Caio Prado Jr. – Dissertações sobre a Revolução Brasileira | Raimundo Santos

Os debates sobre a questão agrária no Brasil têm se mantido constantes ao longo da história, principalmente nos momentos que marcam as principais revoluções brasileiras. Caio Prado Jr., um dos mais expressivos intelectuais do Partido Comunista Brasileiro (PCB), adotou essas revoluções como temática em textos de sua autoria escritos no período de 1930 a 1977, o que o aproximou consideravelmente das discussões sobre o mundo rural brasileiro.

Em homenagem ao centenário do nascimento deste publicista, comemorado no ano de 2007, Raimundo Santos publicou o livro Caio Prado Jr. – Dissertações sobre a Revolução Brasileira, em que reúne textos escritos por Caio Prado Júnior, dividindo-os em quatro partes: I) A Formação Social (textos de 1933 a 1945); II) A Revolução na Periferia (textos de 1947, 1954 e 1966); III) A Política Contemporânea (textos de 1956, 1962 e 1977) e IV) A Reforma do Mundo Rural (textos de 1960, 1963 e 1964).

Cumpre observar que o título da obra de Raimundo Santos traz a expressão “Revolução Brasileira” no singular. A leitura completa do livro nos faz perceber que o fundamento da coletânea dos textos caiopradianos nele presentes reside em mostrar que a revolução brasileira em questão abrange (principal mas não unicamente) o mundo rural e as reformas necessárias para a sua melhoria.

Apesar de sua vasta extensão territorial, nosso país nunca apresentou uma distribuição uniforme de terras, pois sempre primou por concentrar vastas propriedades nas mãos de poucas pessoas, daí a necessidade apontada por muitos políticos, dentre eles os do PCB, de reformar o mundo rural com o objetivo de amenizar esse antigo problema da concentração de terras. A coletânea de textos do comunista Caio Prado Jr., organizados por Raimundo Santos no livro aqui resenhado, traz como essencial o ponto de vista do historiador nascido em 1907 sobre a reforma agrária brasileira: não deve ser concretizada como mera divisão de terras, mas sim através de uma melhoria generalizada nas condições de trabalho no campo.

Para levar o leitor a entender com precisão o argumento caiopradiano da extensão dos direitos trabalhistas para o homem do campo como uma das principais medidas de reforma agrária, Raimundo Santos mergulha em uma retrospectiva da história do Brasil presente nos textos de Caio Prado Jr. escritos de 1933 a 1945 e que compõem a primeira parte do livro (A Formação Social). Nela, os textos escolhidos destacam as sesmarias como o marco inicial da divisão das terras no Brasil Colônia, o que alimentou a oposição clássica entre as grandes propriedades agrícolas, baseadas na exploração para o comércio exterior, e os escassos minifúndios, que não encontraram condições favoráveis para se desenvolverem na economia colonial. Em seu texto de 1933, Caio Prado Jr. aponta como causas da pouca expressividade das pequenas propriedades na história colonial, a limitação do mercado interno, a insegurança diante de ataques de indígenas e de sertanistas e a própria pressão dos latifundiários em ampliar seus domínios territoriais.

Ainda na primeira parte do livro, Raimundo Santos inclui, na coletânea de textos selecionados, alguns escritos por Caio Prado Jr. em 1945, na obra História Econômica do Brasil. Neles, este intelectual ressalta a importância do desenvolvimento da pequena propriedade na modernização da economia agrária no Brasil e reitera os entraves limitadores para a expansão deste tipo de propriedade em uma economia voltada exclusivamente para a exportação em larga escala de produtos tropicais de alto valor comercial baseada na mão-de-obra escrava e assalariada (que veio substituir posteriormente o trabalho dos cativos).

Ao definir a pequena propriedade nos textos de 1945, Caio Prado Jr. não se fixa necessariamente nas suas áreas, mas sim no caráter econômico e sobretudo social de sua exploração agrária, distinguindo-as das grandes propriedades por não apresentarem diferenças nítidas entre trabalhadores e proprietários, uma vez que é o seu dono, sua família e, quando muito, um reduzido número de auxiliares que realizam o trabalho na terra. O historiador considera as colônias agrícolas fundadas com a imigração estrangeira um marco propiciador do desenvolvimento dos minifúndios, cujo crescimento também foi estimulado pela formação de um mercado consumidor de gêneros alimentícios com o surgimento das grandes aglomerações urbanas e industriais.

Em síntese, Raimundo Santos, ao organizar os textos caiopradianos que compõem a primeira parte de seu livro, reconstitui cronologicamente os principais fatos que formam a história do Brasil, desde a ocupação e exploração da terra nos tempos coloniais, às disputas políticas da independência e do primeiro reinado, concluindo essa parte ao abordar as crises do café e o declínio da exportação de gêneros tropicais no período republicano. O eixo conector de todos esses fatos reside na já citada oposição entre grande e pequena propriedade, com a defesa caiopradiana desta última, apontada pelo comunista como uma maneira de a nação romper com o seu passado colonial, deixando de ser uma simples fornecedora dos mercados internacionais e se tornando um sistema organizado de produção e distribuição dos recursos do país para a satisfação das necessidades de sua população.

Intitulada “A Revolução na Periferia”, a segunda parte da obra de Raimundo Santos reúne três textos escritos por Caio Brado Jr. em 1947, 1954 e 1966, tendo como eixo condutor a necessidade de diferenciar a revolução brasileira das ocorridas nos países europeus e nos EUA. O texto de 1947, “Os fundamentos econômicos da Revolução Brasileira”, enfatiza a diferença entre a economia brasileira e o feudalismo europeu, por serem os alicerces daquela economia a grande propriedade monocultural, explorada em oposição à pequena organização camponesa, com a utilização de trabalho escravo indígena e africano, elementos estes atípicos no feudalismo.

Na parte final do texto de 1947, o historiador, ao sugerir que se aproveite do capitalismo aquilo que ele ainda pudesse oferecer de positivo nas condições do Brasil daquela época, abre espaço para o desenvolvimento da temática abordada pelo texto de 1954, “O sentido reestruturador da política econômica” , que consiste na formulação de uma base teórica que organizasse a economia brasileira não mais voltada para um mercado estranho, e sim para o consumo dos indivíduos engajados na sua produção, o que favoreceria a consolidação do mercado interno brasileiro. Ressaltando mais uma vez as diferenças entre um país periférico como o Brasil e as nações européias e norte-americana, Caio Prado Jr. lembra que nestes países a produção criou o mercado, ao contrário do que vinha sucedendo no Brasil desde os tempos colonização, em que o mercado, por ser externo, sempre independeu da produção.

O terceiro texto escolhido na composição da segunda parte do livro Caio Prado Jr. – Dissertações sobre a Revolução Brasileira é um tópico extraído do capítulo II da obra A Revolução Brasileira, publicado por Caio Prado Jr. em 1966. O organizador da coletânea aqui resenhada o intitulou “A Revolução Agrária Não-Camponesa”, e seu conteúdo pode ser considerado um dos pontos mais relevantes da intenção de Raimundo Santos em distinguir as revoluções européias (camponesas) da brasileira (não-camponesa). Nesse texto, ao descrever o feudalismo na Rússia, Caio Prado Jr. explica como se deu a reforma agrária na Europa, que consistiu na transformação do latifúndio feudal em exploração capitalista e a substituição do senhor feudal pelo camponês capitalista, com a abolição dos direitos e privilégios daqueles senhores. Contexto muito diferente do encontrado no Brasil, onde a grande propriedade rural possui uma origem histórica distinta, por ser baseada na exploração comercial em larga escala. Além disso, de acordo com Caio Prado Jr., nessa grande propriedade rural o trabalhador livre se encontra em condições semelhantes ao seu antecessor escravo, por ser força de trabalho a serviço do proprietário, o verdadeiro e único ocupante da terra.

Esse texto de Caio Prado Jr. atribui a tentativa de aproximar historicamente os contextos agrários europeu e brasileiro a uma errônea interpretação teórica, que conduz a uma desorientação na prática, uma vez que muitos políticos vêem na distribuição mais igualitária das terras a solução para o emblema agrário no Brasil, quando, na verdade, tal solução estaria na obtenção de melhores condições de trabalho e emprego, temática principal dos textos que constituem a quarta e última parte do livro de Raimundo Santos.

Mas, antes de desenvolver esta parte, o organizador da coletânea apresenta, no terceiro momento de sua obra, textos caiopradianos escritos em 1956, 1962 e 1977, que traçam um perfil do cenário político brasileiro destas épocas. O adjetivo “contemporânea” presente no título “A Política Contemporânea” evidencia que o período englobado nesta parte da obra de Raimundo Santos traz vivências e análises caiopradianas a respeito de um momento que era tempo presente para este historiador. Porém, para nós, leitores da coletânea de Raimundo Santos, o período retratado constitui um dos momentos passados mais significativos para a sociedade brasileira, que foi o período da ditadura militar.

Os textos selecionados nesta terceira parte traçam a cronologia política dos anos 1950 a 1970, iniciando com uma postura otimista, mas crítica, da parte de Caio Prado Jr. diante da diplomação do então presidente Juscelino Kubitschek. As críticas ficam por conta da posição convencional deste presidente no que dizia respeito às questões rurais, uma vez que, segundo o autor deste texto de 1956, JK conhecia pouco o problema agrário brasileiro, sendo insuficientes suas medidas de reforma agrária. Os textos de 1956 também condenavam a postura aquiescente do governo brasileiro em relação ao imperialismo norte-americano e a falta de coesão ideológica por parte dos partidos políticos e do próprio povo, avaliado como politicamente desorganizado e mal esclarecido.

Sabe-se que Caio Prado Jr., apesar de sua disciplinada atuação como comunista, discordou do PCB em alguns momentos cruciais, transformando-se em um militante “estranho”, um verdadeiro outsider dentro do Partido. Exemplos desse distanciamento crítico podem ser observados no texto de 1962, “Perspectivas da Política Progressista e Popular Brasileira”, em que o intelectual critica o desinteresse dos políticos, dentre eles os comunistas, diante de alguns projetos imperialistas:

A incompreensão da generalidade dos dirigentes populares neste assunto é tamanha que quando uma questão concreta e do mais largo alcance na luta contra o imperialismo, como foi o caso do projeto de lei relativo à remessa de lucros e disciplinamento do capital estrangeiro, aqueles dirigentes e, o que é mais de admirar, os comunistas também, se mostraram incapazes, e até mesmo desinteressados em levar o debate ao povo e procurar esclarecê-lo (p.217).

Por fim, no último texto desta terceira parte da obra de Raimundo Santos, “Perspectiva em 1977”, Caio Prado Jr., passados já treze anos do início da ditadura militar, realiza uma retrospectiva do golpe de 1964, criticando o que chamava de “capitalismo burocrático”, união estreita entre o usufruto do lucro e o poder público e administrativo, concretizada através do crescimento das empresas estatais, estas financiadas pelo erário público, mas atendendo essencialmente a interesses privados. No texto de 1977, o seu autor avalia, ainda, o distanciamento das Forças Armadas dos setores civis, após a deposição do governo de João Goulart, que se revelou com o emudecimento das reivindicações trabalhistas e das forças populares e com a manutenção de políticas voltadas para os interesses imperialistas e burgueses.

A quarta parte de Caio Prado Jr. – Dissertações sobre a Revolução Brasileira configura-se como uma culminância das partes anteriores. Os textos escolhidos para compô-la foram escritos por Caio Prado Jr. em 1960, 1963 e 1964, refletindo as preocupações e ponderações deste autor sobre o problema agrário brasileiro, que vinha se tornando cada vez mais intensamente discutido no cenário político brasileiro desde a década de 1950. Intitulada “A Reforma do Mundo Rural”, os textos caiopradianos apresentam sugestões deste intelectual para melhorar as condições do meio rural brasileiro, ponto considerado, conforme citado no início desta resenha, fundamental nesta obra de Raimundo Santos.

Mergulhando na quarta parte desta obra, o leitor percebe que os textos apresentados nas três etapas anteriores funcionam como uma preparação para o grand finale. Entende-se, então, a lógica de Raimundo Santos ao ordenar os textos selecionados. Primeiramente, este autor apresenta a visão histórica de Caio Prado Jr. sobre a formação da grande propriedade no Brasil e as dificuldades que esse tipo de divisão fundiária tem trazido para o contexto social, econômico e político brasileiro. Em seguida, Raimundo Santos mostra a necessidade que Caio Prado Jr. via na realização de uma revolução brasileira em moldes diferentes dos países desenvolvidos, por ser o Brasil uma nação periférica. Sendo assim, o emblema da grande propriedade teria solução atrelada a uma mudança nos padrões de produção e consumo, que não deveriam mais ser voltados predominantemente para o mercado externo, objetivo este central da economia dos grandes latifúndios. Por fim, o autor de Caio Prado Jr. – Dissertações sobre a Revolução Brasileira realiza um apanhado geral do contexto político do pré-1964, época em que o tema agrário encontrou um terreno ideológico mais favorável e fértil para ser discutido.

É isso então que Caio Prado Jr. faz nos textos apresentados nessa quarta parte do livro de Raimundo Santos: discute o antagonismo histórico entre a minoria de grandes proprietários e a massa trabalhadora no campo. Algumas das soluções propostas no primeiro texto (1960) foram a tributação das terras e o combate à especulação das mesmas. Mas é no texto sobre o Estatuto do Trabalhador Rural (1963) que Caio Prado Jr. aponta a inviabilidade de retalhar as grandes propriedades (principalmente as produtivas) como medida de reforma agrária, justificando que essa subdivisão desorganizaria a produção e, ao comprometer os lucros, acabaria não sendo benéfica nem para proprietários nem para trabalhadores. Mais uma vez, o intelectual aponta a aplicação da legislação rural trabalhista, subestimada pela reforma agrária proposta pelos políticos, como uma maneira de dinamizar a economia rural.

Para tal, cita como exemplo, no terceiro texto (1964), as políticas de melhoria salarial dos trabalhadores de cana pernambucanos, cujos desdobramentos foram o incremento nas vendas do comércio local; o incentivo às atividades produtivas, principalmente na indústria; a concentração da lavoura canavieira em áreas mais favoráveis para o plantio e conseqüente liberação das demais áreas para outros cultivos, o que estimularia o parcelamento das grandes propriedades.

Mais uma vez, os textos selecionados nesta quarta parte do livro de Raimundo Santos mostram críticas de Caio Prado Jr. ao Partido Comunista, sendo uma delas a indiferença deste Partido quanto à tramitação do Estatuto do Trabalhador Rural, uma vez que não só os comunistas, como também os políticos brasileiros em geral, se encontravam mais preocupados com a o fracionamento das grandes propriedades e menos com a aplicação da legislação social-trabalhista no campo.

Em nota prévia no início de Caio Prado Jr. – Dissertações sobre a Revolução Brasileira, Raimundo Santos relata a importância do recurso marxista da abrangência disciplinar na investigação sobre a contemporaneidade brasileira. Considerado pelo próprio Raimundo Santos como o principal clássico do marxismo brasileiro, Caio Prado Jr. buscou, na fusão entre história, economia, geografia e sociologia, a construção de uma teoria revolucionária de interpretação do Brasil sob várias dimensões, sendo uma delas, certamente das mais reconhecidas, a dissertação agrária.

Foi, então, objetivo desta resenha, mostrar o enfoque dado por Raimundo Santos à abrangência e relevância do tema agrário nas dissertações de Caio Prado Jr. sobre a Revolução Brasileira, lembrando sempre que, na matemática da maneira caiopradiana interdisciplinar de pensar a reforma agrária brasileira, dividir e multiplicar constituem operações fundamentais, desde que o divisor da primeira sejam as terras e o multiplicador da segunda sejam os direitos trabalhistas, bandeira esta levantada por Caio Prado Jr. em seu projeto de renovação do mundo rural brasileiro.


Resenhista

Ana Lúcia da Costa Silveira – Doutoranda do curso de pós-graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da UFRRJ. Mestre em Educação pela Universidade Católica de Petrópolis.


Referências desta Resenha

SANTOS, Raimundo (Org.). Caio Prado Jr. – Dissertações sobre a Revolução Brasileira. São Paulo: Brasiliense; Fundação Astrojildo Pereira, 2007. Resenha de: SILVEIRA, Ana Lúcia da Costa. Revista de Economia política e História Econômica. São Paulo, ano 04, n. 10, especial, p. 116-123, dezembro, 2007. Acessar publicação original [DR]

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