Brutalidade jardim: a Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira | Christopher Dunn

Publicado em 2001, nos Estados Unidos, Brutalidade jardim: a Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira é fruto da descoberta da música tropicalista pelos norte-americanos na década de 1990. Partindo do seu encantamento pelas canções e da perspectiva dos estudos culturais, o brasilianista Christopher Dunn escreveu uma história da Tropicália a partir de um recorte temporal amplo, mesmo admitindo que o movimento tropicalista foi atuante somente entre os anos de 1967 e 1969. A cronologia proposta por Dunn para tratar da Tropicália tem início na Semana de Arte Moderna de 1922 e alonga-se até o ano 2000.

O título do livro destaca a ligação do movimento tropicalista com o modernismo; a expressão “brutalidade jardim” foi retirada de um romance de Oswald de Andrade, “padrinho literário e espiritual da Tropicália”, e utilizada na letra de Torquato Neto para a música “Geleia geral”. O autor utiliza a expressão para se referir, também, à realidade brasileira após o golpe militar, que exploraria a imagem do paraíso tropical – e as premissas ideológicas embutidos em seu uso – e a violência imposta pela ditadura. Jardim e brutalidade coexistem, então, em uma aproximação contraditória.

O movimento tropicalista ficou famoso por suas polêmicas, por sua presença nos festivais de canção, pelas vaias e por seus happenings. A maior controvérsia, talvez, girou em torno do uso da guitarra elétrica na música popular pelo grupo baiano e da reação da cultura engajada de esquerda, que criticava a Tropicália por se posicionar contra a cultura popular nacional. Com o intuito de reconstituir o contexto cultural da década de 1960, Christopher Dunn amplia seu recorte, estendendo-o até os anos 1920. Partindo das análises de Alfredo Bosi em relação ao modernismo, o autor traça duas importantes vertentes antagônicas no pensamento brasileiro oriundas da Semana de 1922 e que estariam envolvidas diretamente nas polêmicas em torno da música popular na segunda metade dos anos 1960. Nelas, Dunn se fixa nos três primeiros capítulos do livro, realizando sua análise sobre a evolução histórica da Tropicália. A dicotomia presente entre as duas orientações é trabalhada a partir da tensão entre o local e o cosmopolita no interior do pensamento brasileiro.

O primeiro capítulo explora principalmente o modernismo no Brasil, que se dividiria em duas vertentes principais. A primeira, “primitivista”, teria como referência a figura de Mário de Andrade e conferia ênfase à busca das manifestações populares da cultura, principalmente a rural, mais pura, pois a urbana era percebida como contaminada pelas modas internacionais. Segundo a perspectiva de Mario de Andrade, seria necessário valer-se dos elementos da cultura popular para criar uma música nacional distinta; para efetivação de tal projeto, a definição do que era e do que não era autenticamente brasileiro fazia-se mister, já que, para o escritor, a música estrangeira ou “universal” era “antinacional”. A outra vertente, a “futurista”, valorizaria a experimentação formal e tenderia a celebrar a tecnologia e o urbano; sua principal referência era Oswald de Andrade e seus manifestos, o da “Poesia Pau-Brasil” e o “Antropófago”. Este segundo defendia a devoração do elemento estrangeiro a fim de criar-se algo novo, autêntico, não simplesmente o acolhimento passivo, como um bom selvagem, da cultura metropolitana. Já o “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” clamava por uma “poesia de exportação”, ao mesmo tempo enraizada nas culturas populares locais e engajada nas tendências internacionais modernas, de forma que o Brasil passaria também a exportar e não somente consumir cultura. Para Dunn, essa “poesia de exportação” revelar-se-ia nas figuras de Carmen Miranda, da bossa-nova, dos poetas concretistas e, mais recentemente, da Tropicália. Em relação ao modernismo, o autor ressalta rapidamente, fora dessas duas vertentes, o lançamento, progressista para a época, de Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, e a difusão da ideia de “democracia racial” que se tornaria corrente mais tarde.

Do choque entre essas duas vertentes do pensamento cultural nasceria a famosa rivalidade entre os nacionalistas e os tropicalistas. Apesar desta contenda já ter sido amplamente explorada pela historiografia nacional, Christopher Dunn, ao situar o início de sua narrativa na década de 1920, deixa mais explícitas as raízes do conflito e amplia seu foco para outras questões que são exploradas mais à frente, como a temática racial. E se lembrarmos que o livro inicialmente foi escrito para o público norte-americano, essa abordagem adotada pelo autor adquire maior relevo.

No segundo capítulo, o autor aborda o contexto cultural da década de 1960 e o surgimento do momento tropicalista. Os desdobramentos do pensamento modernista “primitivista” teriam continuidade e esta vertente se tornaria hegemônica no interior da esquerda, nesse período, pautando-se na defesa de uma estética nacional-popular centrada na figura do povo enquanto conteúdo artístico e revolucionário. Dunn explora, como exemplos, a experiência dos Centros Populares de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), antes do golpe de 1964, e as bases da resistência cultural ao regime militar presentes nas peças de Augusto Boal e na música de protesto. O autor buscou evidenciar que a Tropicália surgiu na esteira de um processo de modernização do país, demonstrando que a base de formação do grupo baiano deu-se como fruto, de certa forma, da experiência arrojada da Universidade da Bahia sob a direção do reitor Edgard Santos, que visaria uma “desprovincialização cultural” do estado e investiria fortemente na área das ciências humanas e nas artes, promovendo a “avant-garde na Bahia”. Ainda nesse capítulo, é abordada a tese, proposta e defendida por Caetano Veloso, da retomada da “linha evolutiva da música popular brasileira”. Segundo o compositor, a música brasileira experimentara uma crescente evolução que teria sido interrompida, após a bossa-nova, pela estética nacional-popular que, devido aos seus purismos, não permitiria a continuidade dessa evolução, estando a MPB estagnada na segunda metade da década de 1960. Desta forma, a Tropicália visaria a retomada dessa “linha evolutiva” por meio da experimentação e da modernização da música brasileira.

No terceiro capítulo, denominado “Momento Tropicalista”, o autor ressalta que a Tropicália não se restringiu somente à música, seu foco principal, mas estimulou uma convergência de manifestações em diversas áreas artísticas, que possuíam afinidades estéticas e valorizavam a experimentação e que vinham se formando autonomamente até este momento de convergência, como o teatro Oficina, de José Celso Martinez Correia, e a montagem de “O Rei da Vela” (peça de Oswald de Andrade) e “Roda Viva” (de Chico Buarque); o cinema da Glauber Rocha, em “Terra em Transe” e “Câncer”; e nas artes plásticas, com as obras de Rubens Gerchman e Hélio Oiticica. Ao enfatizar esse movimento, o autor vai ao encontro das análises mais contemporâneas sobre a Tropicália; entretanto, ele restringe seu foco especificamente à música, privilegiando as figuras de Gilberto Gil, de Caetano Veloso, e, em menor grau, de Tom Zé. No mesmo capítulo, Dunn retoma o debate inaugurado por Roberto Schwarz sobre o caráter alegórico da arte tropicalista, que a avaliava de forma negativa, considerando-a como uma expressão artística da modernização conservadora do regime militar, pois, por ela, os arcaísmos e anacronismos eram apreendidos pela “luz branca do ultramoderno” e pelo uso da alegoria, sem avançar para uma resolução dialética dessas contradições históricas. Abstendo-se de criticar diretamente essa perspectiva, Dunn demonstra que apesar da alegoria estar presente em músicas emblemáticas, ela não era predominante nas composições tropicalistas. Haveria também a presença do pastiche que, diferentemente da alegoria – que pressupõe a crítica –, é uma colagem que permanece neutra. Assim, nem todas as canções que possuíam justaposições de elementos arcaicos e modernos tinham a intenção de denunciar a realidade brasileira; muitas vezes elas simplesmente expressariam estratagemas estéticos que afirmavam essa coexistência.

No capítulo quarto, o autor explora a radicalização da Tropicália que resultou na prisão e no exílio de Gilberto Gil e de Caetano Veloso. A “cruzada tropicalista” – que no primeiro momento seria caracterizada pela exploração de uma estética kitsch, valorizando o cafona e o “mau gosto” com o intuito de chocar e de satirizar os valores sociais e políticos retrógrados, assim como o “bom gosto” e a seriedade da MPB – teria incorporado, aos poucos, elementos da contracultura internacional que a levaria a uma crescente radicalização. As apresentações musicais dos tropicalistas, inicialmente mais contidas e ainda pautadas pela busca de reconhecimento, a exemplo das que integraram o Festival da Record de 1967, que levaram Gil e Caetano ao estrelato, se tornariam estrondosos happenings como a apresentação de “É Proibido Proibir” no Festival Internacional da Canção de 1968. Para o autor, nos últimos momentos do movimento, a arte tropicalista, inspirando-se nos movimentos internacionais da contracultura, buscava a afirmação da marginalidade e da negritude – como se podia perceber pela cada vez mais explícita influência de Jimi Hendrix e pelas vestimentas utilizadas por Gilberto Gil.

No quinto capítulo do livro, “Tropicália, contracultura e vínculos afrodiaspóricos”, é abordado um dos principais temas motivadores da pesquisa do autor sobre a Tropicália: a questão racial. Para Dunn, a grande importância do movimento deriva do fato de ele abordar temáticas afro-brasileiras em suas músicas e de apoiar grupos que valorizavam a negritude. Essa temática, raramente abordada nos estudos brasileiros sobre o tropicalismo ou a contracultura, compõe as preocupações que permeiam o campo de conhecimento em que o autor está inserido, no caso, os Cultural Studies norte-americanos. Em sua leitura, Dunn ressalta a contracultura como um ponto chave para a valorização da cultura e da identidade negra no país. Caetano e Gil, exilados em Londres, de 1969 até 1972, teriam entrado em contato com a música afro-caribenha, especialmente o reggae, com o rock and roll e com a cena contracultural da swinging London, movimentos que influenciariam de forma significativa a música de Gil. Na Bahia, o contato entre as práticas e os discursos da contracultura dos jovens da classe média com a juventude negra da classe baixa colaboraria para o surgimento e revitalização de grupos de música afro e para o crescimento do carnaval de Salvador. Nos grandes centros urbanos, da exploração comercial de ícones da música negra norte-americana surgiria, como o autor denominou, as “contraculturas afrobrasileiras”, como o movimento cultural Black Soul, inspiradas diretamente nos movimentos de consciência negra dos Estados Unidos, apropriando-se do seu estilo visual e musical. Nesse sentido, a juventude afro-brasileira teria passado a acolher produtos e ícones estrangeiros para contestar a inclinação nacionalista da brasilidade que, por meio da ideologia da “democracia racial”, tendia a minimizar a discriminação e a desigualdade racial e a exaltar a mestiçagem. Desta forma, em sintonia com os movimentos culturais afro-diaspóricos e da contracultura, teriam surgido diversos trabalhos dos remanescentes do tropicalismo que valorizavam a cultura negra, como, por exemplo, o álbum “Doces Bárbaros”, que reunia Gil, Caetano, Gal Costa e Maria Bethânia, e o disco “Refavela”, de Gilberto Gil.

O sexto e último capítulo é dedicado à herança tropicalista e sua redescoberta nos Estados Unidos. Dentre seus legados, o autor ressalta a contribuição para uma significativa dissolução das hierarquias culturais no Brasil, por meio da aproximação da cultura de massa e da arte erudita no interior de uma produção cultural híbrida. Christopher Dunn mostra também a recepção da música tropicalista pelos norte-americanos na década de 1990 e como essa “redescoberta” serviu de inspiração para vários artistas. Um fruto importante dessa nova onda tropicalista seria o “resgate” de Tom Zé, não somente de sua obra, mas do próprio artista, que, por sua persistência no experimentalismo musical, teria ficado, por muitos anos, relegado ao esquecimento, à margem da indústria da MPB, como uma espécie de “lado B” da Tropicália.

A grande contribuição do livro é lançar um novo olhar – um olhar que parte de um novo ponto de observação – sobre o movimento tropicalista. Para o músico David Byrne, conforme texto apresentado na contracapa do livro, essa obra pode ser vista como “uma janela que se abre para uma versão alternativa do próprio passado norte-americano”; fica claro, portanto, que o livro foi pensado a partir de preocupações diferentes das do público brasileiro. Para este, a obra apresenta um lado da história do tropicalismo que não costuma ser lembrado: a valorização e a construção da identidade afro-brasileira na segunda metade do século XX.


Resenhista

Leon Kaminski – Mestrando em História pela Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

DUNN, Christopher. Brutalidade jardim: a Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira. Trad. Cristina Yamagami. São Paulo: Unesp, 2009. Resenha de: KAMINSKI, Leon. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 12, n. 1, p. 245-250, 2012. Acessar publicação original [DR]

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