Carnaval-ritual: Carlos Vergara e Cacique de Ramos | Maurício Barros de Castro

Com Carnaval-ritual: Carlos Vergara e Cacique de Ramos, Maurício Barros de Castro dá sequência à sua já extensa produção bibliográfica. Professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), ele destaca-se por sua formação interdisciplinar: graduado em Comunicação Social, realizou mestrado em Memória Social na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e doutorado em História na Universidade de São Paulo (USP), tendo trajetória na pós-graduação vinculada a orientação de José Carlos Sebe Bom Meihy, um dos autores clássicos da História Oral no Brasil e de suas relações com a memória social.

 Carnaval-ritual, em particular dialoga com vários livros escritos e organizados pelo autor na década de 2010, como Mestre João Grande: na roda do mundo1 , Estácio: vidas e obras2 , Zicartola: política e samba na casa de Cartola e Dona Zica3 , Relações raciais e políticas de patrimônio4, Gilberto Gil: Refavela5 e Arte e cultura: ensaios6, sem falar de sua participação no grupo responsável por Nos quintais do samba da Grande Madureira: memória, história e imagens de ontem e hoje.7 Em comum, esses trabalhos mapeiam as sociabilidades urbanas do Rio de Janeiro e do Brasil, os cruzamentos entre cultura popular e erudita, e as expressões artísticas, religiosas e musicais afro-brasileiras. A maior parte deles vincula-se, direta e indiretamente, ao projeto Museu Afro-digital8, que valoriza e divulga o patrimônio cultural da diáspora negra no Brasil e nas Américas.

O foco de Carnaval-ritual é a linguagem fotográfica de Carlos Vergara na representação do bloco carnavalesco Cacique de Ramos (CR) nos anos 1970. Nele, três tempos sociais se articulam: a formação de Vergara na arte contemporânea das décadas de 1960 e 1970 e seus diálogos com Hélio Oiticica e a resistência artística à ditadura militar; as práticas do CR no subúrbio carioca e as concepções antropológicas sobre o carnaval; e a trajetória das exposições e linguagem fotográfica da série Carnaval entre a Ex-posição (1972), no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM), e a 40ª Bienal de Veneza (1980).

Elaborado tendo em vista o rigor a acadêmico e o público amplo, o livro se divide em 8 capítulos curtos, sendo os dois primeiros dedicados a apresentar ao leitor quem são os atores centrais da obra. No primeiro, “Um olhar para fora”, evidencia-se a ligação de Carlos Vergara com o Instituto Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro e seus vínculos com o grupo Nova Figuração. Defendia-se, então, um “realismo crítico” que se distanciava do concretismo, pelo interesse na figuração, mas não se confundia com a pop-arte. E, ao olhar a cultura popular como mote para a crítica social, distinguia-se das outras propostas de arte engajada estimuladas pelo Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes. O artista foi influenciado pelas vanguardas da arte contemporânea que discutiam o “engajamento” na realidade brasileira e que se mobilizaram nas exposições Opinião 65, Opinião 66 e Nova Objetividade Brasileira (1967) acolhidas no MAM-Rio.

No segundo capítulo, “Dos 7000 componentes eu sou 1”, o autor analisa criação do CR em 1961, a partir do subúrbio carioca de Ramos, que congregou heranças familiares afro-religiosas e o samba, e de sua diferenciação em relação à estrutura das escolas de samba (marcadas pela disciplina e hierarquia). A rivalidade com o bloco Bafo da Onça nos desfiles do centro do Rio de Janeiro, a cultura urbana e os símbolos inventados pelo grupo e o sucesso de marchinhas criadas pelo CR são enfatizados. Ressaltam-se ainda os contatos de Carlos Vergara com o bloco: iniciados em 1970, eles provocaram um deslocamento das práticas e representações do CR no subúrbio e no carnaval carioca para o circuito das artes visuais, num trânsito entre Rio de Janeiro, Nova York e Veneza.

Nos cinco capítulos que seguem, Maurício Barros de Castro se ocupa da trajetória de Carlos Vergara e seu trabalho fotográfico para pôr em relevo o carnaval carioca com base nas práticas do CR. No capítulo 3, “Ex-posição”, o autor enfoca a mostra coletiva organizada por Vergara em 3 de agosto de 1972 no MAM-Rio. Pela primeira vez suas fotografias do CR e do carnaval carioca foram expostas, juntamente com trabalhos de Hélio Oiticica, Caetano Veloso, Waly Salomão, Chacal e Ivan Cardoso. A mostra, por sinal, foi fechada pela polícia política no auge da ditadura militar, quando estava em vigor o Ato Institucional nº 5. Já no capítulo 4, “Um Rap em Nova York”, explora-se a correspondência e interlocução entre Carlos Vergara e Hélio Oiticica, que permaneceu em “exílio”/“êxodo” entre Londres e Nova York entre 1970 e 1977. A obra inconclusa Rap in progress, de Oiticica, e as semelhanças entre o conceito de “parangolé” e as performances e as fantasias (“índio de napa”) do CR são também abordadas. Disso decorre a percepção de que, num processo de retroalimentação, de um lado, a linguagem fotográfica de Vergara sobre o carnaval incorporou elementos da discussão estética dos “parangolés”, na medida em que as imagens mostravam como a fantasia de napa e silk-screen do bloco carnavalesco se produzia de maneira interativa com o público e suas performances corporais, ressemantizando o objeto artístico dentro da cultura popular; e, de outro, a própria criação de Hélio Oiticica, no caso dos “parangolés” nos anos 1970, se nutriu de trocas com as fotografias e observações feitas por Vergara.

Nos capítulos 5 e 6, respectivamente “Caciques e caramujos” e “O Cacique na Malasartes”, Barros de Castro sublinha a intersecção entre Vergara e os antropólogos Eduardo Viveiros de Castro, Roberto DaMatta, Gilberto Velho e Victor Turner. Os conceitos de máscara, de dialética de individualização e desindividualização nas sociedades modernas e tradicionais, do carnaval como ritual de passagem e inversão das hierarquias fazem parte da aproximação entre o ateliê do fotógrafo e os intelectuais que fundaram a primeira pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional em 1968. A centralidade da obra Carnavais, malandros e heróis9, de Roberto DaMatta, e do trabalho de Eduardo Viveiros de Castro é aí explorada a contento.

Essa interlocução contribuiu, sem dúvida, para a afirmação do estatuto da fotografia de Vergara no âmbito das artes distinta das práticas etnográficas e da Antropologia visual. Vergara passou a elaborar observações de campo e revelava um interesse etnográfico pelo CR, a partir da montagem de imagens que expressavam valores e conceitos antropológicos; assim, lhe interessava menos o efeito documental da fotografia e mais a composição de truncagens, intervenções e recortes/enquadramentos que dialogassem com a antropologia do carnaval. As imagens do ritual de ataque do CR, variações de tipos sociais e símbolos no bloco, as representações da cidade invertida no desfile da Central do Brasil e as montagens que truncavam as fantasias dos participantes do CR com os caramujos são exemplos dessas composições na linguagem fotográfica de Vergara. Tais diálogos se explicitariam entre 1973 e 1978, como na realização de reportagem para a revista Malasartes, em 1976, e na sua exposição individual na Petit Galerie, no Rio, em 1978.

No capítulo 7, “Veneza 80”, o foco é a 40ª Bienal de Veneza, ocorrida em 1980, quando as obras de Carlos Vergara sobre o carnaval e o CR ganharam destaque internacional. O catálogo e a crítica de Hélio Oiticica sobre o significado daquelas fotografias no circuito de exposições de arte contemporânea brasileira consagraram tanto o bloco como o artista. E, paralelamente, Maurício Barros de Castro chama a atenção para o fato de que, por essa época, o CR converteu-se na base do “pagode” que explodiria nas paradas de sucesso. Afinal, o bloco foi o berço do grupo Fundo de Quintal.

O último capítulo, “Debaixo da tamarineira”, consiste numa entrevista concedida por Bira Presidente (fundador do CR e do Fundo de Quintal) e Carlos Vergara em 20 de junho de 2020, durante a pandemia de Covid-19. Tem-se por essa via o registro da oralidade, da forma como ambos contam a história do bloco, e do reconhecimento mútuo de dois dos principais atores que inspiraram Carnaval-ritual. O autor evidencia outras vozes na articulação do processo que analisa e sinaliza uma preocupação quanto às artes multivocais de compreensão do tempo histórico – uma questão presente entre os praticantes de História Oral e da Antropologia. Aliás, ao longo do livro, são reproduzidos igualmente um texto do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro e diálogos de Hélio Oiticica com Vergara. Esses textos são incorporados à narrativa da obra como documentos de época que servem dar corpo a outras linguagens e perspectivas antropológicas de compreensão da história.

Como se sabe, a tensão entre arte e ciência foi constitutiva dos regimes de visibilidade das fotografias nos séculos XIX e XX, estando na intersecção das práticas de grupos, movimentos e vanguardas que reavaliaram a função das imagens e de sua capacidade de expressão, a partir da expansão da fotografia na cultura popular e dos efeitos da reprodutibilidade das imagens mecânicas. André Rouilé, em A fotografia: entre documento e arte contemporânea10, tratou das várias resistências das galerias e dos artistas em reconhecer as fotografias como integrante do universo estético das artes visuais, contribuindo para a definição de um estatuto e uma ontologia das fotografias, diferenciando-as das artes manuais e vinculando-as ao ato de documentar a realidade e/ou as teorias semióticas do índice. Ao mesmo tempo em que identificou a ordem desse discurso ontológico sobre as imagens fotográficas, Rouilé o criticou e nos falou da importância de se compreender “como as singularidades da fotografia residem em suas maneiras de mesclar, de unir, e até mesmo de cruzar, princípios heterogêneos”.11

Nessa linha, é fundamental considerar a relevância do trabalho fotográfico dos produtores e daqueles que reproduzem a imagem em diferentes circuitos, atentando para as diferenças de práticas e usos das tecnologias, as interlocuções com memórias sociais distintas e as críticas a qualquer discurso abstrato e universalista sobre o que é o fotográfico. Longe das análises platônicas que tomam a imagem fotográfica como uma transparência da realidade ou apenas como registro/documento de uma ideia ou de um determinado tempo (paradigma insistentemente repetido nos livros de História que se prendem à imagem como ilustração e representação do texto escrito ou do real), Carnaval-ritual privilegia as mediações operadas pelo fotógrafo no diálogo com a Antropologia, o CR e a arte contemporânea brasileira, para construir uma visualidade do carnaval carioca na ditadura pós-1964. Assim, repito, estamos distantes da reiteração da concepção da imagem como índice da realidade, na famosa fórmula de Roland Barthes em A câmara clara (1980) acerca do gesto fotográfico.12

Um dos aspectos pouco explorados pelo autor, mas que merecia melhor análise é o vínculo entre a linguagem fotográfica de Carlos Vergara e o universo do fotojornalismo. A primeira aparição do CR no circuito das artes visuais remonta à revista Fatos & Fotos, exibida no salão Bússola do Museu de Arte Moderna, em Nova York, em 1970; e um dos lugares de circulação do trabalho de Vergara foi a revista Malasartes, numa fotorreportagem publicada em 1976. Diga-se de passagem, a fotorreportagem tornou-se uma linguagem bastante significativa nos anos 1960, no embalo das reformas modernizantes dos principais jornais diários do país e da multiplicação de revistas ilustradas que tomavam O Cruzeiro como referência, o que propiciou a regulamentação da profissão de “fotojornalista” em 1969, algo que até então não era reconhecido nas normas que regulamentavam os ofícios de imprensa desde 1938.13

A profissionalização do fotorrepórter transcorreu em meio à aproximação dos praticantes dessa modalidade de jornalismo com o engajamento e resistência à ditadura e ao autoritarismo Brasil, que se expressou de modo radical nas múltiplas imagens dos protestos estudantis de 1968 e nas representações críticas da Guerra do Vietnã. A ação da fotojornalismo inspirou o documentalismo dos anos 1970 e adentrou nas galerias e nas páginas de livros especializados. E esse regime de visibilidade se fez presente na linguagem fotográfica de Vergara ao se acercar do CR.

Tal ressalva não importa em desvalorização de Carnaval-ritual. Nele – o que não é pouco – se expressam o debate vivo sobre a diáspora negra no Rio de Janeiro e o reconhecimento de seu patrimônio cultural. E Maurício Barros de Castro soube conjugar diversificados aspectos dessa história que tem como personagem-chave o bloco Cacique de Ramos, filtrado pelo olhar artístico de Carlos Vergara.

Notas

1 CASTRO, Maurício Barros de. Mestre João Grande: na roda do mundo. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional/Garamond, 2010.

2 Idem e VILHENA, Bernardo. Estácio: vidas e obras. Rio de Janeiro: Retina 78, 2013.

3 Idem, Zicartola: política e samba na casa de Cartola e Dona Zica. 2. ed. Rio de Janeiro: Azougue, 2013.

4 Idem e SANTOS, Myrian Sepúlveda dos (orgs.). Relações raciais e políticas de patrimônio. Rio de Janeiro: Azougue, 2016.

5 Idem, Gilberto Gil: Refavela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2017.

6 Idem, Arte e cultura: ensaios. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

7 SANTOS, Myrian Sepúlveda dos (org.). Nos quintais do samba da Grande Madureira: memória, história e imagens de ontem e hoje. São Paulo: Olhares, 2016.

8 Ver www.museuafrorio.uerj.br

9 DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

10 ROUILLÉ, André. A fotografia: entre documento e arte contemporânea. São Paulo: Senac, 2009.

11 Idem, ibidem, p.197.

12 BARTHES, Roland. A câmara clara: notas sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.

13 Sobre a linguagem do fotojornalismo e sua relevância na cultura visual das décadas de 1960 e 1970, ver MUNTEAL, Oswaldo e MUNTEAL, Larissa Grandi. A imprensa na história do Brasil: fotojornalismo no século XX. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2005; COSTA, Heloise e BURGI, Serge (orgs.). As origens do fotojornalismo no Brasil: um olhar sobre O Cruzeiro. São Paulo: Instituto Moreira Sales, 2012, e LOUZADA, Silvana. Prata da casa: fotógrafos e fotografia no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora UFF, 2013.


Resenhista

Samuel Silva Rodrigues de Oliveira – Doutor em História, Política e Bens Culturais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ). Professor de cursos de ensino técnico e de graduação, bem como do Programa de Pós-graduação em Relações Étnico-Raciais, do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (Cefet-RJ). Pesquisador do CNPq e do programa Jovem Cientista do Nosso Estado, da Faperj. Autor, entre outros livros, de O movimento de favelas de Belo Horizonte. Rio de Janeiro: E-papers, 2010. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

CASTRO, Maurício Barros de. Carnaval-ritual: Carlos Vergara e Cacique de Ramos. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021. Resenha de: OLIVEIRA, Samuel Silva Rodrigues de. Carnaval-ritual: a linguagem fotográfica de Carlos Vergara. ArtCultura. Uberlândia, v. 24, n. 45, p. 262-267, jul./dez. 2022. Acessar publicação original [DR]

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