Canção popular brasileira e ensino de história: palavras, sons e tantos sentidos | Miriam Hermeto

Cena absolutamente corriqueira nas escolas do país é a presença de estudantes com fones de ouvido conectados a celulares ou aparelhos de MP4, “curtindo” música nos corredores e pátios das escolas, nos intervalos entre as aulas e nos momentos de recreio. Com certa frequência, até mesmo na sala de aula os professores são obrigados a chamar a atenção de adolescentes que não conseguem parar de ouvir os mais diversos tipos de música. Situação que denota o vínculo estreito que os adolescentes mantêm, cotidianamente, com a música. Por isso, as escolas e os professores são desafiados a lidar com este hábito dos estudantes, utilizando-o criativamente para favorecer relações de ensino-aprendizagem.

Mas, para que isso aconteça, os professores precisam construir abordagens inovadoras para introduzir, nas suas aulas, a música como fonte e objeto de pesquisa. Algo, aliás, que dificilmente constitui preocupação discernível nos processos de formação inicial dos docentes brasileiros. Em boa hora, portanto, vem a público o livro de Miriam Hermeto, Canção popular brasileira e ensino de história, exatamente porque ele constitui ferramenta destinada à formação continuada de docentes no campo das relações entre música e educação histórica. A autora, por meio de linguagem clara e objetiva, desafia os professores a trazerem para suas aulas a rica tradição do cancioneiro popular brasileiro, desenvolvendo projetos de educação sentimental e política dos estudantes com base na valorização da escuta, na fruição da experiência cultural forte que é a audição – tanto individual quanto coletiva – de canções. Mais especificamente, a autora convida a “refletir sobre as possibilidades de uso da c,anção popular brasileira como instrumento didático nas práticas de ensino de História.” (HERMETO, 2012, p. 13)

Miriam Hermeto, além de assumir, inteira e acertadamente, o pressuposto de que a canção possui historicidade, insiste em alertar os professores para o reducionismo presente nas práticas convencionais de uso da música nas escolas, que a concebem como simples recurso de “ilustração” de épocas históricas e se limitam a analisar as letras, descartando tudo mais que integra a linguagem musical e a prática musical. Ao contrário, ela preconiza a adoção de “uma abordagem pedagógica que considere a complexidade da canção popular brasileira como fato social.” (HERMETO, 2012, p. 14) Escolha que é exigente com o professor, uma vez que requer dele certas atitudes. Conforme as palavras da autora:

É preciso que o profissional que se dispõe a operar com essa gramática específica conheça o contexto de produção e/ou circulação da canção (ou do gênero) com que trabalhará. Mas, além disso, é importante que tenha disponibilidade para buscar conhecer as características essenciais da linguagem musical e analisar o universo das canções que pretende explorar. (HERMETO, 2012, p. 15)

Ora, o que a autora bem aponta é a necessidade de o professor ampliar e aprimorar sua percepção musical e, é claro, explorar as possibilidades de trabalho interdisciplinar ao lidar com a música, seja como “documento”, seja como “objeto de pesquisa”. Razão pela qual, ao longo de todo o livro, aparecem propostas de exercícios que visam refinar a compreensão dos códigos básicos da linguagem musical e que constituem uma das boas novidades da obra.

A estrutura do livro, cuja leitura proveitosa requer, simultaneamente, a audição de muitas e variadas canções – a autora indica, para isso, o concurso do site Youtube – apresenta três partes, além de pequena introdução. A introdução, que recebe o título “A canção popular brasileira”, aborda duas questões principais. Uma delas é a breve caracterização dos conceitos de “história-problema” e de “documento”, de modo a esclarecer aos professores-leitores o que significa tomar a canção popular como “fonte histórica” e como “objeto de pesquisas”. Para a autora, somente na perspectiva da “história-problema” pode-se superar o uso meramente ilustrativo da canção nas aulas de História. A outra questão é a definição de canção popular, a partir da qual se delineia o próprio escopo do livro. Conforme Miriam Hermeto, a canção popular é:

Uma narrativa que se desenvolve num interregno temporal relativamente curto (em média, de dois a quatro minutos), que constrói e veicula representações sociais, a partir da combinação entre melodia e texto (em termos mais técnicos, melodia, harmonia, ritmo e texto). Produzida em tempos de indústria fonográfica – no seio dela ou em relação com ela, ainda que marginal –, circula majoritariamente por meio de registros sonoros, sendo através dos meios de comunicação de massa (rádio, TV e mídias digitais, por exemplo). (HERMETO, 2012, p. 32)

Esta definição da canção popular brasileira, como a autora mesma afirma, implica em eleger determinados produtos culturais do século XX, que se referem à história contemporânea ou à história do tempo presente, direta ou indiretamente. Ela fez sua escolha e, o que é positivo, tornou-a bastante explícita, procurando justifica-la em função da hegemonia arrebatadora da canção no decurso do século XX brasileiro.

Escolha que tem seu custo. Ficam de fora do livro as músicas e as práticas musicais do período colonial e do século XIX: os lundus, as modinhas, as músicas religiosas, a música da Corte, as cantigas de trabalho, as chamadas “músicas de raiz” ainda tão presentes em regiões do país, a exemplo das áreas agrícolas e mineradoras de Minas Gerais. Exclusão cujo preço é o fortalecimento indireto daquela armadilha dos tempos atuais identificada por Eric Hobsbawm, a que se refere a autora: os jovens estudantes de hoje tendem a viver em um “presente contínuo”.

A primeira parte, intitulada “O circuito de comunicações: da produção ao consumo”, trata da canção popular brasileira como “fato social”, discutindo os diferentes sujeitos que participam da produção e da circulação (distribuição, comercialização e apropriação) da música e as práticas de fruição musical.2 Lançando mão de extensa e atualizada bibliografia, a autora examina os “cancionistas” (os compositores) e os “performers” (arranjadores, instrumentistas e cantores), seus lugares e papéis na produção musical. Também analisa a trajetória da indústria fonográfica e dos meios de comunicação de massa na construção do circuito de comunicações da canção, bem como a atuação de produtores e críticos musicais, que são mediadores entre os sujeitos que produzem as canções e os públicos que as consomem. Dessa forma, os professores-leitores são instigados a pensar sobre a complexidade da produção e do consumo de música no Brasil contemporâneo, tendo sua atenção despertada para as múltiplas e contraditórias formas de apropriação (usos e interpretações) das canções pelos sujeitos sociais. O objetivo é que se apreenda a canção como produto artístico e industrial, cultural e comercial.

Na segunda parte – “Trajetória histórica da canção popular brasileira” –, Miriam Hermeto coloca os professores-leitores em contato com a historiografia relativa à música popular, com o objetivo de mostrar porque a canção popular é tão original e hegemônica no cenário cultural brasileiro do século XX. As principais intenções desta parte da obra são: a) esclarecer as mudanças e permanências na canção popular, do início do século XX aos dias atuais; b) mostrar a diversidade e as características centrais dos gêneros musicais existentes no Brasil (samba, samba-canção, bossa-nova, MPB, Jovem Guarda, Tropicalismo, Canção romântica, Canção brega, Rock, Rap e Funk nacionais etc.). Nomes destacados de cada um desses gêneros são apresentados, assim como os diálogos entre eles – controversos, tensos, não-lineares.

Na terceira parte, intitulada “A canção popular brasileira e o ensino de história”, a autora avança uma proposta de abordagem pedagógica da canção no Ensino Médio. Abordagem afinada com a ideia de “história-problema”, ao mesmo tempo ousada e exequível no contexto da escola de Ensino Médio brasileira. Uma proposta que procura trabalhar com as diversas dimensões da canção, entendida como documento, assentada na ideia de sequência de ensino. 3 Essa proposta, que configura uma estratégia de leitura e escrita da narrativa histórica, é apresentada por meio de três exemplos: uma sequência de ensino que aborda as representações do Nordeste em Luiz Gonzaga; outra sequência de ensino sobre a censura às diversões públicas durante a Ditadura Militar (em torno de “Calabar”, de Chico Buarque e Ruy Guerra); e a sequência de ensino sobre trabalho e tecnologias da informação, centrada em canções de Gilberto Gil. No desenvolvimento de cada uma dessas sequências, a autora propõe atividades, cuja execução exige lidar com diversos tipos de documentos, sempre enfatizando a relação dialógica entre estudantes e professores. No final, o livro traz relação de filmes, documentários vídeos e sites sobre música popular brasileira, algo de inegável utilidade para os professores.

O trabalho de Miriam Hermeto, leitura altamente recomendável para professores do Ensino Médio, faz muito bem a mediação entre o conhecimento produzido na Universidade e as práticas educacionais da Educação Básica. É contribuição importante para a formação continuada de professores e para a melhoria da qualidade da educação histórica oferecida aos adolescentes brasileiros.

Todavia, a ênfase da autora na abordagem das representações sociais presentes na canção popular termina por reafirmar certo tratamento instrumental da música pela escola, relegando a plano secundário dimensões estéticas das canções, tais como: a evolução melódica, rítmica e harmônica dos gêneros musicais, os diálogos e influências recíprocas entre eles, as interações da música popular com outras artes etc. Tanto que não há sequência de ensino voltada para abordar essas dimensões internas, por assim dizer, da história da música brasileira. Um exemplo seria o debate em torno da peculiar presença da síncope na música brasileira, que, ao ver de estudiosos como Mário de Andrade, responderia pela originalidade de nossa música diante da música europeia. É preciso ter em mente que a escola pode e deve formar apreciadores mais refinados de música, para o que concorrerá não apenas a educação histórica, mas também a educação artística em sentido lato.

Nesse sentido, há que depositar esperança nos efeitos positivos que advirão, em futuro que se deseja próximo, da Lei Federal n. 11.769/2008, que tornou obrigatório o ensino de música na educação básica. A presença de educadores musicais nas escolas, que trabalhem em conjunto com os professores de História, de Artes e de Português/Literatura, resultará na possibilidade de trabalhos cada vez mais ricos com a música popular, aposta que também se pode ler no livro de Miriam Hermeto.

Notas

2 A autora se inspira nos conceitos e abordagens empregados por Robert Darnton e Roger Chartier nos estudos sobre história do livro e da leitura.

3 A autora emprega o conceito de “sequência de ensino” de Aguiar Jr., entendida como “um conjunto organizado e coerente de atividades abrangendo um certo número de aulas, com conteúdos relacionados entre si”. AGUIAR JR., Orlando. O planejamento de ensino. Projeto de Desenvolvimento Profissional de Educadores, Módulo II. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais, 2005, p. 24.


Resenhista

Júnia Maria Lope – Pedagoga formada pela Faculdade de Filosofia e Letras de Diamantina, com especialização em Supervisão Educacional pela PUC-MG. Coordenadora pedagógica do Ensino Médio do Colégio Sagrado Coração de Jesus, Alfenas, MG.


Referências desta Resenha

HERMETO, Miriam. Canção popular brasileira e ensino de história: palavras, sons e tantos sentidos. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. (Col. Práticas Docentes, 2). Resenha de: LOPE, Júnia Maria. Cultura Histórica & patrimônio, v.1, n. 1, p.168-172, 2012. Acessar publicação original [DR]

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