Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico – SCHWARTZ (VH)

SCHWARTZ, Stuart B. Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico. São Paulo/Bauru: Companhia das Letras/Edusc, 2009, 483 p.  SOUZA, Evergton Sales. Varia História. Belo Horizonte, v.25, no.42, Jul. /Dez. 2009.

Stuart Schwartz é, sem sombra de dúvida, um dos mais talentosos historiadores dedicados ao estudo da América Portuguesa na época moderna. Nos últimos anos, como sabemos, tem ampliado para o mundo espanhol o espaço de suas investigações. Neste importante livro, fruto de mais de dez anos de pesquisa, examina o problema da tolerância religiosa em todo o espaço ibero-americano. Seu objetivo é demonstrar a existência de um substrato de tolerância religiosa que não foi sufocado pelas condições hostis do meio católico ibero-americano. A tarefa toma uma forma algo surpreendente, ou contracorrente como diz o próprio autor, ao optar por investigar os indícios desses pensamentos e atitudes tolerantes não em filósofos e teólogos, mas, sobretudo, em homens comuns. Neste sentido, o estudo de Schwartz alinha-se àqueles que procuram demonstrar o papel determinante que homens e mulheres anônimos têm na história. Mesmo quando se trata de uma questão plena de implicações teológicas, que poderíamos julgar terreno de competência exclusiva de teólogos, nota-se que as pessoas simples não deixam de ter sua própria maneira de analisar as coisas. Esta massa de indivíduos não se constitui, portanto, em mera consumidora e reprodutora de ideias.

O livro encontra-se dividido em três partes – Dúvidas ibéricas, Liberdades americanas e Rumo ao tolerantismo – que seguem critérios geográficos e cronológicos. Na primeira parte, o autor se limita ao espaço da península Ibérica dos séculos XVI e XVII; na segunda, trata da América hispânica e lusitana do mesmo período; na última parte, trata do conjunto ibero-atlântico no século XVIII, enfatizando a época do reformismo ilustrado.

Na parte dedicada à península Ibérica, o autor explora as manifestações de tolerância inter-religiosa e inter-étnica. É sem dúvida um dos grandes aportes deste livro para um melhor conhecimento da realidade ibérica. Em países de inquisição, marcados pela intolerância religiosa, a pesquisa de Stuart Schwartz revela um aparente contra-senso: são numerosos os indivíduos que manifestam algum tipo de tolerância em relação aos que pertencem a credos religiosos diferentes. Evidentemente, como o próprio autor chama a atenção, isto não altera o quadro de intolerância institucional no mundo ibérico, mas modifica alguma coisa em nossa percepção acerca das sociedades espanhola e lusitana.

A busca das manifestações de tolerância segue na América o roteiro das populações locais e transplantadas. Daí o interesse do autor pelos índios, africanos e mestiços que compõem estas sociedades e que provocam nela a emergência de novos discursos tolerantes que, não raro, se mesclam aos pré-existentes. Nesta segunda parte do seu estudo, Schwartz faz questão de assumir de modo peremptório sua escolha pelo estudo das “ideias heterodoxas, da dissidência popular e das dúvidas” contestatórias das “ideias universalistas e potencialmente hegemônicas” (p.193). Sobre esta escolha farei adiante algumas observações.

A terceira e última parte é consagrada à engrenagem de um pensamento de tolerância – “tolerantista” – no mundo atlântico ibérico, espécie de ponto de chegada da tese sustentada por Schwartz. O autor procura demonstrar que a tolerância que se vai formando ao longo do século XVIII tem duas fontes principais. Uma mais vinculada aos meios intelectuais europeus que vinha se desenvolvendo desde os tempos de Spinoza e desemboca nos filósofos iluministas do século XVIII. A outra derivava de uma tradição popular de tolerância arraigada nas sociedades ibéricas e ibero-americanas, cuja existência procurou demonstrar nas duas primeiras partes da obra. Estas duas fontes se entreteceram para formar um discurso de tolerância religiosa que colocava em xeque as instituições tradicionais da vida social e política.

A edição é bem cuidada e as poucas gralhas não comprometem a boa compreensão do texto. A tradução para a língua portuguesa está, no geral, bem feita. Nota-se, contudo a presença de alguns problemas. A utilização dos termos “pelagismo” (p.66) e “semipelagista” (p.70) para se referir a pelagianismo e semipelagiano são exemplos disto.

A grande força e novidade do livro residem justamente em sua opção por encontrar nas pessoas comuns os traços de uma resistência tolerantista. Entretanto, esta belíssima pesquisa em nada perderia de sua riqueza caso o autor tivesse se permitido analisar com mais detalhe os traços do tolerantismo no discurso teológico erudito do mundo ibérico. Penso que tal investigação, acompanhada de um exame mais acurado acerca das decisões romanas sobre os temas relativos a estas questões, poderia fornecer ricos elementos para a compreensão acerca da circularidade das ideias nos espaços estudados. Tentarei oferecer um exemplo que deixe claro o meu ponto de vista a este respeito.

Entre os numerosos casos relatados no intuito de mostrar que era recorrente no mundo atlântico ibérico a ideia de que cada um podia se salvar em sua lei, o autor relata a história, ocorrida no Maranhão, em 1696, de um jovem noviço carmelita que sustentava não estarem os índios condenados por Deus em sua gentilidade. Nenhum argumento de doutos teólogos ou de seu mentor carmelita fora suficiente para demovê-lo de sua firme convicção (p.287). Seria muito bom se pudéssemos saber quais as bases da crença do jovem carmelita, mas nem sempre as informações contidas nos Cadernos do Promotor – documentação consultada por Schwartz neste caso – apresentam maiores detalhes. Entretanto, ao estender o campo de observação, como sugiro, é possível colocar o problema em nova chave. Neste caso, seria imperativo perguntar o que motivara o estranhamento diante da opinião do jovem carmelita? Esta questão faz sentido por sabermos que algumas expressões próximas a esse modo de pensar, além de relativamente comuns, contavam com a aprovação da própria Igreja. O jesuíta Simão de Vasconcelos, mencionado no depoimento de um penitenciado da Inquisição de Cartagena, certo Sebastião Damil e Sotomaior, como inspirador de sua maneira de pensar (caso relatado por Schwartz às p.309-312), é um autor importante para uma discussão acerca do assunto. Em suas Notícias curiosas e necessárias das coisas do Brasil (1663 e reimpressas em 1668, acompanhando a sua Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil), Simão de Vasconcelos, que também foi vice-reitor do colégio da Bahia, reitor do Colégio do Rio de Janeiro e provincial dos jesuítas entre 1655-58, sustentou, em relação aos índios, que “todos aqueles que nesta sua gentilidade vivessem, segundo a justa lei da razão, e ditame do bom e honesto, poderiam alcançar de Deus graça e salvar-se”.1 Isto parece mostrar que um jesuíta profundamente implicado no processo de missionação poderia compartilhar de uma visão mais otimista e tolerante em relação à possibilidade de salvação, sem que isto fosse um empecilho para que continuasse o seu fervoroso trabalho missionário entre os índios – ponto de vista que se distancia daquele apresentado pelo autor ao analisar a posição do padre Antônio Vieira (p.174). O argumento teológico do jesuíta funda-se principalmente nas Disputationes scholasticæ et morales de virtute fidei divina, de Juan de Lugo, e no Tractatus de fide, de Francisco Suarez. Sua posição guarda estreita relação com o princípio da ignorância invencível – referido no primeiro capítulo, p.68-70, do livro de Schwartz. Do princípio da ignorância invencível, Vasconcelos resvala para a defesa do que, mais tarde, seria conhecido como “pecado filosófico”, ao afirmar que os homicídios, adultérios, furtos e semelhantes ações cometidas por aqueles que ignoram a existência de Deus não são pecados mortais, nem seus autores são merecedores do inferno, pois como não conhecem a Deus não cometem injúria contra ele. Poderíamos pensar que a circulação de tais ideias estimulou alguns, religiosos e laicos, a adotarem tal percepção tolerantista – à época vista por seus adversários como um excesso laxista.

Já é hora de voltarmos ao jovem noviço carmelita do Maranhão. Algo deve ter ocorrido no campo teológico para que, pouco mais de trinta anos após a publicação da referida obra de Simão de Vasconcelos, sua ideia acerca da não condenação dos índios tenha parecido tão escandalosa aos seus superiores. E de fato ocorreu. Pelo Decreto do Santo Ofício de 24 de agosto de 1690, o papa Alexandre VIII, condenou a doutrina do pecado filosófico. Vez que a Santa Sé pronunciou-se sobre o assunto, é natural que toda opinião contrária seja entendida como heterodoxa.

Ao concentrar seus esforços no exame das manifestações de tolerância religiosa nos homens comuns, Schwartz optou por tratar os problemas teológicos norteadores das posições tolerantes e de suas condenações num único capítulo – o primeiro – no qual, após explicar o que são as tais proposiciones que constituem o conjunto fundamental de fontes para o seu estudo, empreende um esforço de contextualização acerca das disputas no campo das ideias teológicas e morais na Igreja católica moderna. Não obstante a qualidade desta contextualização, insistimos que uma análise comparativa mais detida entre algumas dessas proposiciones e as posições teológicas debatidas por teólogos católicos poderiam mostrar que certas opiniões tolerantes se encontravam no seio da própria Igreja e, mais do que isso, talvez tenham estimulado muito as construções soteriológicas das pessoas comuns. Neste sentido, fica exposta minha divergência em relação ao postulado de que “para alcançar os substratos da tolerância é preciso se aprofundar sob as histórias políticas oficiais e dos dogmas religiosos, que têm dominado o campo da historiografia, e examinar primariamente não o discurso letrado (geralmente controlado), nem a política de reis e governos, e sim os atos e palavras das pessoas que tentavam pensar por si mesmas” (p.365). Sem definir uma ordem de prioridades, talvez o melhor seja sempre estabelecer comparações entre os dois universos que poderíamos chamar, à falta de uma melhor conceituação, de erudito e popular.

Contudo, esta pequena observação feita por um historiador que confessa seu gosto pela história das ideias religiosas, em nada altera a percepção que tenho de estar diante de um grande livro de história, construído com o talento e o rigor metodológico que todos reconhecem em seu autor. Trata-se de leitura importante para todo aquele que quiser conhecer mais sobre a religião e a vida no mundo atlântico ibérico moderno.

1 Cf. VASCONCELLOS, Simão de. Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil e do que obraram seus filhos nesta parte do novo mundo…, Lisboa: A. J. Fernandes Lopes, 1865, v.I, p.CXVI.         [ Links ] Sobre Simão de Vasconcellos ver os dados biográficos apresentados por SANTOS, Zulmira C. Em busca do paraíso perdido: a Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil de Simão de Vasconcellos, S.J. In: Quando os frades faziam história. De Marcos de Lisboa a Simão de Vasconcellos. Porto: Centro Interuniversitário da História da Espiritualidade, 2001, p.145-153.         [ Links ]

Evergton Sales Souza – Professor Adjunto do Departamento e Programa de Pós-Graduação em História da UFBA, Rua Prof. Aristides Novis, 197. Federação. CEP: 40210-909. Salvador- Bahia, [email protected].

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