.

Neste ano de 2020 temos a comemoração dos duzentos anos da eclosão da Revolução Constitucionalista do Porto. Por conseguinte nova publicação da série está no prelo das Edições Câmara, desta vez um livro que agrega contribuições de vários autores, sob a coordenação do nosso colega acadêmico.

Antecipando alguns elementos desse novo volume, lembremos que a Revolução Constitucionalista do Porto de 1820, ainda que ocorrida na Europa e pouco lembrada no Brasil, é, sim, parte integrante da nossa história. Os eventos que levaram à explosão do movimento revolucionário em Portugal é, também, parte da história do Brasil. Éramos integrantes de um mesmo reino e o caminho escolhido pelos portugueses, de buscar a prosperidade pretérita pela retomada de uma política colonial, em detrimento do Brasil, terminou por desatar os vínculos que nos mantinham unidos a Portugal.

A série representa uma importante contribuição para a já rica literatura a respeito da nossa Independência. Da leitura desses textos depreende-se a visão de Menck sobre o caráter cumulativo das contribuições de diversas personagens para a construção da nossa emancipação. A Independência foi fruto de uma série de atos que foram se somando ao longo do tempo e que terminaram por convencer os portugueses nascidos na América da inviabilidade da manutenção dos vínculos com a porção europeia da monarquia dos Bragança. A complexidade do processo histórico é revelada, passo a passo, esses textos agradáveis e informativos, registrando não apenas os dilemas vividos pela população e pela elite do país que então se formava, mas também os méritos de mulheres e homens extraordinários que, chamados à linha de frente do embate político, construíram de modo deliberado a nação que chamamos de pátria.

A série convida o leitor a se aprofundar no conhecimento da nossa História e a constatar que um país é obra não apenas coletiva, mas, igualmente, fruto do labor, das aspirações e das lutas de várias gerações de pessoas destacadas.

A Câmara dos Deputados tem realizado, a cada ano, exposições sobre os mesmos temas dos livros e o lançamento de uma série postal que comemora as efemérides correspondentes. Em um momento de profundas clivagens ideológicas e de questionamentos que afetam nossa percepção de soberania e de união nacional, é uma contribuição particularmente bem-vinda.

Bernardo Felipe Estellita Lins – Acadêmico ocupante da Cadeira 43, patroneada por Roberto Simonsen, na qual tomou posse em 11 de março de 2019.


MENCK, José Teodoro Mascarenhas. D. Leopoldina, Imperatriz e Maria do Brasil. Brasília: Edições Câmara, 2017; MENCK, José Teodoro Mascarenhas. D. João VI e a construção das bases do Estado Nacional. Brasília: Edições Câmara, 2018. MENCK, Teodoro Mascarenhas. José Bonifácio de Andrada: patriarca da nacionalidade. Brasília: Edições Câmara, 2019. Resenha de: LINS, Bernardo Felipe Estellita. Série: Duzentos anos da Independência do Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, Brasília, n.10, p.243-246, 2020. Acessar publicação original. [IF].

El último cacique en resistencia. Valentín Sayhueque/Nordpatagonia (1870-1910) | Sofía Stefanelli

El libro que aquí se reseña ha sido prologado por el Dr. Enrique Mases y reúne una introducción, cinco capítulos que recorren las características de las sociedades nativas a fines del siglo XIX y las readaptaciones de sus últimas jefaturas frente al avance del estado sobre las fronteras indígenas dedicando particularmente estudio a las relaciones y acciones en torno al “Gobernador indígena de las Manzanas y Principal de los Guilliches”, Valentín Sayhueque y reflexiones finales. Leia Mais

La Rojeria. Esbozos biográficos de los comunistas mexicanos | Oscar de Pablo

Los trabajos orientados hacia elaboración de los estudios prosopográficos sobre la izquierda, y, en especial, sobre su sector comunista, merecen una bienvenida. Desde hace décadas existen tradiciones en este ámbito. Los investigadores conocen muy bien el Diccionario Biográfico del movimiento obrero francés escrito por Jean Maitron que luego fue la base para ampliarlo hacia varios volumentes del Diccionario Biográfico del movimiento obrero internacional. A su tiempo aparecieron obras valiosas de M. Drashkovitch y B. Lazitch, de J. Gotovic y M. Narinsky destinados a aclarecer esbozos de la vida de los militantes de la Internacional Comunista. Todos estos trabajos tuvieron una falla tremenda: las biografías latinoamericanas fueron presentados a cuentagotas lo que no debe sorprender dada la escasez de fuentes de archivo En gran medida este defecto fue corregido por varias ediciones del diccionario biográfico de la Comintern en América Latina elaborado por Víctor y Lazar Jeifets, sin embargo, este tampoco evitó una falla significativa: las biografías de personajes claves de izquierda que no tenían que ver con las actividades internacionales de tal o cual Partido Comunista, quedaron fuera del enfoque de los autores. Tarde o temprano la laguna historiográfica debería ser llenada. Ejemplos importantes de los estudios sobre el tema ya aparecieron en Argentina (el diccionario coordinado por H. Tarcus) y Guatemala (el diccionario elaborado por A. Taracena y L. Monteflores). Obviamente, no podría faltar México, el país donde se fundó la primera sección latinoamericana de la Comintern, aparecieron las dos primeras esctructuras continentales de la Internacional Comunista – el Bureau Latinoamericano de la III Internacional y la Agencia Panamericana, donde estuvo la sede del Comité Continental de la Liga Antimperialista de las Américas y de la Liga Nacional Campesina, tal vez, la más influyente asociación campesina en el hemisferio, en la década de los 1920s. México iba acoger a los Bureau del Caribe de la Comintern, del Socorro Rojo Internacional y de la Internacional de las Juventudes Comunistas, sin embargo, el giro ultraizquierdista del PCM, junto con las transformaciones profundas del regimen pos-revolucionario prevenieron esto. En los 1930s la izquierda tuvo nuevo auge, esta vez como fuerza aliada del gobierno nacionalista revolucionario de Lázaro Cárdenas, pero, en poco tiempo, el alza fue seguida por la baja y la marginalización de los comunistas dentro de los sindicatos, las purgas masivas dentro del PCM y su división en varios partidos de tendencia comunista. A lo largo de varias décadas, los comunistas no lograron restablecer su unidad y solamente en 1978 pudieron fundar el Partido Socialista Unificado de México. Al mismo tiempo, incluso divididos, los comunistas escribieron varias páginas gloriosas de su historia, como el movimiento ferrocarrillero de 1958-1959 y las protestas estudiantiles de finales de los 1960 e inicios de los 1970s. En 1989-1990 la izquierda comunista sumó sus esfuerzos a varios otros sectores dando inicio al Partido de la Revolución Democrática. La aparición del libro de O. de Pablo, en 2018, es muy simbólico, ya que coincide con el primer triunfo contundente de la izquierda en las elecciones presidenciales y legislativas en la historia de México. Leia Mais

…como se fosse um deles: Almirante Aragão. Memórias, silêncios e ressentimentos em tempos de ditadura e democracia | Anderson da Silva Almeida

En el año de 1996 Ánderson da Silva Almeida ingresó en régimen de internado al Cuerpo de Fusileros Navales de Brasil, donde posteriormente pasaría a componer el cuadro de músicos en la misma institución como intérprete de Bombardino.

Paralelo a su carrera como marinero y músico, Ánderson da Silva Almeida hizo su graduación en Historia con la Universidad Católica de Salvador, Bahía; y posteriormente adelantó su especialización, maestría y doctorado en Historia en la Universidad Federal Fluminense UFF donde se destacó en el año 2012, con el premio Memorias Reveladas del Archivo Nacional por su disertación de maestría que daría origen al libro “Todo o leme a bombordo: marinheiros e ditadura civil – militar no Brasil: da rebelião de 1964 à anistia” [1] . Leia Mais

Plínio Salgado: um católico integralista entre Portugal e o Brasil (1895-1975 | Leandro Pereira Gonçalves

Desde os trabalhos pioneiros de Hélgio Trindade (19742007) na década de 1970 a respeito do Integralismo brasileiro, diversos outros estudos procuraram apresentar novas abordagens sobre o tema (CHASIN, 1999CHAUÍ, 1985VASCONCELOS, 1979). Também a produção acadêmica comparativa dos autoritarismos português e brasileiro, iniciada no trabalho organizado por José Luiz Werneck da Silva (1991), prosperou em análises diversas, fortalecendo aos poucos este campo de investigação (PINTO; MARTINHO, 2007).

O trabalho de Leandro Pereira Gonçalves, Plínio Salgado: um católico integralista entre Portugal e o Brasil (1895-1975), vem, portanto, contribuir com uma tradição importante e já consolidada de pesquisas a respeito do integralismo e das direitas radicais. O livro tem, como objeto de análise, o pensamento e a produção intelectual do mais importante político do movimento integralista brasileiro: Plínio Salgado. Ao mesmo tempo, o autor lança luz sobre as possibilidades de investigações acadêmicas comparativas acerca de Portugal e do Brasil. Longe, entretanto, da mera repetição, seu estudo acrescenta novidades ao complexo universo das direitas no século XX, não só no Brasil como também na Europa. Leia Mais

O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883) | Marcello Musto

Karl Marx seguramente figura entre os autores mais debatidos e analisados nos últimos cem anos. A vasta bibliografia que toma o pensamento de Marx por objeto poderia sugerir que falta pouco a ser dito de forma original. No entanto, a produção intelectual em torno de Marx parece escapar a este itinerário lógico e surge como uma fonte inesgotável de reflexões que, de diferentes maneiras, segue instigando e propiciando um renovado debate. É esta capacidade de constante atualização que alimenta as diversas tradições no âmbito das culturas marxistas e, mesmo, o renovado (e variado) interesse do pensamento crítico de forma geral.

Se é inegável, por um lado, que a vida e obra de Marx jamais deixaram de ser objeto de pesquisa ao redor do mundo, por outro, no período aberto após o fim da União Soviética e o ocaso do chamado “socialismo real”, o legado do pensador alemão parecia encontrar-se numa encruzilhada fatal. A crise econômica de 2008 mudou sensivelmente este cenário, renovando o interesse em Marx e o afirmando como um dos autores mais debatidos no século XXI. Não apenas suas análises e elaborações teóricas ganharam um novo impulso junto ao grande público, mas também sua trajetória de vida desperta curiosidade, como atesta o sucesso do filme O jovem Karl Marx, dirigido por Raoul Peck e lançado em 2017. Neste contexto, o livro O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883), escrito por Marcello Musto e publicado em 2018 pela editora Boitempo, surge como uma importante contribuição na busca por preencher lacunas e por aprimorar a nossa compreensão do legado de Marx. Leia Mais

Montaigne – JOUANNA (A-EN)

JOUANNA, Arlette. Montaigne. Paris: Gallimard, 2017. Resenha de FAVERI, Claudia Borges de. Os fios que moviam Michel de Montaigne. Alea, Rio de Janeiro, v.21 n.3, sept./dec., 2019.

Nos últimos dias de 2018, uma notícia atraiu os olhares do mundo intelectual e jornalístico do mundo todo. Tudo indicava que, finalmente, após quase 500 anos, os restos mortais de Michel de Montaigne teriam sido descobertos no subsolo do Museu da Aquitânia, em Bordeaux, oeste da França. As investigações continuam e ainda não se tem certeza se o que se pôde ver – um caixão em madeira, ossos humanos e uma placa em bronze dourado com o nome de Michel de Montaigne -, através de dois pequenos orifícios feitos nas grossas paredes do subsolo, tem de fato alguma relação com o filósofo e escritor renascentista. Tudo leva a crer que, desde sua morte em 1592, os restos mortais de Montaigne tenham errado de sepultura em sepultura até chegar, não se sabe ainda quando, a este museu em Bordeaux. Bordeaux, que Montaigne administrou entre 1581 e 1585 por dois mandatos consecutivos, e que, graças à sua capacidade de negociação e moderação, foi por ele mantida a salvo das pertubações e desordens das guerras de religião que devastavam então a França.

Por que tanto barulho a respeito dos restos mortais de um filósofo e escritor que, sem que se negue sua importância, viveu há mais de quatro séculos? A resposta talvez seja simples, embora pareça impertinente: é porque é Montaigne. Resposta que aqui parodia enviesadamente a famosa fórmula do próprio, em seu famoso ensaio 27 do livro I, ‘Da Amizade’, ao tentar explicar sua ligação com Etienne de La Boétie: “[…] porque era ele, porque era eu”1. Montaigne, cuja obra maior, quase única, na verdade – Os Ensaios (1580-1582) -, vem sendo traduzida e reeditada mundo afora há quatro séculos. Montaigne, que parece obstinar-se em se manter atual. Suas primeiras traduções no Brasil datam do início do século XX, mas na Inglaterra, por exemplo, a primeira tradução é de 1603, realizada por John Florio (1553-1625), escritor, lexicógrafo e professor inglês, poucos anos após a edição original em francês.

Montaigne influenciou todos os grandes nomes depois dele, de Shakespeare a Nietzsche, de Bacon a Pascal, e suscita, ainda hoje, importantes pesquisas sobretudo nas áreas da Filosofia e da Educação. No que concerne ao Brasil, Sérgio Cardoso (2017, p. 19) ressalta que nosso país está certamente entre aqueles que mais produziram trabalhos acadêmicos sobre o autor renascentista na área da Filosofia nos últimos vinte anos. De Machado a Oswald de Andrade, passando por Ciro dos Anjos, a influência de Montaigne em nossas letras é também inegável.

Essa vitalidade do autor de Os Ensaios revela-se não só pelas constantes reedições e retraduções de sua obra maior, mas curiosamente também pelo crescente número de biografias a seu respeito, das mais variadas faturas, que têm vindo à luz nos últimos anos. Algumas dessas, surpreendentemente, tornaram-se campeãs de venda, como é o caso de duas delas, a saber: Como Viver, de Sarah Bakewell, e Uma temporada com Montaigne, de Antoine Compagnon. Ambas já lançadas no Brasil, respectivamente, pela Objetiva, em 2012, com tradução de Clóvis Marques, e pela WMF Martins Fontes, em 2015, com tradução de Rosemary Abílio.

Restringindo-nos tão somente ao gênero biografia e ao período compreendido entre 2000 e 2019, no Brasil, além dessas duas citadas acima, temos ainda o Montaigne de Peter Burke, lançado pela Editora Loyola em 2006, com tradução de Jaimir Conte, e, finalmente, em 2016, o Montaigne do filósofo marroquino radicado na França Ali Benmakhlouf, com tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira, pela Estação Liberdade. Se abrirmos ainda mais o leque, considerando estudos de cunho filosófico, o leitor brasileiro pode ter acesso a uma fortuna crítica razoável sobre o filósofo renascentista2.

Mas, voltando às biografias, a mais recente delas, ainda sem tradução ao português, que também tem por título Montaigne, veio à luz em fins de 2017, publicada pela Gallimard na coleção NRF Biographies. São 460 páginas nas quais a autora Arlette Jouanna, professora emérita da Universidade Paul Valéry de Montpellier e especialista em história social e política do século XVI francês, tenta trazer a seu leitor um retrato acurado do cultuado autor dos Ensaios. Mas o que traz de novo mais uma biografia de Montaigne em um universo em que as biografias existentes já conquistaram inúmeros leitores em todo o mundo? A própria autora não deixa de citar ao menos seis outras que lhe precedem, sublinhando a vocação e utilidade de cada uma delas. O fato é que, paradoxalmente, a vida de Montaigne é muito pouco conhecida, muito do que se sabe dele é por sua própria pena, mormente em seus Ensaios.

Para Jouanna, compreender e conhecer Montaigne exige ultrapassar o mito, e enraizá-lo, na medida do possível, em seu tempo. Destarte, ela não se contenta em repetir ou pouco acrescentar à imensa literatura já existente sobre o filósofo renascentista. Com seu olhar de especialista em século XVI, o que ela nos oferece é uma visão bem particular, do ponto de vista historiográfico, ao mesmo tempo em que se revela uma leitora apaixonada dos Ensaios, sem que por isso deixe de ser consequente.

A Introdução fornece-nos o plano do livro, que se desenrola ao longo de doze capítulos e revela as inúmeras facetas de Montaigne. A autora faz questão de nos lembrar (p. 17) o que o próprio Montaigne escreve em ‘Da Vaidade’, Ensaio 9 do Livro III: “eu voltaria de bom grado do outro mundo para desmentir quem me pintasse diferente do que sou, mesmo que fosse para me louvar”3. Parece levar a sério tal aviso ao enfatizar que são raras as fontes dos arquivos históricos acessíveis ao pesquisador. É com grande prudência, portanto, que avança hipóteses, atendo-se em grande medida ao estritamente factual. Nesse sentido, é preciso renunciar, afirma, a um conhecimento exaustivo do que viveu Montaigne. Suas fontes, tanto as manuscritas quanto as já publicadas, são cuidadosamente repertoriadas ao fim do livro (p. 421), assim como as obras de e sobre Montaigne que utilizou em sua pesquisa.

Ainda na Introdução, Jouanna escolhe começar sua narrativa em 1571, ano em que Montaigne completa 38 anos, data emblemática de sua famosa retirada das coisas mundanas. Segundo a autora, o momento fundador do Montaigne que passará à posteridade. E é por esse momento, a entrada no processo de escrita dos Ensaios, que o relato de Jouanna entra na vida de seu autor, momento que ela descreve assim (JOUANNA, 2017, p. 13):

Trata-se aqui, com efeito, de uma ruptura com relação aos ideais mundanos comuns, de uma reviravolta que o faz verdadeiramente nascer para si mesmo. Tudo o que aconteceu antes foi tão somente a lenta liberação do condicionamento familiar e social imposto por seu meio, de pessoas importantes socialmente e que haviam ascendido à nobreza há pouco tempo, e depois a progressiva liberação das servidões de uma carreira que ele não havia escolhido.4

Em seguida, o primeiro capítulo que a autora escolheu chamar de (p. 21) “Um lento nascimento de si mesmo”, aborda os 38 primeiros anos de Montaigne, de 1533 a 1571, antes que começasse a aventura de escrita de seus ensaios. Aqui são apresentados aspectos e fatos da vida de Montaigne relacionados ao condicionamento social e familiar, tais como o enobrecimento da família, o apego ao título e à terra – sendo, no século XVI, esta última a garantia do primeiro -, a infância, as relações familiares e os anos de formação.

Os capítulos se sucedem seguindo uma organização temático-cronológica que apresenta as várias faces de Montaigne, dentre as quais a de jurista, ou funcionário do parlamento, a de pensador inquieto, cujo encontro com La Boétie e com os canibais do Brasil alimenta uma reflexão surpreendentemente moderna sobre as éticas da diferença e as liberdades civis, e a de senhor de terras, vinhas e campos, às voltas com as vicissitudes próprias a um nobre do século XVI. Mas ele é também um ator político importante no contexto de uma França devastada pelas guerras de religião (1562-1598) que opõem católicos a protestantes.

O leitor de Jouanna encontra também o Montaigne viajante, autor de um diário de viagem pela Alemanha, Suíça e Itália (ainda sem tradução ao português), e o prefeito de Bordeaux duas vezes eleito (1581-1585), que consegue manter a cidade a salvo da guerra, mas não da peste que vitima, de junho a dezembro de 1585, algo em torno de quatorze mil pessoas. Montaigne é também o estudioso, o escritor, que dedica a segunda metade de sua vida, a partir de 1571, a ler e escrever e, por fim, em 1580, a publicar seus Ensaios. Conhecendo a notoriedade em vida como escritor e pensador, ele é um autor dedicado que vai corrigir e alterar os três volumes de sua obra (pouco mais de 1000 páginas) até sua morte em 1593. Por fim, a imagem que talvez seja a mais conhecida do renascentista: o pensador retirado em sua torre-biblioteca circular, cercado de livros da Antiguidade e de máximas em latim que ele mandou pintar nas vigas do teto.

Como historiadora, especialista do período renascentista, é um homem do Renascimento que Jouanna descreve; as passagens nas quais a autora mais destaca – capítulos VI, VIII, IX e X – são justamente aquelas relacionadas a seu campo de especialidade. Assim, o leitor pode compreender Montaigne, e também sua obra, a partir da explicitação de aspectos como os laços de fidelidade que uniam necessariamente os membros da classe nobre, laços esses complexificados pelas guerras de religião. É também possível apreciar a posição delicada de Montaigne como católico moderado em um contexto de radicalizações. E ainda seu amor à liberdade, muito embora apegado à nobreza há pouco tempo conquistada por seus ancestrais. São aspectos que, sob o pano de fundo renascentista que Jouanna tão bem conhece, contribuem para uma melhor compreensão da obra como expressão de um pensamento político dividido entre humanismo, dever de fidelidade e descrença na razoabilidade dos homens. É um olhar novo, assim, que a historiadora propicia ao leitor dos Ensaios.

É preciso dizer, no entanto, que o leitor que busque um maior aprofundamento dos aspectos propriamente literários e filosóficos da vida de Montaigne, e suas relações com os grandes nomes do humanismo, corre o risco de se decepcionar, pois tais pontos não estão no centro das preocupações de Jouanna. Ocupa-a preferencialmente aspectos historiográficos, sobretudo no que concerne à gênese do Estado moderno. As várias faces de Montaigne que nos apresenta Jouanna dialogam, portanto, muito mais com a historiografia do que com a literatura ou a filosofia. E isso pode ser visto como um defeito, ou uma lacuna, por aqueles que busquem o Montaigne escritor, imbuído de cultura da Antiguidade, leitor disciplinado e interlocutor dos grandes nomes da época.

Montaigne, segundo Jouanna, não se deixa reduzir a definições simplistas. Seu pensamento sempre mutante, variegado, multifacetado, presta-se a múltiplas abordagens e análises. Ela sublinha ademais a influência que ele exerce ainda em nossos dias. Para a historiadora, não só como especialista, mas também como leitora apaixonada dos Ensaios, a explicação para essa inusitada permanência reside no que une o autor renascentista ao homem contemporâneo. Como nós, ele viveu em tempos difíceis, de futuro incerto, marcados pelo enfraquecimento das crenças, a perda de referências, a contestação das estruturas políticas e a violência dos radicalismos. Montaigne nos acena, segundo a autora, com uma possibilidade de sobreviver a todas as incertezas com dignidade interior, fazendo prevalecer a ironia, e mesmo o riso, sobre a angústia. Seus Ensaios são o palco onde evolui um homem que tenta ver claro em si e em seu entorno, com lucidez e ironia desconcertantes.

Referências

CARDOSO, Sérgio. Montaigne filósofo. Cult, n. 221, São Paulo, p. 18-19, 2017. [ Links ]

JOUANNA, Arlette. Montaigne. Paris: Gallimard, 2017. [ Links ]

MONTAIGNE, Michel de. Essais I. Paris: Pernon Éditions, 2008 [ Links ]

1 “Si on insiste pour me faire dire pourquoi je l’aimais, je sens que cela ne peut s’exprimer qu’en répondant: parce que c’était lui, parce que c’était moi” (MONTAIGNE, 2008, p. 276). Todas as traduções ao português constantes desta resenha são de minha autoria.

2 Tais informações encontram-se esparsas. Para remediar tal situação, estamos preparando uma bibliografia comentada dos estudos de Montaigne no Brasil, a ser publicada em breve.

3 “Je reviendrais volontiers de l’autre monde pour démentir celui qui me formerait autre que je n’étais, fût-ce pour m’honorer” (MONTAIGNE, 2004, apudJOUANNA, 2017, p. 17).

4 “Il s’agit bien là, en effet, d’une rupture avec les idéaux mondains ordinaires, d’un retournement qui le fait naître véritablement à lui-même. Tout ce qui s’est passé auparavant n’aura été que la lente libération du conditionnement familial et social imposé par son milieu de notables tout juste agrégés à la noblesse, puis le progressif arrachement aux servitudes d’une carrière de magistrat qu’il n’a pas choisie” (JOUANNA, 2017, p. 13).

Claudia Borges de Faveri. Professora titular do Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras da Universidade Federal de Santa Catarina, onde atua na área de língua e literaturas de expressão francesa e tradução literária. É doutora em Ciências da Linguagem pela Universidade de Nice-Sophia Antipolis, França. Em 2018-2019, realizou seu segundo pós-doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, com pesquisa dedicada à recepção, permanência e tradução da obra de Michel de Montaigne no Brasil. E-mail: [email protected]

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Neil Brenner. Teoría urbana crítica y políticas de escala- BUITRAGO (EURE)

BUITRAGO, Álvaro Sevilla. Neil Brenner. Teoría urbana crítica y políticas de escala. Barcelona: Icaria. Col. Espacios Críticos. v. 9, 2017. 296 pp. Resenha de: LETELIER, Luis-Francisco. Neil Brenner. Teoría urbana crítica y políticas de escala. EURE (Santiago) v.45 n.136 Santiago set. 2019.

Se suele reconocer y compilar el trabajo académico de una persona cuando su carrera o está bien avanzada o ha terminado. El primer mérito de este libro es ir contra esta corriente. Neil Brenner es un intelectual nacido en 1969, está en plena actividad y su pensamiento sigue en continuo despliegue y cambio. Es, por tanto, la revisión de una obra que está en transformación. El segundo aspecto que destaca en este trabajo es la simbiosis entre biografía y obra. Como lo hacen todos los libros de la colección “Espacios críticos” de la editorial Icaria, aquí también se sitúa al pensador en su contexto y se revelan relaciones, acontecimientos y giros metodológicos que permitieron y estimularon los viajes y virajes del pensamiento y de la obra. Un tercer aspecto destacable es que el libro no es una mera antología. Está construido en diálogo entre editor y ‘personaje’. El mismo Brenner contribuye con textos inéditos y narra episodios de su vida personal y académica a través de una extensa entrevista; al mismo tiempo, Álvaro Sevilla Buitrago (el editor) propone lecturas del trabajo de Brenner a partir de su participación en grupos de investigación dirigidos por él. Estos tres aspectos –reconocer a un intelectual en plena producción, poner al autor en contexto, e ir más allá la idea de antología– contribuyen a dar coherencia y marco al foco principal del texto: la trayectoria del pensamiento del autor acerca de la cuestión urbana.

El libro dibuja la trayectoria del pensamiento de Brenner en dos momentos. El primero, y más extenso, es la preocupación por las formas escalares de los procesos de acumulación capitalista, y el rol del Estado, en tanto que institucionalización de proyectos y estrategias, en la producción de esas escalaridades. El segundo momento se inicia problematizando dos nociones básicas del primer momento: la escala y la ciudad. A la primera se le quita su lugar como único principio organizador de la espacialidad. A la segunda se le desconoce su capacidad para describir lo urbano en un contexto de cambios espaciales acelerados. A partir de esta problematización se inicia la exploración de las formas y procesos de la urbanización planetaria, segundo momento del pensamiento de Brenner.

Respecto a las espacialidades estatales, una piedra angular es la crítica que hace Brenner a la visión dominante de la disolución del poder de los Estados nacionales, a la cual contrapone la idea de reestructuraciones de la espacialidad estatal. La hipótesis central de esta etapa es que “la fase actual de reestructuración global ha reconfigurado radicalmente la organización escalar de los procesos de territorialización bajo el capitalismo, relativizando la primacía de la escala nacional y, simultáneamente, reforzando el rol de las escalas supranacionales y subnacionales en esos procesos” (Brenner, 2004, p. 44).

En este contexto, la globalización es vista como una fase que busca un nuevo arreglo espacial y escalar que estabilice un marco institucional y geográfico para asegurar la acumulación del capital. El espacio fordistakeynesiano, integrado en la escala nacional y sostenido en políticas redistributivas y de cohesión social, se derrumba en la segunda mitad de los años 1960, producto de una disminución de la tasa de acumulación, y ve surgir el nuevo arreglo globalneoliberal, en el que las espacialidades estatales se conforman a partir de procesos de descentralización y disgregación de la gobernanza en diversas escalas, y unas políticas que apuntan ya no a la cohesión, sino a la competitividad territorial.

No se trata, entonces, de la disolución de la estatalidad, sino de su reestructuración en nuevas escalas y formas de gobernanza, las cuales –según Brenner– no pueden estudiarse en abstracto, sino atendiendo a: i) los marcos regulatorios y los acuerdos políticos que prevalecieron durante el periodo fordistakeynesiano; ii) los patrones históricos de formación de crisis, de desarrollo desigual y de protesta sociopolítica; iii) la interacción de las iniciativas neoliberales con los marcos regulatorios, patrones de desarrollo territorial y alianzas sociopolíticas de la etapa anterior; y iv) la evolución de las agendas políticas neoliberales en su interacción conflictiva con condiciones económico-políticas, disposiciones regulatorias y geometrías de poder contextualmente específicas.

En la construcción de estos nuevos arreglos institucionales, las ciudades se consolidan como nuevos escenarios-escalas que permiten conformar una geografía ‘glocalizada’ de los procesos de acumulación de capital. En este contexto, las ciudades actúan como incubadoras para las principales estrategias políticas e ideológicas que permiten la continuidad del dominio neoliberal (Smith, 2002). El empresarialismo urbano y las ciudades empresarializadas serán la forma clave para la producción de nuevas geografías glocalizadas del poder estatal nacional y de una nueva espacialidad de acumulación.

Junto con poner énfasis en los procesos de espacialidad estatal que acompañan la implantación del neoliberalismo, Brenner destaca que esta espacialidad es un terreno político institucional en disputa. Sobre él actúan diversas fuerzas sociales que tratan de incidir en las geografías de la actividad estatal. En este contexto se insiste en que la escala no es una realidad objetiva, sino un medio de lucha política por el control del espacio y del proceso de acumulación.

La transición al segundo momento se inicia con dos capítulos: “Mil hojas” y “¿Qué es la teoría urbana crítica?”. El primero retoma la idea lefebvriana del espacio social polimórfico. El espacio no puede entenderse con referencia a un único principio o patrón omnicomprensivo. En su lugar pueden distinguirse diversas dimensiones imbricadas, aunque analíticamente distintas: el lugar, donde tienen un papel central los actores, las identidades y las resistencias; el territorio, espacio en el que se toma control y se establecen límites; las redes, ámbito de interacciones transversales entre localización y unidades organizadas y geográficamente dispersas. Lo anterior implica que más que hablar de una economía política de la escala, hay que hablar de las ‘economías políticas escaladas’; y que, para comprenderlas, es necesario observar el modo en que actúan conjuntamente todos los principios de organización antes mencionados. En “¿Qué es la teoría urbana crítica?”, Brenner, para quien la teoría crítica debe estar siempre observando el horizonte de lo posible para identificar alternativas emancipadoras, se pregunta cómo influyen los cambios actuales en los horizontes de la emancipación. Su respuesta es que las nuevas dinámicas espaciales vinculadas a una urbanización planetaria cambian el modo en que debemos estudiar lo urbano. La urbanización ya no se refiere solo a la expansión de las grandes ciudades: estamos asistiendo a la intensificación y extensión del proceso de urbanización a todas las escalas espaciales y en toda la superficie del espacio planetario (Lefebvre, 2003 [1970]; Schmid, 2005). En este contexto, la teoría urbana crítica debe tener un lugar central en la teoría crítica general: se requiere una reorientación urbanística de la teoría crítica.

Se introducen así dos ideas que abren un nuevo ciclo de pensamiento. Primero, la configuración de las espacialidades del capitalismo y de las estatalidades no se juega solo en torno a las escalas; operan también otros principios que es necesario considerar: el lugar, el territorio y, sobre todo, la red. Esto obliga a entender el espacio urbano no como una jerarquía de escalas, sino como un entramado complejo y polimórfico. Segundo, la idea de la urbanización planetaria. Esta nueva realidad implica la necesidad de producir cambios epistémicos y teóricos profundos en la manera en que nos aproximamos y describimos lo urbano. Se entra de lleno al segundo momento con “La era de la urbanización planetaria”. En este artículo, Brenner critica la epistemología de los estudios urbanos que conciben como objeto único la ciudad, distinto de lo suburbano o lo rural. Propone reemplazar este modelo dicotómico por conceptualizaciones multiescalares, territorialmente diferenciales, morfológicamente variadas y rigurosamente procesuales, donde no cabría la división urbanorural, sino más bien distintas expresiones de lo urbano. La ciudad sería el objeto, y lo urbano la condición que realmente habría que estudiar. En un segundo artículo, “Nuevos horizontes: hacia la investigación de la urbanización planetaria”, Álvaro Sevilla Buitrago, a partir de su participación en el Urban Theory Lab (utl), profundiza en el trabajo que realizan Brenner y sus colaboradores en orden a explorar las transformaciones conceptuales de la teoría urbana contemporánea y poner en tensión la hipótesis de la urbanización planetaria, al extremo de buscar evidencias de procesos de urbanización en lugares como el Amazonas, el Océano Pacífico o la atmósfera.

Pese a insistir en su carácter total, Sevilla Buitrago, siguiendo trabajos recientes de Brenner, hace hincapié en que la urbanización planetaria no es uniforme; por el contrario, señala, “la urbanización planetaria conserva los rasgos fundamentales de territorialización capitalista en el sentido de promover patrones de desarrollo espacial desigual que acentúa los contrastes entre los diversos enclaves y modos de urbanización” (p. 276).

En orden a dar cuenta de la nueva realidad urbana planetaria y heterogénea, Brenner y sus colaboradores proponen un nuevo repertorio de conceptos. Se proponen tres categorías para tipificar los procesos de urbanización, los que corresponden a momentos dialécticamente conectados: i) urbanización concentrada, el momento que entendemos como ciudades o áreas metropolitanas; ii) urbanización extendida, territorios funcionales a los procesos de aglomeración, que por más lejanos que se encuentren están siempre vinculados al desarrollo de las actividades diarias de las aglomeraciones; y iii) urbanización diferencial, en tanto momento de destrucción y creación de nuevas formas de urbanización a partir de urbanizaciones concentradas o extendidas. Para Sevilla Buitrago, sin embargo, la urbanización diferencial se entiende mejor como totalidad que agrupa los momentos anteriores antes que como un tercer momento en iguales términos.

Junto a estas categorías y en una nueva reelaboración de Lefebvre, Brenner y Schmid distinguen tres dimensiones de urbanización: prácticas espaciales, regulación territorial y vida cotidiana, equivalentes a las nociones lefebvrianas de prácticas espaciales, representaciones del espacio y espacios de representación, y destacan la necesidad de explorar las conexiones entre los distintos momentos y dimensiones de urbanización en una perspectiva histórica (Brenner & Schmid, 2015).

Este segundo momento del pensamiento de Brenner se caracteriza por un trabajo investigativo más colectivo y flexible, organizado en núcleos de investigación en distintos países que conforman una red transdiciplinaria en la que se cruzan las perspectivas de la geografía crítica y los estudios urbanos, la economía política, las ciencias ambientales y el diseño. Este empeño se caracteriza, además, por la producción de visualizaciones de los procesos de urbanización descritos, en un esfuerzo de síntesis cuasi diagramático.

Neil Brenner. Teoría urbana crítica y políticas de escala es un libro polifacético y dinámico, pero a la vez exhaustivo y completo. Permite una visión panorámica del pensamiento de uno de los teóricos urbanos más reconocidos de nuestro tiempo, pero, al mismo tiempo, ayuda a generar un cuadro de la discusión urbana actual relevando cuestiones centrales, tales como la relación entre neoliberalismo y estatalidad; proceso de acumulación y espacialidades; la articulación entre lo global y lo local en el marco del capitalismo actual; y la distinción, –crucial según mi punto de vista– de la idea de ciudad como objeto, y de lo urbano como condición.

Referências

Brenner, N. (2001). Entrepreneurial cites, ‘glocalizing’ states and the new politics of scale: Rethinking the political geographies of urban governance in Western Europe. Working Paper 76a/76b. Cambridge, ma: Center for European Studies, Harvard University. [ Links ]

Brenner, N. (2004). New State Spaces: Urban governance and rescaling of statehood. Nueva York: Oxford University Press. [ Links ]

Brenner, N. & Schmid, C. (2015). Towards a new epistemology of the urban? City, 19(2-3), 151-182. http://dx.doi.org/10.1080/13604813.2015.1014712 [ Links ]

Lefebvre, H. (2003 [1970]). The urban revolution. Minneapolis: University of Minnesota Press [trad. cast.: La revolución urbana, Madrid: Alianza Editorial, 1972]. [ Links ]

Schmid, C. (2005). Theory. En R. Diener, J. Herzog, M. Meili, P. de Meuron & C. Schmid, Switzerland: An urban portrait (pp. 163-224). Basel: Birkhäuser Verlag. [ Links ]

Sevilla A. (2017). Nuevos horizontes: hacia una investigación de la urbanización planetaria. En Á. Sevilla (ed.), Neil Brenner. Teoría urbana crítica y políticas de escala. Barcelona: Icaria (col. Espacios Críticos, 9). [ Links ]

Smith, N. (2002). New globalism, new urbanism: Gentrification as a global urban strategy. Antipode, 34(3), 427-450. https://doi.org/10.1111/1467-8330.00249 [ Links ]

 

Luis-Francisco Letelier – Universidad Católica Del Maule, Talca, Chile. E -mail: [email protected].

 

 

 

Un arte vulnerable: la biografia como forma | Nora Avaro, Julia Musitano e Judith Podlubne

A obra Un arte vulnerable é resultado de um colóquio homônimo sobre escrita biográfica. O evento foi idealizado e organizado pelas autoras do livro na Faculdade de Humanidades e Arte, na cidade de Rosario, Argentina, entre os dias 11 e 12 de novembro de 2016. As organizadoras se mostram convictas de que não há teoria biográfica que possa suplantar a derivada da atividade própria de cada experiência narrativa de uma vida. Vale notar que tal convicção, mola propulsora para o evento acadêmico, é perceptível nos textos que compõem o livro. Os artigos reunidos são reescritas das apresentações dos convidados para o colóquio, com acréscimos advindos de discussões suscitadas durante o encontro acadêmico.[1]

A obra conta com dezoito capítulos distribuídos em quatro seções temáticas, que não são estanques, mas comunicam-se na medida em que a leitura flui. A primeira parte intitulada “Teorias em ato”, [2] apresenta uma gama variada de discussões como a questão da onisciência do biógrafo nas formas tradicionais de narrativas de vida; as possibilidades uma escrita biográfica com fronteiras permeáveis a infiltrações de incursões autobiográficas; o fetiche referencial; as ligações entre vida e obra; o método biográfico; o dispositivo da escrita; as conexões entre a biografia e o ensaio.

Antonio Marcos Pereira é autor do primeiro ensaio e toma Flaubert’s Parrot, de Julian Barnes, como linha de partida para questionar os limites entre biografia e ficção em uma rica abordagem sobre duas veredas metodológicas: a biografia canônica e a biografia processual. A primeira obedece à tradição de manter o máximo possível o biógrafo invisível na construção do texto. Já na biografia processual, o biógrafo deixa transparecer seu trabalho investigativo, as dificuldades de pesquisa, as disputas de memória. Enquanto a biografia canônica valoriza uma narrativa neutra, isenta de lacunas, a biografia como processo procura demonstrar os limites enfrentados pelo autor, as versões contraditórias. Antonio Marcos Pereira opta pelo segundo caminho, pois, para ele, as narrativas mais profundas seriam aquelas que possibilitam um estreitamento nos laços entre um leitor, o biógrafo e o biografado; o biografado e sua obra.

O que torna uma vida digna de ser narrada? É em reposta a esse questionamento que Carlos Surghi escreve o seu artigo valendo-se da hermenêutica de Wilhelm Dilthey para não só abordar de forma crítica os modelos biográficos que narram vidas teleobjetivadas como também as relações entre vida e obra. A análise instiga-nos a pensar sobre a “fascinação biográfica”, conceito que permite avaliar o rompimento com aquilo que Antonio Marcos Pereira já havia identificado no capítulo anterior como biografia canônica. O texto é um convite para deter-se em reflexões acerca da subjetividade do biógrafo: a faina investigativa, que gera uma obsessão incontrolável, um completar-se a si mesmo na medida em que se escreve sobre o outro.

O gênero biográfico, recorrentemente é ancorado numa aporia: ou se faz biografia ou se faz história. Há, portanto, uma tentativa, sempre frustrada, de se medir o teor biográfico e o ficcional de uma narrativa biográfica, na visão de Aldo Mazzucchelli. Em ritmo de ensaio e dotado de erudição, o autor realiza um exame das diferenças entre as concepções positivistas sobre documento e verdade em contraposição a ilusão do “texto puro”, livre de qualquer referência, conforme alguns modelos pós-estruturalistas. O texto apresenta ainda uma interessante discussão sobre a questão do chamado “retorno do autor” e, valendo-se de ideias de Heidegger sobre o papel social da escrita, reflete sobre os avanços tecnológicos e os seus efeitos nos processos de subjetivação do autor.

Na sequência, Julieta Yelin parte de uma provocação: existem biografias de animais? A autora nega a possibilidade de tal empreendimento, e, para justificar, estabelece relações entre o pensamento de Foucault e Heidegger no que concerne a questão da linguagem como prova do mundo, como efeito da bios. A zoografia se encontra perante um entrave: os animais não falam e a exigência vocal do biografado é inegociável. Assim, a possibilidade de se escrever uma zoografia seria mediante uma linguagem adequada para se falar de outras linguagens e outras formas de vida.

Lorena Amaro Castro fecha o bloco teórico com uma análise enriquecedora das contribuições de Virgínia Woolf no tocante à biografia e autobiografia. É destacado o papel da biógrafa inglesa na quebra de paradigmas ao realizar experiências profícuas com o referencial e o ficcional. “Flush: uma autobiografia” seria um ótimo exemplo desse rompimento com os rígidos modelos pré-estabelecidos, já que Woolf, de uma só tacada, escreve uma autoficção sob o ponto de vista de um animal de estimação, no caso um cocker spaniel e ainda, se lança em um terreno dominado pelos homens, questionando, portanto, as normatizações sociais sobre gênero e hierarquia familiar.

“O romance do biógrafo”, título da segunda seção, reúne textos de autores que publicaram biografias e aproveitam o espaço para compartilharem as experiências acumuladas ao longo desse processo. A ligação entre esse segundo bloco de textos e o primeiro é estabelecido por Irene Chikiar Bauer, biógrafa de Virgínia Woolf. O artigo expõe elementos da escrita biográfica de Bauer, como o uso da cronologia a fim de fugir das limitações temáticas que envolvem a biografada atendo-se ao seu fluxo de vida. Além da questão metodológica, é compartilhado com o leitor os desafios da pesquisa, da tarefa hercúlea de dar conta do enorme corpus documental e a difícil tarefa, autoimposta pela biógrafa, de se manter a distância da protagonista, a fim de não se envolver com a personagem cuja vida narrava.

Ana Inés Larres Borges relata a experiência de escrever a biografia da poetisa Idea Vilariño. Partindo do ceticismo de Jorge Luis Borges quanto às possibilidades de se efetivar os vínculos entre vida e obra, o texto problematiza não só esses limites, mas também a hegemonia estruturalista em sua faina antibiográfica. O mote do artigo em questão é pensar os dilemas e tensões entre vida e obra na junção de escrita da vida privada e da trajetória de um autor, ou seja, ponderar a velha demanda sobre a necessidade de se conhecer a vida para compreender a obra.

Carlos María Domínguez deixa claro que seu texto é muito mais uma reflexão sobre a experiência de escrever três biografias do que tratar de teorias sobre o gênero. São relatados os desafios inerentes, principalmente, à coleta de depoimentos. Diante das lacunas, das inconsistências e das contradições, o biógrafo se viu forçado a conjeturar a fim de não cometer enganos, propositais ou não. Cada uma das biografias apresentou desafios próprios que foram vencidos ou contornados por estratégias específicas para cada caso.

Osvaldo Baigorria encerra a segunda divisão da obra com o relato de como escreveu a biografia de Néstor Sánchez. O biografado desafiava uma narrativa de sua vida uma vez que o período mais importante de sua trajetória era envolto por em um breu de informações desencontradas ou faltantes. A saída, ao invés de romancear, foi elaborar uma narrativa conjetural, ou como o próprio autor classifica, uma “pós-autobiografia”. O texto é um relato saboroso, permeado pelas confissões de subjetivação do biógrafo, que, na execução do projeto, pegou-se indagando sobre si mesmo. A experiência de subjetividade acabou gerando não um livro sobre Sánchez, mas com Sánchez, resultando em uma “ilusão referencial” ou “superstição realista”.

A terceira seção do livro, “A vida em obra”, é a reunião de leituras críticas sobre biógrafos e biografados. Nessa etapa do trabalho, os autores procuram refletir sobre as escolhas metodológicas e teóricas, sobre as estratégias narrativas, sobre as motivações dos biógrafos e os comportamentos de determinados biografados. É outra visão da operação biográfica, [3] não mais sob o ângulo da subjetividade de quem escreveu uma história de vida, mas de quem analisa os modos pelos quais a vida de alguém foi colocada em forma escrita.

O elo entre a terceira subdivisão e a anterior é uma nova aparição de Osvaldo Baigorria. Todavia, não como autor de texto, mas como objeto de análise de Julia Musitano que se debruça sobre a biografia de Néstor Sánches. A pergunta seminal de Musitano é: o que levou o biógrafo a se interessar pelo biografado? Provavelmente, segundo o texto, porque Baigorria seria alguém fascinado pelo indivíduo nômade, aquele que prefere não pertencer a um só lugar. Assim, o biógrafo realiza com o biografado uma fusão, não autorizada, do seu eu com o outro, ou seja, aquilo que o próprio Baigorria admite ser uma pós-autobiografia.

Em seguida, Nieves Battistoni elege a biografia de Osvaldo Lamborghini escrita por Ricardo Strafacce para ser analisada. O curioso desse caso seria que Strafacce, com uma carreira dedicada ao exercício da advocacia, nunca havia escrito um livro até publicar a vida de Lamborghini. Apesar de o texto da biografia ser coordenado por uma cronologia rígida, há concessões narrativas que dão dinâmica ao texto, como flashbacks e fordwards, que geram tensão dramática e expectativa nas passagens de um capítulo para o outro. O uso da cronologia rígida teria como objetivo contrastar com a vida descontínua e nômade do personagem retratado, a fim de refutar os mitos de uma vida errática. Assim como ocorre com Baigorria, ocorre também uma síntese entre biógrafo e biografado, ou seja, uma narrativa com aspectos autobiográficos.

Patrício Fontana inicia o seu texto com uma reflexão sobre a ideia do “retorno do autor” e do sujeito nas últimas décadas para depois analisar a biografia de Silvina Ocampo de autoria de Mariana Enríquez. Questões importantes são levantadas sobre os limites entre perfil biográfico e uma biografia propriamente dita. O “perfil” seria uma forma de se esquivar de dar conta de uma biografia “total”? Quanto de totalidade seria necessário para que um texto seja considerado biografia e não um perfil biográfico? Patricio Fontana responde não só a essas indagações como também sobre as relações da biógrafa com o seu texto e sobre os limites e as características do gênero em si.

Analía Capdevila analisa a biografia escrita por César Aira sobre a vida de Alejandra Pizarnik cuja espinha dorsal é o estabelecimento das vinculações entre vida e obra da biografada. São expostas as dificuldades do biógrafo em romper com os clichês, mitificações e estereótipos que cercam a biografada. Para tanto, a trama é conduzida por um narrador sempre cauteloso, que prefere expressões como “pode ter sido” ou “deve ser assim” do que uma afirmação categórica.

Judith Podlubne se encarrega de perscrutar a biografia de Oscar Masotta assinada por Carlos Correa, amigo do biografado, que confessa não ser guiado por nenhum método de escrita de vida. São convidadas para o texto análises da crítica literária em articulação com concepções de Virgínia Woolf, David Hume, George Luckács e Theodor Adorno no tocante a temas relacionados ao fazer biográfico, aos entrecruzamentos entre biografia e ensaio, ensaio e retrato, a fim de concluir que o estudo de caso apresentado evidencia a maneira como a escrita de uma vida afeta o biógrafo.

A terceira etapa do livro é encerrada com um artigo de Marcela Zanin sobre a biografia de Rúben Darío escrita por Vargas Vila. Diferentemente de alguns biógrafos que desejam explicar a obra a partir da vida, Vila se propõe a estabelecer os vínculos entre obra e vida, às vezes, para constatar a dissonância entre ambas. Trata-se de uma biografia com mesclas de autobiografia em razão das relações, nem sempre harmoniosas, que o biografado manteve com o biógrafo. Segundo Zanin, mais do que mesclar a própria vida com a do biografado, Vila quer viver paralelamente a vida de Darío.

Em “Cenas biográficas”, derradeira seção da obra, biógrafos contam suas vivências no exercício de suas atividades: as viagens para pesquisa de campo, os locais visitados em busca de inspiração ou coleta de documentos, arquivos e depoimentos, os pontos de partida e de chegada, os altos e baixos na experiência de narrar a história da vida de determinado personagem.

Mónica Szurmuk é biógrafa de Alberto Gerchunoff e usa o artigo para dar vazão à sua subjetividade com matizes de confissão, como ter aprendido a escrever biografia escrevendo uma biografia e também com base na leitura de outras histórias de vida; a forma como o desconhecimento e inexperiência com o gênero causou atrasos e grandes dificuldades na escrita que, por sinal, não estava sujeita a contratos, prazos; não sabia se a obra seria, inclusive, publicada ou se fosse, em qual língua, inglesa ou espanhola. O texto de Szurmuk permite, mais uma vez, evidenciar-se que o contato entre biógrafo e biografado acaba por levar a experiências de subjetivação.

Na sequência, Nora Avaro elabora um texto em que traz para a reflexão análises de autores que lhe fazem companhia em Un arte vulnerable como Irene Bauer, Antonio Marcos Pereira, Aldo Mazzucchelli e Ana Larre Borges. Nora Avaro mescla as análises desses autores com a sua própria experiência de biografar Adolfo Pietro, com considerações acerca dos métodos de escrita utilizados: uma combinação antagonista de exaustividade monumental e liberdades interpretativas. A biógrafa encerra com reflexões sobre a escrita biográfica e os processos de subjetivação do biógrafo que acaba se fundindo à narrativa da vida que elegeu para contar.

Martín Pietro fecha a coletânea com um texto dividido em subtítulos que funcionam como placas indicativas do percurso realizado pelo biógrafo em sua empreitada de escrever a vida de Juan José Saer: pesquisa, levantamento de dados, arquivos, documentação, entrevistas e viagens para pesquisa de campo. É possível acompanhar não só as etapas preliminares para a escrita, mas as concepções do biógrafo sobre o gênero: necessidade do uso maciço de documentação e pesquisa, a importância atribuída ao contexto e às redes de sociabilidade do protagonista, e, por fim, a valorização de se estabelecer os vínculos entre a vida e a obra do biografado.

Un arte vulnerable descortina um panorama rico de questões e abordagens no tocante à biografia e autobiografia no espaço latino-americano. A contribuição da obra é no sentido de oferecer reflexões sobre essas formas de escrita e suas peculiaridades, como a de alimentar-se da literatura e ao mesmo tempo impor a barreira documental como forma de legitimar o seu discurso. É justamente esse caráter híbrido da (auto)biografia que lhe confere, a um só tempo, vulnerabilidade, insipiência, vigor e movimento. [4]

Cabe ressaltar que os artigos que compõem a coletânea não devem ser tomados como conjuntos estanques. De fato, os textos convidam a imaginar outros arranjos e articulações possíveis. A título de exemplo, Nora Avaro estabelece relações com autores que assinam textos presentes na obra a fim de evidenciar as relações entre teoria e prática na escrita biográfica.

O livro apresenta importantes análises sobre temas candentes no tocante ao biografismo. 5 Essa publicação evidencia a complexidade de tomadas de posição sobre relações entre vida e obra, as fronteiras entre literatura e biografia, a problemática da subjetivação do biógrafo, os vínculos entre biógrafo e biografado, os usos do arquivo, dos documentos e das entrevistas, os desafios da pesquisa e da escrita da vida de um personagem. Trata-se de uma obra essencial para quem estuda a escrita biográfica e autobiográfica, seus limites e as suas possibilidades.

Notas

1. Ao todo, são dezoito autores que assinam os artigos, por economia optamos por não comentar dados básicos sobre formação, vínculos institucionais e linhas de pesquisa de cada um, por sinal, algo que poderia estar presente no livro. Em linhas gerais, a obra tem o mérito de reunir biógrafos e pesquisadores latino-americanos oriundos de Argentina, Brasil, Uruguai, Chile, que concentram seus estudos e atuações em áreas tais como literatura, ensaísmo, crítica literária, teoria literária e escrita biográfica.

2. Serão realizadas traduções livres tanto de expressões como de trechos da obra na medida em se fizerem presentes no texto desta resenha.

3. O conceito de operação biográfica procura realizar uma releitura da operação historiográfica de Certeau (CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982), mas a partir das demandas do gênero biográfico. Sobre o conceito de operação biográfica, ver: MUNIZ JUNIOR, João. Biografia e história em Raimundo Magalhães Junior: narrativas de panteonização e iconoclastia. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2017, p. 105.

4. Sobre a questão do hibridismo, ver: DOSSE, François. O Desafio Biográfico: escrever uma vida. São Paulo: EdUSP, 2009.

5 Sobre a noção de biografismo, ver: SILVA, Wilton C. L. Para além da ego-história: memoriais acadêmicos como fontes de pesquisa autobiográfica. Patrimônio e Memória, São Paulo, Unesp, v. 11, n. 1, p. 71-95, jan.-jun. 2015.

João Muniz Junior – Doutorando em História, com bolsa da CAPES, pela Universidade Estadual Paulista – Campus Assis (UNESP/Assis). Mestre e graduado em História pela UNESP/Assis. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.  E-mail: [email protected] CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/6369667028646263


AVARO, Nora; MUSITANO, Julia; PODLUBNE, Judith (Orgs.). Un arte vulnerable: la biografia como forma. Rosario: Nube Negra, 2018. Resenha de: MUNIZ JUNIOR, João. Os caminhos da biografia: teorias, métodos, experiências e possibilidades. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n. 22, p. 224-230, set./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]

 

Bram Stoker e a Questão Racial. Literatura de horror e degenerescência no final do século XIX | Evander Ruthieri da Silva

Proponho analisar o livro Bram Stoker e a Questão Racial. Literatura de horror e degenerescência no final do século XIX (2017), livro de estreia do jovem historiador Evander Ruthieri da Silva, e que teve como base sua dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Nele Ruthieri faz um trabalho primoroso de história social dos intelectuais, nos mostrando as redes de sociabilidade em que Bram Stoker circulava, a articulação entre seu projeto literário e o seu projeto intelectual.

Queremos com essa análise colocar em evidência essas categorias (redes de sociabilidade, circulação e projeto literário), apontando como hipótese o uso intuitivo delas, em outras palavras, evidencia que seu intento será ir além das simples verbalizações que dará novas possibilidades de ver o mundo literário. Gostaríamos de apontar nesse texto os caminhos escolhido pelo autor como uma possibilidade de pensar a história dos intelectuais a partir da relação autor-obra-leitor. Isto me permitirá, com mais liberdade, imaginar e compreender as formações discursivas que circulam nesse período, bem como aferir o movimento das categorias mencionadas acima. Leia Mais

Leandro Gomes de Barros: vida e obra | Arievaldo Vianna

No dia 19 de setembro de 2018 a literatura de cordel foi reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro pelo Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). [2] Trata-se, sem dúvida, de um importante reconhecimento do poder público dessa manifestação literária e cultural e motivo de orgulho para poetas cordelistas e amantes dessa literatura. O ano de 2018 também representa o centenário de morte daquele que é considerado o “pai da literatura de cordel” nordestina brasileira e principal influência dos poetas cordelistas: Leandro Gomes de Barros (1865-1918). Esses acontecimentos nos estimulam a fazer uma reflexão sobre a história e a trajetória da literatura de cordel no Brasil. Uma obra que trouxe contribuições importantes para essa discussão é: Leandro Gomes de Barros: vida e obra, de Arievaldo Vianna, lançada em 2014, que buscou realizar uma biografia de Leandro, o fundador desta literatura.

Arievaldo Vianna Lima é poeta cordelista, radialista, ilustrador e publicitário. Nasceu em Quixeramobim, no Ceará, em 1967, sendo alfabetizado por sua avó com o auxílio da literatura de cordel. Publicou mais de 70 folhetos de cordel[3] e livros. Arievaldo é também um militante pela utilização da literatura de cordel em sala de aula por meio do projeto Acorda Cordel na sala de aula, publicando em 2006 um livro homônimo [4], com diversas sugestões para os professores (LIMA, 2006, pp. 83-84). Arievaldo faz parte da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, ocupando a cadeira número 40, cujo patrono é João Melquíades Ferreira [5]. Arievaldo participa de vários eventos pelo Brasil, como feiras do livro e divulga suas atividades de poeta no blog Acorda Cordel. [6]

Leandro Gomes de Barros: vida e obra é resultado de uma pesquisa de vários anos, iniciada pela aproximação de Arievaldo, com folhetos de Leandro, ainda em sua infância, como Batalha de Oliveiros com Ferrabrás, Juvenal e o Dragão, Cachorro dos mortos e Cancão de fogo. Assim, a obra é uma homenagem ao poeta que o ajudou em sua alfabetização e que continua sendo a sua principal inspiração na composição de folhetos. O livro conta com 13 capítulos, mais dois apêndices [7], e com textos de apresentação de Marco Haurélio [8] e Gilmar de Carvalho [9]

, além de ilustrações de Jô Oliveira [10].

O fato de Arievaldo não ser historiador de formação pode fazer com que alguns acadêmicos com visões mais fechadas para estudos de fora do ambiente acadêmico “torçam o nariz” e não deem o valor devido à obra. Ao contrário dessas visões hierárquicas em nosso entendimento, a aproximação de Arievaldo com a literatura de cordel traz uma sensibilidade maior ao seu trabalho de investigação, explorando nuances que os acadêmicos que apenas se ligam ao cordel por meio da pesquisa não conseguiriam identificar. Sendo poeta cordelista e militante pela causa da poesia popular, Arievaldo demonstra ser um pesquisador do cordel comprometido com o levantamento bibliográfico e análise de fontes com rigor. Dessa forma, o trabalho de Arievaldo Vianna pode ser visto como uma biografia histórica.

Segundo Mary del Priore, “a moda da biografia histórica é recente”, já que até a metade do século XX, sem ser de todo abandonada, “ela era vista como um gênero velhusco, convencional e ultrapassado por uma geração devotada a abordagens quantitativas e economicistas.” (PRIORE, 2009, p.7). Marc Ferro debitava esse desinteresse pela biografia a dois fatores: a valorização do papel das massas e a diminuição do papel dos ‘herois’ inspirada no determinismo ou no funcionalismo, das análises marxistas e estruturalistas que marcaram a produção europeia dos anos 1960(PRIORE, 2009, p.7).

Na primeira metade do século XX, vários escritores se tornaram grandes biógrafos, como Guy de Portalés, Michel de Leiris, André Maurois, Lytton Strachey, dentre outros. Mary del Priore aponta que o gênero é um “convite à viagem artificial no passado, fortemente ligada aos fatos, a maior parte das biografias era acrítica e lançava suas raízes no terreno das paixões coletivas.” (PRIORE, 2009, p.8). Um dos pioneiros em colocar as bases de uma biografia histórica renovada foi Lucien Febvre, que ao fazer as biografias de Lutero e Rabelais, “deu vida a personagens tributários de uma utensilagem mental que os ultrapassava e os permitia se situar numa dada época e sociedade.” (PRIORE, 2009, p.9). A rejeição da biografia histórica só teve fim nos anos 1970 e 1980, conforme Priore:

O fenecimento das análises marxistas e deterministas, que engessaram por décadas a produção historiográfica, permitiu dar espaço aos atores e suas contingências novamente. Foi uma verdadeira mudança de paradigmas. A explicação histórica cessava de se interessar pelas estruturas, para centrar suas análises sobre os indivíduos, suas paixões, constrangimentos e representações que pesavam sobre suas condutas. O indivíduo e suas ações situavam-se em sua relação com o ambiente social ou psicológico, sua educação, experiência profissional etc. O historiador deveria focar naquilo que os condicionava a fim de fazer reviver um mundo perdido e longínquo. Esta história “vista de baixo” dava as costas à história dos grandes homens, motores das decisões, analisadas de acordo com suas consequências e resultados, como a que se fazia no século XIX. (PRIORE, 2009, p.9).

Dessa maneira, embora não dialogue diretamente com obras do campo da biografia histórica, Arievaldo Vianna acaba por realizar um estudo biográfico com foco em Leandro Gomes de Barros sem perder de vista o contexto histórico em que o poeta viveu, além das pistas deixadas pelo próprio poeta em seus folhetos de cordel, que também trazem marcas de sua vida e que foram exaustivamente analisados por Vianna.

Em Leandro Gomes de Barros: vida e obra, o autor defende o pioneirismo de Leandro Gomes de Barros na produção de folhetos de cordel, concordando com Francisco das Chagas Batista, que já indicava isso em sua obra Cantadores e poetas populares, de 1929. Embora já existissem alguns folhetos publicados antes de Leandro, Vianna ressalta que “foi coisa esparsa, sem um programa editorial consistente” (VIANNA, 2014, p.22), diferente do que foi feito por Leandro, que produziu de forma sistemática. Vianna também aponta a originalidade do poeta paraibano na forma poética do cordel:

Leandro não se limitou a reaproveitar os temas correntes, oriundos do romanceiro medieval e dos ABCs manuscritos compostos em quadra, que já circulavam aos montes pelo Nordeste narrando a gesta do boi e do cangaceiro. Ele foi mais longe. Criou um tipo de poesia cem por cento brasileira, versejou em diversas modalidades (sextilha, setilha e martelo), utilizando a redondilha maior (sete sílabas) e o decassílabo. (VIANNA, 2014, p.20).

Utilizando fontes como certidões de nascimento, casamento, de óbito, registros de batismo, além do depoimento de Cristina da Nóbrega, sobrinha-neta de Leandro Gomes de Barros, Arievaldo conseguiu trazer à tona algumas pistas da vida de Leandro. Embora nascido em Pombal, na Paraíba, Leandro passou boa parte de sua infância e adolescência na Vila do Teixeira, também na Paraíba, sendo criado pelo seu tio materno, o Padre Vicente Xavier de Farias, pois se tornou órfão muito jovem. Esse momento foi crucial para sua formação de poeta, pois, em primeiro lugar, a Vila do Teixeira foi o berço dos grandes cantadores do passado, como Francisco Romano Caluête e o famoso glosador Agostinho Nunes da Costa. Vianna ressalta que esses poetas antigos “tinham o costume de escrever cadernos com as melhores glosas de sua produção poética.” (VIANNA, 2014, p.29). Além disso, já circulavam nessa época cópias manuscritas de poemas em quadras, como Obra de Ricarte (que deu origem ao Soldado Jogador), Rabicho da Geralda e Cantiga do Vilela (que deu origem ao folheto História do Valente Vilela) (VIANNA, 2014, p.29).

Em segundo lugar, a Vila do Teixeira foi uma terra de “grandes valentões, com destaque para os Guabirabas, família de celerados cuja bravura Leandro imortalizaria em versos, muitos anos depois.” (VIANNA, 2014, p.29). Os conflitos políticos e a presença dos cangaceiros na região estavam marcados na memória dos moradores, sendo a infância de Leandro “povoada por mirabolantes histórias de lutas, muitas delas narradas em quadras pelos cantadores do Teixeira.” (VIANNA, 2014, p.36).

Em terceiro lugar, a vida na Vila do Teixeira foi importante pela educação que Leandro recebeu do Padre Vicente Xavier de Farias [11]. Leandro teve acesso a diversas leituras, como as Escrituras Sagradas e a História de Carlos Magno e os Doze Pares de França. Além disso, várias irreverências de Leandro na juventude e seus conflitos com o Padre Vicente, que o levaram a fugir de casa, inspiraram, segundo Vianna, personagens de folhetos como Cancão de Fogo. (VIANNA, 2014, pp. 41-44).

Mudando-se para Pernambuco [12], onde passou a viver unicamente da venda de folhetos de cordel, Leandro se casou com dona Venustiniana Eulália de Sousa e teve quatro filhos: Rachel, Esaú, Julieta e Herodias. Arievaldo também identifica algumas influências do convívio familiar nos folhetos de Leandro, a exemplo da convivência com a sogra. Segundo Vianna, “uma análise da obra de Leandro demonstra a sua constante ojeriza pela figura da sogra, o que leva a crer que o poeta mantinha uma relação tumultuada com a mãe de sua esposa.” (VIANNA, 2014, pp. 47-48).

Analisando os próprios folhetos de Leandro, que trazem pistas biográficas sobre o poeta, e relatos de contemporâneos, como Eustórgio Vanderley e Câmara Cascudo; Arievaldo também identifica algumas informações importantes: Leandro era “um homem cosmopolita, pois se mudara ainda adolescente para as imediações do Recife, uma das mais prósperas capitais do Brasil”; “lia regularmente, além dos livros úteis à sua pesquisa, jornais e revistas”, “andava constantemente de trem, hospedava-se em hotéis quando viajava e andava regularmente calçado de sapatos ou botinas” (VIANNA, 2014, p.62); “tinha um espírito aventureiro, gostava de viajar sertão afora, ora em lombo de burros e cavalos, ora nos trens da Great Western, percorrendo os estados de Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Sergipe e Rio Grande do Norte.” (VIANNA, 2014, p.65).

O pioneirismo do poeta paraibano também se deu na questão da comercialização e distribuição dos folhetos de cordel. Vianna afirma que “nada se compara ao tino comercial, ao estro prolífico e a persistência de Leandro Gomes de Barros”, que fez com que “fossem criados pontos de venda em vários Estados brasileiros, fazendo com que sua produção se espalhasse por todo o país, sobretudo nos estados do Norte-Nordeste.” (VIANNA, 2014, p.72). Além da venda direta, Leandro também utilizava os serviços do correio para venda, o que era divulgado na própria contracapa dos folhetos.

O capítulo mais polêmico é o décimo, intitulado “Leandro x Athayde”, no qual Vianna discute a apropriação que João Martins de Athayde fez das obras de Leandro. Após a morte de Leandro, em 1918 [13], Athayde adquiriu os direitos autorais sobre a obra do poeta paraibano em um negócio realizado e registrado em cartório com a viúva de Leandro. Quando Athayde passou a publicar os folhetos de Leandro, ele retirou o nome do poeta da autoria, colocando o seu próprio como editor-proprietário e, depois, como autor dos folhetos. Soma-se a isso, o fato de Athayde em alguns folhetos alterar o acróstico na última estrofe, de forma a apagar as pistas da autoria de Leandro.

Arievaldo Vianna ataca Athayde de várias formas. Primeiramente, aponta que o seu biografado tinha mais qualidade poética, afirmando que Athayde “não tinha a mesma verve criativa de Leandro”, “não tinha o senso crítico, a sátira mordaz e afiada do velho poeta de Pombal nem sua habilidade para extrair romances inéditos da própria cachola” (VIANNA, 2014, pp. 88-89). Em segundo lugar, afirma que a apropriação e a adulteração da obra de Leandro não foi algo inocente, pelo contrário, “foi um ato pensado, medido e bem calculado”, Athayde “jamais agiu dessa maneira por ingenuidade, desinformação ou desejo de preservar a sua ‘propriedade literária’”, pois, para isso, bastava colocar seu nome como Editor-Proprietário, mantendo o nome do autor e respeitando os acrósticos no final do poema (VIANNA, 2014, pp. 99-100).

Vianna também questiona alguns pesquisadores “simpatizantes do poeta João Martins de Athayde”, que tentam atribuir a ele a autoria de alguns folhetos “comprovadamente escritos e editados por Leandro, baseados em informações nebulosas, que nas mãos de um leitor mais atento e informado são facilmente dissipadas.” (VIANNA, 2014, p.93). Vianna critica autores como Umberto Peregrino, Átila de Almeida, Liêdo Maranhão de Sousa, Waldemar Valente e Mário Souto Maior. A título de exemplo, iremos apontar o comentário que ele faz a Umberto Peregrino na obra Literatura de cordel em discussão, de 1984. Peregrino, baseado em Átila de Almeida, aponta que o folheto Meia-Noite no Cabaré é de autoria de Athayde, que teria se inspirado na obra A noite na taverna, de Álvares de Azevedo. Leandro não teria sido o autor da obra porque, conforme Almeida, “jamais se daria a leituras como a de Camões ou de Álvares de Azevedo.” (VIANNA, 2014, pp. 93-95). Para rebater essa afirmação, Vianna indica que Leandro era leitor assíduo de vários livros que eram fonte de inspiração para seus folhetos, citando estofes do folheto História da Donzela Teodora, além de apontar vários outros que eram inspirados em livros: Batalha de Oliveiros com Ferrabrás, inspirado no livro Carlos Magno e os Doze Pares de França; Juvenal e o Dragão, que vem do conto “Os três cães” de Figueiredo Pimentel; A vida de Pedro Cem, que é inspirado num livro de origem lusitana; Os Martyrios de Christo, inspirado em O Mártyr de Gólgotha, do romancista espanhol Enrique Pérez Escrich; A filha do pescador, inspirado num conto das Mil e uma noites. (VIANNA, 2014, p.94). Além disso Leandro certamente frequentava a livraria de seu genro, Pedro Batista, que possuía clássicos da Literatura portuguesa e brasileira. A defesa que Arievaldo Vianna faz de seu biografado na autoria de folhetos atribuídos a Athayde é tanta que, curiosamente, ele critica até mesmo o seu irmão, o seu poeta Klévisson Viana, que teima em atribuir o romance História de Roberto do Diabo à Athayde (VIANNA, 2014, p.96).

Essa “campanha” para restituir a Leandro Gomes de Barros a autoria de folhetos identificados como sendo de Athayde também foi feita por Aderaldo Luciano em seu livro Apontamentos para uma história crítica do cordel brasileiro, de 2012 [14]. Contudo, ao contrário de Vianna, que identifica autores “simpatizantes” de Athayde, Luciano aponta que a insistência de atribuir folhetos de Leandro a Athayde são resultados de “pesquisadores e estudiosos que não têm vivência e se recusam a conhecer as nuanças, os detalhes, do cordel” (LUCIANO, 2012, p.75), da “falta de averiguação das informações recebidas por alguns pesquisadores” e, “muitas vezes, a preguiça de pesquisar de certos estudiosos” (LUCIANO, 2012, p.77).

Por fim, Arievaldo Vianna analisa uma crônica de Carlos Drummond de Andrade, intitulada “Leandro, o poeta”, publicada no Jornal do Brasil em 1976; na qual Drummond elogia o poeta cordelista afirmando que ele deveria ter recebido o título de Príncipe dos Poetas Brasileiros, ao invés de Olavo Bilac. Este artigo, “tem sido utilizado exaustivamente pelos admiradores de Leandro como uma prova incontestável de seu talento, afinal de contas, trata-se do reconhecimento de um medalhão das nossas letras.” (VIANNA, 2014, p.113). Contudo, Vianna questiona alguns termos que Drummond utiliza para se referir a Leandro, pois este “não era totalmente ‘inculto’ e ‘iletrado’.” (VIANNA, 2014, p.117). Drummond também se equivoca, segundo Vianna, quando considera a obra de Leandro “pobre de ritmos, isenta de lavores musicais, sem apoio livresco”, pois Leandro tinha sim “métrica, ritmo, conhecimento de gramática e apoio livresco.” (VIANNA, 2014, p.120).

Logicamente, Leandro Gomes de Barros: vida e obra ainda deixa algumas lacunas acerca da vida do “pai da literatura de cordel”. A impressão que dá ao leitor é que o livro termina rápido demais comparado a outras biografias. Contudo, há de se mencionar a dificuldade no acesso às fontes. Em certo trecho, Vianna menciona que “se já era difícil” para pesquisadores como Sebastião Nunes Batista e Ruth Terra, que conviveram com descendentes diretos de Leandro, “mais difícil ainda é para o pesquisador de hoje, com poucos recursos financeiros e nenhum incentivo à sua pesquisa (VIANNA, 2014, p.27). Assim, é importante relembrarmos de Jacques Le Goff, que observa que é a documentação que dita a ambição e os limites de investigação do historiador na escrita de uma biografia histórica (LE GOFF, 1999, p.22). Diferente do romancista, por exemplo, que não raras vezes vai além do que diz as fontes e abusa da criação e da imaginação. Já o historiador deve “saber respeitar aqui as falhas, as lacunas que a documentação deixa” (LE GOFF, 1999, p.21). Assim, Arievaldo Vianna age como um verdadeiro historiador.

Ao pensar teoricamente a biografia histórica, Le Goff questiona a oposição entre o indivíduo e a sociedade. Esse é um “falso problema”, pois “o indivíduo não existe a não ser numa rede de relações sociais diversificadas”, sendo necessário o conhecimento da sociedade “para ver nela se constituir e nela viver uma personagem individual.” (LE GOFF, 1999, p.26). No caso de Leandro Gomes de Barros: vida e obra, Arievaldo Vianna consegue pensar a produção cordelística de Leandro articulada com o contexto histórico em que viveu e perscrutar a teia de relações sociais e culturais que possibilitaram o sucesso do poeta paraibano na divulgação de seus folhetos no Norte e Nordeste do Brasil no início do século XX. Em nosso entendimento, é uma obra fundamental para quem quer conhecer e se aprofundar na história da literatura de cordel no Brasil; e importante de ser retomada neste momento de festejos pelo reconhecimento do cordel como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro.

Notas

1. Doutorando em História Social da Amazônia pela UFPA. Professor da Secretaria Municipal de Educação (SEMEC) de Belém-PA, e da Secretaria de Estado de Educação do Pará (SEDUC).

2. Ver “Literatura de cordel recebe título de Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro”. Portal G1 PE. 19 set. 2018. Disponível em: https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2018/09/19/literatura-de-cordelrecebe-titulo-de-patrimonio-cultural-imaterial-brasileiro.ghtml. Acesso em: 20 set. 2018.

3. Dentre os folhetos, podemos citar , A mulher fofoqueira e o marido prevenido, A raposa e o Cancão, As proezas de Broca da Silveira, Atrás do pobre anda um bicho, Brasil – 500 anos de resistência popular, Encontro com a consciência, Encontro de FHC com Pedro Álvares Cabral, Galope para Patativa e Castro Alves, História da Rainha Ester, Luiz Gonzaga o rei do baião, O príncipe Natan e o cavalo mandingueiro.

4. Segundo Arievaldo Vianna Lima, “o Projeto Acorda Cordel na Sala de Aula propõe a revitalização do gênero e sua utilização como ferramenta paradidática na alfabetização de crianças, jovens e adultos e também nas classes do Ensino Fundamental e Ensino Médio, a partir do lançamento de uma caixa de folhetos, contendo 12 obras de diferentes autores, para ser trabalhada nas escolas acompanhadas deste livro.” (LIMA, 2006, p.14).

5. A Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC) foi fundada no dia 7 de setembro de 1988, e tem como presidente o poeta Gonçalo Ferreira da Silva. Sua sede é no Rio de Janeiro, e possui 40 cadeiras que são ocupadas pelos “imortais”, que são poetas cordelistas ou pesquisadores do cordel. Ver Academia Brasileira de Literatura de Cordel. Disponível em: http://www.ablc.com.br/  Acesso em: 20 set. 2018.

6. Ver o blog Acorda cordel. Disponível em: http://acordacordel.blogspot.com/  Acesso em: 20 set. 2018.

7. Os apêndices são: “Fatos importantes da vida de Leandro por ordem cronológica” e “Entrevista de Arievaldo Viana ao jornal Diário de Pernambuco, nos 90 anos de morte de Leandro.”

8. Marco Haurélio é poeta popular, editor e folclorista. Em cordel, tem vários títulos editados, dentre os quais: Presepadas de Chicó e Astúcias de João Grilo; História da Moura Torta e Os Três Conselhos Sagrados (Luzeiro). Possui um blog intitulado Cordel Atemporal. Disponível em: http://marcohaurelio.blogspot.com/  Acesso em: 21 set. 2018.

9. Gilmar de Carvalho é Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC São Paulo. Autor de diversas publicações, dentre as quais destaca-se Patativa do Assaré − Uma biografia, já em terceira edição, Lyra Popular: o cordel do Juazeiro, em segunda edição, e A xilogravura de Juazeiro do Norte.

10. Jô Oliveira foi aluno da Escola Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro. Durante seis meses estudou desenho animado no Stúdió Pannónia, e depois frequentou a Academia Húngara de Artes Aplicadas (Magyar Iparmüvészeti Föiskola, hoje conhecida como Universidade Moholy-Nagy de Arte e Design), onde concluiu o curso de Artes Gráficas. Os seus primeiros trabalhos, livros e quadrinhos, foram impressos nos anos 70 na Itália. Publicou também livros na França e Alemanha, e seus quadrinhos tiveram edições na Espanha, Itália, Grécia, Sérvia, Dinamarca, Argentina e Brasil. Jô participou em exposições de ilustração em várias partes do mundo. Desenhista de selos postais, criou mais de 50 peças filatélicas para os Correios. Ver o site O Brasil de Jô Oliveira. Disponível em: Acesso em: https://www.obrasildejooliveira.com.br/  Acesso em: 21 set. 2018.

11. O Padre Vicente Xavier de Farias também foi um líder político influente chegando a eleger-se deputado ainda no tempo da Monarquia. Por conta disso granjeou a antipatia de alguns adversários que lhe dirigiam pesadas críticas através dos jornais da capital da Paraíba do Norte. (VIANNA, 2014, p.37).

12. Em Pernambuco, Leandro Gomes de Barros residiu em Vitória de Santo Antão, Jaboatão e em Recife.

13. Em relação à morte de Leandro, Arievaldo Vianna cita a certidão de óbito do poeta, que fora encontrado pela sua sobrinha-neta Cristina da Nóbrega nos cartórios do bairro de São José, no Recife. A morte do poeta se deu às 21:30 do dia 04 de março de 1918, tendo como causa mortis aneurisma. As informações da certidão de óbito foram prestadas por seu filho, Esaú Eloy de Barros Lima, que tinha então 17 anos. (VIANNA, 2014, p.109).

14. Para uma resenha da obra de Aderaldo Luciano, ver MENEZES NETO, Geraldo Magella de. Questionamentos à historiografia do cordel brasileiro. História da historiografia. Ouro preto, n.13, dez. 2013, p.220-225.

Referências

LE GOFF, Jacques. São Luís. Rio de Janeiro: Record, 1999. LIMA, Arievaldo Viana (org.). Acorda cordel na sala de aula. Fortaleza: Tupynanquim /Queima-Bucha, 2006.

LUCIANO, Aderaldo. Apontamentos para uma história crítica do cordel brasileiro. Rio de Janeiro; São Paulo: Edições Adaga; Luzeiro, 2012.

PRIORE, Mary del. Biografia: quando o indivíduo encontra a história. Topoi. v. 10, n.19, jul.-dez. 2009, p.7-16.

VIANNA, Arievaldo. Leandro Gomes de Barros: vida e obra. Fortaleza: Edições Fundação Sintaf/ Mossoró-RN: Queima-Bucha, 2014.

Geraldo Magella de Menezes Neto – Doutorando em História Social da Amazônia pela UFPA. Professor da Secretaria Municipal de Educação (SEMEC) de Belém-PA, e da Secretaria de Estado de Educação do Pará (SEDUC).


VIANNA, Arievaldo. Leandro Gomes de Barros: vida e obra. Fortaleza: Edições Fundação Sintaf. Mossoró-RN: Queima-Bucha, 2014. Resenha de: MENEZES NETO, Geraldo Magella de. Uma biografia de Leandro Gomes de Barros (1865-1918), o “pai da literatura de cordel”. Aedos. Porto Alegre, v.11, n.24, p.389-399, ago., 2019. Acessar publicação original [DR]

As Vidas de José Bonifácio | Mary Del Priore

Veio a público uma biografia sobre um dos personagens mais controversos e emblemáticos da história do Brasil, José Bonifácio de Andrada e Silva. E, redigida por uma das mais importantes autoras brasileiras, com uma vasta produção acadêmica, a historiadora Mary Del Priore. A obra é destinada tanto aos especialistas, como ao público em geral. Leia Mais

O Velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883) | Marcello Musto

Nas últimas décadas, sobretudo após o desmembramento da URSS, muitos críticos do marxismo alçaram sucesso editorial. Não foram poucos os que, assim como Francis Fukuyama, declararam “o fim da História”. O que se seguiu foi uma recusa às abordagens e aos conceitos que adotavam uma interpretação a partir das estruturas socioeconômicas e da categoria de “classe”, para uma divisão das pautas sociais e temas que movimentos políticos, mais individualizados e fragmentados, apropriaram-se a partir de uma perspectiva liberal. Nessa conjuntura, certos clichês acadêmicos foram repetidos à exaustão, a ponto de perder sua base crítica. Reducionismos recorrentes acerca do marxismo defendiam que essa corrente de pensamento seria economicista, determinista, eurocêntrica e teleológica.

Novas pesquisas e trabalhos de divulgação buscam contribuir para o campo teórico do marxismo, que sempre se mostrou muito rico em argumentos socioeconômicos e em percepções histórico-conjunturais. É nesse sentido que o trabalho O Velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883), publicado no Brasil pela editora Boitempo, em 2018, do sociólogo e filósofo italiano Marcello Musto, é essencial para fortalecer os campos de pesquisa das humanidades, sobretudo a pesquisa histórica, com o propósito de superar os limites impostos pelos chavões já mencionados. Leia Mais

Antonio Fagundes no palco da história: um ator | Rosangela Patriota

A historiadora e professora Rosangela Patriota possui uma trajetória de destaque no âmbito da historiografia do Teatro Brasileiro. Desde 1995, quando a autora concluiu a sua Tese de Doutorado intitulada Fragmentos de Utopias: Oduvaldo Vianna Filho – um dramaturgo lançado no coração de seu tempo, 1 até o presente momento, Rosangela Patriota vem dando significativas contribuições para a escrita da História do Teatro Brasileiro por meio de pesquisas que resultaram em obras como A crítica de um teatro crítico, 2 História e Teatro: discussões para o tempo presente3 e Teatro Brasileiro: ideias de uma história, este último, diga-se de passagem, escrito a quatro mãos em parceria com o crítico, ensaísta, professor e editor Jacó Guinsburg.4

Para além de tais trabalhos, Rosangela Patriota produziu uma série de artigos acadêmicos, capítulos de livros, ensaios e palestras, bem como atuou na organização de diversas coletâneas, geralmente abordando não só as relações da História com o Teatro, mas também com as linguagens artísticas em uma perspectiva mais abrangente. Se tivermos em vista toda essa vasta produção intelectual da pesquisadora e se igualmente levarmos em conta que a mesma também orientou uma série de monografias, dissertações de mestrado e teses de doutorado de outros pesquisadores, não é exagero nenhum afirmarmos que, por todo o seu percurso acadêmico, o trabalho de Rosangela Patriota pode ser descrito, sem sombra de dúvidas, como um dos mais profícuos dentro da historiografia do Teatro Brasileiro. Leia Mais

Jinga de Angola: A rainha guerreira da África | Linda M. Heywood

Muito se fala sobre a Rainha Jinga1: os adjetivos utilizados para mencioná-la não lhe poupam as características marcadamente de poder e ousadia. “Jinga de Angola: A rainha guerreira da África”, recente trabalho da historiadora Linda Heywood, lançado em língua inglesa no de 2018 e publicado no Brasil em 2019, não foge a esta regra. Dividida em sete partes, que acompanham cronologicamente a vida de Jinga, e com um posfácio assinado por Luís Felipe de Alencastro, a obra ressalta a perspectiva da liderança feminina e astúcia da rainha africana que é conhecida por muitos e cuja atuação histórica é relembrada em cantos de congado e cantos populares pelo Brasil.

Jinga Mbande Gambole, Ana de Sousa, Ngola Kiluanje e Ngola Jinga Ngombe e Nga — estes são todos os nomes adotados por Jinga em diferentes circunstâncias, de sua longa vida, na qual testemunhou e vivenciou ativamente, mudanças profundas, de origem externas, mas também internas. Essa adoção de diferentes nomes revelavam a busca por identidade e também apontavam para sua destreza, em circular por mundos e culturas diferentes e ainda assim, registrar sua marca e presença. Leia Mais

São Paulo. Uma biografia gráfica | Felipe Correa

São Paulo, uma biografia gráfica é um novo volume que propõe uma análise complexa da cidade metropolitana de São Paulo, oferecendo também instrumentos para um desenvolvimento futuro mais sustentável.

Fruto do trabalho de um grupo de pesquisadores coordenado por Felipe Correa, o livro – com excelente qualidade gráfica e impressão – é uma narrativa visual e de textos, que coloca em questão o não-desenho urbano de São Paulo durante a transição rápida de uma cidade com pouco mais de trinta mil habitantes (1870) para os atuais 20 milhões da área metropolitana. A análise – cujo ponto de partida é a leitura das bases de orografia e hidrografia – aborda uma visão sistêmica de outras “camadas” e temas, tais como áreas abandonadas. Leia Mais

O que pode a biografia – AVELAR; SCHMIDT (PH)

AVELAR, Alexandre de Sá; SCHMIDT, Benito Bisso (Orgs.). O que pode a biografia. São Paulo: Letra e Voz, 2018. Resenha de: MOREIRA, Igor Lemos. Existem limites para a biografia? Projeto História, São Paulo, v.64, pp. 354-361, Jan.-Abr., 2019.

Aguardada desde a publicação de Grafia da vida: reflexões e experiências com a escrita biográfica (2013), a nova coletânea de textos organizada por Alexandre de Sá Avelar e Benito Bisso Schmidt a respeito do gênero biográfico foi lançada em 2018. Publicado pela editora Letra e Voz, o livro intitulado O que pode a biografia segue a mesma proposta da primeira obra: a reunião de textos téorico-metodológicos e relatos de experiências sobre a produção de biografias. Esse processo é perceptível, inclusive, nas diferenças de estruturação de ambas as obras. Enquanto a coletânea de 2013 foi organizada em três eixos reunindo onze autores (além da apresentação feita por Marieta Ferreira), a publicação de 2018 é dividida apenas em dois, focando, através de doze capítulos, nos elementos teóricos e nas práticas.

Iniciando com uma concisa apresentação, que faz referência a própria continuidade do trabalho iniciado em 2013, os organizadores afirmam que o livro nasce em um contexto de sedução pelo gênero biográfico no país, aumentando o número de interessados e convocando novas reflexões no campo das humanidades e das letras. Em seguida, são apresentados cinco textos que debatem a biografia a partir de seus “horizontes teórico-metodológicos”. Em “Contar vidas em uma época presentista: A polêmica sobre a autorização prévia”, Benito Schmidt retoma o tema da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) movida em 2015 pela ANEL, onde se previa a necessidade de anuência prévia concedida pelo biografado ou seus familiares ao escritor/pesquisador. Partindo da ADI e de casos brasileiros, como a polêmica envolvendo o historiador Paulo Cesar de Araújo1, o autor reflete sobre os regimes de historicidade, com ênfase no presentismo (HARTOG, 2013), e nas disputas de memórias que cercam o tema. Em seu texto, Schmidt pensa a constituição do campo biográfico na historiografia, entendendo as múltiplas temporalidades que transitam dentro do processo que chamou de “a biografia em julgamento”.

Em Os usos da biografia pela micro-história italiana: interdependência, biografias coletivas e network analysis, Deivy Ferreira Carneiro aborda as relações entre micro-história e biografia sob a chave de análise das experiências, das relações e do contexto social. Partindo da micro-história, o autor procura entender os sujeitos biografados como relacionais, pertencentes a determinados grupos e redes o que aproximaria a biografia da micro-história. Tal processo também rompe com a própria certeza da vida dos sujeitos biografados e com a ideia da linearidade das biografias produzidas predominantemente até o século XX. Segundo o autor, “a maior contribuição trazida pelo debate microanalítico acerca da biografia, a meu ver, foi trazer à tona um indivíduo cheio de incertezas que, na verdade, não tem uma percepção clara de si mesmo. (CARNEIRO, 2018. p. 56).

Maria da Glória de Oliveira, em Para além de uma ilusão: indivíduo, tempo e narrativa biográfica, dá seguimento à temática do sujeito, pensando a construção das trajetórias através dos processos de mediação narrativa, partindo de Pierre Nora. Historicizando a própria biografia, a historiadora tece sua reflexão acerca do papel da construção narrativa, especialmente da intriga, como maneira de “confrontar o indivíduo com a experiência do tempo” (OLIVEIRA, 2018. p. 61). Retomando também a noção de ilusão biográfica se destaca a compreensão que uma trajetória, e a experiência dos biografados, ocorre através não apenas de sua inserção contextual, mas igualmente da configuração do ato narrativo pelo qual essas experiências são materializadas.

A temática da narrativa é continuada por Mary Del Priore, autora de Biografia, biografados: uma janela para a história. Através também de uma historicização do gênero, Del Priore problematiza como os próprios historiadores opinaram e se relacionaram com as biografias. Em suas análises a autora reflete sobre as relações entre História e Literatura nesse processo, além de provocar o leitor a refletir sobre a própria disciplina e o lugar social e narrativo dos historiadores.

O último texto da seção, “Histórias de vida: um lugar de resistência para a reportagem”, é assinado por Rose Silveira. Destacando a distinção entre reportagem e notícia, a autora discute as possibilidades de pensar o livro-reportagem como uma forma de escrita biográfica. Aproximando História e Comunicação, o capítulo pontua elementos centrais da relação, abrindo espaço para reflexão sobre outras formas de produção de biografias no presente por não-historiadores. Como a autora destaca, esse processo ocorre através da noção de operação historiográfica a partir de Michel de Certeau. Por fim, visando exemplificar seus argumentos, Silveira analisa as biografias: A vida imortal de Henrietta Lacks (Rebecca Skloot) e Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo (2012).

A segunda parte do livro, que reúne sete textos que apresentam como os enfoques teórico-metodológicos discutidos anteriormente perpassam as “experiências de pesquisa e leitura” de biografias. O texto que abre a sessão, assinado por Alexandre de Sá Avelar, discute a experiência de escrita de uma vida a partir da ideia de trajetória, o que foge do perfil totalizante da biografia. Procurando repensar o processo de elaboração de sua tese de doutorado defendida em 2006, o autor, em O reencontro com o general e o meu labirinto: sobre a releitura de uma tese, reflete sobre os meandros da pesquisa, suas motivações e principalmente os processos de delimitação do enfoque teórico. Avelar destaca que apesar de focalizar na trajetória de um individuo, isso não o excluiu “das preocupações propriamente biográficas” (AVELAR, 2018. p. 131). Sua noção de trajetória não se opõe à de biografia. Trata-se de uma forma da compreensão de um personagem através de uma proposta especifica ou um fio condutor em especial, que em seu caso foi a leitura da produção de Macedo Soares como modo de entendimento da estabilização dos processos de consolidação do capitalismo industrial brasileiro.

Dando seguimento ao relato de Avelar, Francisco Martinho aborda sua relação com o português Marcello Caetano, pensando os percursos que o levaram a produzir uma biografia política e intelectual sobre essa figura. Marcello Caetano: sobre a travessia de uma pesquisa é um relato de pesquisa primoroso no sentido que demonstra não apenas o processo de elaboração da biografia, mas compartilha as angústias e os desafios desse gênero de produção, especialmente com sujeitos que viveram em outros países que não o de origem do biografo. Abordando os limites e dificuldades da pesquisa, inclusive de acesso a documentações no exterior, Martinho lembra ao leitor a importância de se reconhecer a impossibilidade de apreensão total da vida de um sujeito, principalmente de maneira linear.

Em seguida, o brasilianista James Green nos presenteia com um relato sobre os bastidores de sua obra recentemente publicada pela Editora Civilização Brasileira. Green faz uma analogia direta aos próprios dilemas que perpassam a segunda seção da coletânea ao intitular seu texto como “Herbert Daniel: revolucionário e gay, ou é possível captar a essência de uma vida tão extraordinária”. Pensando a relação biografo e biografado, o historiador compartilha dilemas muito semelhantes aos dos dois textos anteriores, mas aponta outro elemento: a proximidade temporal e pessoal com o tema, marcada especialmente pelo potencial uso da história oral. Narrando, por exemplo, suas tentativas de diálogo com parentes de Daniel, o autor destaca como um personagem é construído, através dos rastros e das memórias, pelo próprio pesquisador apenas no decorrer da própria pesquisa.

A questão dos rastros é retomada em seguida por Jorge Ferreira em Escrevendo João Goulart. Autor de uma das obras de não ficção mais vendidas de 2011 (FERREIRA, 2016), o pesquisador destaca seus processos de pesquisa, assim como os acasos e momentos inesperados de acesso da documentação. Apesar dos pontos de contato com os relatos anteriores, Ferreira atenta algumas questões próprias de pesquisadores da área de história política e econômica. Nesse sentido, uma das principais contribuições de seu texto é reforçar que o sujeito é, não apenas relacional com seu contexto, mas também “conformado por estruturas econômicas ou pelas ideias de classe social” (FERREIRA, 2018. p. 182).

A temática da autobiografia é discutida nos dois textos seguintes da coletânea. Laura de Mello e Souza, em “Vitório Alfieri, a vida e a história”, mergulha em suas memórias com Vitório Alfieri e sua obra autobiográfica Vita produzindo um ensaio sobre a trajetória e o desenvolvimento intelectual de um dos autores que mais a intrigaram. Nesse sentido, mais do que pensar o procedimento de uma biografia escrita por ela, Mello e Souza reflete também sobre os processos de construção autobiográfica do escritor do século XIX.

Em seguida, “autobiografia, gênero e escrita de si: nos bastidores da pesquisa”, de Margareth Rago, constrói uma reflexão autobiográfica de seu envolvimento com o tema das autobiografias apresentando ao leitor suas inspirações, motivações, estratégias e referências. Seu capítulo propõem ao leitor compreender as tecituras da composição dos sujeitos, que nunca se veem totalmente excluídos de processos e estruturas maiores como o gênero, ou ainda a dimensão coletiva existente na própria produção de si.

O último texto da seção é, certamente, um dos mais intrigantes. Temístocles Cezar, em “Bartleby e Nulisseu: a arte de contar histórias de vida sem biografia”, brinca em um eterno jogo entre realidade e ficção ao narrar a história de Nilusseu, uma jovem estudante de história encantada com Bartleby, personagem do conto de Herman Melville, publicado em 1853. Em uma trama instigante e reflexiva, permeada por referências a teóricos como Marx, Hegel, Foucault, assim como estudiosos das teorias da biografia como Sabina Loriga, Cezar provoca o leitor a refletir sobre as possibilidades de escrever uma história de vida sem fazer biografia.

Colocando sob sua mira a própria ideia dos indivíduos serem ou não únicos, o autor nos instiga a refletir sobre quem determina essa individualidade e protagonismo dos sujeitos. Mais que isso sua trama possibilita pensar a ideia de ilusão biográfica, ao intrigar o leitor com a jovem Nilusseu que se confunde ao seu próprio mundo de leituras.

A pergunta inevitável que marca esse capítulo – e penso não ser a toa os organizadores o terem colocado como o último texto do volume –, seria: é possível contar histórias de vida sem biografia, se afinal existem histórias no plural? Penso que a estruturação da obra caminha para esse ponto central. A coletânea, O que pode a biografia não fornece um manual prático sobre como trabalhar ou pesquisar o gênero. Ao mesmo tempo, sua intenção também não é o que o título poderia sugerir: um manifesto acerca das regras e diretrizes do campo. A obra organizada por Avelar e Schmidt convoca a uma reflexão sobre um campo aberto e de fronteiras móveis.

Apesar das conexões, cada texto elencado apresenta pontos de vista únicos sobre o fazer biográfico. “Pode a micro-história dialogar com a biografia? São campos iguais?” “Somente historiadores produzem biografias?” “Não seria toda forma de escrita uma auto-biografia?” “Biografia e trajetória são campos distintos?” são apenas algumas das reflexões provocadas, não tendo por objetivo fornecer respostas definitivas. Passando da teoria a prática, os textos demonstram a impossibilidade do próprio pesquisador ver esses dois campos como dimensões dissociadas. Em momentos de crise da história e de consolidação e crescimento da história pública O que pode a biografia é um sopro renovador ao campo.

Referências

AVELAR, Alexandre de Sá; SCHMIDT, Benito Bisso (Orgs.). Grafia da vida: reflexões e experiências com a escrita biográfica. São Paulo (SP): Letra e Voz, 2012.

FERREIRA, Jorge. De volta ao público: João Goulart, uma biografia. MAUAD, Ana Maria; ALMEIDA, Janiele Rabêlo de; SANTIAGO, Ricardo (Org). História Pública no Brasil: Sentidos e Intinerários. São Paulo: Letra e Voz, 2016. p. 121-131.

HARTOG, François. Regimes de Historicidade: Presentismo e Experiências do Tempo. Belo Horizonte, Mg: Autêntica, 2014.

OLIVEIRA, Márcia Ramos de Oliveira. Reflexões sobre o gênero biográfico: literatura, ilusão e disputas de memória. In: GONÇALVES, Janice (Org.) História do Tempo Presente: Oralidade, memória, mídia. Itajaí: Casa Aberta, 2016. p. 101-116.

Nota

1 Em um texto recente, a pesquisadora Márcia Ramos de Oliveira (2016), também discutiu os embates em torno do gênero biográfico ocorridos na sociedade brasileira a partir de 2015. Apesar de ambos focalizarem temáticas semelhantes, a autora destaca principalmente os diferentes embates de memória, ligados a narrativa, focando especificamente no caso de Paulo Cesar de Araújo.

Igor Lemos Moreira – Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Bolsista CAPES-DS e Integrante do Laboratório de Imagem e Som. E-mail: [email protected]. Número do ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6353-7540. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES).

Candidata a la corona: La infanta Carlota Joaquina en el laberinto de las revoluciones hispanoamericanas – TERVANASIO (HU)

TERVANASIO, Marcela. Candidata a la corona: La infanta Carlota Joaquina en el laberinto de las revoluciones hispanoamericanas. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2005. 284 p. Resenha de: ACRUCHE, Hevelly Ferreira. Uma princesa entre dois mundos: Carlota Joaquina e o projeto de regência na América. História Unisinos 23(1):124-127, Janeiro/Abril 2019.

No contexto das comemorações do bicentenário da vinda da Corte portuguesa para o Brasil e do início do processo das revoluções de independência na América ibérica, eventos comemorativos foram realizados, livros foram publicados, promovendo uma maior interlocução entre pesquisadores interessados no tema ao revisitar questões até aquele momento abandonadas pelo senso comum e/ou satisfeitas por certo consenso historiográfico. Novas lacunas passaram a ser tratadas no universo destes eventos e a constante busca pelo preenchimento e elaboração de novas questões permite que sempre nos voltemos ao tema das independências, cuja importância não se esgota na figura de grandes homens e heróis nacionais2.

Período conturbado, o início do Oitocentos nos apresenta novas leituras em torno de ideias como representação, soberania e poder, as quais foram revistas de modo a atender as demandas dos pesquisadores em busca de uma maior compreensão das mudanças e das expectativas de um conjunto de sociedades que viviam num mundo convulsionado pelos efeitos da Independência dos Estados Unidos (1776), da Revolução Francesa (1789), da Revolução Haitiana (1794) e do surgimento do Império Napoleônico (1799-1815) com todas as suas peculiaridades no conjunto do equilíbrio europeu e americano. No bojo destas transformações, houve a construção de valores e ideais opostos aos modelos sociais e políticos vigentes. A colonização na América encontrava-se ameaçada pelos preceitos de igualdade e de representatividade política, pois os espaços coloniais foram ganhando crescente importância no seio das metrópoles europeias.

No decorrer dos últimos anos, historiadores de várias nacionalidades têm se debruçado no tema das revoluções que culminaram na independência dos atuais países latino-americanos. No âmbito das Américas, os trabalhos pioneiros de Tulio Halperín-Dongui e José Carlos Chiaramonte propõem uma reflexão sobre a construção dos Estados-Nação e suas implicações no continente3.

O trabalho de João Paulo Garrido Pimenta (2002) tem apontado as relações entre guerra e identidades no contexto pelas lutas pela posse da Província Cisplatina, o atual Uruguai. Outro trabalho importante a ser considerado é Independencias iberoamericanas: nuevos problemas y aproximaciones, coletânea organizada pela professora Pilar Quirós (2015).

Esta última tem trazido à tona uma série de reflexões em torno do caráter internacional das independências latino-americanas.

Embora o Brasil tenha levado mais tempo para tornar-se independente de Portugal em relação às colônias hispânicas, a presença da Família Real foi fundamental para a compreensão de diversas facetas de nossa história nacional, assim como de uma história internacional e atlântica. E uma dessas facetas incorpora a figura da princesa Carlota Joaquina, membro da dinastia dos Bourbon e princesa de Portugal ao contrair matrimônio com o príncipe D. João, aos 10 anos de idade. Eles assistiram às abdicações ao trono espanhol e ao cativeiro do rei Fernando VII, irmão da Infanta, nas mãos de Napoleão Bonaparte entre 1807 e 1814. Pessoa vista sob uma série de lentes de análise na literatura, na produção cinematográfica, nos materiais didáticos e acadêmicos, Carlota Joaquina era uma princesa espanhola que partia para o Rio de Janeiro em meio às turbulências ocorridas com seus familiares na Europa.

Diversas vezes apresentada como uma mulher “ambiciosa, conspiradora e dona de um caráter audaz e temerário”, a Infanta espanhola assumiu um papel importante no decorrer dos problemas enfrentados pela Espanha e, consequentemente, pelo Império espanhol após a deposição de Fernando VII. Situação até aquele momento inesperada, o trono vacante tornou-se problemático aos súditos do rei tanto no âmbito das relações internas de poder como no conjunto mais amplo das relações internacionais; isso, por sua vez, garantiu novas possibilidades de representação no meio político e permitiu que a figura de Carlota Joaquina se apresentasse como uma opção de poder frente a um governo estrangeiro. Na historiografia brasileira, o trabalho de Francisca Nogueira de Azevedo (2003) mostra Carlota Joaquina como personagem político importante: de uma mulher marcada por uma visão excêntrica e destinada à alcova, descortina-se uma mulher com poder político, ciosa de suas prerrogativas monárquicas e atuante.

Este momento de protagonismo político remete às aspirações desta mulher em torno da manutenção de sua linhagem, do ordenamento social e das relações de poder com base na lógica do Antigo Regime. Ao se colocar como herdeira do trono espanhol, em substituição ao seu irmão, Carlota Joaquina abria outra possibilidade de governo para seus súditos, forma esta abraçada por alguns e rechaçada por outros em nome de projetos políticos mais ou menos audaciosos. A diplomacia aparece como aliada importante a projetos políticos de médio e longo prazo, os quais envolviam tanto o continente europeu quanto a América. Portanto, uma das alternativas vigentes para a Infanta era se portar enquanto depositária da soberania espanhola para pleitear a Coroa e, consequentemente, o império colonial hispânico. Isso, por sua vez, nos permite o afastamento do senso comum com relação a princesa espanhola, ainda que a mesma seja limitada pelas questões de gênero de seu tempo.

O trabalho de Marcela Tervanasio, especialista em história política argentina e ibero-americana nas primeiras décadas do século XIX, remete-nos a um universo conspiratório e intrigante cujo epicentro era Carlota Joaquina.

Observar a princesa enquanto objeto nos coloca diante de um tema importante, porém pouco estudado – à exceção da pesquisa de Francisca Nogueira de Azevedo, citada anteriormente. Os “silêncios” historiográficos em torno desta figura emblemática foram acumulados ao longo dos anos, de modo que a mesma se tornou desprovida de importância em inúmeras obras.

Ao procurar afastar-se desta leitura, repleta de preconceitos, especialistas têm repensado o carlotismo como parte de série de redes que uniram as monarquias ibéricas tanto na América quanto na Europa. Este parece ser o maior esforço de Tervanasio em seu livro: ressaltar uma espécie de geografia em torno das repercussões do carlotismo e – por que não? – das possibilidades (reais ou ilusórias) de uma mulher assumir o poder na monarquia espanhola. Ao nos apresentar uma leitura dinâmica e conectada dos processos históricos, numa relação de ir à Europa e vir para a América e vice-versa, a autora ressalta como as ideias da Infanta espanhola incidiram em conflitos importantes para um mundo contemporâneo em construção: absolutismo versus liberalismo; o poder das Juntas provinciais versus a regência em nome do Rei e, não menos importante, colonialismo versus revolução.

Dentro do campo da história política e em meio à série de escolhas teórico-metodológicas efetuadas pela autora, o livro pode ser tratado em partes, embora seja dividido em capítulos. Um primeiro momento consiste na apresentação do trono vacante e como a natureza jurídica espanhola tratou da questão nos idos de 1808. O decorrer do texto nos aponta quais possibilidades a princesa teria numa situação inesperada como aquela. Já num segundo momento, a ideia de soberania aparece como elo fundamental ao projeto carlotista em oposição às outras opções de governo para a Espanha, representadas pelas Juntas provinciais. Os capítulos 2 e 3 se entrelaçam no sentido de tratar da discussão sobre a soberania na América e na Península na medida em que, em meio aos conflitos de autoridade e à instabilidade política vivida, a figura de Fernando VII foi elevada a um patamar de Rei amado e desejado, ao passo que a América hispânica passava a ser vista como parte cada vez mais importante do Império. Assim, a presença da Infanta na América era crucial aos interesses espanhóis e também lusitanos, pois o Rio da Prata era uma região estratégica aos objetivos geopolíticos da dinastia dos Bragança.

Gradualmente, a formação de uma identidade política e institucional entrava em oposição às justificativas baseadas em direitos dinásticos, destacando-se as fragilidades do projeto de Carlota Joaquina no conjunto do Império espanhol. A ideia de “americanizar o império” era vista como uma ameaça às relações de poder estabelecidas entre a Espanha e suas colônias, subvertendo a ordem colonial ao ponderar a possibilidade de uma princesa assumir a regência na América e, por conseguinte, disputar direitos ao trono no futuro. Tais inquietações foram expressas desde manifestos até ações de espionagem para burlar a busca de apoio a uma regência sediada na América. Nesta linha de raciocínio, os diversos interesses dos impérios atlânticos europeus estavam imbricados, e o apoio ou não a Carlota Joaquina era interpretado de distintas formas.

Em continuidade a uma dimensão geográfica e espacial dos impactos do carlotismo, Tervanasio dedica dois capítulos à América: um ao conjunto do continente e outro especificamente à cidade de Buenos Aires. Enquanto seus projetos foram rechaçados por muitos espaços coloniais, na cidade de Buenos Aires, uma parte da elite portenha passou a ser favorável ao possível reinado de Carlota Joaquina. Dentre estes membros, destaca-se a figura de Manuel Belgrano, um dos artífices do processo de independência, em 1810. Especificamente no capítulo 4, “Las dos máscaras de la monarquía”, Tervanasio se debruça sobre os sentidos da palavra independência a fim de revisar pressupostos da historiografia tradicional inspirados na concepção de que, em nome do rei Fernando VII, os sentimentos de independência eram encobertos.

A perspectiva de um sentimento de independência e a ideia de uma nacionalidade preconcebida têm sido refutadas na produção historiográfica dos últimos anos. Contudo, a percepção dos apoios angariados pelo projeto de regência espanhola na América nos mostra a viabilidade de uma terceira via de governabilidade, ainda que mantendo intactas as estruturas e a ordem colonial.

Tervanasio nos mostra como a imprensa, os políticos locais e a princesa levaram a sério esta terceira via de governabilidade. Uma “guerra de papéis” ressaltando os prós e contras da regência mostrava o empenho de muitos em apoiar ou destruir o projeto. O receio do domínio dos Bragança, sobretudo na região meridional, era importante, porém não se apresenta como única chave de interpretação dos interesses envolvidos pelas elites criollas locais e os peninsulares na Espanha.

No decorrer do capítulo 4, um dos mais interessantes do livro, percebemos como foi possível a construção de uma retórica política para que Carlota Joaquina partisse do Rio de Janeiro em direção a Buenos Aires a fim de ser coroada regente no Rio da Prata. Porém, os efeitos da revolução de 1810 contribuíram para pensar o impacto das propostas de regência da Infanta no seio dos conflitos locais. A regência passava a ser, por um lado, um mal menor se comparado à criação de uma Junta em nome de Fernando VII na capital do Prata. Por outro, esse mal menor não garantia sucessos para a via reformista, o que fez com que os maiores representantes do carlotismo se transformassem em líderes do processo revolucionário e, consequentemente, depositários da soberania do rei.

No último capítulo se revela o impulso da Infanta em realizar seu propósito de assumir seu lugar na Península, ocupando o trono de seu irmão, sem abrir mão do restante do Império já envolvido pelos movimentos de independência. Nesse sentido, antes de realizar uma tentativa de golpe de Estado, Carlota Joaquina procurava manter a legitimidade do irmão dentro dos limites que ela conhecia e em que fora formada: a defesa da linhagem, da família e da casa, elementos estes diminuídos pelos efeitos das ondas liberais e pela perspectiva de transformação social. O retorno de Fernando VII ao poder, em 1814, “apagou” os anseios do projeto de Carlota Joaquina, que se resignara à sua posição anterior. Contudo, o retorno do rei abria uma nova luta tanto na Espanha quanto na América: restauração versus revolução.

Distante de ser uma biografia narrativa e factual, o livro nos desperta para o labirinto de possibilidades nas quais Carlota Joaquina estava política e diplomaticamente inserida. Por um viés político, a princesa estava diante de possibilidades concretas de governar na América, o que era sumamente interessante para o propósito de união das coroas ibéricas, invertendo a lógica das relações coloniais. Diplomaticamente, a irmã de Fernando VII buscava conferir legitimidade ao seu projeto de governo ao assegurar que o rei reassumiria o poder tão logo saísse do cativeiro, evidenciando as desconfianças em torno de sua figura feminina e, também, em torno do conjunto dos Bragança e seus interesses expansionistas, destacadamente no Rio da Prata. Ao longo do livro, podemos observar uma série de escolhas efetuadas pela princesa no intuito de proteger os seus interesses naqueles anos incertos.

A incerteza é, para fins deste livro, a pedra de toque para a compreensão do período e, ao mesmo tempo, evidencia o quanto o carlotismo era um projeto político passível de ser implantado no mundo colonial hispano-americano e não uma mera conspiração política contra o rei. Os caminhos percorridos pela princesa para galgar o poder e o retorno de Fernando VII ao poder nos remetem a um labirinto onde, ao final do seu percurso, um monstro os espera: a crise dos valores coloniais e do poder absoluto.

Referências

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AZEVEDO, F.N. de. 2003. Carlota Joaquina na corte do Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 400 p.

CARVALHO, J.M. de. 2008. D. João e as histórias dos Brasis. Revista Brasileira de História, São Paulo, 28(56):551-572.

https://doi.org/10.1590/S0102-01882008000200014 CHIARAMONTE, J.C. 2007 [1997]. Ciudades, provincias, estados: orígenes de la Nación Argentina, 1800-1846. Buenos Aires, Emecé. 645 p.

CHUST, M. 2008. Reflexões sobre as independências ibero-americanas.

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https://doi.org/10.11606/issn.2316-9141.v0i159p243-262 HALPERÍN-DONGUI, T. 2005 [1972]. Revolución y guerra: formación de una élite dirigente en la Argentina criolla. Buenos Aires, Siglo Veintiuno Argentina. 480 p.

LUSTOSA, I. 2008. O período joanino e a eficiência analítica de alguns textos desbravadores. Revista da Casa de Rui Barbosa / Fundação, 2(2):353-371.

MELLO, E.C. de. 2004. A outra independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo, Ed. 34, 264 p.

PAMPLONA, M.A.; MADER, M.E.N. (org.). 2007. Revoluções de independência e nacionalismos nas Américas: região do Prata e Chile.

São Paulo, Paz e Terra, 299 p.

PIMENTA, J.P.G. 2002. Estado e nação no fim dos impérios ibéricos no Prata: 1808-1828. São Paulo, Edusp. 266 p.

QUIRÓS, P.G.B. de (org.). 2015. Independencias ibero-americanas: nuevos problemas y aproximaciones. Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 383 p.

SCHULTZ, K. 2008. Versalhes Tropical: Império, monarquia e a corte real portuguesa no Rio de Janeiro, 1808-1821. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. 444 p.

SLEMIAN, A.; PIMENTA, J.P.G. 2008. A corte e o mundo: uma história do ano em que a família real portuguesa chegou ao Brasil. São Paulo.

Notas

2 Alguns trabalhos importantes nessa discussão são Lustosa (2008), Carvalho (2008), Slemian e Pimenta (2008) e Schultz, Kirsten. Versalhes Tropical: Império, monarquia e a corte real portuguesa no Rio de Janeiro, 1808-1821. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, (2008). Uma posição crítica ao processo de independência, ressaltando que a vinda da corte lusitana atendeu aos interesses do Centro-Sul em detrimento do Nordeste, é a do historiador e diplomata Evaldo Cabral de Mello (2004). Outra iniciativa importante e de debates profícuos foi o Congresso Internacional 1808: a corte no Brasil, realizado na Universidade Federal Fluminense, março de 2008.

3 Halperín-Dongui (2005 [1972]); Chiaramonte (2007 [1997). Para refletir sobre a temática das identidades e construção de nacionalismos nas Américas, ver também Pamplona e Mader (2007). Alameda. 180 p.

Hevelly Ferreira Acruche – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Largo São Francisco de Paula, 1, Centro, 20051-070 Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected].

Flávio Koutzii: biografia de um militante revolucionário – SCHMIDT (AN)

SCHMIDT, Benito Bisso. Flávio Koutzii: biografia de um militante revolucionário. Porto Alegre: Libretos, 2017. Resenha de: LAPUENTE, Rafael Saraiva. Traços de uma biografia “revolucionária”: Flávio Koutzii por Benito Schmidt. Anos 90,  Porto Alegre, v. 25, n. 48, p. 411-418, dez. 2018.

Caminhos, contextos e trajetórias: Flávio Koutzii como um “revolucionário” na América Latina

Há por parte da bibliografia vinculada à Ciência Política a alegação de que o PT é a agremiação mais estudada da área (SAN­TIN, 2005; AMARAL, 2013), haja vista possuir uma quantidade numérica significativa de estudos com diferentes abordagens.1 Mas, se isso é relativamente consistente por parte da Ciência Política, é bem verdade que sua “irmã” – a História Política – ainda caminha com vagar sobre a história política e partidária do Brasil pós-democratização e, mais especificamente, sobre o PT e as demais agremiações.  Ainda que os historiadores frequentemente fracassem na tarefa de prever o futuro (HOBSBAWM, 2013), penso que esse contexto é temporário. E ponto chave para isso é buscar entender a trajetória daqueles que vieram a fundar e dar sustentação ao Partido dos Trabalhadores, por meio de sua militância anterior ao Colégio Sion, onde o PT foi oficialmente fundado.

Ainda que Benito Schmidt não se dedique à tarefa de enten­der os anos de Flávio Koutzii como membro do PT e ativo na política institucional, a biografia que o autor traça sobre uma das principais figuras da esquerda gaúcha nos ajuda a conhecer um dos membros mais ilustres da sigla no Rio Grande do Sul.2 Para isso, Benito Schmidt dividiu o trabalho em cinco capítulos, encerrando sua biografia quando o personagem estudado retorna ao Brasil em 1984. E somente entre 1943 e 1984 resultou em um extenso trabalho de 543 páginas, fruto de sete anos de pesquisas. O autor, contudo, convoca desde o início outros pesquisadores a se debru­çarem sobre o recorte posterior, chamando a atenção para o fato de que o período “em branco” do trabalho possui particularidades relevantes a serem analisadas por novos pesquisadores. Isto é, que a opção por não incluir esse período não está no fato de este ser, supostamente, menos relevante do que o estudado.

A introdução do livro chama a atenção para esse ponto, destacando que o pós-1984 “trata-se de um período riquíssimo” (SCHMIDT, 2017, p. 14), bem como dos bastidores em que chegou ao biografado e os conflitos em torno de “convencê-lo” ao recorte temporal. A introdução, sem dúvidas, é a parte do livro onde o autor provoca uma série de curiosidades e inquietudes, fazendo com que o leitor se sinta instigado a prosseguir a obra. Fugindo, assim, das introduções “burocráticas” que, por vezes, possuem os trabalhos acadêmicos.

Ter o biografado vivo, o que é pouco usual, é peça chave nisso, haja vista que a introdução vai narrando parte dos “basti­dores” dos sete anos de pesquisa, em especial sobre a relação entre pesquisador e pesquisado. Ao longo do livro, Schmidt vai deixando claro, direta ou indiretamente, que Koutzii teve papel fundamental no desenvolvimento da pesquisa não apenas como entrevistado, mas sendo partícipe em todo o processo do trabalho, indicando, cedendo fontes e intermediando entrevistas. E também divergindo de Schmidt, embora o autor assinale poucas vezes no decorrer do livro os momentos em que isso ocorreu.

Essa participação de Koutzii, mais “direta”, aliada com a explícita identificação do autor com as bandeiras defendidas pelo biografado, evidentemente que deixam o leitor, como se diz popu­larmente, com o “pé atrás” em relação ao trabalho. Mas no decorrer do texto, à medida que Schmidt vai analisando a trajetória e, em especial, os contextos políticos nos quais Koutzii estava inserido, fica claro que não se trata de um texto chapa branca ou heroificante, comumente observado pelas biografias ditas “comerciais”.3.

Chama a a Chama a atenção no livro também o vasto material consultado pelo autor. Schmidt, para “seguir os passos” de Koutzii, frequentou dez arquivos diferentes, localizados em Porto Alegre, Buenos Aires, Rio de Janeiro, São Paulo, assim como o acervo pessoal de Koutzii. Apesar disso, o que predomina durante o livro são as entrevistas orais. Schmidt realizou 48 delas, algumas na França, Argentina e Alemanha, com figuras que estiveram próximas de Koutzii ao longo da trajetória analisada, sendo obviamente a maioria delas com o próprio biografado. Essas entrevistas deixaram o livro com uma narrativa estimulante. Elas, aliadas com a boa escrita do autor, transformaram as densas 543 páginas em uma leitura fluida. É fácil constatar que a biografia foi escrita pensando em atingir um público maior do que aquele que possui interesses acadêmicos.4t

Naquilo que concerne à organização do livro, ele foi dividido em cinco capítulos, cada um abordando uma fase diferente da vida de Koutzii. No primeiro, Benito Schmidt busca conhecer Koutzii antes de Koutzii, traçando o contexto de sua infância e adolescência no bairro Bom Fim, em Porto Alegre, bem como a estrutura familiar do biografado. Nesta, dando especial atenção a Jacob Koutzii, pai de Flávio e cuja trajetória estava vinculada ao PCB, ao judaísmo e à crítica de cinema. Nesse ponto em particular, Schmidt utilizou amplamente o livro A Tela Branca, escrito por Jacob Koutzii. A trajetória de Flávio Koutzii nesse capítulo também contempla sua vida escolar no Instituto de Educação General Flores da Cunha e no Colégio de Aplicação, dando ênfase especial às consequências de sua posição enquanto judeu e comunista quando estudava no primeiro; no segundo, Schmidt busca analisar a influência daquele ambiente para a formação política do biografado.

Como durante toda a biografia, Schmidt não se ateve apenas às atividades políticas. Esteve atento às relações pessoais de Koutzii, tanto com a família como também amorosas. Nesse capítulo, em particular, abre um fio que só terá desfecho no final do livro: o encontro entre Koutzii e Sônia Pilla, que, entre tantas idas e vindas, seria marcado por um reencontro em 1984, união que se mantém, destacando que as relações afetivas e familiares se misturavam com a ação militante em todo o período estudado.

Essas relações pessoais também por vezes trouxeram, no decor­rer do livro, tanto a distensão como a angústia. No capítulo dois, o leitor pode dar boas gargalhadas quando o autor questiona, “com alguma maldade”, se “‘o Flávio jogava [futebol] bem?’. Ele respondeu o que eu pressentia: ‘não’” (SCHMIDT, 2017, p. 145). Por outro lado, quando o autor se debruça sobre a prisão na Argentina, é necessária muita frieza e abstração para não se colocar no lugar de Clara Koutzii nos dias de cárcere do filho, principalmente no momento em que ela tem que optar entre visitar Flávio ou ir ao enterro do marido Jacob. O livro também possui o mérito de ressaltar por diversas passagens que, apesar das muitas dificuldades, medos, angústias e incertezas, o biografado e seus pares também abriam brechas para brincadeiras e descontrações mesmo nos momentos mais aflitos de suas respectivas trajetórias.

Depois de Benito Schmidt buscar compreender as “raízes” de Koutzii, no capítulo seguinte estuda o início da militância do biografado em Porto Alegre no PCB. Abordando o período de retorno a Porto Alegre depois de uma malsucedida tentativa de estudar em São Paulo, Schmidt destaca o papel da UFRGS na atuação política de Koutzii: “perguntei-lhe: ‘e na Universidade, o que é que vocês faziam concretamente?’, ao que ele respondeu sem pestanejar: ‘política! [risos]. Política o tempo todo’” (SCHMIDT, 2017, p. 99-100), destacando sua atuação dentro do Movimento Estudantil da UFRGS. Um dos pontos para o qual Schmidt cha­mou a atenção foi a vitória de Koutzii como presidente do Centro Acadêmico Franklin Delano Roosevelt, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.

Característica importante desse capítulo, que estará presente nos demais, é o fato de o autor dar ênfase especial ao contexto em que está inserido o seu personagem. Isto é, por meio da busca dos passos de Koutzii, Benito Schmidt vai traçando sempre um importante paralelo contextual, transformando o livro em uma ferramenta para compreender o Brasil dos anos 1960 – e os impactos da Ditadura Militar no Movimento Estudantil – nesse capítulo, e também as ditaduras latino-americanas pelas quais Koutzii passou em função do exílio nos capítulos seguintes. A dedicação do autor aos contextos explica o porquê de a biografia ter ficado extensa, mas garante uma leitura mais rica do que só “seguir os passos” de Koutzii, ressaltando as decisões tomadas pelo biografado dentro do que é chamado de campo de possibilidades.

Finaliza o capítulo 2 com a Geração de 1968 e a decisão tomada por Flávio Koutzii e membros do Partido Operário Comunista de sair do Brasil para a França clandestinamente antes que fossem presos. Assim ele sintetiza o biografado no período abordado, dizendo que “[…] Flávio vivenciou com intensidade os acontecimentos políticos do seu tempo: o movimento estudantil, o golpe de 64, os debates que sacudiram e reconfiguraram a esquerda brasileira nos primeiros anos da ditadura, a luta armada”. Para Schmidt, “[…] a política, aliás, parece ter se tornado a partir de então o eixo central de sua existência, abarcando inclusive suas relações que normal­mente chamaríamos de privadas, como as amizades e os amores”. Por isso, compreende sua atuação política “no sentido de agir para transformar a sociedade e tomar o poder” (SCHMIDT, 2017, p. 186).  O Capítulo argentino é o título do capítulo três. Ainda que a parte mais “pesada” da biografia fosse dedicada ao capítulo seguinte e também ocorresse na Argentina, é compreensível a divisão do autor para uma parte destinada à militância de Koutzii na Argen­tina e, no quarto capítulo, destinando-se aos pedaços da morte no coração. Dessa forma, denota-se que existe um antes e depois na vida de Koutzii com a prisão e tortura durante a ditadura militar argentina, destacando ainda o fato de as organizações de esquerda também terem sido perseguidas nos governos de Peron e Isabelita. Embora, há de se ressaltar que o capítulo argentino abranja a atuação de Koutzii no Chile e na França.

É possível perceber, por meio do capítulo três, os artifícios dos militantes de esquerda para driblar as ditaduras latino-americanas, como a utilização de passaportes e identidades falsos, traçando, por exemplo, o trabalhoso processo empreendido por Flávio Koutzii para ir ao Uruguai e, de Montevidéu, ir de barca a Buenos Aires e, da capital argentina, se deslocar de ônibus a Santiago, para o Chile de Allende (SCHMIDT, 2017, p. 194-197). Ponto interessante do trabalho é poder observar a militância internacionalizada de Koutzii, identificando a atuação do personagem em múltiplos contextos, por vezes também ilustrando os choques provocados por essas diferenças.

Além disso, o livro explora a aproximação de Flávio Koutzii com a IV Internacional ainda na França e, na Argentina, sua mili­tância no Partido Revolucionário dos Trabalhadores, na Fracción Roja, uma dissidência que teve no biografado uma das principais lideranças dos rojos, e na Liga Comunista Revolucionária.

Se o capítulo três muito lembra um “filme de ação”, haja vista as estratégias lançadas pela esquerda para confrontar e burlar as ditaduras latino-americanas, em especial a argentina, no capítulo quatro, No ‘coração das trevas’, o autor prenuncia o que virá em um depoimento pessoal: “certas vezes, depois de realizar as entre­vistas, tive que caminhar pelo parque, tomar um sorvete, ver um filme alegre a fim de recuperar certa confiança na humanidade” (SCHMIDT, 2017, p. 312). Nesse capítulo a prisão de Koutzii é analisada, tanto por meio de entrevista oral como pelo jornal La Razón, que definia o biografado como “o responsável pelos grupos armados na América Latina da IV Internacional” (SCHMIDT, 2017, p. 315). Junto a isso, há a análise do contexto de desaparecimentos e sequestros de membros da esquerda naquele país, ilustrando a tensão da apreensão de Koutzii nesse cenário.

As práticas de tortura são pouco analisadas em si, mas ScAs práticas de tortura são pouco analisadas em si, mas Schmidt busca compreendê-las mais como um ato organizado, estruturado e articulado do Estado argentino visando à destruição física, mas principalmente psicológica dos presos políticos. Não é à toa que o maior capítulo é o mais tenso, embora Schmidt consiga “quebrar” essa narrativa ressaltando eventuais momentos de lazer e resistências simbólicas contra o sistema prisional argentino pelos presos políticos.

O capítulo finaliza com a extensa campanha em defesa da liberdade de Flávio Koutzii, cuja presença intensa de sua mãe possui localidade central, bem como a mobilização de figuras políticas, como o deputado federal Airton Soares, intermediando sua soltura, a campanha realizada pelo Comitê Brasileiro pela Anistia e o abai­xo-assinado internacional com importantes adesões da esquerda. Também foi muito destacado pelo autor o apelo embasado nas condições de saúde de Koutzii, com problemas cardíacos e a perda de 25 quilos no cárcere. Schmidt, para isso, usou ampla gama de materiais primários, com a cobertura que a campanha pela libertação de Flávio Koutzii possuiu, em especial na imprensa.

Para mim Paris não foi uma festa. O título do último capítulo, trecho de uma fala de Koutzii, induz o leitor a imaginar que os dramas vividos na Argentina iriam persistir na França. Mas não é o que acontece. Nesse momento, quando o biografado retorna à França, Schmidt aborda quatro fases naquele novo contexto: os pri­meiros contatos de Koutzii, sua relação com a psicanálise para lidar com os traumas que passou na Argentina, seu trabalho intelectual na École des Hautes Études en Sciences Sociales que resultou no livro Pedaços da morte no coração, analisando o sistema carcerário argentino e seu ingresso gradual no debate político brasileiro, posi­cionando-se pelo PT e participando de sua construção em Paris. Para essa fase, Schmidt foi à França entrevistar alguns integrantes da IV Internacional. Assim, buscou conhecer o período em que Koutzii esteve no país. Além dessas, Schmidt entrevistou seu psicanalista na França, que também havia saído do Brasil por motivos políticos.

A biografia termina destacando a participação, ainda que indireta, de Koutzii na fundação do PT e seu retorno em 1984. Ela é, portanto, uma biografia que estuda a atuação de Koutzii como um militante revolucionário no sentido literal da palavra. A finalização do livro conta com dois curtos textos que não são de Schmidt. O primeiro, de Guilherme Cassel, busca fazer uma breve síntese da atuação política de Koutzii como vereador e deputado estadual. Cassel, é importante destacar, foi assessor de Flávio Koutzii5, uma informação ausente do livro, mas de suma importância para aquele que não é familiarizado com a história recente da esquerda gaúcha. Uma síntese que carrega traços dessa aproximação, cujo formato é mais de um testemunho do que de uma análise, como a de Benito Schmidt.

O breve texto de Koutzii é uma síntese sobre sua vida, a experiência de participar de uma biografia em vida e um chamado. Chamado de esperança, para a reversão dos tempos sombrios decor­rentes do golpe de estado de 2016. Chamado que é carregado de simbolismo, como a biografia explicita.

Notas

1 Embora, pessoalmente, eu venha defendendo que existe uma lacuna muito grande sobre os “PTs regionais”, bem como das demais siglas que não possuem praticamente maiores estudos com recortes geográficos menores.

2 Há de se ressaltar, entretanto, que Benito Schmidt chegou a redigir um livro chamado História e memórias do PT gaúcho (1978-1988), onde aborda esse pro­cesso inicial do PT. A obra, contudo, nunca foi publicada. O autor desta resenha teve acesso ao “borrão” do livro, cedida por Schmidt, ao qual agradeço por isso.

3 Refiro-me a biografias escritas normalmente por pesquisadores “independentes” e jornalistas, cujo apelo comercial descompromissa de maior aprofundamento e de rigores teóricos e metodológicos inerentes à pesquisa acadêmica.

4 De fácil constatação foi a positiva recepção da obra por parte de diversos mili­tantes do PT e da esquerda do Rio Grande do Sul, observando-se que, no dia do lançamento do livro, boa parte dela esteve reunida. No local do lançamento, ocorrido no Santander Cultural, um número considerável do público ficou do lado de fora da sala, impedido de assistir à fala de Koutzii, pela superlotação.

5 Koutzii, inclusive, atribuiu, em entrevista, a sua atuação parlamentar destacada pela escolha de sua equipe. Perguntado sobre ela, disse: “Era o Guilherme Cassel e o Paulo Muzell, esses dois praticamente como os caras que ajudavam a pensar e a escrever essas coisas”. Entrevista de Flávio Koutzii para César Filomena. Disponível em: <https://www.dropbox.com/sh/3cfi97dfs93zfic/AADGZ5A1D pcfdN9KZVtc0E0ya?n=421284457&oref=e>. Acesso em: 16 nov. 2017.

Referências

AMARAL, Oswaldo E. do. As transformações nas organizações internas do Partido dos Trabalhadores (1995-2010). São Paulo: Alameda, 2013.

ENTREVISTA de Flávio Koutzii para César Filomena. Disponível em: <https:// www.dropbox.com/sh/3cfi97dfs93zfic/AADGZ5A1DpcfdN9KZVtc0E0ya?n =421284457&oref=e>. Acesso em: 16 nov. 2017.  HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

SANTIN, Ricardo. Construção de um partido político: a trajetória e a estabili­dade política do PP gaúcho. Porto Alegre: Editora Berthier, 2005.

SCHMIDT, Benito Bisso. Flávio Koutzii: biografia de um militante revolucio­nário. Porto Alegre: Libretos, 2017.

Rafael Saraiva Lapuente –  Doutorando em História pela PUC-RS. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

Frei Betto, biografia – FREIRE; SYDOW (VH)

FREIRE, Américo; SYDOW, Evanize. Frei Betto, biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. 448 p. BOHOSLAVSKY, Ernesto. Frei Betto, uma vida entre a Igreja e a política. Varia História. Belo Horizonte, v. 34, no. 66, Set./ Dez. 2018.

O recente livro de Freire e Sydow é uma contribuição extremamente valiosa para a compreensão de alguns fenômenos políticos do último meio século do Brasil. A biografia nos permite perceber a profunda interligação entre as atividades intelectuais e pastorais e as práticas políticas de Frei Betto, desde meados da década de 1960 até hoje. Frei Betto parece ter estado presente sempre que algo novo aconteceu na política brasileira: ele foi a ponte entre a Igreja paulistana e o líder guerrilheiro clandestino Carlos Marighella no final dos anos 60, tendo passado quatro anos na prisão durante a ditadura por causa dessas tarefas; participou das comunidades eclesiais de base em vários estados depois de sair da cadeia; morou em uma favela em Vitória; fez parte das greves dos metalúrgicos do ABC em 1980; posteriormente, permaneceu próximo ao Partido dos Trabalhadores (PT) e a Lula e, finalmente, acabou envolvido na execução do Programa ‘Fome Zero’ nos governos do PT. Enquanto fazia tudo isso, tornava-se uma das figuras intelectuais brasileiras mais lidas e reconhecidas fora do Brasil, juntamente com Leonardo Boff e Paulo Freire, com os quais teve inúmeros contatos e intercâmbios e compartilhava o pertencimento à galáxia do catolicismo brasileiro em diálogo com tradições marxistas e críticas.

A primeira parte da biografia é organizada de acordo com uma rota cronológica, que começa com referências aos avós do frade e termina com suas últimas iniciativas políticas e literárias na segunda década do século XXI. A segunda metade do livro, contém capítulos temáticos: sobre a participação na imprensa, sua produção literária, suas amizades e sua vida cotidiana atual. Uma interessante seleção de fotografias nos permite ver algumas das trajetórias e ligações de Betto dentro e fora do Brasil e dentro e fora da Igreja Católica. O trabalho baseia-se na consulta da ampla produção intelectual e política do biografado, cartas pessoais, documentação jornalística e jurídica e, claro, dezenas de testemunhos recolhidos no Brasil, Argentina, Cuba, França e Nicarágua, produzidos por homens e mulheres que tiveram ligações com o dominicano em suas numerosas iniciativas políticas, eclesiásticas e educacionais. Nesse sentido, o livro oferece pistas para uma reconstrução das redes editoriais, jornalísticas, políticas e religiosas (principalmente latino-americanas) nas quais participou Frei Betto desde finais dos anos 60.

Trata-se de um livro explicitamente favorável a Frei Betto: os entrevistados são unanimemente solidários, coincidentes na avaliação e nas memórias sobre o biografado. Isso impede que o leitor perceba as dissidências interpretativas que possam existir sobre Frei Betto, suas práticas políticas e seu nível de participação e envolvimento políticos (com a exceção do capítulo 20, que inclui as críticas e amarguras geradas por sua saída do primeiro governo Lula, em 2004, e a publicação do livro A mosca azul, em 2006). Essa impressão é confirmada pelo fato de que o prefácio do livro foi escrito por Fidel Castro, explicitamente amigo do frade: em 1985, como resultado de longas conversas gravadas em Havanna, Frei Betto publicou o livro Fidel e a Religião, que fazia parte da longa lista de seus esforços feitos para aproximar as posições teóricas e organizacionais do marxismo e do catolicismo (Betto, 1985). Talvez uma consulta a ocasionais detratores políticos, sindicais ou dentro da Igreja teria contribuído para detectar ou destacar algumas facetas ou avaliações mais críticas ou negativas sobre sua trajetória. A figura de Frei Betto torna-se neste livro, então, passível de leituras apologéticas. Em parte, isso é o resultado também da relevância do próprio biografado neste projeto editorial, no qual teve um envolvimento entusiasmado desde o início.

Os autores mostram vários elementos da vida econômica e social da família do frade que tiveram um papel crucial na trajetória de Frei Betto: um tio general do Exército e um pai juiz ajudaram a evitar a tortura física que sofreram outros clérigos sob o AI-5; pertencer a altos estratos profissionais da sociedade mineira foi fundamental para sua formação intelectual e para a posse de recursos retóricos que ajudaram construir uma carreira muito bem sucedida no mercado literário no Brasil. Vale considerar, por exemplo, que os próprios autores agradecem à agente literária de Betto (Freire; Sydow, 2016, p.405). Quantos autores da esquerda e frades têm um “agente literário”? Isto não é para apontar essas questões como se fossem estigmas, mas porque fatores como a estrutura da Igreja, do campo literário ou a distribuição desigual de bens simbólicos e materiais ao longo de linhas étnicas, de gênero e regionais no século XX no Brasil contribuem muito para uma compreensão mais precisa da impressionante carreira de Frei Betto. Isso ajudaria a compensar a importância que os autores atribuem a fatores mais individuais e contingentes, como as enormes virtudes pessoais do sujeito biografado.

Este livro será de enorme interesse para um público não especializado, interessado em conhecer os elementos centrais da evolução histórica do Brasil desde a ditadura até o presente. Aqueles que desejam conhecer mais a radicalização dos católicos nos anos 60 vão encontrar chaves sobre o rapidíssimo processo pelo qual muitos jovens passaram da Juventude Estudantil Católica para a resistência armada. Mas também vão achar pistas sobre os movimentos populares nos anos 70 e as ligações com a Teologia da Libertação e com projetos educativos radicais. Muitas das características da política durante o começo da Nova República nos anos 80 e da política pública dos governos do PT são mais bem compreendidas a partir desta biografia, que consegue mostrar que Frei Betto foi uma figura animada, inteligente e criativa, não escapando nunca ao engajamento em relação aos problemas de seu tempo.

Referências

FREIRE, Américo; SYDOW, Evanize. Frei Betto, biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: 2016. [ Links ]

BETTO, Frei. Fidel e a religião. São Paulo: Brasiliense, 1985. [ Links ]

Ernesto Bohoslavsky – Universidad Nacional de General Sarmiento, Oficina 5111, J. M. Gutiérrez 1150, (1613) Los Polvorines, Província de Buenos Aires, Argentina. [email protected].

 

Marcello Caetano, uma biografia (1906-1980) – MARTINHO (VH)

MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. Marcello Caetano, uma biografia (1906-1980). Lisboa: Objectiva, 2016. 589 p. GONÇALVES, Leandro Pereira. Marcello Caetano, uma biografia dos trópicos. Varia História. Belo Horizonte, v. 34, no. 66, Set./ Dez. 2018.

“Sei que estás em festa, pá

Fico contente

E enquanto estou ausente

Guarda um cravo para mim”

(Chico Buarque, “Tanto Mar”, versão I, 1974)

Os versos da canção de Chico Buarque, Tanto mar, foram entoados e intensificados, criando uma unidade entre Brasil e Portugal a partir dos desdobramentos de 25 de abril de 1974, quando, com a Revolução dos Cravos, ocorreu o processo de consolidação da democracia e a derrocada do Estado Novo português. Esse momento marcou o deslocamento para o exílio do último representante do regime, Marcello Caetano, que inspirado ou não em Chico, expressou: “mas entre nós está tanto mar…”, ao referenciar a nova vida na Cidade Maravilhosa, onde permaneceu até sua morte, em 1980.

A relação entre os dois países não é ocasional, não apenas com Chico Buarque ou mesmo Marcello Caetano, mas também com Francisco Carlos Palomanes Martinho, autor da mais recente biografia do líder português. O professor luso-brasileiro, que é livre-docente do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo, autor de diversos estudos sobre Portugal Contemporâneo,1 desenvolve uma reflexão sobre a vida de Marcello Caetano em vários níveis, abordando o sentido do personagem em sua totalidade, desde aspectos do cotidiano, do âmbito privado e familiar, até momentos de sua trajetória política, acadêmica e intelectual. Além disso, traz informações sobre o exílio, fase de grande contribuição historiográfica, pois o autor utiliza uma série de documentos que os colegas investigadores portugueses não alcançaram em outros trabalhos, devido ao depósito em acervos brasileiros. Há de ressaltar a quantidade significativa de materiais coletados em arquivos portugueses, estabelecendo, portanto, uma produção empírica sólida e de relevância.

O prefácio, escrito por António Costa Pinto – que ao lado de Angela de Castro Gomes, representam as principais influências historiográficas do autor -, mapeia a obra como a terceira “grande biografia” de Caetano publicada em poucos anos, expressando a relevância da investigação. Talvez o único ponto possível de reflexão mais aprofundada sejam as ausências das biografias antecessoras como elementos analíticos, mas há a compreensão do autor em optar por não utilizá-las, buscando uma interpretação sem balizas anteriores.2

A biografia, um gênero cada vez mais abordado na academia, é cercada de aspectos metodológicos e teóricos que o autor não se furtou quando analisou e refletiu de forma conceitual elementos centrados sobre a memória do personagem, ainda mais em torno de um líder que teve a “ingrata” missão de ser o “número dois” da ditadura, sucedendo a liderança consolidada em torno da imagem de António de Oliveira Salazar.

Marcello Caetano foi político, professor de Direito e o último presidente do Conselho de Ministros do Estado Novo, entre 1968 e 1974. Na área acadêmica, atuou na Universidade de Lisboa, tendo uma carreira docente de extrema relevância para a consolidação das doutrinas corporativistas na História do Direito. Na juventude, foi militante do movimento monárquico, fazendo parte do Integralismo Lusitano. Nos anos 1930, foi uma das peças-chave do regime salazarista no âmbito do Estado Novo, inclusive participando da redação da Constituição de 1933. Apesar de divergências políticas com Salazar, devido ao caráter reformista de suas propostas, manteve-se ativo no governo, o que contribuiu para a sua ascensão em 1968, momento em que António de Oliveira Salazar foi afastado por motivo de doença. Um governo reformista em um contexto de instabilidade gerou a derrubada do Estado Novo e do governo de Marcello Caetano com a Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974, sendo exilado no Brasil, onde se adaptou bem na sociedade e desenvolveu atividades acadêmicas na Universidade Gama Filho, ocupando o cargo de diretor. Mesmo não tendo uma ação ativa na política, Caetano vivia em um país autoritário, ou seja, um espaço propício para o desenvolvimento de seus pensamentos e suas práticas políticas e intelectuais.

Um dos aspectos de maior relevância da produção de Francisco Martinho é a destreza do autor em criar um texto acadêmico que, ao mesmo tempo, fosse compatível com o grande público, não perdendo conceitos e equilibrando elementos aos leitores dos dois países. Com o impacto editorial, a biografia ganhou uma versão em língua inglesa e brevemente estará circulando na terra do exílio de Marcello Caetano (Martinho, 2018).

A obra é composta de uma produção linear da vida do líder português, contribuindo para o entendimento dos vários aspectos do biografado, principalmente em relação a um elemento de extrema relevância: o uso intelectual e acadêmico com uma finalidade política, demonstrando que a vida de Caetano não está restringida ao período de 1968 a 1974, momento que esteve na Presidência do Conselho de Ministros.

A biografia é composta por dez capítulos, e após o primeiro capítulo memorialístico sobre o Estado Novo, o autor dedica reflexões em relação ao contexto privado, focando a formação de Marcello Caetano, que nasceu em Lisboa no dia 17 de agosto de 1906 e presenciou todas as transformações políticas do século XX, sendo, desde jovem, quando estudante da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, militante católico, monárquico e democrata-cristão conservador.

O livro segue uma estrutura cronológica, tendo o eixo político como base central a relação analítica. O terceiro capítulo apresenta a maturidade do biografado, quando assumiu a Mocidade Portuguesa, assunto do quarto capítulo. Devido às divergências entre Salazar e Caetano, o líder português o nomeia ministro das Colônias, período abordado no quinto capítulo. O capítulo sexto tem como ponto central o retorno de Marcello Caetano para o interior do Estado Novo, quando assumiu a Comissão Executiva da União Nacional e a Presidência da Câmara Corporativa, alcançando assim notório reconhecimento político. Sem abandonar suas atividades acadêmicas e intelectuais, conforme mostra o capítulo sete, quando assume a reitoria da Universidade de Lisboa, Caetano se destaca na política nacional com cargos no Executivo do Estado Novo, o que o faz assumir a função de ser o sucessor de Salazar, como exposto no capítulo oito. Com grandes dificuldades de dar sequência ao governo anterior, a queda do marcellismo com todas suas repercussões é o tema do capítulo nove. O exílio no Brasil é apresentado no último capítulo para concluir essa importante obra biográfica.

Trata-se de um líder político de expressão do século XX com características peculiares em torno de uma ótica católica e corporativista que passou a ser um dos braços centrais do Estado Novo, sendo um homem do Estado que possuía uma via acadêmica ativa com uma rede de intelectuais, o que propiciou uma vida (não muito intensa) no Brasil, mas que encontrou nos trópicos, no contexto ditatorial, um porto seguro para os últimos anos de sua vida.

1 MARTINHO, 2002MARTINHO; COSTA PINTO, 2007MARTINHO; COSTA PINTO, 2016.

2Refere-se aos estudos de: CASTILHO, 2012LEITÃO, 2014.

Referências

CASTILHO, José Manuel Tavares. Marcello Caetano – uma biografia política. Lisboa: Edições 70, 2012. [ Links ]

LEITÃO, Luís Menezes. Marcello Caetano – um destino. Lisboa: Quetzal, 2014. [ Links ]

MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. A bem da nação: o sindicalismo português entre a tradição e a modernidade (1933-1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. [ Links ]

MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. Marcello Caetano, uma biografia (1906-1980). Lisboa: Objectiva, 2016. [ Links ]

MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. Marcello Caetano and the Portuguese “New State”. Sussex University Press, 2018. [ Links ]

MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes; COSTA PINTO, António (Org.). O corporativismo em português: Estado, política e sociedade no salazarismo e no varguismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. [ Links ]

MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes; COSTA PINTO, António (Org.). A onda corporativa: corporativismo e ditaduras na Europa e na América Latina. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2016. [ Links ]

Leandro Pereira Gonçalves – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Juiz de Fora, Rua José Lourenço Kelmer, Juiz de Fora, MG, 36.036-330, Brasil. [email protected].

“Sabe aquele gol que o Pelé não fez? Eu fiz”. A Trajetória Esportiva de Duda | Suellen dos Santos Ramos

Ao falar sobre biografias são escassas as obras que abordam as mulheres no meio esportivo, mais raras ainda são aquelas que abordam o futebol de mulheres. No país do futebol as histórias das mulheres futebolistas passam a margem dos grandes salários, dos espaços midiáticos e do grande número de competições disponíveis. No entanto, a grandeza de suas trajetórias é o que fizeram e fazem a construção histórica do futebol de mulheres no Brasil.

A obra de Suellen do Santos Ramos e Silvana Vilodre Goellner intitulada “Sabe aquele gol que o Pelé não fez? Eu fiz”. A trajetória esportiva de Duda” focaliza a história da ex-atleta de futebol Eduarda Maranghello Luizelli, um nome de referência do futebol de mulheres no Rio Grande do Sul. Ao narrar a trajetória de Duda a obra contribui para reconstruir a história do futebol praticado pelas mulheres no Sul do Brasil. Leia Mais

Uma Estrela Negra no teatro brasileiro. Relações raciais e de gênero nas memórias de Ruth de Souza (1945-1952) | Julio Claudio da Silva (R)

O livro de Julio Claudio da Silva, Uma Estrela Negra no Teatro Brasileiro, é fruto da esmerada pesquisa para a tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Se insere nas discussões sobre o papel dos negros, e negras, na sociedade brasileira do pós-Abolição e as tensas relações raciais tão presentes no pensamento intelectual brasileiro das primeiras décadas do século XX.

Tomando como referencial a bem-sucedida carreira da atriz negra Ruth de Souza, o historiador problematiza as relações raciais, de gênero, a construção e reconstrução da memória da atriz, e as tensas dimensões vivenciadas por ela, pelo direito de inserir-se no complexo universo cultural brasileiro.

Esse exercício apurado de análise da memória pública de Ruth de Souza, de sua problemática, e da sua relação com as questões raciais e de gênero é o principal caminho trilhado por ele para dar destaque às lutas sociais e culturais de artistas negros entre as décadas de 1930 e 1950, e as profundas conexões dessas lutas com a vida política brasileira do período.

Professor da Universidade do Estado do Amazonas, Julio Claudio da Silva realizou sua formação como historiador na UFF. E ao longo de sua trajetória como pesquisador, tem se dedicado a investigar a questão racial no Brasil, e os desdobramentos correlatos a temática, como a História África e da Cultura Afrobrasileira, o Movimento Negro, e a memória e trajetória dos/as intelectuais negros/as.

Assim, algumas das inquietações do pesquisador podem ser percebidas no livro Uma Estrela Negra no Teatro Brasileiro, que em seu argumento central tem como proposta refletir sobre as relações raciais e de gênero no Brasil a partir da recuperação de alguns aspectos da memória e trajetória da atriz brasileira Ruth de Souza. Passando ainda pela história de umas das importantes associações negras do século XX, o Teatro Experimental do Negro.

Um dos esforços da narrativa do autor ao longo dos capítulos consiste em historicizar e refletir a temática do racismo no Brasil, visando contribuir com novas formulações e respostas para os estudos das relações raciais e de gênero (p. 21-23).[1] Desse modo, O trabalho insere-se no diálogo com a ampla produção historiográfica que analisa os processos de construção de conceitos como raça, relações raciais e da identidade negra na sociedade brasileira.[2] Especialmente na discussão que considera a identidade não somente como uma ideia, desligada da realidade concreta, mas que, antes de tudo, se manifesta na realidade social.[3]

Preocupado com as formas complexas dos processos ligados à cidadania nas sociedades pós-emancipação, as questões levantadas pelo autor ao longo de sua pesquisa buscaram evidenciar, a partir da trajetória artística da jovem Ruth de Souza, como a racismo se manifestou de forma muito particular para as mulheres negras. [4] Debruçando-se sobre a história da atriz, Silva procura observar “os processos de construção de memórias e os limites estabelecidos pelas relações raciais e de gênero, em uma sociedade pretensamente meritocrata fundada sobre o mito da democracia racial” (p. 25). Para tal, a figura de Ruth de Souza favorece a problematização das temáticas raciais e a generificação nos palcos brasileiros, uma vez que como mulher, afrodescendente, e proveniente das classes subalternas, ela conquistou reconhecimento, conseguindo se profissionalizar como uma das primeiras atrizes com esse perfil a fazer teatro erudito no nosso país.

O autor segue a tradição de estudos ligados à história social, fazendo uso da biografia de Ruth de Souza para compreender as dinâmicas da modernização do teatro brasileiro e como a questão racial e de gênero impactaram nesse processo. Como estratégia, Julio Claudio da Silva utiliza-se de depoimentos concedidos pela atriz em diversas décadas, assim como de relatos fornecidos por seus contemporâneos, e ainda da reunião de reportagens publicadas nos anos 1940 e 1950 selecionadas pela própria Ruth de Souza ao construir seu acervo pessoal.

Na primeira parte do seu livro, composta por dois capítulos, a analise do autor recai sobre os anos iniciais da carreira de Ruth de Souza como atriz no Teatro Experimental do Negro. Silva utiliza-se dos pressupostos metodológicos da História Oral, para problematizar a memória narrada dos entrevistados, demonstrando que a memória faz muito mais referencia ao presente que ao passado.

As tensões diante da recuperação da memória, os silêncios e esquecimentos foram analisadas pelo autor sem perder de vistas a dimensão política, que se mostrava marcadamente nas vivências de Ruth de Souza desde sua infância pobre, ao lado de sua mãe, viúva e empregada doméstica. Mas que, apaixonada pelas artes cênicas, ousou ser atriz.

Ao introduzir o leitor, logo no primeiro capítulo, na discussão dos conceitos memória, gênero e cultura afro-brasileira – os três pilares teóricos fundamentais para o desenvolvimento de sua argumentação nos capítulos seguintes, o autor pretende fundamentar os conceitos de sua pesquisa tendo como ponto de partida os depoimentos cedidos a ele pela própria Ruth de Souza. E com sensibilidade apurada e comprometida, Julio de Souza, além de dar visibilidade para os primeiros anos da trajetória da atriz, insere aos leitores e leitoras na bela história de homens e mulheres do Rio de Janeiro efervescente das décadas de 1930 e 1940.

A luta de Ruth de Souza, e de seus contemporâneos do Teatro Experimental do Negro, por maiores oportunidades na dramaturgia brasileira demonstram o quanto são racializadas as relações sociais no Brasil. Investigando os laços de amizade e as redes de solidariedade utilizadas pela atriz para conquistar seu espaço no cenário artístico brasileiro o autor nos conduz por um amplo universo de personagens engajados no combate às desigualdades e de lutas em meio à intensa exclusão do Rio de Janeiro de inícios do século XX.

Apesar dos entraves impostos pelo racismo cordial brasileiro, e pela suposta democracia racial, o autor realiza um cruzamento entre os depoimentos da atriz e recortes de jornais que apresentam muitas informações sobre o início da sua carreira, destacando a dimensão política de lutas e embates, por vezes “esquecida” nos relatos de Ruth de Souza, mas recuperada nos textos dos seus contemporâneos. Um exemplo disso é o depoimento de Raquel da Trindade sobre os primeiros anos de atuação do Teatro Experimental do Negro e das estratégias utilizadas por aqueles sujeitos na luta contra o racismo, especialmente as formas de racismo tão comuns nos palcos brasileiros daqueles anos.

As preocupações com novas questões que pudessem complexificar as narrativas elaboradas pela atriz Ruth de Souza nas entrevistas dadas ao autor, e a promoção do diálogo entre esses depoimentos com outras falas da atriz em gravações que estão sob guarda do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MIS RJ), constituem o segundo capítulo do livro. Nele, Julio Claudio da Silva dá particular atenção para as tensões, lacunas e contradições desses relatos, e como novas questões propostas por ele podem ampliar o campo de análise, permitindo compreendermos as estratégias utilizadas pela atriz na elaboração, e reelaboração, da memória sobre a ausência de oportunidades para uma jovem negra e pobre no campo teatral das décadas de 1930 e 1940.

A redação envolvente de Julio Claudio de Silva, e sua apurada análise apontam para ambiguidades nos depoimentos de Ruth de Souza, especialmente quanto a racialização do teatro, e como em alguns momentos a atriz atribui seu sucesso quase que unicamente a seu mérito, “desracializando” obstáculos de sua trajetória, e sublimando sua condição de artista afrodescendente, que viveu intensamente a realidade de exclusão imposta pelas artes cênicas no Brasil.

Na segunda parte do livro, o autor dedica-se a investigar o complexo processo de “arquivamento de si” e do Teatro Experimental Negro realizado pela própria Ruth de Souza. Para tal, Julio Claudio da Silva faz uso dos registros sobre a vida da atriz e da companhia de teatro reunidos no “Acervo Ruth de Souza”, do Laboratório de História Oral, da Universidade Federal Fluminense (LABHOI UFF). A intenção de Silva consiste em compreender os níveis de retroalimentação que os recortes de jornais reunidos pela própria Ruth de Souza tiveram sobre sua memória e, até certo modo, ancoraram o relato que a atriz fez de si.

Ao atentar para os silêncios presentes nos relatos da “Dama Negra do Teatro”, o autor recupera a organização de uma rede de alianças formadas em torno do grupo de artistas ligados ao Teatro Experimental do Negro, bem como a importância do grupo para o processo de modernização do teatro brasileiro, e das iniciativas de combate ao racismo no Rio de Janeiro do período. No capítulo 3, ao cotejar a documentação do Acervo Ruth de Souza, o historiador mergulha na problemática relativa às restrições impostas aos artistas afrodescendentes nos palcos, e como tais práticas, seja nos locais, ou mesmo na forma com que eram mostrados nos espetáculos teatrais, se materializavam frequentemente.

Desse modo, ao recuperar a memória sobre o papel da companhia Teatro Experimental do Negro, a narrativa de Silva nos apresenta “acirradas batalhas de memória entre Paschoal Carlos Magno e Abdias Nascimento” em torno da “paternidade da entidade” (p. 128), e como tais embates foram capazes de complexificar ainda mais a história de uma das mais importantes manifestações culturais do movimento negro brasileiro. Assim, o capítulo nos fornece amplamente uma riqueza considerável de informações sobre o panorama teatral brasileiro do período, especialmente quanto às dificuldades de funcionamento, e estratégias usadas pelos artistas do Teatro Experimental do Negro nas lutas contra “o complexo de inferioridade do negro e contra o preconceito de cor dos brancos”, como parafraseia o próprio autor (p. 134).

É especialmente bem sucedida a escolha de Silva ao investigar o grupo de artistas ligados ao Teatro Experimental do Negro, pois permite aos leitores a compreensão da importância da entidade para os artistas e para a cultura brasileira, justamente por criar e organizar uma “nova modalidade do teatro negro no Brasil” (p. 141). Mostrando o compromisso daqueles sujeitos em constituir espaços igualitários, que permitissem atuar plenamente como artistas, verem representados com justiça o seu universo étnico-racial e, portanto, contribuindo para a elevação cultural e dos valores individuais dos negros (p. 163).

No capítulo quatro, Julio Claudio da Silva busca investigar os limites e possibilidades para a construção de um teatro negro no Brasil da década de 1940 (p. 167). Para isso, o autor utiliza a cobertura dada pela imprensa sobre os espetáculos montados pelo Teatro Experimental do Negro, a partir dos recortes guardados pela atriz Ruth de Souza, tentando compreender como os críticos teatrais viam as adaptações de peças teatrais estrangeiros para o público brasileiro pelos artistas da entidade, e também as percepções racializadas sobre a atuação dos atores e atrizes da companhia de teatro.

Deslocando o foco de análise para os possíveis diálogos entre o palco e a platéia o autor analisa as montagens dos espetáculos estrangeiros O Imperador Jones, Todos os filhos de Deus têm asas e O Moleque sonhador, de autoria de Eugene O’Neill. Assim como os espetáculos escritos por brasileiros especialmente para o Teatro Experimental de Negros, como a peça O filho pródigo, de Lucio Cardoso, ou a Aruanda, escrita por Joaquim Ribeiro; e por fim a peça Filho de Santo, escrita por José Moraes Pinho. Dessa maneira, Silva nos auxilia a compreender como a montagem de espetáculos com temas ligados à realidade afrodescendente se constituiu elemento primordial para o crescimento das artes, e particularmente do teatro, no Brasil.

Montados entre os anos de 1945 e 1949, os textos iluminam “temáticas sócioculturais das populações e culturas afrodescendentes” (p. 168), e tal esforço de destaque da cultura negra é reconhecido pelos críticos como iniciativa fundamental no complexo cenário de lutas contra o racismo tão presente na sociedade brasileira. O olhar multifacetado do autor revelou um esforço de pesquisa que nos indica o quanto racialização cultural não passava somente pelos palcos, mas também pelo espaço destinado aos espectadores, e de como o grupo de artistas reunidos em torno do Teatro Experimental do Negro consolidava-se paulatinamente como uma espécie de oásis artístico em que era possível difundir textos e performances antirracistas, em que os artistas negros pudessem também apresentar sua arte e seu talento.

Por fim, no último capítulo, Silva dedica-se aos anos em que a atriz Ruth de Souza desliga-se do Teatro Experimental do Negro e vai para o exterior, onde tem a oportunidade de estudar artes cênicas nos Estados Unidos da América. O episódio, descrito pelo historiador como “um divisor de águas” na vida profissional da artista, revela o quão fundamental foi o apoio recebido pela atriz e o quanto a rede de solidariedades em que ela estava inserida foi primordial para o seu processo aprimoramento e profissionalização.

Essa temporada de estudos no exterior, de fato, abriu novas portas para a atriz, proporcionando a ela novos contratos, e uma carreira em ascensão nas principais companhias de cinema dos anos 1940 e 1950. Mesmo diante da tensão e do preconceito expressos na oferta de pequenos papeis para a atriz negra, seu talento e esforço foram reconhecidos em prêmios e indicações importantes pro seguimento, seja no Brasil ou ainda internacionalmente.

Ao se deparar com as questões metodológicas em torno da memória e do racismo na sociedade brasileira, o autor enfrenta o desafio de nos apresentar um texto rico teoricamente e que contribui amplamente com as discussões sobre os papéis da mulher negra no Brasil, especialmente no cenário cultural e político do pós Abolição, por meio da trajetória de uma mulher negra, que ousou ser artista, em uma sociedade que negou, e continua negligenciando, os direitos básicos aos afrodescendentes.

Notas

1. Optei em citar ao longo da resenha, entre aspas, palavras do próprio Julio Claudio da Silva, ou citações feitas por ele no livro.

2. Ver os trabalhos de GUIMARÃES, Antonio Sergio Alfredo. Classes, Raça e Democracia. São Paulo: Fapesp; Editora 34, 2002; SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993; SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

3. NASCIMENTO, Elisa Larkin. O sortilégio da cor: identidade, raça e gênero no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2003.

4. O debate tem sido feito em trabalhos como o de ALMADA, Sandra. Damas Negras: sucesso, lutas e discriminação: Xica Xavier, Lea Garcia, Ruth de Souza, Zezé Motta. Rio de Janeiro: Mauad, 1995; ARAÚJO, Joel Zito Almeida de. A negação do Brasil: o negro na telenovela brasileira. São Paulo: Editora Senac, 2000.

Vitor Leandro de Souza – Mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é Doutorando em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected] . ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9869-8907 .


SILVA, Julio Claudio da. Uma Estrela Negra no teatro brasileiro. Relações raciais e de gênero nas memórias de Ruth de Souza (1945-1952). Manaus: UEA Edições, 2017. Resenha de: SOUZA, Vitor Leandro de. Memória, gênero e antirracismo: a trajetória de lutas da atriz Ruth de Souza. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.36, n.2, p.319-324, jul./dez. 2018. Acessar publicação original [DR]

Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o retrato antropológico brasileiro (1905-1935) – SOUZA (RBH)

Publicado em 2017, Em busca do Brasil, de autoria de Vanderlei Sebastião de Souza, é fruto da tese de doutorado defendida na Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e agraciada com o III Prêmio de Teses da Anpuh, no biênio de 2011-2012. Os cinco capítulos que compõem o livro trazem à tona a preocupação com o tema da identidade nacional na trajetória política e científica do médico e antropólogo Edgard Roquette-Pinto. Em especial, a obra analisa a sua relação com a antropologia física, suas interlocuções transoceânicas e a ampla discussão racial mobilizada durante as primeiras décadas do século XX. Leia Mais

Donne ai margini. Tre vite del XVII secolo – DAVIS (BC)

DAVIS, Natalie Zemon. Donne ai margini. Tre vite del XVII secolo. Bari: Laterza, 1996. 372p. Resenha de: COCILOVO, Cristina. Il Bollettino di Clio, n.9, p.70-72, feb., 2018.

Tre donne introdotte da un’intervista impossibile, che le costringe a prender vita in un libro e a confrontarsi, loro così lontane nella religione (rispettivamente ebraica, cattolica, luterana). Ma al dunque, grazie alla caparbietà dell’autrice Natalie Zemon Davis, riescono nella simulazione a trovare il fondamento della loro identità comune: l’affermazione della loro autonomia, del loro talento, della loro intraprendenza. Eccezionale per un’epoca caratterizzata dal “silenzio” delle donne, dall’assenza di loro tracce, nella ricostruzione selettiva della storiografia ufficiale.

Glikl Bas Yehudah Leib, ebrea askenazita cioè di origine tedesca, a differenza delle altre donne del suo tempo non disdegna il lavoro. Nonostante una numerosa famiglia, collabora con l’attività dell’amato marito, commerciante di gioielli e prestatore di denaro, che a seconda del momento può portare a vistosi arricchimenti come a repentine rovine. Glikl non dà al denaro valore in sé. Non desidera vivere nel lusso. Come la maggior parte degli ebrei abita in una casa d’affitto, non potendo per legge possedere proprietà. Per lei il valore assoluto è l’onore, l’essere considerata degna di rispetto, lei come la sua famiglia. Sappiamo tutto questo da una autobiografia articolata in ben sette libri, in cui Glikl alterna la narrazione della sua vita a vere e proprie parabole, che hanno lo scopo di far comprendere i valori positivi della solidarietà, dell’amore, il senso della sofferenza. Una donna di grande cultura teologica e tecnico – commerciale, rispettata per la sua acutezza nel gestire questioni finanziarie e insieme profondamente religiosa e giusta. Sebbene lei e la sua famiglia abbiano talvolta subito le conseguenze di persecuzioni antiebraiche, che li costringono a trasferimenti forzati, accetta la sofferenza, mai si ribella a Dio che muto e immobile non interviene. Semmai lo interroga e con rassegnata accettazione e cerca di ricominciare ex novo.

Marie de l’Incarnation, se si può considerare per il nostro tempo personaggio singolare, per non dire psichicamente disturbato, è invece perfettamente inquadrabile nell’epoca della Controriforma. Ispirata fin da giovane dalla vocazione divina, trascorre la vita secondo due passioni apparentemente poco conciliabili: un forte trasporto per la vita mistica e una spiccata capacità organizzativa del quotidiano. Divenuta vedova precocemente, percepisce il potente richiamo del misticismo come altre “sante” dell’epoca, che trasfigurano in estasi religiosa le pulsioni del proprio corpo, ma nel contempo gestisce con molta maestria, quasi con piglio imprenditoriale, l’azienda commerciale della sorella e del cognato, che la ospitano insieme al figlioletto. Per il resto della sua vita vivrà questa difficile dicotomia. A circa trent’anni decide di prendere i voti come suor Orsolina, separandosi dal figlio adolescente e disperato. Vive in clausura, mortificando con sofferenze fisiche il suo corpo secondo l’esempio di Teresa d’Avila, finché non ha l’occasione di poter educare al pensiero cristiano i “selvaggi” del Nuovo Mondo. Si trasferisce in Canada, dove lavora con efficientismo invidiabile nelle difficili condizioni di una Missione delle suore Orsoline. Qui lei, che rifiutava il suo corpo, si accosta alla corporeità degli altri e tocca, cura, pulisce, insegna, impara le lingue locali, converte indios in un’opera pastorale a tutto campo. Soprattutto ha una ultra decennale corrispondenza con il figlio Claude, che a sua volta aveva preso i voti, e scrive testi religiosi per le genti locali nella loro lingua e scrive anche la sua autobiografia. Il figlio raccoglierà con devozione gli scritti della madre, ma li correggerà adattandone il linguaggio ingenuo allo stile sospettoso della Chiesa dell’epoca, per pubblicarli in un’opera postuma, “Vie”, dove però non inserisce gli scritti teologici di Marie in lingua irochese, algonchina e urone, utilizzati nella sua azione pastorale in Quebec.

Nonostante gli attacchi di misticismo e autoflagellazione, Marie ha un aspetto che la avvicina alla nostra sensibilità, per la relazione che ha creato con i “selvaggi”. Il suo scopo non è quello di emarginarli, ma di includerli nel mondo dei cristiani, in una visione universalistica, secondo cui non esiste differenza fra esseri umani, se questi abbracciano la parola di Cristo. Marie, mentre cerca di convertirli, educa gli indios al rispetto dell’igiene, della lettura e della scrittura. Qualora essi fuggano per l’innato desiderio di libertà di vivere nella natura, lontano da un convento di clausura, Marie li comprende e li perdona, riscoprendo il ruolo di madre generosa, che non aveva saputo assumere con il figlio al momento dell’abbandono.

Maria Sibylla Merian, luterana, originaria di Francoforte, figlia d’arte di un famoso incisore, non visse una vita familiare e borghese, come le sue condizioni le consentivano, allineandosi così alle stranezze delle altre due donne del libro. Si trasferì nel corso della vita in diversi luoghi, in seguito a scelte di vita radicali. La sua vita si potrebbe definire una metamorfosi, mimando il titolo della sua opera più famosa “Metamorfosi degli insetti del Suriname”, una raccolta di incisioni artistico-scientifiche che rappresentano la stupefacente natura tropicale. Acquisita fin da giovane una certa notorietà, grazie al suo talento di incisore1, diventa famosa dopo la pubblicazione nel 1679 del libro in due volumi “I bruchi. Le meravigliose metamorfosi dei bruchi“, in cui affianca a un centinaio di splendide incisioni di bruchi e insetti, descrizioni basate sulle sensazioni soggettive provate nell’osservazione degli aspetti naturali. Nell’organizzazione dei libri, rifiutò ogni criterio classificatorio, ritenendolo inadeguato. Non seleziona i viventi distinguendoli in catalogazioni di piante, bruchi e insetti; la sua osservazione ruota attorno a una foglia di cui si nutrono simultaneamente bruchi ed altri insetti, mentre le crisalidi si trasformano in farfalle. Evidenzia la vitalità delle relazioni fra gli esseri di un medesimo habitat. Tuttavia la sua visione della natura è profondamente religiosa, perché vi individua la straordinaria onnipotenza divina.

Morto il padre, probabilmente in crisi con il marito, si separa e sceglie di andare a vivere con le due figlie in Frisia, presso la comunità luterana dei Labadisti, che praticavano una fratellanza mistica. Qui rinuncia a ogni bene terreno e tronca le relazioni con l’esterno. Dopo pochi anni vissuti come cristallizzati in quella realtà, ecco la metamorfosi di Maria. L’eccessiva mortificazione, il distacco dalle cose del mondo e della natura, persino il ripudio del suo orgoglio di creatrice di oggetti artistici la spingono a un nuovo cambiamento.

Abbandona la comunità e si trasferisce ad Amsterdam per ricostruire la vita sua e delle figlie, ritornando all’arte incisoria, intraprendendo la strada dell’insegnamento e costruendosi una solida vita borghese, in piena autonomia di scelte anche economiche. Grazie poi al genero, che commercia con le colonie del Suriname, incuriosita dalla ricchezza di vita di quei luoghi, vi si trasferisce per due anni con la figlia minore.

In seguito a quella esperienza, pubblicò la sua opera più originale “Metamorfosi”, in cui riaffermò la sua visione della natura come un insieme di relazioni dinamiche tra viventi, che mutano nel tempo e a seconda del luogo in cui si realizzano. Consultò, senza i pregiudizi coloniali del tempo, indios e schiavi neri, che le diedero preziose indicazioni sulle caratteristiche di piante e animali del luogo, oltre alle loro abitudini di vita. Informazioni che riportò nel libro, anticipando aspetti delle attuali ecologia e antropologia. Tornata in patria, ottenne fama e riconoscimenti.

Che cosa hanno in comune queste tre donne così diverse tra loro, vissute in un periodo storico che condannava al silenzio le figure femminili?  La cultura innanzitutto. Tutte e tre abitanti di città hanno realizzato importanti opere nel loro campo specifico con una cultura libera da schemi. Tutte e tre hanno superato radicali cambiamenti, hanno impostato un rapporto profondo con la divinità che prospettava una vita migliore, per superarla e trovare riscatto nel lavoro. Tutte e tre erano esperte contabili, avevano indubbio talento per gli aspetti organizzativi del lavoro e non mancavano di spirito d’avventura.

Ma vivevano ai margini. In che senso? Perché lontane dal potere politico ed economico, perché la loro era una cultura da autodidatta, non costruita nelle accademie. Grazie alla loro intraprendenza riuscirono però a dare significato originale alle loro opere.

Cosa ci resta di loro? L’autobiografia di Glikl ebbe diverse edizioni e una certa diffusione nel mondo ebraico, finché non fu dichiarato libro “velenoso” dal nazismo. Fortunatamente l’autrice ne ha ritrovato una copia alla biblioteca di Berlino.

Le opere in lingua algonchina, irochese e urone di Marie forse andarono disperse dai missionari che si avventurarono all’ovest. Invece è rimasto come testo di riferimento per le Orsoline la sua “Vie” curata dal figlio.

Maria Sibylla ebbe più fortuna. Le sue opere vennero utilizzate e citate da Linneo e la sua raccolta postuma di incisioni fu acquistata da Pietro il grande. Oggi fa bella mostra di sé nella Kunstkammer dell’Accademia delle Scienze di San Pietroburgo, mentre il suo libro delle Metamorfosi è considerato patrimonio nazionale dal Suriname.

Le storie ritrovate delle tre donne potrebbero rientrare nella storia scolastica per ricostruire quadri d’insieme: la vita di ebrei askenaziti in Germania, il rapporto contorto con la religione controriformista di sante in estasi mistica, le relazioni contraddittorie con le genti del Nuovo Mondo, la faticosa affermazione del metodo d’osservazione scientifica.

Per gli studenti il libro costituisce probabilmente una lettura impegnativa, ma in un laboratorio storico di 17/18enni può essere interessante delineare temi come quelli accennati attraverso la costruzione di tre biografie femminili. Potrebbe diventare un’operazione capace di dare una luce diversa a queste tematiche e insieme di valorizzare i contributi ignorati di tre grandi donne del passato.

[Notas]

1 Significativo che in italiano non esista la versione femminile del termine incisore.

Cristina Cocilovo

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Guerras de papel: Francisco de Paula Santander e Simón Bolívar, das peças autobiográficas à relação epistolar (1826-1837) | FAbiana de Souza Fredrigo

Com a passagem de dois séculos desde a deflagração, em 1810, dos processos históricos que se estenderam até 1824 e culminaram na emancipação das colônias hispano-americanas, vêm ocorrendo em vários países da América Latina “celebrações” do bicentenário de suas respectivas independências políticas. Por meio dessas efemérides, os calendários acabam nos impondo, periodicamente, seus temas e fatos históricos de forma implacável, fornecendo sempre, felizmente, a possibilidade de um novo olhar para um “mesmo” passado. Na esteira dessas celebrações, o grande público de cada uma dessas nações tem tido e terá à disposição, certamente, um acesso maior às sínteses históricas, cronológicas e factuais a respeito das independências nacionais. Surge, assim, a oportunidade, embora menor do que se poderia esperar, para o necessário debate sobre o significado, em pleno século XXI, desses acontecimentos que marcaram indelevelmente os perfis, os limites e as possibilidades de novos Estados nacionais latino-americanos que começariam a ser formados a partir das primeiras décadas do século XIX, quando a própria ideia de América Latina sequer existia. Leia Mais

A Construção Biográfica de Clóvis Beviláqua: memórias de admiração e de estigmas | Wilton Silva

Nas duas últimas décadas, a tradição dos estudos biográficos no Brasil alcançou avanços consideráveis. Dissertações e teses surgiram com todo vigor, problematizando personagens principalmente no campo das letras e da historiografia. Um exemplo desta expansão no campo historiográfico é a publicação do livro “A Construção Biográfica de Clóvis Beviláqua: memórias de admiração e de estigmas”, do historiador e sociólogo Wilton Silva, fruto de sua tese de livre docência, apresentada em 2013, na Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Campus de Assis, em São Paulo. Publicada em livro em 2016, pela Editora Alameda, a obra traz uma apresentação da antropóloga Suely Kofes (UNICAMP) e o prefácio do historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr. (UFRN).

Wilton Silva pretende no livro analisar como se consolidou a memória do jurista cearense Clóvis Beviláqua (1859-1944), problematizando as distintas matrizes narrativas, com especial destaque para as dimensões grupais e institucionais que atuam em processos de afirmações e construções da memória e do esquecimento deste personagem. Para isso, o autor investigou quatro biografias sobre o jurista, publicadas entre as décadas de 1950 e 1990 no Brasil: “Clóvis Beviláqua”, de Lauro Romero (1956); “Clóvis Beviláqua”, de Raimundo Menezes e Ubaldino de Azevedo (1960); “Clóvis Beviláqua na intimidade”, de Noêmia Paes Barreto (1989); e por último “Clóvis Beviláqua: sua vida, sua obra” de Silvio Meira (1990). O autor justifica a escolha pelos méritos historiográficos e aspectos conjunturais em que foram produzidas as biografias ou ainda pelas divulgações que obtiveram em suas respectivas épocas de lançamentos. Leia Mais

Malcolm X – Uma vida de reinvenções | Manning Marable

Malcolm X – Uma vida de reinvenções, do historiador William Manning Marable, é uma biografia decisiva – embora não definitiva – para quem deseja entender a trajetória de um dos maiores líderes políticos negros dos EUA: um afro-americano muçulmano com passagem pelo crime, que dedicou sua vida a expor e combater o racismo presente em todas as camadas da sociedade norte-americana.

Com exceção da Autobiografia de Malcolm X, lançada pela editora Record em 1992, Malcolm X – Uma vida de reinvenções foi a primeira biografia a ser trazida para o Brasil, tendo sido traduzida pelo jornalista Berilo Vargas e publicada pela Companhia das Letras em 2013. Existem várias outras biografias, como The Death and Life of Malcolm X, de Peter Goldman, On the Side of My People: A Religious Life of Malcolm X, de Louis A. DeCaro Jr., ou Malcom X: In Our Own Image, de Joe Wood. Leia Mais

Lima Barreto: Triste Visionário | Lilia Mouritz Schwarcz

Importante historiadora de nossa atualidade, Lilia Moritz Schwarcz, desde os tempos de mestrado, se debruçou a estudar o período do século XIX e todas as questões que envolvem a abolição da escravidão e o cotidiano dos sujeitos escravizados. Professora de Antropologia da Universidade de São Paulo, é também docente visitante na Universidade de Princeton e editora da Companhia das Letras, onde coordena a seção de livros de não ficção e por onde foram publicadas todas as suas obras. Autora de livros como O espetáculo das Raças, Retrato em Branco e Negro e Brasil: uma biografia, Schwarcz lançou em 2017 o livro fruto de sua pesquisa dos últimos anos, cujo protagonismo ficou a cargo de um personagem que já aparecera antes em sua trajetória profissional, mas que nunca antes pudera se deter estudando: Lima Barreto.

Na época de escrever sua tese de doutorado, Schwarcz estudou a questão do darwinismo social – teoria debatida no início do século XX que afirmava a existência de diferenças profundas entre as raças humanas – onde surgiu a figura do romancista brasileiro como uma voz contrária à própria teoria, tirando todo o credo daquele que se tornaria um dos argumentos científicos em torno do surgimento do racismo. O contexto em que se fala é o da Primeira República brasileira, momento em que se prometeu a igualdade, mas também entregou a exclusão social de largas partes da população. Assim, o período tornou-se palco para muitas revoltas e manifestações a favor dos direitos sociais e civis, possibilitando a presença de indivíduos como Lima Barreto, que opinava, criticava, clamava por igualdade e por justiça, em nome de si mesmo e de todos os outros. O livro, cujo título ficou Lima Barreto: Triste Visionário, editado pela Companhia das Letras, foi lançado no início do segundo semestre de 2017, cuja data coincidiu com a ocorrência da Festa Literária de Paraty, importante evento do ramo editorial brasileiro e onde o autor homenageado na edição era Lima Barreto. Lilia Schwarcz e Lázaro Ramos, ator global, estavam presentes, debatendo e fazendo leituras sobre os escritos do romancista [1].

Tal qual se supõe uma biografia, Schwarcz sobrevoa toda a vida e trajetória do romancista, que viveu na passagem do século XIX para o XX e por meio de suas palavras, assumiu uma postura crítica diante da situação que o Brasil se encontrava. Desta forma, é logo na introdução que a autora realiza um trabalho cuidadoso, ao se postar, como pesquisadora, diante de seu objeto. Com uma linguagem capaz de transportar o leitor para o período em questão, Schwarcz narra as primeiras relações com Lima Barreto, tecendo os caminhos que levaram ela a querer escrever a obra. A maneira com a qual a mesma se coloca é quase que uma relação de amizade, pelo simples fato de querer entender a figura de Lima Barreto em todas as suas facetas. Não obstante, a pesquisadora deixa claro saber da existência da primeira e uma das principais biografias existente sobre Lima Barreto, publicada em 1952 com a autoria de Francisco de Assis. Nesse sentido, coloca o seu trabalho como fruto de suas indagações contemporâneas, em virtude da eclosão dos direitos civis e diferença na igualdade, além da presença de raça, questões já presentes nos escritos de Barreto em sua época. Consequentemente, faz uma relação com o fazer historiográfico, dizendo que o historiador desenvolve suas pesquisas com base nas perguntas de seu presente, tal qual afirmação de Lucien Febvre, citado por Schwarcz [2], onde o mesmo diz que a História é filha do seu tempo.

Triste e visionário: são os termos utilizados pela autora para caracterizar Barreto, e é nessa dualidade que a mesma vai desenvolvendo sua escrita. Utilizando-se de uma linguagem de fácil entendimento, possível de ser compreendida por estudiosos da área, mas também por leitores não acadêmicos, Schwarcz constrói a figura de Barreto como contraditória. Desse modo, afasta-o de uma possível heroicização, tornando-o apenas um homem de seu tempo. Narrando desde o seu nascimento até sua morte, a autora destaca, ao longo de dezessete capítulos, momentos e fases da vida do carioca. E nesse processo explora a atuação de Barreto nos mais diversos campos: desde a vida pessoal até mesmo a literatura e a política. Juntamente a isso, a historiadora procura tecer um contexto histórico, sempre partindo do cotidiano do autor, de tal modo a poder embasar o seu papel em meio a tudo aquilo. Logo, o leitor é convidado a realizar uma viagem pelo Brasil na passagem do século XIX para o século, num período de queda da monarquia e instauração de um novo regime. Por um lado, toda a expectativa pelo que um novo governo poderia trazer, incluindo mudanças na estrutura das cidades e o surgimento de novas práticas sociais e culturais. Mas, ao mesmo tempo, os problemas que a monarquia colocara e ainda persistiam no período republicano, dentre eles a própria questão dos sujeitos livres, mas que até pouco tempo eram escravizados.

Todo esse panorama é acompanhado de imagens e trechos de fontes da época, como jornais, incluindo crônicas, notícias, dando destaque muitas vezes aquelas escritas por Barreto. Deste modo, ao invés de tecer longos comentários e análises sobre, Schwarcz opta que o romancista fale, com suas próprias palavras, em momentos que julga necessário e relevante. Para facilitar ainda mais a leitura, cabe ressaltar o esforço no que tange o trabalho gráfico por parte da edição do livro, tornando a leitura ainda mais fluida e aprazível para o leitor.

A atuação de Lima Barreto, como já foi citado anteriormente, se deu por meio de colunas, romances e até a criação de periódicos, como é o caso do Floreal, que chegou às mãos de público carioca em outubro de 1907 e cujo diretor era Lima Barreto. Apresentava um formato pequeno e vinha com o objetivo de disputar o gosto dos leitores da cidade. O periódico refletia a postura crítica de seus membros, incluindo o próprio Barreto, diante da imprensa do período. Para os mesmos, os jornais em circulação no período atendiam a um público específico, sendo ele a burguesia, logo eram sensacionalistas. Dessa forma, não tinha preocupações mercantis e procurava apresentar as notícias de modo mais isento e próximo da população em geral. Isso acabou refletindo na trajetória do periódico, uma vez que não conseguia disputar espaço com os grandes impressos, sendo eles mais bem diagramados e que possuíam fotos, ilustrações, caricaturas e um projeto gráfico bem produzido. Outro alvo declarado era a Academia Brasileira de Letras, criada no período e que respeitava apenas uma “literatura muito pautada por regras gramaticais distantes da linguagem do povo” [3]. Apesar disso, é importante destacar que Lima Barreto tentara entrar algumas vezes na sociedade, não tendo sucesso em nenhuma delas.

A literatura foi outro ponto forte de sua atuação. Segundo Lilia Schwarcz, e que segue as análises de Francisco de Assis Barbosa, Lima Barreto tinha outros livros em preparo, mas decidiu lançar Recordações do escrivão Isaías Caminha com o objetivo de escandalizar. O romance narra a história do jovem Isaías, que chega à cidade grande cheio de esperanças de tornar-se doutor, mas acaba se deparando com o preconceito, a humilhação e a tristeza. É na narrativa que o autor representa algo que ele chamava de “’negrismo’: qual seja, uma projeção para o Brasil do movimento internacional de pan-africanos que, naquele momento, internacionalmente lidava com as dificuldades enfrentadas pela população negra no pós-abolição”[4]. Dessa forma, expõe com detalhes a cor de seus personagens, bem como o universo de constrangimentos que fazia parte do dia-a-dia dessas populações. Apesar do argumento envolvido no livro ser forte, o texto não foi recebido como era o esperado, também não se tornando um sucesso de crítica. Em vez de se deter na forte denúncia racial, presente em diversos momentos da obra, os críticos da época preferiram abordar a maneira como o livro tratou o jornalismo e as formas de sociabilidades literárias, e mais nitidamente, os periódicos. Tal postura “do contra”[5] acabou se repetindo ao longo de seus outros livros, sempre com um mesmo cunho: romance de crítica social. Lima Barreto queria provocar a intelectualidade carioca do período, e conseguiu tal feito.

Um terceiro campo de atuação que influenciou alguns outros foi a política, quando Lima Barreto se aproximou do anarquismo e das novas correntes libertárias, presentes no Brasil nas décadas de 1900 e 1910. Apesar de não ter se filiado, abertamente, a grupos ou clubes anarquistas, Barreto demonstrou interesse com as teorias que influenciavam colegas de geração e passou a veiculá-las em muitos de seus artigos. É nesse período que surge a tão lembrada sátira à Primeira República: Bruzundanga, que deu origem a um livro de mesmo nome, publicado após a morte de Lima Barreto. Na narrativa, o autor constrói um país fictício com diversos problemas sociais, culturais e econômicos, em que os ricos e incautos acumulam títulos acadêmicos e têm fama de eruditos.

Lilia Schwarcz sobrevoa a vida do escritor, destacando seus altos e baixos, seus feitos e suas polêmicas. A relação com a bebida, com os modernistas que vieram no mesmo período, com Monteiro Lobato e Machado de Assis e indo além até o seu triste fim, conforme palavras da própria historiadora, mostrando toda a construção posterior em torno de sua figura, o papel de Francisco de Assis Barbosa, primeiro biógrafo de Barreto são todos pontos destacados no desenrolar da escrita. Dessa maneira, dá um enfoque especial entre a relação entre Assis e Barreto, que se torna próxima, onde a imagem de ambos acaba se misturando. Isso se dá após a morte de Assis, quando sua esposa, d. Yolanda, doa a coleção de seu marido a José Mindlin, um grande bibliófilo brasileiro, e que por meio dela que Schwarcz tem acesso a boa parcela dos documentos de Barreto. É aqui que a autora traz a discussão de Pierre Nora, sobre lugares de memória, quando afirma que “qualquer objeto, qualquer documento, (…) só ganham sentido se incluirmos neles nossas lembranças e afetos”[6]. E de tal modo em que se teve o ganho de sentido entre Francisco de Assis Barbosa e Lima Barreto, teve-se o mesmo para com Lilia Schwarcz e seus protagonistas. Escrever um livro desses em tempos de discussões sobre preconceito e racismo levanta questionamentos que começaram no início do século XX e que permeiam a nossa sociedade atual. E que a partir da tomada de uma reflexão crítica sobre alguns pontos, podem dizer muito sobre nosso futuro. Desse modo, a impressão que se tem ao ler o livro é que a autora presta uma homenagem a um personagem tão importante na História de nosso país, deixando que o mesmo tenha um protagonismo e um reconhecimento tal qual deveria ser: triste e visionário.

Notas

1. Para ver mais: Acesso em: 16 nov 2017.

2. SCHWARCZ, Lilia. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. p.16

3. Ibid., p.195.

4. Ibid., p.218.

5. Ibid., p.2345.

6. Ibid., p.508.

Lucas Krammer Orsi –  Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. E-mail: [email protected]


SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: Triste Visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. Resenha de: ORSI, Lucas Krammer. Lima Barreto em três tempos: passado, presente e futuro. Cantareira. Niterói, n.28, p. 231 – 234, jan./jun., 2018. Acessar publicação original [DR]

Marcello Caetano: Uma biografia (1906-1980) – MARTINHO (RH-USP)

MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. Marcello Caetano: Uma biografia (1906-1980). Lisboa: Objectiva, 2016. Resenha de: SECCO, Lincoln. Marcello Caetano: o ethos intelectual e as artimanhas do poder. Revista de História (São Paulo) n.177 São Paulo  2018.

Portugal sobreviveu na periferia europeia às forças mais poderosas que sacudiram o século XX: as guerras mundiais, as ditaduras e a descolonização. A narrativa desses processos já seria um desafio imponente. Mais difícil, porém, é filtrá-los pelas lentes de uma vida singular, ainda que a de um homem que viria a desempenhar papel de relevo na política de seu país.

Em 600 páginas, com estilo límpido, o historiador Francisco Carlos Palomanes Martinho compôs uma obra que já é referência. Dez capítulos impecavelmente equilibrados, com introdução explicativa e conclusões em cada um deles, e que findam amiúde com um convite à leitura do próximo capítulo. Uma narrativa por vezes em suspense que não perde por isso nada do rigor acadêmico, provado na destreza com que coletou, selecionou e analisou suas fontes e ampla bibliografia, com destaque para a consulta da epistolografia, de notícias de jornais, manuscritos e outros documentos inéditos.

O historiador não poderia, entretanto, projetar no jovem jornalista católico ou no professor de Direito e ideólogo do corporativismo o futuro presidente do Conselho de Ministros. Francisco Martinho evita muito bem as armadilhas com as quais o gênero biográfico costuma apanhar aqueles que desconhecem o ofício do historiador. Não nos apresenta um Marcello Caetano pronto e acabado. Ao contrário, vemos um homem por vezes indeciso entre a tradição e a modernidade, mas que ao fim de tudo se aferra a uma concepção messiânica da história do seu país.

À indagação que se lhe poderia fazer, se esta é uma biografia intelectual ou política, o historiador antecipa-se muito bem já no título: Marcelo Caetano: Uma biografia. A sua narrativa foi feliz em encontrar a unidade no diverso.

A vida de Marcelo Caetano aqui apresentada é plena de ambivalências. Martinho nos revela um filho de família despossuída, mas não pobre; um católico que finda a vida agnóstico; o monárquico que abandonou os círculos monarquistas à própria sorte; o salazarista marcado por sucessivas desavenças com Salazar; o direitista a quem a direita se opôs; a esperança liberal que frustrou a transição a um novo sistema.

Caetano viveu uma revolução com o apego à solenidade ritual do cargo. Foi um patriota exilado. Alguém que queimou os seus navios, porém manteve profundas ligações epistolares com o seu país. O homem sisudo que, no exílio carioca, descobre um amor outonal; um fim trágico, porém envolto em tertúlias prazerosas.

De todas os paradoxos que emergem da leitura dessa biografia, o que mais se evidencia é o ethos intelectual mobilizado pelas conveniências da política. É certo que o mais oportunista dos políticos ainda traz em si princípios bem ou mal delineados, conscientemente ou não. Da mesma forma, lideranças marcadas por fortes posicionamentos de princípio não deixam de ceder, em muitos momentos decisivos, às artimanhas do poder. O que importa é definir o lado para o qual pende a balança.

Marcello Caetano construiu a imagem do professor de Direito por profissão e do historiador por vocação. Um homem das letras provisoriamente convocado pela política. Ele pavimentou assim o seu caminho ao poder. E fez parte de sua expertise a permanente reafirmação como intelectual cioso das prerrogativas da autonomia universitária. Restrita, por certo, aos limites pré-estabelecidos pelo regime a que servia.

Não deixa de ser notável a fina análise que o autor tece da crise universitária de 1962 que levou Caetano a se demitir da reitoria da Universidade de Lisboa. O historiador, diante das representações à direita e à esquerda, das justificativas do seu próprio personagem, escolhe a releitura das fontes e desvela um comportamento que não se enquadra fácil. Que é nuançado, pontilhado por motivações pessoais e por princípios corporativos que se confundem (deliberadamente?) com discretas tendências liberais.

A marca do doutrinarismo intelectual foi o que de mais permanente houve na vida de Marcello Caetano, mas como o autor comprova em inúmeras passagens da sua obra, era um doutrinarismo flexível o suficiente para reconhecer as imposições da conjuntura, aceitar os interesses dos homens (sim, eram obviamente todos homens) com os quais precisava concertar uma ação política. Eis uma tese que emerge não de repente, mas de sucessivas linhas que o autor tece para apreender a totalidade de uma trajetória pública, intelectual, engajada e que molda a própria família e a intimidade marcada pelo distanciamento e pelo recato.

São um índice da complexidade do personagem reconstituído por Martinho as atitudes dele como presidente do Conselho de Ministros a partir de 1968, após a inabilitação e posterior morte de Salazar. O equilibrista que este sempre fora entre facções do regime é substituído por um governante mais duro e que se mostra incapaz de perceber os movimentos econômicos que lançavam Portugal na integração europeia.

Diga-se o que se quiser, Salazar soube manter perto de si os extremos aceitáveis de sua época. A começar pela sua insistência em ter o próprio Marcello Caetano em funções e cargos afetos ao regime. Caetano, que já ascendia sob a desconfiança dos velhos salazaristas, não soube se entender com os novos. Ele não aceitou os valores democráticos e nem as demandas crescentes das classes médias e trabalhadoras, ainda que seu governo introduzisse mudanças na legislação trabalhista. Ele se agarrou à ideia de um império colonial condenado, embora na juventude tivesse defendido uma autonomia relativa das colônias.

Em certo sentido, conta-nos Martinho, Caetano era moderno. Ao contrário de Salazar, aceitava a urbanização, o industrialismo e se preocupava com a política educacional. Mas de forma diferente do seu líder, no governo frustrou tanto as facções que o consideravam liberal quanto a extrema direita apegada ao passado. Terminou sozinho porque o juste milieu tornara-se um caminho impossível. Era a conjuntura aguda do fim do colonialismo a não mais permitir uma “evolução na continuidade”. O tempo perdido das reformas exigia a coragem dos rompimentos.

Ao fim, apegou-se ao que havia de mais nuclear no sistema que ele apoiou a vida toda: a suposta supremacia civilizacional do homem branco na governação de povos negros, tidos como incapazes de autonomia plena.

Mais doutrinário que Salazar e mais ideólogo que expert, como sustenta o seu biógrafo, Caetano também persistiu obstinado na ideia de que os governos têm uma “função retificadora da sociedade”, mesmo que durante o salazarismo muitas vezes opusesse a atitudes despóticas do chefe a necessidade de convencimento social para a legitimação do poder. Era cioso das hierarquias e tradições. Mostrou-o quando defendeu os ornamentos e distinções do cargo que passou a ocupar nos anos 1950: o de comissário geral da Câmara Corporativa, um órgão meramente consultivo.

Conta-se que, no 25 de abril, uma vez cercado no quartel do Carmo pelas tropas do capitão Salgueiro Maia, Caetano sentiu-se desconfortável em estabelecer tratativas com um oficial de baixa patente. Perguntou pelos chefes e, finalmente, aceitou render-se ao general Spínola, afirmando: “assim o poder não cai na rua”.

Domados pelas paixões do nosso tempo, é inescapável julgar deletério o seu papel na vida política de Portugal. Mas sem prejuízo de nossos valores, não deixa de nos intrigar a sua fleuma, aquela frieza inabalável que não provinha simplesmente do cargo. Conforme ele escreveu, resultava do decoro exterior que as instituições nos impõem. Não a todos, mas apenas aos que se apegam a elas com princípios. E ele os tinha, ainda que não os aceitemos.

Decerto, Martinho viveu um bom pedaço de sua vida ao lado de seu biografado. Foram anos a fio entre aulas, viagens e arquivos. Frequentou-lhe as cartas, as fotografias de família, os amigos, os livros e a memória que se construiu em torno dele (tão magnificamente tratada no primeiro capítulo dessa biografia).

O professor da Universidade de São Paulo se sentiu melhor ao lado do colega da Universidade de Lisboa do que diante do político do Estado Novo. Independente disso, o leitor é conduzido a um fim moderadamente triste. O tempo arrefece os ódios e o biógrafo, se não busca salvar o político que Marcello Caetano foi, evita “a exagerada superficialidade da desqualificação”.

No 25 de abril, o ditador cedeu lugar ao professor que ele jamais deixou de ser durante toda a vida. A ambos o historiador não julga, compreende.

Referências

MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. Marcello Caetano: Uma biografia (1906-1980). Lisboa: Objectiva, 2016. [ Links ]

1Resenha do livro: MARTINHO, Francisco Carlos PalomanesMarcello Caetano: Uma biografia (1906-1980). Lisboa: Objectiva, 2016.

Lincoln Secco – Professor no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – FFLCH/USP. E-mail: [email protected].

As faces de John Dube: memória, história e nação na África do Sul / Antonio E. A. Barros

A reconstituição progressiva das diferentes estratégias, tramas de competição política e batalhas pela memória da nação sul-africana contemporânea constituídas em torno do legado e da biografia de uma de suas figuras centrais, John Langalibalele Mafukuzela Dube (1871-1946), constituem o objeto principal do mais recente livro do historiador maranhense Antônio Evaldo Almeida Barros. Resultante de sua tese de doutorado, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia, em 2012, sob orientação de Lívio Sansone, o livro constitui um convite etnográfico, interdisciplinar e bem documentado para acompanhar o autor na aventura da exploração das artimanhas da nação e da memória no contexto sul-africano, explorando o contínuo, complexo e multifacetado processo de reconstrução biográfica d’As Faces de John Dube.

Por oportuno, tendo em vista o próprio objeto analisado na obra, talvez fosse interessante tecer algumas breves considerações sobre o autor, assim se tornará mais compreensível o esforço intelectual realizado e algumas de suas bases epistemológicas. Podemos começar então pelo denso investimento realizado anteriormente por Antonio Evaldo para a reconstituição de uma história social da cultura popular maranhense na contemporaneidade, cujos resultados só parcialmente começam a ser divulgados2. Desde esse momento, parece-me, os meandros da nação, cultura, memória e identidade constituem eixos centrais de discussão que se prolongam no trabalho ora resenhado. Da mesma forma, do ponto de vista metodológico, percebe-se n’As Faces de John Dube a mesma paixão pela imersão no campo arquivístico, porém, com uma exposição muito mais arguta e envolvente a respeito do processo de construção da pesquisa, com um enredo que nos convida a acompanhar a construção da obra em processo e, paralelamente, do próprio Dube em movimento. Para um observador próximo, torna-se claro também a inscrição dessa pesquisa em um programa de investigação promovido por jovens pesquisadores do Maranhão, que tem como meta incorporar o continente africano em uma pauta de investigações comparativas, constituída em torno de afinidades temáticas e problemas conceituais, e radicada nas redes de discussão epistemológica do eixo sul-sul3.

Com efeito, recorrendo a textos e narrativas desse intelectual sul-africano reconhecido, passando por biografias, artigos, ensaios e livros de natureza diversa sobre Mafukuzela distribuídos por diversos arquivos, e atravessando diferentes configurações temporais, Antônio Evaldo nos convida, então, a uma densa e multissituada exploração das modalidades de gestão coletiva, enquadramento institucional e lutas de memória em torno de Dube. E aqui se encontra, para o parecerista, o aspecto mais interessante da obra, posto que o que se coloca sob análise não é propriamente o sujeito empírico, mas o problema das formas de autoinscrição simbólica e política dessa figura central da narrativa sul-africana em diferentes configurações. São, portanto, as modalidades de patrimonialização da cultura e suas distintas concepções de história, desenvolvimento, raça e cultura que entram em pauta.

Evidentemente, a escolha temática e a pluralidade de fontes e materiais de caráter crítico ou laudatório sobre John Dube têm como suporte a pluralidade de papéis e cargos por ele exercidos e as sucessivas tomadas de posição que adotou no espaço público. Assim, como bem demonstra o autor, em que pese a variedade de visões construídas por biógrafos, documentaristas e comentadores, há relativo consenso de que não se trata de um indivíduo ordinário ou socialmente insignificante, o que ajuda a compreender a profusão de dispositivos empregados para produzir, atualizar ou questionar o legado desse personagem4. Porém, se essas realizações são bem conhecidas por aqueles que têm se interessado por sua vida e obra, é também significativo observar que os discursos e práticas atribuídos a Dube não costumam ser trazidos à tona de modo despropositado; a eles são destinadas ênfases e interpretações de natureza política, acadêmica ou artística, situadas no contexto social e histórico de seus produtores, numa cadeia de interpretações que envolve, além de Dube, homens e mulheres que com ele conviveram ou que, posteriormente, o tomaram como objeto de suas narrativas.

Para recobrar o processo complexo de utilização de Mafukuzela como objeto de diferentes estratégias e tramas de competição política e batalhas pela memória da nação, Antônio Evaldo tenta reconstituir esse trabalho de muitas mãos em três recortes. No primeiro capítulo, intilulado John Dube no seu próprio tempo, o autor narra alguns momentos da vida de John Dube explorando os seus discursos distribuídos por ensaios, livros e outras formas de intervenção social escrita. Neste caso, interessa ao autor descrever simultaneamente o contexto sócio-político e o itinerário de vida de John Dube, ao passo em que são exploradas as suas interpretações sobre a realidade e as narrativas e imagens que projetou sobre si. A hipótese de fundo é que a extraordinariedade do seu trajeto, situado nas fronteiras entre a sua cultura de origem e as fontes da cultura dominante, e o seu esforço por encontrar um sentido e posição no mundo dentro do conjunto de injunções contraditórias aos quais foi submetido delimitam e influem sobre as operações posteriores de revisão do seu legado.

A partir de então a análise descola-se propriamente do indivíduo para nos situar nas grandes tendências interpretativas que, desde o final do século XIX até o início do século XXI, tomam John Dube como objeto ou sujeito de interesse. É assim que, em Dube rememorado em tempos e espaços da África dos Sul segregada (capítulo 2), o autor passa a explorar aqueles que tendem a identificar Mafukuzela como colaborador direto ou indireto do processo de implementação do regime segregacionista sul-africano. A despeito de que essa representação da vida de Dube posa ser encontrada em diferentes momentos e contextos da história da África do Sul contemporânea, fato é que ela se torna claramente dominante nos anos do Apartheid, particularmente entre as décadas de 1940 e 1970. A tônica das publicações diversas que analisou – e com maior detalhe, dois ensaios biográficos e uma biografia – é aquela na qual Dube pode ser visto como fantoche dos brancos, incentivador da solidariedade racial, numa expressão, promotor do apartheid. Em suma, John Dube seria o retrato de como ser fraco e ambíguo diante das forças sociais, políticas e econômicas da história sul-africana, e da luta contra a opressão social e racial.

De outro lado, há aqueles que posicionam John Dube como personagem central das lutas históricas contra a segregação racial, inscrevendo-o, como ocorre atualmente, como uma espécie de herói sul-africano. Também neste caso podem-se observar registros desta tendência em diferentes décadas e situações, como nas representações sobre Dube produzidas por sua família e grupo social nos anos 1970 no âmbito dos izibongos5 que lhe foram dedicados, analisados no final do segundo capítulo. Mas este padrão interpretativo tornar-se-ia claramente dominante na África do Sul pós-Apartheid, particularmente no contexto de invenção da África do Sul como Rainbown Nation.

São justamente esses usos e abusos de John Dube que o autor analisa no terceiro capítulo: John Dube em tempos e espaços da nação arco-íris. Porém, antes de destacarmos o foco do capítulo, interessa enfatizar a digressão feita pelo autor no início dessa última parte do livro, quando somos surpreendidos com uma nova e bem-humorada exploração de sua experiência etnográfica, destacando não apenas as suas percepções subjetivas a respeito das diferenças entre África e Brasil, como também o complexo jogo de permanências e mudanças no jogo de classificações e etiquetagens naquele espaço simbólico. É que o tópico permite ver com clareza que o foco principal da obra não se situa exatamente nas situações e experiências múltiplas, desiguais e diferentes dos sujeitos concretos, mas nas condições sociais de formatação, enquadramento e reconhecimento público de determinadas narrativas e categorias de classificação da realidade.

Em museus e monumentos, nos meios acadêmicos, celebrações e homenagens, na imprensa ou em meios digitais, o autor vai explorando como vai sendo esculpida simbolicamente e objetivado o discurso da Rainbow Nation ao passo em que Dube é reabilitado como sujeito absolutamente envolvido nas lutas pela liberdade, opositor inteligente de ações e movimentos que visavam instituir o Apartheid. Conectada à instalação dessa ruptura, a vida de Mafukuzela passa a ser tomada como exemplo de que nas origens da nação sul-africana moderna haveria formas claras de relações raciais harmônicas entre brancos e negros. John Dube seria, portanto, o retrato de como ser forte diante das forças sociais, políticas e econômicas da história e na luta contra a opressão social e racial; um exemplo heróico para ser seguido numa África do Sul que se pretende como nação caracterizada pela diversidade cultural e étnica.

A guisa de conclusão, gostaria de destacar um último aspecto da obra que retoma os argumentos da conclusão apresentada pelo autor. Ele diz respeito ao valor pedagógico de uma abordagem que tem clareza com relação ao foco principal do trabalho. Sem prender-se a uma visão encantada e celebratória a respeito da construção da Rainbow Nation, e mobilizando uma pluralidade de fontes com precauções teóricas, o livro consegue, antes de qualquer coisa, demonstrar as múltiplas tensões, simbólicas e sociais, por meio das quais a nação é fabricada e representada na contemporaneidade. Porém, a apreensão desse processo de produção da realidade oficial e pública, objeto do trabalho, não faz com que o autor deixe de ponderar o fato de que os processos de visibilização e consagração de determinados patrimônios e atores sociais, como John Dube, recobrem diferentes formas de silenciamento e, por vezes, fazem esquecer realidades não ditas e percebidas nessas narrativas, o que pode se desdobrar ainda em um novo e instigante programa de investigações.

Notas

  1. Consultar, por exemplo: BARROS, Antonio Evaldo A. Invocando deuses no templo ateniense: (re)inventando tradições e identidades no Maranhão. Outros Tempos, São Luís, v.3, p. 156-182, 2006. Id. O pantheon encantado: culturas e heranças étnicas na formação da identidade maranhense. 2007. 319 p. Dissertação (Mestrado em Estudos Étnicos e Africanos) – IFCH, PÓS-AFRO, CEAO, Salvador: UFBA, 2007.
  2. Desse ângulo, inclusive, este livro pode ser lido como um dos mais belos e pedagógicos exemplares de uma agenda de pesquisas coletivas levada a cabo no bojo do Núcleo de Estudos África e Sul Global (NeÁfrica) – grupo vinculado à Universidade Federal do Maranhão e Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) – o qual tem se traduzido em diferentes publicações, eventos e irrigado diversos projetos de investigação.
  3. Neste caso, valeria muito à pena atentar para a sugestão de um programa de pesquisas realizada por Livio Sansone no prefácio do livro, quando assinala que “Dube não é somente importante, mas é também exemplar para o estudo das biografias dos pais da pátria que foram a expressão de vários outros países africanos” (p. 15).
  4. Izibongo refere-se a louvores entoados em honra de uma pessoa, trata-se de um gênero de louvor poético, de poesia oral, comum entre os zulus, uma espécie de poesia ou louvor com características metafóricas, laudatórias, elogiosas e no qual se narram feitos históricos de uma pessoa que já morreu, sobretudo reis e aqueles que são heroificados. Imbongi é a pessoa especializada em proferir o izibongo.

Wheriston Silva Neris – Doutor em Sociologia. Professor do Campus III -UFMA e docente permanente do PPGHIST/UEMA. E-mail: [email protected].


BARROS, Antonio Evaldo Almeida. As faces de John Dube: memória, história e nação na África do Sul. Curitiba, PR: CRV, 2016. Resenha de: NERIS, Wheriston Silva. As tramas da patrimonialização da cultura: histórias, memórias e narrativas de/sobre John Dube na Rainbow Nation. Outros Tempos, São Luís, v.15, n.25, p.192-196, 2018. Acessar publicação original. [IF].

Joana d’Arc: Uma Biografia | Colette Baune

Em 2016, a versão em português de Joana d’Arc: uma biografia completou dez anos. Lançada no Brasil pela Editora Globo em 2006, a obra de Colette Beaune é uma das leituras fundamentais para aqueles que se interessam pela história da heroína francesa.

Joana d’Arc é uma das personagens mais icônicas do Ocidente medieval. Em apenas dois anos, período entre seu aparecimento na corte de Carlos VII e sua morte, Joana conseguiu conquistar o coração e a imaginação de seus contemporâneos e se inscrever no panteão dos personagens que transcendem seu tempo e espaço.

Fazendo um breve levantamento é possível encontrar mais de setenta obras literárias nas quais Joana d’Arc é personagem, a lista se inicia no século XV e chega até o presente. Além da literatura, Joana foi retratada em cerca de treze produções cinematográficas, da emblemática atuação de Renée Falconetti, em “La passion de Jeanne d’Arc”, filmado em 1927 e dirigido por Carl Dreyer, até a superprodução dirigida por Luc Besson em 1999, “Jeanne d’Arc” a qual contou com a brilhante interpretação de Milla Jovovich que deu vida a uma Joana ingênua e perturbada por vozes. Afora o cinema e a literatura, a Donzela aparece em jogos de videogame e quadrinhos.

Joana foi uma jovem francesa cuja existência transita entre o mito e a realidade e cuja eternidade está garantida na memória e imaginação das pessoas. Não é de surpreender que tenha sido escolhida como objeto de pesquisa por Colette Beaune, uma especialista em História da França e em História das Mulheres.

Colette Beaune é professora emérita da Universidade de Paris X, especializada em história cultural, politica e social do final da Idade Média. Entre suas publicações estão Naissance de la nation France, 1985; a edição do texto do Journal d’un Bourgeois de Paris: de 1405 à 1449, 1989; e Jeanne d’Arc, 2004 (Joana d’Arc: uma biografia, Editora Globo, 2006). A obra foi caracterizada pelo Senado francês como própria para nutrir a reflexão cívica e rendeu à Colette Beaune o Prix du Sénat du Livre d’Histoire, em 2004. Joana d’Arc: uma biografia apresenta muito mais que a história de Joana, é, em referência aos termos utilizados por Beaune, “Joana além de Joana”.

Estamos acostumados com a Joana d’Arc do universo mítico, um personagem real que foi apropriado pela ficção e representado a partir do fantástico, do maravilhoso, do extraordinário. Colette Beaune retira Joana da névoa do fantástico e a insere em seu contexto. Assim, a heroína francesa é tratada como um personagem histórico e serve como fio condutor para discussões sobre guerra, política, cultura e sociedade na Idade Média.

Partindo dos processos de condenação, que sentenciou Joana à fogueira por heresia, em 1431, e de anulação, que a reabilitou em 1456, Beaune discute aspectos da vida de Joana. A investigação também utiliza outros documentos, tais como crônicas, cartas e demais informações relacionadas à Donzela.

O texto de Beaune apresenta Joana e problematiza as características de suas várias representações. Assim como qualquer indivíduo, Joana d’Arc é um personagem multifacetado e a escolha de quais elementos são evidenciados por aqueles que a retratam, nos informam tanto sobre Joana quanto sobre os que a representam.

Sua origem obscura, no vilarejo de Domrémy, por exemplo, pode ser entendida a partir da comparação com a vida de Cristo e, de forma mais genérica, com a trajetória dos heróis. O modelo de vida heroica é compartilhado por figuras como Cristo, Ulisses, Davi e serviu de base para a construção da imagem de Joana como heroína da França.

Sua juventude em Domrémy também é cheia de misticismo e fantasia, e colocam Joana como um ser único, mágico. Beaune, entretanto, apresenta as práticas de uma sociedade rural e as insere em um conjunto mais amplo. Bem como, expõe as formas como os processos de condenação e de reabilitação se utilizaram dos ritos e práticas populares para defender posições diametralmente opostas. Grande parte dos elementos que constituíram o argumento de sua condenação foram refutados e utilizados em sua defesa.

Não foram apenas os contemporâneos de Joana que disputaram sua imagem, historiadores do século XIX e XX apresentaram diferentes opiniões sobre Joana. Letrada ou iletrada? A heroína da França teria sido uma jovem iletrada, que recebia suas ordens através de vozes divinas ou teve acesso à educação em algum momento de sua curta vida?

As vozes de Joana não escapam da perscrutação de Beaune. Um dos elementos brilhantemente explorados pelo cinema e pela literatura, a questão da inspiração divina, é abordado por Colette a partir da tradição de profetisas que surgiam em tempos de crise, anunciando a palavra de Deus. A jovem donzela de Domrémy não foi a primeira nem a última, certamente, a levar revelações divinas aos homens.

Se por um lado, Joana foi mais uma das profetisas medievais, por outro lado, suas revelações e sua participação tiveram um caráter único e extraordinário: a capacidade de mobilizar e sensibilizar a população francesa, tão desgastada pela longa guerra contra a Inglaterra.

A participação de Joana no levante do cerco de Orléans juntamente com a sagração de Carlos VII em Reims foram os pontos máximos de sua participação no conflito. Mas que de forma se deu essa participação? Joana empunhou a espada, conduziu as tropas como chefe de guerra ou apenas levantou seu estandarte como símbolo e motivação aos combatentes? Colette Beaune não se limita a discutir o papel de Joana na Guerra dos Cem Anos, a questão enunciada é mais profunda e abrangente: a guerra pode ter um rosto de mulher?

E, essa mulher em específico, inserida em uma sociedade que estava agitada por complexas disputas políticas internas e externas, atuava de forma independente? Era motivada pelo testemunho dos sofrimentos dos franceses ao longo de uma guerra sem fim ou estava agindo de acordo com um alinhamento político forjado por relações familiares e alianças políticas?

Essas problematizações de Beaune tornam o livro, além de uma brilhante biografia, uma fonte de inspirações para a pesquisa sobre o período medieval. E, para além da Idade Média, instiga a curiosidade sobre as diversas apropriações que a imagem de Joana d’Arc sofreu ao longo do tempo.

Não é sem motivos que Joana se tornou um símbolo reivindicado por diversos grupos: a insuficiência de informações registradas nos impede de uma aproximação do personagem histórico, ao mesmo tempo permite que sua imagem seja montada e reconstruída das mais diversas formas.

Em Joana d’Arc: uma biografia Colette Beaune resgata essas múltiplas facetas da Donzela para apresentar a sociedade francesa, seus valores, seus anseios e preocupações; a guerra e a política que influenciaram e foram influenciadas por Joana; o martírio de uma jovem que coroou seu rei e foi reverenciada como heroína e, poucos anos depois, queimou na fogueira inglória, acusada de heresia.

O livro de Colette Beaune é uma obra fundamental para a compreensão de Joana d’Arc como personagem histórico e é extremamente relevante para o entendimento de vários aspectos da sociedade medieval. A linguagem de fácil compreensão é acompanhada por referências bibliográficas extremamente ricas, o que o torna uma aquisição fundamental para a biblioteca de pesquisadores e de não pesquisadores.

Paula dos Santos Flores – Mestranda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: [email protected]


BAUNE, Colette. Joana d’Arc: Uma Biografia. São Paulo: Globo, 2006. Resenha de: FLORES, Paula dos Santos Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.17, n.2, p. 159- 162, 2017. Acessar publicação original [DR]

Béla Guttmann: uma lenda do futebol no século XX | Detlev Claussen

Parte significativa da história do futebol foi construída sobre a trajetória de grandes técnicos: toda uma geração de torcedores brasileiros lembra, nostalgicamente, dos feitos de Telê Santana, que desenvolveu, para muitos, o futebol mais próximo da perfeição estética. 3 Sir Alex Ferguson, por outro lado, preocupado mais com a competitividade de suas equipes do que com a beleza do jogo, é o principal responsável por alçar o cambaleante Manchester United ao posto de marca mais importante do futebol globalizado (TWEEDALE, 2017). No entanto, capaz de produzir nas equipes que treinou um estilo de jogo tão bonito quanto competitivo, a relação entre a trajetória de Béla Guttmann e a história do esporte bretão é muito mais íntima do que a dos técnicos anteriormente citados. O húngaro colocou seu nome entre os grandes do esporte ao desenvolver um estilo ofensivo que influenciou diversos treinadores, mas só pôde se colocar em tal posição por estar em contato com diversas transformações sócio-políticas determinantes para o fenômeno do futebol como o conhecemos. Leia Mais

Brasil: uma biografia | Lilia Moritz Schwarcz

Brasil: uma biografia [1], obra escrita em conjunto pela historiadora Heloísa M. Starling [2] e pela antropóloga e historiadora Lilia M. Schwarcz [3], traz em si, como toda boa síntese propõe-se a fazer, um sentido outro para a história desse personagem conhecido pelo nome que vingou entre tantos outros, Brasil.

Com o auxílio de extensa bibliografia e documentos-chave para a compreensão de determinados acontecimentos e períodos que marcaram o desenrolar da história brasileira, as autoras optaram por uma narrativa na qual o Brasil aparece na categoria de personagem, dotado de interesses, vontades e dilemas. Sua história se inicia às vésperas da chegada dos europeus ao então chamado Novo Mundo, habitado pelos povos indígenas e coberto por uma exuberância tropical, até os idos de 1995, apesar das autoras concluírem com referências diretas aos governos Lula e Dilma e aos ocorridos de 2013, ano marcado por manifestações públicas em prol de maior amplitude dos direitos sociais e de uma política menos íntima da corrupção. Leia Mais

A Trajetória Política de Francisco Heráclito do Rego | Márcio Ananias Ferreira Vilela

Fruto da pesquisa para alcançar o grau de mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco, orientado pelo professor Dr. Antônio Torres Montenegro, Márcio Vilela nos apresenta um interessante trabalho, em escrita leve, sem o pedantismo que quase caracteriza as produções acadêmicas, a respeito de um dos últimos coronéis que atuaram e marcaram, durante bastante tempo, a vida social e política do Brasil e, com maior longevidade no Nordeste. O livro nos entregue dividido em seis partes, sendo as duas últimas dedicadas à bibliografia e aos anexos. A primeira parte, formada por dois capítulos encarregados de nos atualizar sobre as bases teóricas utilizadas na análise dos documentos e depoimentos recolhidos, mas, principalmente para nos oferecer uma recensão crítica dos estudos clássicos sobre o coronelismo no Brasil como os de Victor Nunes Leal [1] , Raymundo Faoro [2] , Maria Isaura de Queiroz [3] , mas detendo-se com maior cuidado nos casos de Pernambuco, Sergipe e Ceará, estudos por Marcos Venicios Vilaça/ Roberto Cavalcanti [4] , Iberê Dantas [5] , Maria Auxiliadora Lamenhe [6] , além de um estudo mais acurado sobre o Mandonismo, seguindo as trilhas abertas por José Murilo Carvalho.[7]

A segunda parte, composta de cinco capítulos dedica-se a desvelar o Mecanismo de construção de um líder político. Mas, quando lemos o escrito, vemos que nosso autor nos leva também ao processo de manutenção dessa liderança, que veio a esbarrar no processo modernizador da modernidade da qual ela é parte.

Francisco Heráclito do Rego, referendado popularmente como Chico Heráclito, foi uma força política que se firmou após os anos de 1930 na região Agreste de Pernambuco, na senda do Partido Social Democrático, fundado após a ditadura do Estado Novo, encabeçada por Getúlio Vargas e, em Pernambuco, capitaneada pelo sertanejo Agamenon Magalhães. Analfabeto, Francisco Heráclito soube usar as nuances da literatura, manejando a mão de Antônio Vilaça, pai de Marcos Venicios Vilaça [8], para comunicar-se com os alfabetizados e os analfabetos que viviam nas cidades e povoados que cresceram sob a sua proteção e cuidado.

Cinco capítulos formam a segunda parte deste estudo e eles estão voltados para nos auxiliar a entender como se forjou e se construiu uma liderança política, ora apelando para o encontro direto e pessoal com os agentes social, ora usando indisfarçadamente a produção literária, nos jornais, em boletins, em cordéis lidos e proclamados nas feiras livres da região e nas praças do Recife, onde também tinha eleitores que voltavam a cada eleição para sufragar aqueles indicados pelo Senhor das Varjadas. Márcio Vilela nos apresenta aspectos interessantes como a utilização do patriarca, João Heráclito do Rego, morto em 1934, que evitou uma participação politica ostensiva, cabendo essa atividade ao seu filho, que teria sido ungido, ainda no seio materno, (p 109ss) para liderar a família e a região. Aqui uma observação. Márcio Vilela, que nos recorda que a escolha do nome, Francisco, homenagem ao Santo de Assis, celebrado um dia antes do nascimento, a cinco de outubro – que há uma indicação de que ele nasceu para servir aos pobres.

Mas ainda há outro estranhamento, de que nos dias seguintes ao nascimento de Francisco Heráclito, seu pai já está a postos, no roçado e não obedecendo ao ritual de dedicar os dias seguintes ao nascimento do herdeiro em comemorações, o que, na região denomina-se „cachimbo‟. …quebrava uma tradição muito comum e de algumas regiões do Brasil serem os primeiros cinco dias após o nascimento de uma criança reservado às comemorações do ao acontecido. Na nota 32, nosso autor lembra que o cachimbo é uma bebida composta de cachaça, água e mel. Lembra ainda que esta bebida é apreciada após o nascimento. Aqui, creio que uma visita à tradição europeia que enaltece São Francisco de Assis e o esforço para colocar esse coronel na sua tradição, uma tradição de civilização, educação e própria da formação tradicional e culturalmente dominante, há outra preocupação: a de afastar o nascituro, futuro líder político da organização e modernização da cidade do Limoeiro das tradições indígenas.

Sabemos da prática da couvade entre nossos antepassados indígenas e, nela o repouso pós-parto era próprio para o pai da criança que, dessa forma, anunciava socialmente a paternidade social da criança. A bebida com mel é ofertada, ainda hoje nos cultos da Jurema Sagrada, religião de cunho e raízes profundamente brasileiras, mas que à época era praticada por poucos, e nas matas, distante dos olhares dos civilizados. Esses acontecimentos – o pai trabalhando no dia seguinte ao nascimento do filho e não utilização do cachimbo, é o esforço de afastar aquela família dos “caboclos do mato”, dos índios que naquele período eram conceituados bem negativamente. Assim São muitos os cuidados no processo de criação de um mito ou liderança.

A terceira parte do livro nos remete às práticas deste e de outros coronéis que atuaram no período da chamada Democracia Liberal, entre os anos de 1945 e 1964. São cinco capítulos, dois deles dedicados a analisar a situação econômica, social e política de Limoeiro e o lugar que o líder ocupa naquele momento da vida local e nacional e dois capítulos dedicados a compreender como agia este líder para manter seu prestígio e respeito social, as suas práticas diárias, o seu comportamento no período eleitoral e sua reação àqueles que não seguiram as suas ordenações e ordenamentos. E essa era uma situação nova, a prática democrática começava a por em dívida o poder de mando. É um período de ruptura com outros agentes da cúpula do PSD, e por isso é o início de um novo tempo, que não está na preocupação de Márcio Vilela, mas que ele tangencia, sem chamar a atenção necessária, que o processo de formação de novos coronéis, novos senhores dos votos que assimilam algumas práticas e introduzirão novas.

Nas eleições de 1954, pensando em sentar-se na cadeira presidencial, Etelvino Lins faz emergir a candidatura do General Cordeiro de Farias, em uma aliança que envolve o PSD, o PL, PRT, PSP e dissidentes udenistas. Dizia Etelvino que era uma chapa para unir Pernambuco, como lembrado por Cordeiro de Farias, em depoimento ao CPDOC, e provocou a divisão do PSD que apoio Neto Campelo, com outros partidos, entre eles o PST. Neste partido estava Miguel Arraes de Alencar que, mais tarde veio a ser eleito governador de Pernambuco apoiado por essa dissidência do PSD, uma aliança com os coronéis. Embora não fosse esse o objetivo da dissertação de Marcio Vilela, teria sido interessante uma nota de pé de página no sentido de apontar como as relações políticas e pessoais orientam os caminhos dos homens na história.

Notas

1. LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto: o município e o regime representativo no Brasil. Riod e Janeiro Nova Fronteira, 1997.

2. FAORO, Raymundo. Os donos do Poder. São Paulo: Globo, 2001.

3. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O Mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São Paulo: Alfa-Omega, 1976.

4. VILAÇA, Marcos Venicios; ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcanti de.

5. DANTAS, Iberê. Coronelismo e dominação. Aracaju: Universidade Federal de Sergipe, PROEX/CECAC/ PROGRAMA EDITORAL,1987.

6. LEMENHE, Maria Auxiliadora. Família Tradição e Poder: o (caso) dos coronéis. São Paulo, ANNALUBE/Edições, 1995. Coronel, coronéis: apogeu e declínio dos coronéis no Nordeste. Riod e Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

7. CARVALHO, José Murilo de. Pontos e Bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.

8. O poeta é hoje membro da Academia Brasileira de Letras.

Severino Vicente da Silva – Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente é professor associado do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: [email protected]


VILELA, Márcio Ananias Ferreira. A Trajetória Política de Francisco Heráclito do Rego. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2014. Resenha de: SILVA, Severino Vicente da. Um Coronel em revista. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.35, n.1, p.302-305, jan./jun. 2017. Acessar publicação original [DR]